Outubro de 2010
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ISSN 1806-2776
 
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MONOGRAFIAS

Imprensa alternativa na ditadura
O modelo cooperativista do jornal Salário Mínimo (1980-1983)

Por Maria do Socorro Furtado Veloso e Ticianne Maria Perdigão Cabral*

RESUMO

Produzido no âmbito do projeto de pesquisa “Imprensa e contra-hegemonia no Rio Grande do Norte”, do Departamento de Comunicação Social da UFRN, o presente trabalho [1] objetiva o estudo do jornal alternativo de maior expressividade na história da imprensa do Rio Grande do Norte: o Salário Mínimo (SM). Apresentando-se como “um jornal com fome de verdade”, o SM circulou em Natal de 1980 a 1983.

Este período foi marcado pela abertura política e por uma severa crise social e econômica, fatores que levaram os governos militares a sucumbirem após duas décadas de regime ditatorial.

Reprodução

Diante desse contexto, o jornal dava ampla cobertura às injustiças sociais e servia, sobretudo, como amplificador da insatisfação popular. Salário Mínimo foi produzido por uma cooperativa de jornalistas. Seu modelo de gestão baseado em princípios do cooperativismo apontava para jornalismo mais crítico e autônomo. Utilizando como procedimento metodológico a pesquisa bibliográfica, pesquisa documental, entrevistas e a análise de conteúdo, o artigo aborda a história, organização e perfil editorial do Salário Mínimo, buscando evidenciar sua relevância para a história do jornalismo do RN e suas contribuições para o processo de democratização da informação.

PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo Alternativo / Imprensa Regional / Salário Mínimo

1. Introdução

A história do jornalismo brasileiro na segunda metade do século 20 registra um importante período de resistência à monopolização da palavra impressa pelas elites: trata-se do surgimento e disseminação dos chamados jornais alternativos. Esse fenômeno, que ocorreu após a queda do presidente João Goulart e instauração do regime militar, é marcado pelo surgimento de cerca de 150 títulos entre os anos de 1964 e 1980 (KUCINSKI, 1991). Antes, a imprensa brasileira só registra impulso da mesma natureza na proliferação dos pasquins, ocorrida na primeira metade do século 19, em meio às lutas políticas contra Portugal.

Em Jornalistas e Revolucionários (1991), Bernardo Kucinski analisa o aparecimento e expansão dos jornais alternativos durante a ditadura militar e constrói um sólido conceito em torno de seu significado. Em contraponto à complacência da grande imprensa para com o regime dos generais, diz Kucinski (1991:XIII), “os jornais alternativos denunciavam sistematicamente as torturas e violações dos direitos humanos e faziam a crítica do modelo econômico. (...) Opunham-se por princípio ao discurso oficial”.

Dos jornais mapeados na referida obra, o Salário Mínimo – que neste trabalho também será chamado de SM – é o único citado como exemplo de imprensa alternativa existente no Rio Grande do Norte durante a ditadura militar.

Sob o slogan “Um jornal com fome de verdade”, o SM circulou entre 1980 e 1983 com 19 edições. Suas matérias eram marcadas por uma forte crítica ao modelo econômico e político vigente. O jornal foi fundado no início dos anos 1980, período em que a ditadura dava claros sinais de desgaste e que movimentos sociais atuavam vigorosamente, abrindo caminho para a redemocratização.

Utilizando como procedimento metodológico a pesquisa bibliográfica, pesquisa documental, entrevistas e análise de conteúdo, este artigo aborda a história, organização e perfil editorial do Salário Mínimo. O objetivo é evidenciar a relevância do jornal para a história da imprensa do RN e suas contribuições ao processo de democratização da informação.

2. A formação da Coojornat

A censura e o autoritarismo típicos do regime militar serviram como estímulo para uma nova geração construir espaços de aglutinação de interesses em torno das alternativas de oposição. Essas inquietações deram espaço ao aparecimento de jornais alternativos:

Compartilhavam [jornalistas, intelectuais e ativistas políticos], em grande parte, um mesmo imaginário social, ou seja, um mesmo conjunto de crenças, significações e desejos, alguns conscientes e até expressos na forma de uma ideologia, outros ocultos, na forma de um inconsciente coletivo. À medida que se modificava o imaginário social e com ele o tipo de articulação entre os jornalistas, intelectuais e ativistas políticos, instituíam-se novas modalidades de jornais alternativos. (Cf. KUCINSKI, 1991:XVI).

A censura se encarregava de manter boa parte da sociedade desinformada, impedindo a população de despertar para a participação política. Enquanto isso, o Brasil enfrentava uma grave crise econômica e o Estado sistematicamente desrespeitava os direitos humanos. As universidades representavam um centro polarizador de estudantes e professores que não aceitavam com facilidade as imposições do regime. Em face da comunhão de interesses, esta fase foi marcada também pela aproximação da academia com as classes sociais.

Recém-contratado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, o jornalista e professor Carlos Eduardo Lins da Silva comenta esse período:

Era um momento muito rico porque o regime militar estava se esvaindo. Havia muitas brechas, muitas oportunidades para você tentar atuar. E a gente tentava aproveitar essas oportunidades. [...] Era um momento de muita fermentação. A minha geração tinha um desejo enorme de retribuir aos brasileiros o dinheiro do contribuinte que financiava nossos estudos. [2]

Então estudante de Comunicação Social da UFRN, o jornalista Osair Vasconcelos compartilhou deste cenário: “A gente realizou o sonho de todo intelectual, de todo estudante dos anos 60 e 70, que era se aproximar do trabalhador. E nós conseguimos”. [3]

Movido pelo interesse de criar um espaço alternativo no qual pudesse se expressar livremente, Osair Vasconcelos viajou a Porto Alegre para conhecer a experiência do Coojornal, uma cooperativa de serviços jornalísticos. Trata-se de um dos modelos mais bem sucedidos de criação e gestão de produtos de comunicação autônomos no período ditatorial. Porto Alegre já possuía uma tradição cooperativista em diversos campos e não demorou muito para transferir tal modelo para o jornalismo.

Publicando um jornal com título análogo, o Coojornal, alcançou projeção em todo o País. Com distribuição nacional e tiragem que chegou a 35 mil cópias, o veículo demonstrou na prática que uma nova forma de propriedade e gerenciamento no jornalismo alternativo brasileiro poderia dar certo.

A viagem de Osair Vasconcelos só foi possível porque um grupo de estudantes e professores se uniu para financiar a passagem. A tentativa era fomentar uma experiência local semelhante à gaúcha. E deu certo. Natal, além de ter sido a segunda cidade a fundar uma cooperativa de jornalistas do Brasil, a Coojornat, também sediou, em 1978, o Primeiro Encontro Nacional de Cooperativistas de Jornalismo.

A Cooperativa dos Jornalistas de Natal Ltda. – Coojornat foi fundada em 1° de outubro de 1977 por um grupo de 43 pessoas, sendo 25 profissionais e 18 alunos de jornalismo.

Tanto no Rio Grande do Norte quanto no Rio Grande do Sul os estudantes e jornalistas recém-formados participavam ativamente da cooperativa, aproveitando o novo mercado de trabalho. Conta Osair:

Quando fundamos a cooperativa eu ainda era estudante. O primeiro presidente, o vice e o secretário eram estudantes (...). Havia uma geração de jornalistas novos que se uniram aos jornalistas mais antigos que eram de esquerda. Nos misturamos com essa geração mais antiga, mas não tão antiga quanto aqueles jornalistas da era romântica, que trabalhavam de dia e bebiam a noite toda, até dormir no birô. (4)

O jornalista Sávio Hackradt também era estudante e participou da fundação da Coojornat. “Eu comecei a trabalhar no primeiro semestre da universidade. (...) Tínhamos [os estudantes] uma participação política muito ativa”. [5] Na época da fundação do Coojornat, os jornais alternativos ainda circulavam com intensidade. Até meados de 1976, O Pasquim, do Rio de Janeiro, e o Versus, de São Paulo, por exemplo, alcançavam a média de 50 mil e 20 mil exemplares, respectivamente.

A Coojornat, no entanto, tinha organização e gestão que a diferenciavam dos demais jornais alternativos. Primeiro porque as cooperativas não se limitavam à produção de apenas um jornal. A entidade potiguar desenvolveu diversas atividades como produção de jornais de bairros e sindicatos, publicação de livros e realização de programas de rádio e TV. Depois porque, apesar de agregar diversas correntes de esquerda, o jornal nunca declarou um posicionamento ideológico específico.

A estrutura de cooperativa contribuiu para a formação desse espírito mais aberto e de socialização de objetivos e interesses. Sávio Hackradt acrescenta: “Para mim, a experiência mais interessante, mais rica, na qual aprendi muito, foi a de gestão coletiva. É importante quando você consegue, dentro de pensamentos tão diferentes, construir consensos”. [6]

No entanto, apesar da cooperativa oferecer uma possibilidade mais ampla de autonomia financeira devido à quantidade de produtos que abriam vias de sustentabilidade, a ata de fundação enfatizava claramente a rejeição a “qualquer objeto de lucro” (Cf. OLIVEIRA, 1995:77). Segundo Bernardo Kucinski (1991), essa rejeição ao lucro como forma de combate ao capitalismo culminou no fim da maioria dos jornais alternativos, que não conseguiram equilíbrio financeiro para se manter.

Já em funcionamento, os primeiros trabalhos da Coojornat objetivaram regularizar a situação administrativa e jurídica da entidade. O processo de estruturação teve assessoramento técnico da Coordenadoria de Cooperativismo da Secretaria de Agricultura do Estado. Em seguida, o jornal promoveu encontros culturais e outros eventos. O primeiro convidado foi o cartunista Henfil, que residia em Natal e apoiou a cooperativa doando a primeira linha de telefone.

Os integrantes da Coojornat possuíam uma forte atuação política em defesa da restauração da democracia. Além da cooperativa, era comum a participação dos jornalistas em outros espaços da sociedade civil. Movimentos a favor da anistia e dos direitos humanos, dos trabalhadores rurais, dos estudantes e das feministas estavam permanentemente na agenda. Essas articulações geravam diversos produtos jornalísticos. Criado pela cooperativa – como se verá adiante –, o jornal Salário Mínimo comentou em editorial, na edição comemorativa do seu primeiro aniversário de fundação:

Entre seu surgimento e o lançamento do jornal, a Coojornat assumiu na cidade outros espaços: promoveu cursos, fez jornais de bairros, disseminou jornais de empresas – criando opções de trabalho para os profissionais recém-saídos da escola – elaborou programas de televisão sobre o meio rural, integrou a classe e colaborou firmemente no surgimento de uma consciência de classe que desaguou na criação do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Norte, sonho longamente acalentado. [7]

Definida na ata de fundação, a estrutura organizacional da cooperativa era formada pelos conselhos administrativo e fiscal, e tinha a assembléia como órgão soberano. Nos objetivos gerais não havia nada mais do que o simples desejo que movia diversos jornais alternativos da época: a produção de veículos jornalísticos de forma independente e autônoma. O jornalista Dermi Azevedo [8] participou da fundação da Coojornat:

Naquele momento em que a cooperativa nasceu estávamos em plena luta contra a ditadura. Na segunda etapa dessa luta, vamos dizer assim, já havia alguns sinais apontando para a redemocratização do país. E havia também um esforço muito grande dos jornalistas por serem não só assalariados, mas também produtores dos meios de comunicação [de veículos ligados à Coojornat]. (Cf. OLIVEIRA, 1995:67).

3. A criação do Salário Mínimo

Em abril de 1980, três anos após a fundação da Coojornat, circulou a primeira edição do jornal Salário Mínimo. Segundo Osair Vasconcelos, a sugestão de nome partiu de Carlos Eduardo Lins da Silva. Sob o epíteto “Um jornal com fome de verdade”, o nome sugeria de maneira imediata sua vinculação às classes populares.

De fato, essa opção em defender e amplificar as reivindicações das classes subalternas é a principal característica do jornal. Na primeira edição, o Salário Mínimo dimensionou claramente sua escolha a partir da publicação de uma reportagem segundo a qual 63% dos trabalhadores potiguares possuíam renda igual ou inferior a um salário mínimo.

No livro A esquerda em questão, editado pela Coojornat em 1991, um dos jornalistas mais participativos do Salário Mínimo, Luciano Almeida, explicita a proposta do SM:

O projeto editorial do Salário Mínimo tinha três vertentes principais: preservar uma posição autônoma em face do Estado e dos partidos políticos emergentes; expor à opinião pública a dura realidade social vivida pelos oprimidos do Rio Grande do Norte, daí seu slogan: “um jornal com fome de verdade”, e finalmente assegurar a participação democrática dos jornalistas e entidades representativas na gestão e produção do jornal. (Cf. ALMEIDA, Apud: OLIVEIRA, 1995:118).

Vivenciando a recente abertura política, a necessidade de dar voz aos excluídos e de ter mais participação política era evidente. Neste período ganharam força os movimentos sociais, como os dos estudantes e dos trabalhadores rurais, por exemplo. O jornal Salário Mínimo aparece nesse contexto, defendendo os interesses das classes socialmente menos favorecidas, que sofriam as conseqüências das seguidas políticas econômicas equivocadas.

Tais pretensões também foram declaradas no editorial da primeira edição: “Ao mesmo tempo em que demarca uma firme linha de independência face ao Estado e aos partidos políticos existentes na sociedade, ‘Salário Mínimo’ pretende, decididamente, colocar-se no campo dos oprimidos” (Apud: OLIVEIRA, 1995:67). O editorial permite compreender o jornal na perspectiva conceitual do termo alternativo defendida por Kucinski (1991:XIII):

(...) o de algo que não está ligado a políticas dominantes; o de uma opção entre duas coisas reciprocamente excludentes; o de única saída para uma situação difícil e, finalmente, o desejo das gerações dos anos 60 e 70, de protagonizar as transformações sociais que pregavam.

A principal marca dos jornais alternativos neste período é, de fato, a oposição ao regime. Dentro desta linha, Salário Mínimo abriu espaço a reportagens com abordagem diferente daquela presente nos jornais tradicionais, enquanto questionava o tipo de política praticada no Brasil e no Rio Grande do Norte.

A jornalista Sirleide Pereira sintetiza o diferencial do SM em relação aos jornais comerciais da cidade, ao mesmo tempo em que agrega o valor de sua existência:

Era a clareza do posicionamento político, a clareza de que o jornalismo não é neutro, que o jornalismo não é apenas uma mercadoria de troca, mas um meio de educação do povo. A clareza da função social do jornalismo, o jornalismo que também estava a serviço da educação e da cidadania. [9]

Na tentativa de coibir os jornais alternativos, o regime produziu um documento caracterizando esse tipo de imprensa para melhor identificá-la. O documento foi criado pelo Centro de Informação do Exército – CIEX, um dos órgãos dirigidos pelo Serviço Nacional de Informação do Exército. Tal relatório enumera algumas características da imprensa alternativa:

Formada por grupos de jornalistas sem espaço na imprensa tradicional, geralmente através de formação cooperativistas; apresentava tiragens de proporções reduzidas (...), mas concorria em faixas especiais do mercado obtendo margem razoável de lucro; não dava importância em construir um esquema empresarial, nos moldes tradicionais e era produzida de forma semi-artesanal e com a presença de um elevado número de pessoas integrando os órgãos de direção, administração e edição. (Cf. OLIVEIRA, 1995:28).

A proposta da Coojornat foi de encontro à forma tradicional de propriedade capitalista dos meios de comunicação existentes em Natal naquele período. Com postura crítica embasada na Escola de Frankfurt, os formuladores do Salário Mínimo almejavam o reconhecimento dos trabalhadores dentro de um espaço político e social representativo.

O Salário Mínimo comemorou seu primeiro ano de existência com a edição número 12, que teve 32 páginas e tiragem de 2.500 cópias. O editorial daquela edição expressa as razões da criação do SM: O Salário Mínimo nasceu há um ano fruto da inquietação de um grupo de jornalistas que pretendia dar à cidade uma nova alternativa de informação. (...) E por que um jornal de jornalistas? (...) O jornal é dos jornalistas para que eles possam exercer a profissão de acordo com os seus princípios: liberdade de informação, senso crítico, inconformismo. E o jornal serve também para os jornalistas que o fazem marcar sua presença na vida política do País e do Estado, deixando de ir a reboque dos editoriais dos patrões. [10]

Outra característica inovadora do Salário Mínimo foi a implementação do Conselho de Opinião. O Conselho foi a maneira que jornal encontrou de solidificar seu engajamento junto aos movimentos populares do Estado. Seus integrantes propunham temas à pauta, analisavam criticamente o jornal e também contribuíam na distribuição. O expediente da 12ª edição apresenta como membros do Conselho de Opinião:

Sindicatos: Jornalistas, Gráficos, Bancários e Trabalhadores Rurais. Associação: Geólogos, Médicos Residentes, Moradores de Lagoa Seca, Docentes da UFRN, Professores. Diretórios Acadêmicos: Saúde, Exatas, Humanas. DCE da UFRN. Centro Acadêmico de Odontologia. OAB/RN, CEBES/RN, IAB/RN, Pastoral Operária e Pastoral da Juventude, Centro da Mulher Natalense, SEDEA, SDDH/Igapó, MEB, SAR, CPJP – Arquidiocese de Natal, Centro de Estudos Afro Brasileiros, Conselho Comunitário das Quintas, CEM do PT, CM–PMDB, ACR, Ordem dos Pastores Evangélicos do RN.

Além do apoio dos movimentos sociais, a Igreja Católica e outras organizações religiosas tiveram papel fundamental na manutenção do jornal. Foi o caso da Coordenadoria Ecumênica de Serviços – CESE, sediada em Salvador e que oferecia suporte financeiro, e ainda a Comissão Interclesiástica para Projetos de Desenvolvimento da Holanda – ICCO, que financiou um parque gráfico para a implantação do SM. E ainda que não tenha adotado o discurso religioso em suas páginas, o Salário Mínimo reconhecia na Igreja um importante ator de desenvolvimento social.

4. Perfil do jornal

O Salário Mínimo circulou de 1980 a 1983 em Natal e em cidades próximas. No primeiro ano o jornal teve periodicidade regular, com edições mensais. Nos dois últimos, contudo, saíram apenas sete edições. A inconstância na periodicidade se deve principalmente às precárias condições financeiras, segundo justificam os editores no número 16:

Estamos de volta. Já é a segunda vez que prometemos regularizar a situação do Salário Mínimo. Desta feita esperamos cumprir com a palavra. Não era desejo nosso a interrupção da circulação deste que é a única possibilidade democrática de utilização dos meios de comunicação no Rio Grande do Norte. (...) Muitas foram as dificuldades, máquinas quebradas, dívidas, falta de material e, principalmente, uma certa falta de apoio das pessoas que têm quase a obrigação de participar. [11]

Tomando por referência os títulos catalogados por Kucinski entre 1964 e 1980, as 19 edições do SM representam um número considerável, já que a maioria dos jornais alternativos não sobreviveu à sexta edição.

A distribuição era feita em bancas de jornal, sindicatos, entidades e pelos próprios jornalistas e colaboradores. Depois da 5ª edição foi realizada uma campanha para angariar assinaturas. Com exceção da edição 12, as outras tinham 12 páginas e tiragem de mil exemplares. O formato seguia o padrão dos jornais populares: tabloide, com 29 cm de largura e 35,5 cm de altura. No entanto, duas das edições analisadas se apresentaram no formato conhecido como tablete, com 20 cm de largura e 30 cm de altura. Internamente, o conteúdo era dividido em quatro colunas de 5,5 cm cada para o formato tabloide e de três colunas do mesmo tamanho no formato tablete.

O SM era impresso em preto e branco, em papel jornal comum. As capas geralmente traziam uma ou duas fotografias em destaque ocupando meia página e pelo menos três chamadas.

O jornal não contava com seções fixas, como será possível observar na Tabela 1. Em oito edições a que se teve acesso durante a pesquisa, somente o editorial estava presente em todas. Em duas edições foi registrada a presença das seções “Colunão” e em quatro, da “Boca Aberta”. As duas traziam pequenas notas de protestos e, apesar da alteração do nome, tinham as mesmas características.

Na edição 12, especial de aniversário, Salário Mínimo apresentou sua versão mais completa, com uma coluna extra denominada de “Tribuna Livre”, que trazia notas, cartas abertas à população e uma poesia. Faltou somente a edição de cartas dos leitores.

Uma pequena nota, intitulada “Ao leitor”, era editada na primeira página do SM e funcionava como aviso, por exemplo, de que se tratava de uma edição de aniversário ou sobre o reajuste no preço do jornal. A seção de charges apareceu em todos os jornais analisados que possuíam formato tabloide. Era disposta na segunda página do jornal ou na última, quando ocupava a página inteira. A coluna “Debate” abrigava artigos de opinião assinados. A seção de entrevistas abriu espaço a personalidades de referência na oposição ao regime militar, como o frei Leonardo Boff, na edição 12, e o deputado cassado Mário Covas já na edição seguinte.   

 
Salário Mínimo - Seções
Edição Editorial Ao
leitor
Cartas Charge Colunão Boca Aberta Entrev. Debate Tribuna Livre
Ed. 03
X
X
X
X
Ed. 06
X
X
X
X
Ed. 12
X
X
X
X
X
X
X
Ed. 13
X
X
X
X
X
Ed. 16
X
X
Ed. 17
X
X
Ed. 18
X
X
Ed. 19
X
X
X
Tab 1. Salário Mínimo – Seções.

A maioria das matérias de jornal não era assinada. Segundo o jornalista Osair Vasconcelos, a ausência de assinatura era uma forma de proteger os repórteres de perseguições políticas. Osair lembra, ainda, que alguns jornalistas sequer expuseram o nome no expediente do jornal. Na edição de número 3, faziam parte do SM:

Conselho de Administração: Dermi Azevedo, Arlindo de Melo Freire, Sávio Ximenes Hackradt, Thaís Marques e Osair José Vasconcelos de Medeiros. Participantes: Dermi Azevedo, Arlindo de Melo Freire, Sávio Ximenes Hackradt, Thaís Marques e Osair José Vasconcelos de Medeiros, Aluísio Lacerda, Maria Auxiliadora Olímpio Guedes Hackradt, Ubirajara Macedo, José Flamínio de Oliveira, Paulo Lima, Ismael Mendes, Alda Leda Freire, Margareth Rose Martins e Walter Bezerra. [12]

De acordo com Kucinski (1991:68), o “seu conteúdo [do Salário Mínimo] era relativamente convencional, e a despeito das intenções, era pouco diversificado e criativo”. Quase todas as matérias do SM dedicavam espaço às reivindicações sociais e políticas. Não havia outras temáticas, como cultura ou esportes, presentes em suas páginas. As pautas eram baseadas em problemas que a população enfrentava, denúncias, relatos da má qualidade de vida. Entre os temas abordados também estavam reivindicações da universidade e dos sindicatos, problemas no campo e corrupção política.

Salário Mínimo
abriu espaço a reportagens com abordagem diferente daquela praticada nos jornais tradicionais. O jornal apresentou as relações trabalhistas segundo o ponto de vista dos empregados, defendendo os embates por direitos desta classe. A matéria “Exploradas e mal pagas são as trabalhadoras têxteis”, da edição 12, de abril de 1981, expressa, pela maneira com que trata o problema, as principais características defendidas pelo projeto editorial do SM:

Manhã cedo.

Acorda às pressas, cuida rápido das coisas de casa, procura orientar os filhos de como passar mais um dia com a vizinhança ou sozinho. Toma café com pão rápido – sem manteiga - e lá vai ela correndo para não perder o ônibus. Empurra, dá um jeitinho de todo brasileiro, não dá para passar na borboleta, discute com o cobrador. Enfim, chega ao destino: - Portão de mais uma fábrica. Objetivo: - trabalhar para ganhar a vida. Recompensa: - desgaste físico, cansaço, irritação e abusos de toda a espécie e no final do mês um salário irrisório que mal dá para comer. [13]

A forma de narração caracteriza o estilo de reportagem do SM, quando o jornal tenta descrever uma história da vida particular, mas que, ao mesmo tempo, remete a tantos outros que vivem em situação similar. A reportagem obteve forte repercussão por expor a realidade de um grande grupo de trabalhadoras que todos os dias eram vistas comendo nos canteiros de uma das avenidas mais movimentadas de Natal, a Bernardo Vieira. A jornalista que escreveu a matéria, Sirleide Pereira, relembra:

(...) essa matéria repercutiu não porque trouxe coisas que nunca foram faladas, mas porque a maneira de narrar, de expor as emoções, os sentimentos, as frustrações, as limitações de direito é que deram possibilidade de as pessoas verificarem aquele universo. Que aquela realidade das operárias das fábricas era monstruosa. [14]

Em outro trecho são descritas as condições de trabalho:

Lá dentro tudo é controlado ou negociado. Para ir ao banheiro tem que ter ficha. Três por cada sessão no máximo e 5 minutos para atender qualquer necessidade fisiológica. Se precisar ir à enfermaria ou fazer consulta passa pelos mesmos critérios (...). Há também as punições. Se saiu e não voltou desconta do salário um dia de trabalho. Se está descalça, mesmo sem estar na máquina, pode ser suspensa. Se não aceitar fazer hora extra, entra na “lista negra”. [15]

Outras edições também denunciaram as condições das trabalhadoras das empresas têxteis. É o caso da matéria “Assim vivem nossas operárias: exploradas e mal alimentadas”, da edição nº 3, de 1980. Um das empresas denunciadas foi a Guararapes, hoje o principal grupo empresarial do Rio Grande do Norte. Possui duas empresas têxteis, a cadeia de lojas Riachuelo e o Shopping Midway Mall

Além do retrato das péssimas condições a que muitos trabalhadores estavam submetidos, outro grande foco do SM era a forma de organização dos sindicatos, as greves, os pedidos de aumento de salário. Na edição 16, publicada em março de 1982, as reportagens demonstram tal prioridade. A matéria de capa é “Trabalhador vai às ruas contra o rombo da previdência”. No decorrer da edição outros exemplos: “Professores iniciam campanha salarial 82”; “Docentes universitários definem normas de luta para este ano” e “Sindicato dos jornalistas luta por dissídio e entendimento”.

Depois do número 16, o jornal ainda circularia com três edições antes de encerrar suas atividades, em 1983. Um conjunto de fatores financeiros, profissionais e ideológicos pode justificar a irregularidade da publicação. Certamente, a falta de sustentabilidade financeira foi a principal dificuldade encontrada pelos jornais alternativos que circularam durante a ditadura militar. A ausência de anunciantes e as dificuldades de distribuição diminuíam sua renda.

Para Osair Vasconcelos, contudo, fatores profissionais foram a principal razão para o fim do SM. Segundo ele, a geração de jornalistas começou o jornal muito jovem e, com o passar do tempo, teve de entrar no mercado de trabalho tradicional para se sustentar.

Já Sávio Hackrade menciona questões ideológicas como causa do desinteresse. Para ele, à medida que o país retornou ao ambiente democrático, perdeu-se o sentido de um “local único para discussão de ideias”. [16]

A última edição do SM, de número 19, não trouxe nenhuma nota de despedida; pelo contrário, aclamava sua volta. O que nos faz concluir que os jornalistas não tinham intenção de fechar as portas do jornal.

5. Considerações finais

Conhecer a história do Salário Mínimo é fundamental para elucidar a importância do jornalismo alternativo como canal de resistência social e amplificação de vozes no Rio Grande do Norte, durante a ditadura militar. Suas páginas reproduzem um importante retrato da realidade social, política e econômica daquele período.

Em uma época em que o jornal impresso era o principal meio difusor de informação, Salário Mínimo ofereceu contribuições à reconstituição do espaço público local e ao processo de abertura política. O SM foi um produto gerido por um grupo de pessoas que buscavam contribuir com a sociedade na qual estavam inseridas, usando a ferramenta que tinham: a comunicação. Seu trabalho é exemplo de um jornalismo que se preocupa com a verdade dos fatos, que possui postura ética e não se submete a interesses externos que interfiram no compromisso com a sociedade.

A ideia de formar a segunda cooperativa de jornalistas do Brasil e por em circulação um jornal alternativo no início dos anos 80 foram atitudes, no mínimo, ousadas para a Natal provinciana da época. Responsável pelo jornal, a Coojornat se infiltrou nos movimentos sociais, vivenciando suas lutas.

Da mesma forma, o Salário Mínimo não se satisfazia apenas com a tarefa de noticiar. Suas matérias eram análises de aspectos da realidade social e buscavam incentivar o leitor à participação política. O SM aglutinava reivindicações por direitos básicos, como saúde, educação e moradia e contribuía na mobilização e conscientização para alcançá-los.

Além de documento histórico, o SM representou o desejo de uma nova geração de defender a liberdade de expressão por meio da informação independente e autônoma. Como legado, deixa a evidência de que é possível exercitar a informação de caráter pluralista mesmo diante das restrições impostas pelas elites no poder, representando uma forma diferente da prática jornalística.

Trinta anos após o primeiro número ir às ruas, Salário Mínimo é um exemplo para as futuras gerações de jornalistas e um marco para a imprensa no Rio Grande do Norte.


NOTAS

[1] Texto originalmente apresentado ao I Encontro de História da Mídia do Nordeste (GT de Mídia Alternativa), realizado em maio de 2010 na UFRN.

[2] Entrevista concedida por Carlos Eduardo Lins da Silva a Ticianne Perdigão em 27 nov. 2009. Lins da Silva trabalha no jornal Folha de S.Paulo, onde recentemente ocupou o cargo de ombudsman.

[3] Entrevista concedida por Osair Vasconcelos a Ticianne Perdigão em 23 abr. 2010. Vasconcelos trabalha como jornalista na Band Natal e lançou em 2010 o livro "A cidade que ninguém inventou".

[4] Entrevista concedida por Osair Vasconcelos a Ticianne Perdigão em 23 abr. de 2010.

[5] Entrevista concedida por Sávio Hackradt a Ticianne Perdigão em 23 abr. 2010.

[6] Idem.

[7] “Um ano de Salário Mínimo”. Salário Mínimo, Natal/RN, nº 12, p. 2, abr. 1981. Editorial.

[8] Dermi Azevedo é doutor em ciências políticas pela USP e assessor técnico da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania de São Paulo.

[9] Entrevista concedida por Sirleide Pereira a Ticianne Perdigão, em 26 maio 2010.

[10] “Um ano de Salário Mínimo” (editorial). Salário Mínimo. Natal/RN, nº 12, p. 2, abr. 1981.

[11] “Hora de voltar, boca aberta”. Salário Mínimo. Natal/RN, nº 16, p. 9, mar. 1992.

[12] Expediente. Salário Mínimo. Natal/RN, nº 3, p. 4, jul. 1980.

[13] “Exploradas e mal pagas são as trabalhadoras têxteis”. Salário Mínimo. Natal/RN, nº 12, p. 5, abr. 1981.

[14] Entrevista concedida por Sirleide Pereira a Ticianne Perdigão, em 26 de maio de 2010.

[15] “Exploradas e mal pagas são as trabalhadoras têxteis”. Salário Mínimo. Natal/RN, nº 12, p. 5, abr. 1981.

[16] Entrevista concedida por Sávio Hackradt a Ticianne Perdigão em 23 abr. 2010.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KUCINSKI, B. Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Scritta, 1991.

OLIVEIRA, A. L. “Quando o povo é notícia: um estudo de um jornal alternativo e popular”. Dissertação de mestrado em ciências sociais, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, UFRN, Natal/RN, 1995. 193 p.

SALÁRIO MÍNIMO. “Um ano de Salário Mínimo”. Salário Mínimo, Natal/RN, nº 12, p. 2, abr. 1981. Editorial.

______________. “Hora de voltar, boca aberta”. Salário Mínimo, Natal/RN, nº 16, p. 9, mar. 1992.

______________. S/r. Salário Mínimo, Natal/RN, nº 3, p. 4, jul. 1980. Expediente.


______________. Edições nº 3 (jul. 1980), nº 6 (out. 1980), nº 12 (abr. 1981), nº 13 (mai. 1981), nº 16 (mar. 1982), nº 17 (mai. 1982), nº 18 (mar. 1983) e nº 19 (abr. 1983).


ENTREVISTAS


HACKRADT, Sávio. Concedida a Ticianne Perdigão em 23 de abril de 2010. Natal/RN. (Gravação).

LINS DA SILVA, Carlos Eduardo. Concedida a Ticianne Perdigão em 27 de novembro de 2009. Natal/RN. (Gravação).

PEREIRA, Sirleide. Concedida a Ticianne Perdigão em 26 de maio de 2010. Natal/RN. (Gravação).

VASCONCELOS, Osair. Concedida a Ticianne Perdigão em 23 de abril de 2010. Natal/RN. (Gravação).


*Maria do Socorro Furtado Veloso é doutora em ciências da comunicação pela ECA/USP e professora adjunta do departamento de comunicação social da UFRN. Ticianne Maria Perdigão Cabral é graduanda do curso de jornalismo e bolsista de iniciação científica da UFRN.

 

 







Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro | ISSN 1806-2776 | Edição 13 | Outubro | 2010
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