Outubro de 2010
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ISSN 1806-2776
 
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RESENHAS

Fait Divers
A tinta e o sangue

Por Valéria Guimarães*

KALIFA, Dominique. L'encre et le sang – récits de crimes et société à la Belle Époque. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1995. 352 p. (Collection : Nouvelles Études Historiques).

Pode parecer estranho fazer uma resenha de um livro publicado há quinze anos. Porém sua pouca repercussão no Brasil a justifica. Como o consideramos de grande importância para a História da Cultura, nossa intenção é não só colocar o leitor a par das questões por ele levantadas como também estimular os editores a publicar título de tamanha relevância.

Reprodução

Juntamente com outros intelectuais, Dominique Kalifa inovou a historiografia da imprensa francesa ao repensar o surgimento de uma sociedade de massas considerando o fim do século XIX como o momento-chave para seu florescimento. Ele se dedica à pesquisa do imaginário do crime, seja através da literatura policial, dos faits divers, dos detetives particulares, do submundo ou das prisões, entre outros temas correlatos.

Nesta que é sua primeira obra, um clássico da história cultural francesa, o autor vê o surgimento dos jornais populares de notícias sensacionalistas como ponto de partida para o processo de formação da cultura de massas na França. Embora seja um título antigo, é cada vez mais lido pelos estudantes de história cultural, sendo constantemente citado como um dos mais importantes estudos dos primórdios da imprensa de massas.

O aumento vertiginoso das tiragens, a alfabetização massiva, o aquecimento de uma indústria do entretenimento, todos estes fatores fazem da imprensa francesa da passagem do século XIX ao XX um canal para a difusão de novas práticas de leitura onde o fait divers ocupa lugar central, por ser a peça fundamental da imprensa à sensação. Dentre os variados tipos de fatos diversos, o autor destaca os que versam sobre crime, justificando serem estes os que mais causam fascínio no público.

O livro de Dominique Kalifa é dividido em três partes: La fabrique du crime, L'imaginaire du crime e Lectures du crime. [1]

Na introdução, adverte para a demora dos historiadores em admitir o fait divers como objeto de estudo e relaciona esse descaso ao estigma sofrido pelas folhetinescas notícias de crimes, encaradas como fator de alienação tanto pela crítica político-estética como pela crítica marxista. O estruturalismo foi a primeira corrente a dar importância ao tema, mas com análises de ordem linguística e antropológica.

Concorda que estas narrativas comportavam um pequeno número de motivos, porém ele resgata sua historicidade, não vendo incompatibilidade entre as estruturas imutáveis de um “imaginário ‘primitivo’ e as formas novas que suscita a evolução histórica...”. [2]

Seu recorte vai da Restauração, um "momento privilegiado destas mises en scène" e entra no século XX ultrapassando os marcos da Primeira Guerra, quando o fait divers se transforma em reportagem. No jornal, o caso Troppmann inaugura na imprensa popular nascente a era do fait divers. A história do assassinato de toda uma família no norte de Paris, em 1869, logo ganha as páginas de jornais como Le Petit Journal que dedica ao caso uma crescente atenção, até chegar a várias páginas numa só edição e a tiragens espantosas.

O assassino confesso, Troppman, loiro, belo e visto pela imprensa como homossexual pervertido, era amigo da família e encarnava a antítese da família modelar francesa, fatores de mobilização da opinião pública.

Daí em diante as seções de faits divers, já existentes,se multiplicam. E obedecem, segundo o autor, um imaginário flutuante, que se estende da literatura ao cinema. E se a comunicação pelo jornal perde em dimensão criativa, ganha em termos de atração. Ou seja, a ideia de produção alienante e da perda de qualidade estética devido à crescente estandardização não passa pelas preocupações de Dominique Kalifa, que tem como objetivo dar um tratamento histórico ao objeto. Ele destaca, pois, as novas práticas culturais e de leitura que surgem nesse momento efervescente da história da imprensa.

Na primeira parte, La fabrique du crime, se concentra nas narrativas de crime: fait divers, romances policiais, gravuras, filmes e canções. Traça uma breve genealogia do fait divers que remonta ao início do século XIX e pensa que seu interesse emana da fascinação ambígua pela transgressão.

Ele cita alguns dos diários mais importantes na difusão dos faits divers como Le Petit Parsien, Le Petit Journal, Le Journal, L´Éclair, La Liberté, Paris-Journal, Le Radical, L'Aurore, Le Gaulois, Le Soir, La Lanterre, Excelsior e mesmo as folhas sóbrias como Le Temps são pegas na voga do sensacionalismo.

Na literatura, o crime é privilégio do registro popular mas também o ultrapassa para compor a mídia "burguesa". Forma de ascensão para escritores menores, o gênero policial, aventuras científicas e criminais têm inspiração – e a concorrência – das baratíssimas dime-novel americanas. Estão entre elas os sucessos como Nat Pinkerton, Nick Carter, Zigomar entre outros que entram na feroz competição neste novo campo.

O autor destaca as intensas trocas entre o que ele chama de "literatura legítima" e policial, considerando esta uma escrita intermediária. Percebemos que embora Dominique Kalifa se utilize de dicotomias como "cultura popular" e "legítima", ele já institui neste trabalho a visão cara à história cultural de uma recepção generalizada dos artefatos culturais, ou seja, que não revela uma visão de mundo em particular de classe ou grupo social específico. [3]

Uma prova disso é sua constatação da intensa circulação de faits divers pela produção artística da época, a exemplo das vanguardas modernistas que mostram interesse crescente pelos temas do submundo como Apollinaire, um exímio fait-diversier e autor de romances policiais. Ou de Max Jacob que fundou em 1914 a sociedade de amigos de Fantômas. Não só na literatura, mas no teatro o tema está presente. O mesmo ocorre com o cinema, onde o crime está desde os primórdios.

No início do século XX, novas técnicas do jornalismo são aplicadas ao fait divers, transformando suas descrições selvagens e pitorescas em metódicas e racionais, a despeito da retórica repetitiva. Amplia-se o uso da fotografia e surge a figura do repórter criminal, sendo a enquete seu novo recurso. Acompanhado pela voga do romance policial e do reporterismo, o fenômeno ganha proporções imensas. O repórter não mais se contenta em reportar, mas participa, julga, previne, condena e se torna o herói da trama.

Ao contrário do que ocorreu no Brasil, os faits divers franceses eram assinados, o que possibilitou ao autor compor uma lista de jornalistas que se arriscavam atrás da notícia, da petit reportage, cujo serviço era bem especializado, revelando a consolidação de um jornalismo empresarial. A profissão era ainda calcada na experiência prática mesmo com a fundação de uma escola de jornalismo em 1899.

Alguns repórteres têm rede de informantes, como no famoso affair Casque D'Or de 1902, onde um dos apaches fornecia ao jornalista os detalhes mais improváveis do crime, para deleite dos leitores. [4]

Na segunda parte, L'imaginaire du crime, ele parte da premissa de que o cenário do crime é a cidade e que seus personagens se confundem com as classes perigosas. O autor lança mão da análise clássica de Louis Chevalier em Classes Laborieuses et Classes Dangereuses, onde o crime era visto como conseqüência do desenraizamento e do clima malsão das grandes metrópoles.

O mais fascinante na obra de Kalifa é, sem dúvida, a percepção de que os personagens de faits divers poderiam ter saído de romances. Ele mostra como até as armas que são usadas nas representações do crime no jornal são as mesmas presentes nos livros de ficção.

Há também as representações que exaltam o caráter romântico e boêmio do submundo e as que louvam seu lado libertário. Existe uma tradição de "lamento" (complainte) e da chanson française que canta o crime e que é proveniente dos canards e da Biliothèque Bleue, onde o criminoso conta o próprio crime em primeira pessoa. É um elogio do crime como reapropriação da riqueza, que também transforma o bandido em herói.

Na terceira parte, Lectures du Crime, ele traz exemplos de como o faits divers é estigmatizado, seja pela crença em seu poder de contágio em encorajar o crime, seja pela sua suposta capacidade de exaltação do submundo. O poder judiciário acusa o jornalista de atrapalhar as investigações, de influenciar julgamentos, testemunhas, magistrados etc. Apesar da heroificação do bandido, ele também constata representações negativas, celebrando o triunfo da lei.

Uma grande contribuição desta pesquisa, destacada por Jean-Yves Mollier, é a visão de que o fait divers contribui para a construção de uma memória da cidade, com o "luxo dos detalhes", uma apropriação espacial pelos desenraizados na urbs que crescia. Além de retomarem parte da memória popular, com seu caráter a um só tempo moralizante e didático.

Enfim, Dominique Kalifa nos mostra que os faits divers são históricos – e não apenas fatos sem contexto, explicação de Roland Barthes que ainda continua sendo repetida – excluindo a possibilidade de permanecerem no limbo dos temas "estruturais" e "universais" aos quais se relegava o desprezo da análise histórica.

Tal guinada só foi possível devido à mudança que se operou no olhar do historiador nas últimas décadas. No Brasil, são poucas as pesquisas que se dedicam ao tema no âmbito da história. Um desses sintomas é a ausência de citações ao seu trabalho e da tradução de um livro que serve não só ao estudo de temas marginalizados pela historiografia como o fait divers, mas fornece instrumentos úteis para uma história das representações e do imaginário.

A erudição do autor é notória e sua facilidade em movimentar-se pelas fontes de natureza diversa como imprensa periódica, literatura, cinema e canções garante ao leitor o prazer não só do vasto e instigante conteúdo como de sua prosa elegante e refinada.


NOTAS

[1] "A fábrica do crime", "O imaginário do crime" e "Leituras do crime", respectivamente.

[2] p. 10.

[3] POIRRIER, P. Les enjeux de l'histoire culturelle. Paris: Édition du Seuil, 2004. p. 84.

[4] Casque d'Or era o apelido da namorada de um apache, como eram conhecidos jovens delinqüentes que formavam verdadeiros bandos do crime na Paris do início do século XX. Ela, linda e loura – daí o nome do filme, "Boina Dourada" – começa a ter um caso com um trabalhador. A história de traição logo envolve vários criminosos e a imprensa explora os acontecimentos tecendo um enredo de romance. Nos anos 50, a história migra para as telas de cinema (N.E.: “Casque d'or”, de Jacques Becker, 1952).


*Valéria Guimarães é doutora em história social pela USP, pós-doutoranda pelo COS- PUCSP/FAPESP e pesquisadora associada do CHCSC-UVSQ/FMSH (Paris).

 

 







Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro | ISSN 1806-2776 | Edição 13 | Outubro | 2010
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