Outubro de 2010
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ISSN 1806-2776
 
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MONOGRAFIAS

Imprensa e escândalo político
O caso do presidente do Senado Brasileiro, Renan Calheiros

Por Derval Gomes Golzio, Raquel de Medeiros Araújo e Rostand A. Melo*

RESUMO

A relação entre imprensa e democracia sempre foi vista como inseparável. Nas recentes democracias latino-americanas essa relação tem se fortalecido ano a ano e um dos exemplos mais profícuos tem se registrado no Brasil.

Após uma passagem conflituosa do regime autoritário para a “democracia plena”, o aperfeiçoamento das instituições políticas tem sido acompanhado de perto por uma imprensa profundamente fiscalizadora no trato da coisa pública, denunciando constantes atos de corrupção que envolve governos, parlamentares e empresários de setores diversos.


Veja, Edição 2014. Reprodução.

Passado o período autoritário, a imprensa registrou com mais desenvoltura pelo menos dez grandes casos de corrupção de abrangência e interesse nacional, entre eles o que redundou no impeachment do presidente da República, Fernando Collor, em 1992. O mais recente deles envolve o ex-presidente do Senado, Renan Calheiros (Partido do Movimento Democrático Brasileiro, PMDB, pelo estado de Alagoas).

O caso ganhou destaque não apenas por ter como protagonista um dos cargos de maior importância na hierarquia do país (presidência do Senado), mas, sobretudo, por integrar as tipologias de escândalos midiáticos classificados por Thompson (2002): sexual, financeiro e de poder na esfera política.

Este paper [1] é o resultado de uma análise de conteúdo das informações de 28 edições da revista de maior circulação no Brasil, a Veja, no período de 23/05 a 28/11 de 2007, sobre os vários tipos de escândalos midiáticos que envolveram o senador Renan Calheiros, no exercício da presidência do Senado da República.

PALAVRAS-CHAVE: Democracia / Jornalismo Político / Imprensa

1. Introdução

O Brasil é uma república recente entrecortada de poucos períodos de prevalência de democracia plena. Como em muitos países da América Latina, a estabilidade do regime político brasileiro já sofreu diversos solavancos e manobras autoritárias que ergueram barreiras frente à cidadania integral, privada da legitimidade de direitos políticos, civis e sociais. Um cenário marcado por tensões que só foram distendidas com o restabelecimento dos processos eleitorais e da liberdade de imprensa.

É nesse clima favorável ao acesso e liberdade à informação que a imprensa brasileira passa a acompanhar com maior desenvoltura o papel das instituições públicas e seus personagens, fomentando diálogos e questionamentos sobre eficiência, transparência e cumprimento das regras estabelecidas para o pleno funcionamento do estado democrático.

Assim, desde a abertura do processo da redemocratização brasileira – deixando para trás o silêncio imposto pela censura do regime militar -, a mídia, em particular a imprensa, tem sido espaço de visibilidade para uma série de escândalos que permeiam a vida política do país. As denúncias ganharam ritmo desde a liberalização deflagrada pela revogação parcial da censura, em 1974, com a ascensão do general Ernesto Geisel à Presidência da República.

Ainda dentro do projeto de distensão “gradual e segura” do autoritarismo rumo à democracia, as inquietações suscitadas pelos conflitos internos nas forças armadas, problemas de ordem econômica e mudanças na estrutura política levaram o general Ernesto Geisel a buscar o resgate da legitimidade do regime ameaçado pelo alto grau de concentração que conduzia o Estado à ineficiência. Esse quadro delineava a necessidade de ampliar os canais de informação como forma de reverter tal situação.

A liberalização da imprensa, de acordo com Abreu (2005), foi um dos pontos estratégicos adotados para que o então governo militar conduzido por Geisel controlasse os órgãos de segurança nacional e a burocracia estatal que fazia uso do expediente da censura para a prática de abusos nas instâncias administrativas.

O controle da corrupção tornou-se uma das preocupações do governo Geisel, e nesse contexto a imprensa abriu espaço para a publicação de reportagens de denúncia de corrupção na administração pública. O governo incentivou, assim, a valorização na imprensa brasileira do jornalismo investigativo, que ao longo do processo de redemocratização foi adquirindo as características do “denuncismo”. (Cf. ABREU, 2005:59).

No entanto, a liberalização só alcançou avanço expressivo no ano de 1978, com a revogação do Ato Institucional Nº 5 após uma década do vigor da censura. Face às mudanças significativas no cenário político com o fim do bipartidarismo e a realização de processos eleitorais legislativos em condições mais livres, essa linha de tempo que configura a transição democrática entre os anos de 1974 e 1989 registra o movimento das “Diretas Já” (1984) com ampla cobertura da imprensa formando opinião e culmina com a realização das primeiras eleições diretas à presidência da República. O restabelecimento do governo civil estava demarcado com a vitória de Fernando Collor de Melo.

Com o recolhimento dos militares aos seus quartéis, os agentes políticos civis ganham a visibilidade da mídia. Sem proibições para denúncias sobre corrupção e atitudes pouco ou nada adequadas aos políticos que envergam cargos alçados pelo voto popular, as manchetes dos jornais impressos e telejornais não tardam em apresentar uma alternância frenética de fatos que endossam o perfil de um Brasil rotulado pela ineficiência na apuração dos casos e, sobretudo, pela impunidade.

Além do livre trânsito da informação nas redações, outro fator determinante concorre para atribuir velocidade e visibilidade às notícias que têm os atores políticos como protagonistas: as novas tecnologias. De acordo com Thompson (2000) elas permitem um conjunto sofisticado de aparelhos que ajudam a monitorar e registrar as atividades destes personagens e de outras personalidades públicas. Assim, aspectos da vida privada deixaram de pertencer a certa intimidade.

Quanto mais os líderes políticos e outras pessoas se tornavam visíveis como indivíduos na esfera pública, e quanto mais sofisticadas se tornavam as tecnologias, tanto mais provável era de que áreas de atividade antes resguardadas começassem a vir à tona.
Maior visibilidade não implica necessariamente maior sinceridade, mas aumenta o risco de que as atividades executadas privadamente, ou semiprivadamente, acabem encontrando um modo de se manifestar na esfera pública. (Cf. THOMPSON, 2000:89).

Em dias de liberdade de imprensa, os brasileiros em suas casas, no trabalho, na conversa de botequim ou na rua, acostumaram-se à condição de espectadores ávidos em acompanhar o desenrolar de tais escândalos, [2] os atores implicados e seus papéis dentro de uma espécie de “telenovela” que desvenda novos detalhes da trama capítulo a capítulo, até que um outro fato de igual ou maior proporção escandalosa roube a cena e reconduza a atenção coletiva.

Desde o fim do autoritarismo, foram registrados inúmeros casos de corrupção, onde pelo menos dez deles alcançaram abrangência e interesse nacional. No topo da lista o impeachment do presidente Fernando Collor (1992) por desvio de recursos dos cofres púbicos na ordem de US$ 1 bilhão. Foi o primeiro processo desse gênero na América Latina.

O nome de outro presidente da República em escândalo político ocupou as primeiras páginas dos jornais e as principais notícias nos canais de televisão em 1998. Gravações revelaram que deputados receberam a quantia de R$ 200 mil para votar favorável ao projeto de reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso. O caso resultou na expulsão de parlamentares de seus partidos, na renúncia de mandatos e, também, na absolvição de integrantes da Câmara pelo plenário. Apesar do escândalo, a Emenda possibilitou uma nova candidatura e a recondução de FHC à presidência.

Na esfera do judiciário, os escândalos não se limitaram a aparições circunstanciais de julgamento. O juiz Nicolau dos Santos assumiu a condição de réu, quando em 1999 ruiu o esquema de desvio de verbas públicas durante a construção da nova sede do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, do qual era presidente. No esquema desvendado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado, figurava o envolvimento de empreiteiras e do senador cassado, Luiz Estevão.

Do executivo e judiciário, para o legislativo: em 2005, a Câmara dos Deputados foi palco de um dos casos mais escandalosos denominado de “mensalão”. A prática consistia no pagamento de um valor mensal para deputados votarem a favor de projetos de interesse do governo Lula. Aproximadamente 40 pessoas foram investigadas, entre parlamentares, ministros, membros da cúpula do Partido dos Trabalhadores (PT), empresários e funcionários públicos. Processos criminais que incluem peculato e lavagem de dinheiro ainda estão em aberto.

No ímpeto do denuncismo, a imprensa também estampou manchetes calcadas em equívocos que cobraram uma fatura muito alta aos supostos protagonistas em casos de corrupção. O mais recente e emblemático remete ao ex-presidente da Câmara Federal, Ibsen Pinheiro, que teve seu mandato cassado em 1994.

O parlamentar foi acusado de envolvimento em uma trama jamais comprovada, onde pesou sobre ele a movimentação irregular de recursos do orçamento da União. O jornalista autor da reportagem que deflagrou o processo de cassação reconheceu ter errado ao afirmar que Ibsen movimentou US$ 1 milhão em suas contas, quando a quantia real era de US$ 1 mil.

Este tipo de erro que marcou a trajetória política do deputado Ibsen Pinheiro é resultado de intensa avidez da mídia pelos escândalos:

Como se deu essa conexão entre escândalo e mídia? Que há no escândalo que se preste a uma exibição na e através da mídia, e o que há nela que facilite a ocorrência de escândalo? Há, certamente, uma estreita afinidade entre escândalo e mídia que foi explorada pelos provedores da palavra impressa desde a era dos panfletos e dos libelos: o escândalo vende. Como empresas comerciais preocupadas em gerar receita através da comercialização de formas simbólicas, as casas publicadoras, os editores, os jornais e outras organizações da mídia tem um interesse financeiro em manter ou aumentar a venda de seus produtos, e os escândalos fornecem historias vivas, picantes, que podem ajudar esplendidamente a conseguir esse objetivo. (Cf. THOMPSON, 2000:59).

Independente dos equívocos provocados pela busca desenfreada do furo jornalístico ancorado no escândalo político e na possibilidade de ampliação de receita, o estudo proposto neste paper (escândalo Renan Calheiros) está inserido no “picante” e em “história viva”. Sobretudo, por entrelaçar as categorias estabelecidas por Thompson (2000), ou seja, o escândalo financeiro na esfera política, o escândalo sexual na esfera política e o escândalo de poder.

2. O escândalo Renan Calheiros

A primeira aparição do nome do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB), no escândalo deu-se por ocasião da “Operação Navalha”, levada a efeito pela Polícia Federal envolvendo a construtora Gautama e seu dono, o empresário Zuleido Veras e quatro Ministérios do Governo Federal. Como resultado imediato, a Justiça decretou a prisão de 46 pessoas (entre funcionários públicos, políticos e empresários) e apontou para um desvio de cerca de R$ 100 milhões (US$ 43 milhões) no ano de 2007, em verbas públicas destinadas a obras na região Centro-oeste e Nordeste do país.

Na primeira reportagem da revista Veja sobre a operação, em 23 de maio de 2007, o senador Renan Calheiros figurava apenas como suspeito. Devido ao cargo que ocupava, de grande exposição e responsabilidade política, foi de certo modo natural que passasse ao epicentro de um escândalo midiático de grandes proporções, apesar do envolvimento de políticos e altos escalões do poder central. Renan Calheiros é uma dessas figuras de estrelato recente no cenário do poder político brasileiro.

Líder do governo de Fernando Collor no Congresso, em 1990, teve passagem como Ministro da Justiça em 1998, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Exerceu ainda os cargos de vice-presidente executivo da Petrobras e presidente do Conselho Nacional de Trânsito. No seu segundo mandato como senador, Renan Calheiros, representa o modo metamorfose de boa parte dos políticos brasileiros pela capacidade de permanecer nos governos, independente das diferenças ideológicas que apresentem.

O histórico político do senador Calheiros remete a uma exposição continuada na mídia em função dos vários cargos públicos e eletivos que ocupou. Numa espiral viciosa em que, quanto maior exposição nos meios de comunicação, mais adeptos e mais poder político, ele atravessou as turbulências político-midiáticas que mobilizaram as organizações sociais e multidões às ruas e parte do subcampo político [3] que levaram ao impeachment do presidente Fernando Collor.

Como líder do governo na Câmara dos Deputados e um integrante autêntico do que a mídia taxou de “República das Alagoas”, o senador não teve seu nome maculado na mesma proporção que alguns dos seus mais fiéis e próximos seguidores.

No processo eleitoral posterior à cassação do mandato do presidente Collor, Renan Calheiros alça vôo ainda mais alto elegendo-se senador da República pelo Estado das Alagoas. Um feito admirável devido a sua proximidade com Collor. Neste caso específico, Calheiros parece ter aproveitado apenas a parte mais favorável de sua exposição midiática por sua passagem como líder de governo na Câmara dos Deputados.

Thompson (2000) pondera sobre gerenciamento da visibilidade e sobre a boa apresentação de si mesmos ao público que fazem os políticos com objetivo de ampliar seu capital simbólico. Uma espécie de ciclo retroalimentador: maior projeção positiva junto ao eleitorado significa mais capital simbólico acumulado. Quando isso acontece, eles ampliam ainda mais seu poder no subcampo político.

Mas o escândalo político pode repentinamente destruir tudo isso. As reputações – tão importantes no campo político – podem ser atingidas, ou mesmo destruídas. Aliados de primeira hora dentro do subcampo político podem começar a se afastar, temerosos de serem atingidos devido ao fato de estarem ligados a eles. Líderes batalhadores podem usar a mídia para passar por cima de seus companheiros políticos, dirigindo-se aos cidadãos comuns no campo político mais amplo na esperança de trazer a opinião pública a seu favor. O fato de que o escândalo político pode se transformar em uma luta para conquistar a opinião pública – monitorada por uma contínua sequência de resultados de pesquisas de opinião divulgados na mídia – é um reflexo do fato de que parte do que está em jogo nos escândalos é a credibilidade dos líderes, cuja reputação e bom nome foram questionados pelo desenrolar do escândalo ou pela ameaça de sua divulgação, no ambiente que os circunda. (Cf. THOMPSON, 2000:139-140).

O capital de gerenciamento da visibilidade na mídia do presidente do Senado, portanto, sofre seu primeiro revés com a divulgação da “Operação Navalha”. Mencionado por suas ligações muito próximas junto ao principal investigado sobre desvio de verbas públicas Calheiros eclode na revista Veja (23 maio 2007) como suspeito por participar do esquema de fraude que vai ganhar dimensões de escândalo de poder na reportagem publicada na edição de 30 de maio de 2007.

Numa reportagem de quatro páginas a Veja dirige a atenção de seus leitores para o envolvimento de Renan Calheiros com o lobista Cláudio Gontijo, de outra empresa da construção civil, a Mendes Júnior. De acordo com a reportagem, entre os favores patrocinados pela construtora através do lobista está a disponibilidade de um flat em um dos melhores hotéis de Brasília, o Blue Tree, “para compromissos que exijam discrição”.

Mas os favores não param no uso do discreto flat do Blue Tree. Constam ainda o aluguel de um apartamento também em Brasília, no valor de R$ 4,5 mil (US$ 1,9 mil), ajuda para os gastos de campanha do senador e de parentes e pagamento de uma pensão alimentícia de R$ 12 mil (US$ 5,2 mil), no período compreendido entre os anos 2004 e 2006, para uma filha de três anos de idade oriunda da relação extraconjugal e secreta com a jornalista Mônica Veloso.

E é nesta revelação de recebimento de favores e benesses, incluindo-se o pagamento de pensão alimentícia à filha, que vem à tona o componente para o escândalo sexual do então presidente do Senado. É importante frisar que os escândalos sexuais na esfera política (heterossexual) não implicam em grandes desgastes para a imagem de lideranças políticas brasileiras. As exceções ocorrem quando as mulheres traídas resolvem retaliar.

O indício de que as relações extraconjugais não possuem a mesma carga negativa que em outros países (onde poderiam redundar em crise de imagem) podem ser percebidos nas paternidades não reconhecidas dos ex-presidentes Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso. Passagens rápidas pela imprensa, com espaços variados que não captaram a curiosidade do leitor a ponto de fazer com que os editores e jornalistas se empenhassem na busca de fatos mais reveladores dessas relações.

O senador, após a divulgação da relação extraconjugal e da existência da filha, buscou conter a crise familiar e os problemas que ela poderia acarretar (em caso de retaliação por parte da esposa), convocando entrevista coletiva. Nela, pediu desculpas à esposa pelo deslize, mas negou a responsabilidade do lobista Cláudio Gontijo sobre o pagamento do aluguel do apartamento onde morava a ex-affair Mônica Veloso e também da pensão para a filha.

A diferença entre as relações extraconjugais dos ex-presidentes Collor e Cardoso reside na forma em que os filhos nascidos dessas relações tiveram as pensões alimentícias custeadas. Renan Calheiros comete, de uma só vez, dois deslizes morais: escândalo sexual na esfera política, que por sua vez abre espaço para o escândalo político de poder pelo fato de repassar a outrem (empresas) a responsabilidade do pagamento de pensão.

O que agravou ainda mais a situação do senador Calheiros foi a abertura de duas frentes de investigação. Após tentativa de esclarecimento sobre o pagamento da pensão, além da imprensa que lhe fustigava diariamente, somou-se a instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito através da Comissão de Ética do Senado. Caracterizava-se a partir de então a perda de prestígio no subcampo político.

Senadores de diversos partidos que integram a Casa passaram a questionar sua permanência na presidência do Senado. Consideravam que todo escândalo presente diuturnamente na mídia não desgastava apenas o mandato do senador Calheiros, mas de cada um isoladamente e de todos enquanto pertencentes a uma instituição legislativa.

Manter-se na presidência do Senado, encontrar uma explicação convincente para os gastos com as campanhas eleitorais e o pagamento de pensão, além de evitar um processo de cassação de mandato que já estava sendo urdido por parcela importante dos integrantes da Casa, requeria estratégias de controle de crise já não disponível por Renan Calheiros. O escândalo, na verdade, era um conglomerado de escândalos de várias ordens e natureza.

Percebendo não ter mais força para resistir, Calheiros se licencia da presidência por um período de um mês na esperança de, passado o turbilhão de aparições midiáticas, voltar à fase anterior a divulgação da Operação Navalha. A tentativa mostrou-se ineficiente, já que a mídia não o deixou respirar e ele acabou renunciando ao cargo.

Após deixar a presidência do Senado, ainda restava-lhe muitas aparições nos meios de comunicação. Desta vez, no jogo de sobrevivência do mandato.

3. Método

O método utilizado nesta pesquisa teve como base a Análise de Conteúdo. De acordo com Wimmer e Dominick (1996) a análise de conteúdo aplicada aos meios de comunicação costuma usar variáveis de natureza específica. No caso em questão, a análise não se prendeu integralmente a esta característica, embora grande parte da ficha de análise elaborada reflita a preocupação com o escândalo midiático envolvendo o então presidente do Senado brasileiro, Renan Calheiros.

Segundo Igartua e Humanes (2004) a análise de conteúdo pode ser utilizada para dissecar qualquer produto da comunicação de massa, para conhecê-lo melhor, por dentro, para saber como está feita, para inferir seu funcionamento e predizer seu mecanismo de influência.

Se podría decir que el análisis de contenido es una técnica de investigación que permite descubrir el ADN de los mensajes mediáticos, dado que dicho análisis permite reconstruir su arquitectura, conocer su estructura; sus componentes básicos y el funcionamiento de los mismos. (Cf. IGARTUA; HUMANES, 2004:75).

A análise de conteúdo permite examinar cientificamente tanto os significados (análise temática) como os significantes (análise dos procedimentos, das convenções) de qualquer texto (BARDIN, 1986; WIMMER; DOMINICK, 1996).

4. Amostra

O recorte que orientou a presente pesquisa está balizado pela primeira reportagem que deu origem ao escândalo que envolveu o presidente do Senado brasileiro, Renan Calheiros, em 23 de maio de 2007 e pela publicação que marca o fim da sequência continuada das informações sobre o tema, em 28 de novembro do mesmo ano.

Ao todo, 27 edições da revista Veja [4] integraram a amostra da investigação, que resultou em 79 unidades de análise (compreendendo todas as informações publicadas na revista, independente da seção editorial).

5. Resultados

Desde que o escândalo foi revelado, a revista Veja publicou, com maior ou menor intensidade, informações sobre o senador Renan Calheiros em todas as 27 edições pesquisadas. Em pelo menos três capas, a imagem do ex-presidente do Senado aparece ocupando cerca de 90% da superfície de impressão e em outras 14 é citado ou ainda aparece em pequenas fotos e breves textos. Em acompanhamento às informações jornalísticas, a Veja publicou 39 fotografias de Calheiros nas 79 unidades verificadas.

Os meses de junho (20 unidades), agosto (11 unidades), setembro (17 unidades) e outubro (12 unidades) foram os que comportaram uma maior frequência de publicações de informações sobre o escândalo. Estas informações variaram bastante de tamanho nos sete meses que demarcaram a pesquisa, como demonstra a tabela abaixo.

Tab. 1. Frequência de informações sobre o caso na revista Veja (27 edições).

Tamanho
Frequência
Percentagem

Percentagem acumulada

Até 1/3 de página
14
17,7
17,7
+ 1/3 até 2/3 de página
23
29,1
46,8
1 página
10
12,7
59,5
1 página e 1/3
04
5,1
64,6
2 paginas
04
5,1
69,6
2 páginas e 1/3
01
1,3
-
3 páginas
04
5,1
75,9
3 páginas e 1/3
02
2,5
78,5
4 páginas
08
10,1
88,6
+ de 4 páginas
09
11,4
100
Total
79
100
100

As informações foram distribuídas nas várias seções editoriais existentes em Veja. Mas, a predominância dos conteúdos recaiu na seção “Brasil”(responsável pela divulgação de fatos ocorridos no país), com um número de incidência de 32 inserções (40,5%); seguido das “Cartas do Leitor”, com 18 inserções (22,8%) e “Coluna”com 15 inserções (19,0%). Contudo, o caso Calheiros esteve presente ainda nas seções “Radar”, com sete incidências (8,9%), “Cartas ao Leitor”, com cinco (6,3%) e “Veja Essa”, com duas (2,5%).

Nas informações publicadas por Veja observa-se que ela recorre a citar-se em 41 ocasiões (51,9%). Outros meios de comunicação são ainda citados como referência a fatos relacionados ao escândalo, a exemplo da Rede Globo, por cinco vezes (6,3%), o jornal Folha de S.Paulo, por três vezes (3,8%); O Estado de S.Paulo e a revista Playboy, com duas inserções cada (2,5%) e o Jornal do Brasil, com uma única inserção (1,3%).

O escândalo acomodou outras várias ramificações que foram tipificadas de maneira bastante peculiar, dependendo do enfoque trabalhado: Cassação do Mandato, 34 incidências (43%); Mônica Veloso, com 18 incidências (22,8%); Concessão de Radiodifusão, com 8 incidências (10,1%) e Máfia do Frigorífico e Construtora, seis inserções cada (7,6%). Ainda compuseram as ramificações do escândalo o BMG e Cervejaria, com duas incidências cada (2,5%) e outros distintos de menor importância somaram três inserções (3,8%).

As ramificações relatadas no parágrafo anterior compunham, essencialmente, três categorias de escândalos políticos definidos por Thompsom: o sexual, o financeiro/fiscal e de poder. A tabela abaixo proporciona uma melhor visualização de sua distribuição nas 27 edições da revista Veja pesquisada.

Tab. 2. Percentagens por categorias de escândalo na revista Veja (27 edições).

Tipos de escândalo
Frequência
Percentagem
Percentagem acumulada
Sexual
11
13,9
13,9
Financeiro/fiscal
16
20,3
34,2
Poder
52
65,8
100,0
Total
79
100
100

6. Discussão e conclusão

O filme “Wag the Dog” (1997), de Barry Levinson, com Dustin Hoffman, Robert DeNiro, Anne Heche, Denis Leary, Willie Nelson, Andrea Martin, Kirsten Dunst, Willian M. Macy, John Michael Higgins e Suzie Plakson, traz uma caricatura bastante pertinente ao mundo da mídia e ao trato desta com os escândalos, no caso em questão com o escândalo político de cunho sexual.

O diálogo apresentado logo no início do longa-metragem apresenta, com muita propriedade, o quão difícil é amenizar, desfocar ou dirigir jornalistas e a imprensa para uma agenda política menos prejudicial para quem se encontra no olho do furacão:

– É ele, o que conserta tudo, diz uma mulher (secretária do presidente dos EUA) em voz baixa quase ao ouvido de outra (assessora de imprensa Amy Cain), que está ao seu lado, quando vêem entrar no rol do edifício Conrad Brain (Dustin Hoffman), um especialista em gerenciamento de crises.

Após uma caminhada por corredores e escadas acompanhado pela secretária pessoal (SC) do presidente dos EUA, o especialista Brain (CB) chega a uma sala onde se encontram algumas pessoas responsáveis pela imagem do presidente norte-americano – a assessora de imprensa (AI) Amy Caim, o Porta-Voz presidencial (PV) John Levy e outros de menor importância. Faz um gesto como quem quer saber quem são os integrantes da sala e é prontamente respondido: Eles? A equipe de John Levy (Porta-Voz).

Conrad Brain pergunta aos presentes se o problema que afeta o presidente seria uma babá imigrante ilegal ou um afair no passado com uma de suas secretárias. A assessora de imprensa responde que um grupo de vaga-lumes (denominação feminina para escoteiro) de Santa Fé visitava a Casa Branca quando uma delas pediu para ver uma estátua que se encontrava em um escritório situado na parte de trás da Sala Oval.

Em seguida, a secretária pessoal do presidente passa para Brain uma folha de papel. Pela sua admiração percebe-se que o assunto é mais sério que imaginava.

Conrad decide agir o mais rápido possível, já que o assunto do assédio sexual presidencial a uma garota estaria estampado nos meios de comunicação no dia seguinte. Sugere que o presidente adie seu retorno de uma viagem feita à China para um acordo comercial com a desculpa de haver contraído algum mal-estar. Mas este adiamento deveria preceder a informação sobre o assédio para não dar a impressão de fuga:

CB – Preciso de pelo menos um dia. Ele adoeceu, anuncie isso para os
chacais da mídia já, para não parecer uma reação ao escândalo. Diga
que ele tem um caso raro.

SC
– Não vai colar.

CB
– Preciso de um dia.

SC
– Não vamos conseguir segurar.

CB
– Vamos sim. Vou explicar: Por quê o presidente está na China?

PV
– Para um acordo comercial.

CB
– Tem razão. Não é por causa do bombardeiro.

PV
– Não há bombardeiro algum!

CB
– Foi o que eu disse. Não sei onde esses boatos começam!

O desenrolar do filme mostra a ação de especialistas em comunicação para tirar de cena um escândalo sexual que envolvia o presidente do EUA. Para tanto, teriam que atrair a atenção dos “chacais da mídia”. A estratégia se resumia em encontrar um “fato jornalístico” que fosse atrativo o suficiente para estabelecer a agenda dos meios e do público. Nada mais instigador que uma guerra: o bastião da liberdade contra os terroristas simplórios da Albânia.

O fascínio do público e o receio em estar envolvido em escândalo podem ser encontrados já nos primórdios do jornalismo. Balzac, crítico ácido dos profissionais de imprensa, já descrevia em Ilusões Perdidas essa relação entre personagens de importância no cenário político, a imprensa e os jornalistas:

– A influência e o poder do jornal estão apenas em sua aurora – disse Finot.

– O jornalismo está na infância, há de crescer. Tudo daqui há dez anos, há de depender da publicidade. O pensamento tudo iluminará, e ele...

– Há de tudo crestar – interrompeu Blondet.

– É uma frase – disse Cláudio Vignon.

– Fará reis – continuou Lusteau.

– Desfará monarquias – disse o diplomata. (Cf. BALZAC, 1978:174).

Assim como na ficção fílmica ou literária, a mídia e o público possuem potencial magnetismo pelos escândalos. No Brasil, os meios de comunicação perceberam este grande filão, que justifica, em muitos dos casos, a insistência por algum tempo, em publicações como aconteceu com o escândalo Renan Calheiros. O volume de edições em que o caso permaneceu em evidência reflete a importância nele depositada.

A permanência do escândalo como principal assunto de capa na revista por três edições já é um indicativo da importância que recebeu. O assunto protagonista de capa em uma revista difere da primeira página de jornal. Seu grau de importância é muito maior já que, hierarquicamente, se impõe sobre outro tema, quer em imagem, quer em textos.

Que es una portada de una revista? Más allá del resumen del tema que es considerado de mayor importancia informativa, la portada de una revista es también publicidad de la propia revista. Una especie de valla publicitaria, con cebos (atractivos) informativos-interpretativos sobre uno o varios acontecimientos que van disputar espacio en los kioscos con otras tantas publicaciones. Como si dijera "mira lo que tengo, mira como lo encuadramos, lo coloreamos, fotografiamos o representamos". (Cf. GOLZIO, 2003:101).

O destaque e importância do escândalo político também podem ser percebidos pelo número de páginas dispensadas ao trato deste tema. No caso específico de Renan Calheiros, a revista Veja dedicou pelo menos 111 páginas que envolveram o presidente do Senado brasileiro, ou seja, quase a média de uma edição (130 páginas) incluindo-se os espaços publicitários.

Com relação ao tipo de escândalo, nota-se que o viés sexual, apesar de ter sido o estopim do caso Renan Calheiros, não repercutiu com a mesma intensidade dos relacionados aos de poder e finanças. Embora não tenha estabelecido uma escala de importância entre as categorias de escândalo, é possível afirmar que, culturalmente, os escândalos políticos de natureza sexual (sem que sejam incluídos os de fundo homossexual) não possuem o mesmo atrativo no Brasil e nos EUA, por exemplo.

Num país de forte contraste social, o apelo de um escândalo de poder e principalmente financeiro é infinitamente maior que o de cunho sexual. Esta afirmação não tem amparo na ficha de análise elaborada para a abordagem do caso Renan.


NOTAS

[1] Comunicação apresentada no 8º Congresso LUSOCOM, realizado em Lisboa em abril de 2009.

[2] De acordo com Thompson o escândalo possui características que implicam transgressão de valores, normas e códigos morais, envolve elemento de segredo ou ocultação, que obtém variados graus de desaprovação por parte dos não participantes e sua revelação e consequente condenação pelo público podem prejudicar a reputação dos responsáveis e/ou envolvidos.

[3] Thompson define subcampo político como a relação dos políticos com seus pares, profissionais ou semiprofissionais.

[4] A revista Veja foi escolhida para a primeira parte da pesquisa por ser a de maior circulação nacional, com a edição de mais de um milhão de exemplares, distribuída em todo o território brasileiro. Também deverão compor o universo da pesquisa as revistas brasileiras de circulação nacional e publicação semanal Época e IstoÉ.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, A. A. “A mídia na transição democrática brasileira”. In: Sociologia, Problemas e Práticas, nº 48, Lisboa, 2005.

BALZAC, H. Ilusões perdidas. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Tradução de Ernesto Pelanda e Mário Quintana.

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*Derval Gomes Golzio é doutor pela Universidad de Salamanca e professor do Departamento de Mídias Digitais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Raquel de Medeiros Araújo é jornalista. Rostand A. Melo é mestrando do programa de pós-graduação em Comunicação da UFPB.

 

 







Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro | ISSN 1806-2776 | Edição 13 | Outubro | 2010
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