Outubro de 2010
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ISSN 1806-2776
 
Publique
Contato
 


Site da ECA





 

 

 


 

 

 

 

 

 

 



ENSAIOS

Duas histórias sobre as entranhas do crime organizado
Além do Horizonte Vermelho e A Aparição

Por José Amaral Argolo*

RESUMO

O homem que por mais de três décadas desafiou o Poder Público e que, antes disso, durante a prolongada noite do Regime Militar, chegou a ser pendurado e torturado horas a fio num pau-de-arara apanhando e recebendo choques elétricos pelo corpo, estava ali diante de nós, condenado à morte lenta e inexorável.



PALAVRAS-CHAVE: Crime Organizado / Jornalismo Policial / Reportagem

1. Além do Horizonte Vermelho

No momento em que comecei a redigir esse preâmbulo a personagem principal encontrava-se em coma profundo e irreversível na Unidade de Tratamento Intensivo do Hospital Miguel Couto. A morte cerebral, disseram os médicos, poderia acontecer a qualquer momento.

Interpretada como melhor aprouver aos leitores, a sua trajetória de vida se confunde com a história da criminalidade fluminense nos últimos trinta e cinco anos; ou seja: antes mesmo das primeiras ações espetaculares da Falange da Lei de Segurança Nacional, nascida, esta, nas antecâmaras do inferno chamado Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande.

Como jornalista especializado na área policial e, posteriormente, dedicado a pesquisar e escrever sobre outro segmento desse  vórtex chamado violência (leia-se: narcotráfico, terrorismo, movimentos insurrecionais, guerras de libertação  e seus desdobramentos), vi-me diante de um arquivo extraordinário tamanha a quantidade de informações e confirmações assustadoras.

Em alguns momentos, seja durante as conversas e/ou por força do que ouvi, de volta ao meu gabinete de trabalho, tive a impressão de reviver aqueles dias turbulentos da segunda metade dos anos setenta e assistir, sob outro viés, é claro, um filme de ação/suspense desprovido das filigranas de Alfred Hitchcock.

E então, sem negativas ou artifícios de retórica, percebi que o homem-cicatriz consciente de que somente pelo investimento em políticas públicas (leia-se: inclusão social, trabalho e educação) será possível combater a desigualdade e os vícios dela decorrentes, estava abrindo as comportas da sua alma. Tragicamente, porém, num tempo tardio para os seus olhos.

Na tarde de 30 de maio deste ano (2010), um domingo, fui visitá-lo no leito que ocupava na enfermaria 225 (neurocirurgia) do Hospital Miguel Couto (Leblon, Zona Sul do Rio de Janeiro). Estava lúcido. Ao lado a companheira, Marta, com que vive há pouco mais de um ano; ou seja: pouco antes de o câncer minar suas forças e deixar todo o seu lado direito paralisado.

Não sentia dores devido às doses de Tramal, medicamento fortíssimo (à base de Cloridrato de Tramadol, analgésico potente de ação central, conforme a bula) prescrito para pacientes com câncer em fase terminal. Exames complementares realizados na semana anterior haviam acusado o aparecimento de mais três nódulos na cabeça, além da metástase no cérebro derivada, esta, de um tumor originário do pulmão direito.

Arregalou os olhos por instantes quando nos viu entrar e, no rosto parcialmente inchado, apareceu um arremedo de sorriso. Francisco Emanuel, codinome Franklin, o conselheiro mais próximo e constante de William da Silva Lima, o Professor (fundador do Comando Vermelho) se movimentou com dificuldade no leito e, da neblina do pesadelo insone, ele nos reconheceu a mim e a Fábio Samu (seu professor de Teatro no Projeto Jurisdrama e, indubitavelmente, o mais generoso e discreto camarada que conquistou nos últimos anos).

Balbuciou algo incompreensível. Quando nos aproximamos do leito ele repetiu a palavra e, por intermédio da leitura labial, dessa vez entendemos a expressão: amigos. Fez um gesto com a mão esquerda e apontou para a própria cabeça mostrando três dedos, simbolizando com isso o pleno conhecimento sobre os novos tumores. Em seguida, sempre tentando se comunicar por sinais, a mão baixou até a fralda geriátrica e contraiu o rosto demonstrando desconforto.

Sem a aplicação de uma sonda, a urina incontrolada fluía por intermédio de um preservativo preso por esparadrapo ao órgão genital e, deste, conectado a um tubo plástico, o líquido escorria até um frasco de soro designado coletor. Algum movimento brusco pode ter provocado aquela sensação dolorosa.

O homem que por mais de três décadas desafiou o Poder Público; que, pela prática de sequestros e assaltos a banco (excluídas as fugas rocambolescas e recapturas), cumpriu vinte e nove anos e onze meses de reclusão; que, antes disso, durante a prolongada noite do Regime Militar que se instalou no Brasil após 31 de março de 1964, chegou a ser pendurado e torturado horas a fio num pau-de-arara apanhando e recebendo choques elétricos pelo corpo para confessar as razões pelas quais participava como ativista político em Volta Redonda (Região Serrana, Centro do Rio de Janeiro), estava ali diante de nós, condenado à morte lenta e inexorável.

Era, ainda, aquele mesmo homem que, por intermédio da leitura constante e da atuação diuturna junto ao coletivo dos presídios por onde passou, esforçava-se para estender aos demais internos do Sistema Penitenciário, a redenção pelo trabalho e pelo estudo.

Ali, diante de nós, estava, repito, um pássaro gigante com as asas quebradas.

Então, enquanto Marta procurava ajudá-lo a encontrar uma posição mais confortável, inclusive erguendo a cabeceira do Leito Fowler, fiz uma prece para que o Supremo Guardião do Universo apressasse o seu traslado rumo à eternidade.

(...)

Foram interessantes e esclarecedoras as conversas mantidas ao longo dos últimos meses. A totalidade em uma pizzaria localizada na Rua Siqueira Campos, Copacabana. A troca de ideias era geralmente acompanhada de uma pizza grande cortada à francesa, refrigerante diet e muitas pedras de gelo nos copos. Sempre, é claro, na companhia de Fábio Samu, que, por conhecê-lo melhor e à sua rotina, costumava contatá-lo previamente.
    
Duas, três horas de bate-papo sobre política, ações proativas, perspectivas de trabalho etc., entremeados por um sem número de reminiscências sobre outro tempo e pessoas, a maioria já transportada para um plano superior, consequência dos confrontos com as Polícias Civil, Militar e Federal, e/ou motivadas por desavenças entre as principais facções do crime estabelecidas no Rio de Janeiro.
    
A desconfiança natural de parte a parte no primeiro encontro diluiu-se após alguns instantes. Aquele senhor que vivera toda uma trajetória de alto risco transformou em gelatina as preocupações e passou a falar como se, no final das contas, o assunto em pauta fosse um álbum de figurinhas, algumas difíceis, outras... nem tanto!
    
Antes, bem antes, ele já sabia que eu era jornalista e, como tal, a conversa seria deslanchada entre duas testemunhas (ressalvados os limites éticos de cada um) de um tempo de espasmos, contradições, violência e desafios.
    
Tudo olho no olho, sem hesitações ou falsas premissas. Contei fatos que vi acontecer.  

Ele também. Muitas convergiam por caminhos diversos. “Foi assim mesmo”, dizia, acrescentando ao seu tempo: “eu assisti/participei/estava junto/quem me contou assumiu a culpa ou fez exatamente como lhe expliquei”.

Conversamos sobre Márcio Amaro de Oliveira, Marcinho V.P., seu companheiro de cela no Complexo Penitenciário de Bangu; pescoço quebrado e jogado de cabeça como um traste em um latão de lixo por falar demais ao repórter Caco Barcelos, igualmente jurado de morte pela cúpula do Comando Vermelho após a publicação do livro: "Abusado", no qual expôs situações enfrentadas pelo então chefe do tráfico no Morro Dona Marta, em Botafogo (Zona Sul do Rio de Janeiro) e utilizou apelidos que implicaram na identificação, captura e morte de alguns delinquentes daquela facção criminosa.
    
Aliás, dessa conversa nasceu um texto jornalístico: A Aparição (fragmento, este, de um estudo ainda mais denso e inédito intitulado Para uma Tentativa de Interpretação Histórica, Micro-Sociológica e Jornalística do Comando Vermelho) [N.E.: Leia abaixo].

Isaías da Costa, o Isaías do Borel (principal liderança do Comando Vermelho, atualmente preso em Catanduvas, interior do Paraná, seguido na hierarquia da organização por Márcio Cândido da Silva, o temível Porca Russa.
    
Foi Isaías quem (o autor soube por intermédio de outras fontes), em certo momento da década de oitenta, determinou a execução sumária de todo um grupo dissidente na Organização. Para alcançar o objetivo ele designou um único homem de confiança: W***, ex-paraquedista do Exército e especialista em sabotagem e destruições. Mesmo este, quando entrou no recinto onde estava escondido o estoque de explosivos plásticos no interior do complexo de segurança máxima de Bangu, ficou espantado, tamanha a quantidade de tabletes de C-4.
    
William da Silva Lima, o Professor, seu ex-chefe e parceiro no cárcere; o homem lhe delegou poderes para encaminhar as reivindicações dos presos junto à direção do Sistema Penitenciário. Com o tempo, Franklin tornou-se um conhecedor profundo sobre a matéria, a tal ponto que proferir palestra no Auditório da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde chegou sob forte aparato dos agentes do Setor de Operações Especiais armados com fuzis.
    
Rogério Lemgruber, o Bagulhão, um dos mais respeitados líderes e fundadores da Organização (que, aliás, leva o seu nome: Comando Vermelho Rogério Lembgruber), morto no Hospital Miguel Couto (Zona Sul) em consequência de problemas derivados do diabetes.
    
José Lourival Siqueira Rosa, o Mimoso, ex-jogador do Olympique Charleroi, da Bélgica, morto a tiros durante confronto com policiais da equipe do delegado Hélio Vígio, após assalto a banco em Volta Redonda.
      
Miguel Ângelo Amaral Amarijo, o Peruano, assaltante de bancos dotado de grande coragem pessoal. Baleado, perseguido e morto por uma matilha de cães de guarda quando tentava fugir correndo pelas matas da Ilha Grande, no início dos anos oitenta.

Pouco antes de ser preso Peruano havia jurado de morte um repórter que o desrespeitara durante uma entrevista. Este, por sua vez, entrou em pânico ao ser informado sobre a fuga e somente recuperou o autocontrole quando, horas depois, recebeu a notícia da morte nas circunstâncias acima descritas.
    
Ernaldo Pinto Medeiros, o , líder da facção denominada Terceiro Comando baleado, sangrado como um porco e queimado ainda vivo no interior de uma das alas do Presídio de Segurança Máxima Bangu 1,  por Márcio Nepomuceno, o Marcinho V.P. II, seu desafeto e contraparente de Orlando Conceição, também conhecido como Orlando Jogador (assassinado com seu grupo durante uma emboscada articulada por no Morro do Alemão).
    
Julio Augusto Dieguez, o Portuguesinho, ex-integrante da quadrilha de assaltantes de bancos chefiada inicialmente por Liéce de Paula Pinto, o Cão Danado e, em seguida, capitaneada por Lucio Flavio Villar Lirio. Ele, Portuguesinho, tido como covarde, bundão e vacilão, que terminou a longa trajetória criminosa assaltando passageiros de ônibus nas imediações da Favela do Jacarezinho.
    
José Carlos Gregório, o Gordo, o homem que planejou e financiou o  bem sucedido resgate de helicóptero do traficante de  tóxicos José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha, então recolhido ao antigo presídio de segurança máxima na Ilha Grande, no início dos anos oitenta. Ele, Gregório, executado a tiros numa emboscada no sopé do Morro do Cavalão, em Niterói, na década de noventa.
    
José Carlos dos Reis Encina, Seu Zé e/ou Escadinha, o rosto arrebentado a tiros de fuzil na Avenida Brasil numa empreitada, pelo que ficou apurado, a soldo dos proprietários de uma linha de vans da Zona Norte. Os assassinos, segundo a Polícia, seriam ex-combatentes angolanos refugiados no Brasil e abrigados no complexo de favelas da Maré.
    
Durante a quase interminável caçada àquele bandido, a equipe chefiada pelo delegado Hélio Vígio (é época titular da Delegacia de Entorpecentes) enfrentou um dos maiores desafios para Polícia Fluminense. Os morros do Alemão e do Juramento (redutos daquele bandido) foram vasculhados inúmeras vezes, delinquentes e policiais tombaram em confrontos nas ruas da cidade e o próprio autor dessas linhas quase foi morto em duas ocasiões. A primeira delas na subida da Favela Camarista, bairro do Méier (Zona Norte) e a outra em plena Rua Mem de Sá, no Centro da Cidade.
    
Outros nomes e/ou apelidos foram citados: Severino Theodo, o Apache, Dominguinhos Sete Dedos, Paulo César dos Reis Encina, o Paulo Maluco (irmão de Escadinha), Paulo César Branco etc.

(...)

Em outro momento Franklin comentava sobre os seus projetos futuros. O primeiro passo,  recomeçar a vida como pequeno torrefador de café em Minas Gerais, numa cidade onde moravam alguns dos seus parentes. Para tanto pretendia trabalhar duro e juntar dinheiro suficiente para comprar ou alugar as máquinas apropriadas, bem como arrendar um terreno agricultável.
    
— Bom café. Nada parecido com essas porcarias que a gente consome nos bares ou compra nos supermercados. Colheita artesanal, criteriosa. Sei como fazê-lo. Não quero e nem preciso de muito dinheiro. Apenas o suficiente para um final de vida digno.
    
Disse isso há uns seis, sete meses, quando, além da falta de grana os únicos percalços eram a perda dos dentes e a calcificação da tuberculose detectada no pulmão esquerdo.
    
As roupas do dia-a-dia eram muito simples: bermuda, camiseta e tênis. Tudo de segunda-mão. Não dispunha de dinheiro para adquirir peças novas. Andava a pé e, como transporte, ônibus e metrô. Mesmo na noite em que sentiu que as forças lhe faltavam (e supondo que estava sendo acometido de um derrame) caminhou com dificuldade até o Posto de Atendimento Comunitário de Copacabana (Rua Siqueira Campos) de onde (constatada a gravidade do caso) foi transportado às pressas, de ambulância, para o Hospital Miguel Couto.
    
O seu irmão mais velho, morador em Portugal e bastante rico, segundo ele, mesmo sabendo da situação difícil que enfrentava, jamais lhe ofereceu ou enviou um centavo sequer. “Que ele fique com todo o dinheiro do mundo e faça bom uso de tudo o que amealhou”, disse, durante uma das nossas conversas.
    
Aliás, um dos itens da sua pauta de reivindicações era o direito à contribuição previdenciária por parte dos presos. Tal benefício estaria condicionado à contrapartida das horas de trabalho, por exemplo, nas oficinas de marcenaria dos institutos correcionais; nas fábricas de carteiras escolares e/ou de vassouras de piaçava etc.

(...)
    
Certa vez, ao término de uma prolongada conversa, convidou-me a subir com ele na manhã seguinte até a localidade denominada Terreirão, no miolo do complexo de favelas conhecido como Cantagalo-Pavão-Pavãozinho (Copacabana), para beber umas cervejas com “os meninos de lá”. Recusei o convite e expliquei: não me leve a mal, mas tenho receio.
    
— Mas você estará comigo, do meu lado! Proteção total!
    
Exatamente por isso, argumentei. Quem poderá garantir que eu não serei fotografado pela Polícia ou por algum dos seus informantes.  Amanhã ou depois (quem sabe?), cá estarei eu, veterano jornalista, aparecendo no noticiário televisivo ou nas primeiras páginas: repórter filmado supostamente vazando informações para o Comando Vermelho!!! Nada disso! No mundo jornalístico, mesmo que seja uma estrondosa mentira, a primeira versão é a que prevalece.
    
Franklin
sabia que eu havia redigido um ensaio-reportagem (A Solidão do Ofício, publicado originalmente na Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e, em seguida, republicado em um volume intitulado Sparsae, de minha autoria (Rio de Janeiro: E-Papers, 2009. 296 p.) sobre a guerra  do tráfico no Complexo Tabajaras-Cabritos, em Copacabana, onde aproximadamente quinze bandidos de uma facção rival do Comando Vermelho foram emboscados, baleados, esquartejados (alguns deles ainda vivos e/ou agonizantes) e enterrados nas matas que orlam as duas favelas.
    
Meia hora após o intenso tiroteio tanto nos morros e em plena Rua Toneleros esquina com Santa Clara (Copacabana) – onde policiais do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (BOPE) mataram oito bandidos – um sobrevivente da mal sucedida incursão correu feito doido e conseguiu alcançar a Ladeira Saint Roman, no sopé do Morro do Cantagalo, onde se apresentou perante alguns indivíduos que ali estavam observando o movimento nas ruas.
    
Esbaforido, o que ele disse em seguida foi mais ou menos o seguinte:
    
— Aí, rapaziada, eu acabei de chegar lá da Ladeira dos Tabajaras. Dei muitos tiros nos caras de lá. Tô precisando apertar (fumar) um baseado para relaxar.
    
O tal sujeito, pertencente à força atacante; isto é: à facção intitulada Amigos dos Amigos (da Rocinha, um dos principais pontos de venda de drogas da Capital), não percebeu ou não sabia que aquele conjunto de favelas de Copacabana era dominado pelo Comando Vermelho. Escoltado, ele subiu as escadarias, tomou cerveja, fumou um charuto de maconha e, quando acabou, foi indagado se estava tudo bem.

Respondeu afirmativamente e, ato contínuo, foi abatido a pauladas, esfaqueado, teve os membros arrancados a golpes de facão e queimado.
    
A execução foi toda ela filmada com as minicâmeras dos telefones celulares dos bandidos e o material exibido a dezenas de moradores (um de cada vez) como advertência.

(...)
    
Em outro momento dessas conversas, novamente entre fatias de pizza e goles de refrigerante, falávamos sobre a corrupção na máquina policial. Contou a seguinte história: estava sentado em uma churrascaria em Niterói, bem-vestido e perfumado.

Bebericava a sua cerveja geladíssima e aguardava o garçom: pensava nas fatias de picanha no sal grosso, maminha de alcatra. Peito de peru com bacon...
    
— Já me imaginava mastigando aqueles pedaços de carne maravilhosos quando, de repente, entraram quatro ou cinco homens que, imediatamente, identifiquei como sendo policiais. Aliás, nem poderia disfarçar, pois um deles, o inspetor P***, estava na minha cola há algum tempo.
    
— Não deu tempo nem de virar o rosto ou mesmo de sair de fininho. Ele me viu e disse em voz alta para os demais: “Ora, ora: eis o meu, o nosso Natal antecipado”. Daí sentou-se na cadeira em frente à minha e, enquanto sorria me acertou dois pontapés nas canelas. Em seguida exigiu R$ 360 mil que, pelos seus cálculos, correspondiam à parte do leão (isto é: a maior) do que fora roubado de uma agência da Caixa Econômica Federal.
    
— Respondi que não dispunha de toda aquela quantia. Apenas de uma parte do produto do roubo. Mas não consegui convencê-lo. Então, para amenizar o problema (referia-se às inevitáveis sessões de espancamentos) telefonei dali mesmo para a minha companheira na época e lhe dei as seguintes instruções: pegue todo o dinheiro que está escondido dentro das meias no armário e traga até aqui. Havia transformado a minha parte do roubo em dólares numa casa de câmbio aqui do Rio de Janeiro e foram essas cédulas que entreguei ao inspetor e me salvaram a vida. Perdi tudo e fui levado preso. Nova condenação: a última.
    
Mas você não tinha como ferrar com aquele policial? – perguntei.
    
— No mundo do crime é assim (fez um gesto com as mãos como se estivesse zerando uma partida de cartas): perdeu, perdeu! Ninguém fala.

(...)

De outra feita, na carceragem da Delegacia de Capturas e Polícia Interestadual (DCPolinter), então localizada num prédio antigo e em péssimas condições de conservação na Rua Marechal Floriano, Centro do Rio de Janeiro, um dos presos conseguiu imobilizar o policial de plantão junto ao corredor na ala masculina e, mediante a pressão de um talher afiado junto à carótida, tomou-lhe as chaves e abriu inicialmente  a porta do Maracanã (como é designada a cela com maior número de presos).
    
— Com o tumulto saímos daquele corredor e alcançamos a sala onde estavam guardadas metralhadoras, carabinas e pistolas. Mas outros policiais chegaram a tempo e bloquearam as rotas de fuga. Antes que eles retomassem aquele setor deixei as armas caírem no chão e voltei à cela. Ninguém me bateu. Ninguém morreu. Quem pinoteou, pinoteou, sabe?
    
Sobre a carceragem da Polinter, acentuou:
    
— A comida era horrível: angu com bofe, feijão e arroz azedos. Coisas assim. Um calor terrível, insuportável. Gente demais. Baratas. Ratos. Mosquitos. E nós ali, feito bichos. Esse desrespeito aos presos apenas embrutece. As ferramentas, repito, são o trabalho e a educação.
    
Lembro-me bem das instalações daquela carceragem porquanto, como repórter do Globo no final dos anos setenta, efetuava a cobertura diária das Delegacias Especializadas. Vi roupas femininas penduradas em cordas improvisadas no pavimento térreo. As mulheres presas, enquanto aguardando transferência para as unidades do Departamento do Sistema Penitenciário, ficavam afastadas dos homens em um conjunto de celas à parte.

(...)
     
Sobre a sua não participação no extermínio da Falange Jacaré, no interior do Instituto Penal Cândido Mendes (segurança máxima) na Ilha Grande, em 1979 e, ainda, nas primeiras ações extramuros que notabilizaram a Falange da Lei de Segurança Nacional (posteriormente rebatizada Falange Vermelha e Comando Vermelho), explicou o seguinte:
    
— Eu estava recolhido à carceragem da Delegacia de Mangaratiba e o William (da Silva Lima, o Professor) recomendou, por intermédio de um emissário, que eu não me expusesse. Já naquele tempo eu dedicava parte do meu tempo não somente a ler o que me caísse às mãos, mas a redigir e encaminhar à direção do Departamento do Sistema Penitenciário as solicitações dos demais presos. Tais como: pedidos de transferência para outras unidades prisionais, reclamações sobre maus tratos, benefícios a que faziam jus e demais providências.
    
Somando todos os livros, leu ou pesquisou alguns milhares de volumes durante os vinte e nove anos e onze meses de cadeia. Tornou-se naturalmente uma espécie de consultor para as lideranças da Organização. Devido à facilidade para escrever, e, também, à liderança que exercia, foi muitas vezes poupado de participar, isolada ou associadamente, das operações de extermínio contra os internos acusados de repassar informações às equipes de segurança das instituições carcerárias por onde passou e/ou às demais facções que emergiram a partir da atmosfera sangrenta dos presídios.
    
“É um intelectual” – comentou certa ocasião Isaías do Borel, quando alguém o indicou para eliminar outro preso, acrescentando – “Mande outro fazer o que precisa ser feito”.
    
Franklin
não gostava de conversar sobre “justiçamentos”. Acusaram-no, por exemplo, de participar de um assalto seguido de morte em Volta Redonda. Seus argumentos: “como é que eu poderia assaltar e roubar alguém cujo relógio, carteira e demais objetos pessoais foram encontrados com a vítima? Paguei integralmente na Justiça pelo que não fiz”. No entanto, assumiu a culpa pela co-autoria de sequestros, crimes hediondos pelos quais se mostrou arrependido. Felizmente, segundo ele, nenhuma daquelas pessoas morreu durante o cativeiro.

(...)
    
Francisco Emanuel tinha 55 anos quando foi surpreendido e devastado por um câncer classificado pelos especialistas como dos mais agressivos. Tuberculoso ele já estava desde antes de sair da cadeia, mas até então o Bacilo de Koch não se manifestara a não ser pelas manchas detectadas nas radiografias. O que o levou a procurar ajuda médica foi uma sensação estranha: uma dormência inexplicável na mão e tornozelo direitos.
    
Um ou dois meses antes de o caranguejo de ferro minar a sua resistência, comentou sobre a falta que lhe faziam os muitos dentes. A maioria deles arrebentada a socos durante as sessões de interrogatório a que foi submetido e/ou estragados pela falta de cuidados dele próprio, dadas as condições precárias na cadeia.
    
Imaginava-se com uma ou duas pontes móveis, suficientes para que, na hipótese de vir a ser aceito para trabalhar numa empresa, não causasse má impressão aos clientes. Nem isso conseguiu na vida. Caminhava pelas ruas de Copacabana sem um tostão nos bolsos da bermuda. A modesta ajuda financeira repassada por Fábio Samu (R$ 100,00 cem reais por mês), como contrapartida à sua participação no Projeto Jurisdrama, era tudo o que dispunha para comprar alimentos e ajudar nas despesas de casa.

(...)
    
Franklin admitiu o uso de drogas durante anos (como praticamente todas as lideranças do Comando Vermelho da sua geração). William da Silva Lima, o Professor, tornou-se viciado em cocaína e há muito tempo vive num estado de euforia/torpor permanente. Há dias em que está tão violento e irritadiço que, mesmo aos 72 anos, aproximar-se dele pode significar encrenca. Tornou-se paranóico e cada vez mais vingativo.
    
William, ao que se comenta, mora num apartamento alugado em nome de terceiros em Copacabana.  Frequenta  as favelas do Cantagalo-Pavão-Pavãozinho onde (apesar da existência de uma Unidade de Polícia Pacificadora) o gerente do tráfico local lhe assegura cocaína em quantidade que suficiente para suportar o vício.
    
O fato de ostentar o título de fundador da Falange da Lei de Segurança Nacional faz de William da Silva Lima um personagem incomum. Recebe as honras e vassalagem dos jovens “soldados do tráfico”, mas sabe que pode vir a ser assassinado a qualquer momento, vítima do seu próprio destempero verbal.
    
O distanciamento entre Franklin e William se acentuou nos últimos anos. O primeiro amealhou para si as vantagens decorrentes da leitura e da reflexão. O outro, marcado por sua própria lenda e mergulhando numa espécie de sonho continuado de violência e poder simbólico. William parou no tempo. Foi simplesmente deixado vivo.

A idade avançada o salvou. Outros, mais jovens e igualmente capazes de exercer liderança, assumiram as tarefas de planejar e executar as “ações expropriatórias”.
    
De início rejeitado pela cúpula do Comando Vermelho o tráfico de entorpecentes tornou-se o moinho visível e lucrativo da organização que ajudou a criar; mais recentemente, com William afastado da chefia e dos demais negócios, o crack conquistou espaço nos pontos de venda de drogas nas favelas, superando até mesmo a comercialização de cocaína. Esse fato é surpreendente, dada a despreocupação histórica dos gerentes do tráfico no sentido de coibir o consumo de substância desse tipo entre os moradores das próprias comunidades.
    
O assistencialismo, marca registrada do Comando Vermelho desde os primeiros tempos, diluiu-se.

(...)
    
Agora um pouco sobre Fábio Samu e o trabalho que desenvolve à frente do Projeto Jurisdrama. Eu o vejo como um jovem herói popular. Nascido de família modesta na Zona Norte, proximidades da Favela de Manguinhos (onde jogava bola com outras crianças ainda mais pobres do que ele); ator forjado na dura escola do auto-aprendizado, durante os festejos de final de ano atua como Papai Noel ganhando um dinheirinho extra que lhe permite comprar algumas peças de roupa.
    
Seu único bem é um Volkswagen Gol 1987 que conseguiu comprar após dois anos de trabalho duro. Gastou os caraminguás restantes para dotar o automóvel das mínimas condições de segurança. Trocou os pneus esfrangalhados, a bateria gasta, os freios em pandarecos.
    
Com esse carrinho (cuja garagem é a rua onde mora em Vila Isabel (em um pequeno apartamento cujas despesas compartilha com mais dois colegas) cumpre as jornadas previstas para o Jurisdrama, vai duas vezes por semana à Faculdade de Letras da UFRJ (Ilha do Fundão) e ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) onde conclui o Mestrado em Filosofia.

2. A Aparição

Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. (...) Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.

CORTÁZAR, J. “Preâmbulo às instruções para dar corda no relógio”. In: História de cronópios e de famas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 16.

─ Vá, irmão, siga o seu caminho! Vá prá luz!

Marcio Amaro de Oliveira, o Marcinho V.P., tinha 33 anos quando desencarnou.

Melhor dizendo, quando teve o pescoço quebrado no interior da Galeria A-3 do Presídio de Segurança Máxima Bangu III no Rio de Janeiro. Todavia, passados três ou quatro dias da execução – contam alguns internos – seu espectro continuava ali, sentado na beirada do catre que lhe cabia, segurando o globo terrestre que utilizava nas aulas de Geografia, vestido com as mesmas roupas que usava na manhã em que deixou o plano terreno, o rosto agora pálido, quase diáfano, e os mesmos olhos suplicantes de quando pediu aos companheiros que não o deixassem morrer.
        
Sentenciado a 42 anos de reclusão (a primeira condenação a 17 por tráfico de entorpecentes e a segunda a mais 25 por tráfico e associação para fins de tráfico), Marcinho V.P. caiu em desgraça junto à cúpula da facção criminosa denominada Comando Vermelho imediatamente após a publicação do romance-reportagem "Abusado", de autoria do jornalista Caco Barcelos (TV Globo), no qual foram expostos detalhes sobre a superestrutura do crime na Favela Santa Marta (localizada no Morro Dona Marta, Zona Sul do RJ) e, por conta disso, morreram inúmeros soldados do tráfico em confrontações com as polícias Civil e Militar e Federal.
       
Conforme supra-assinalado, o espectro de Marcinho V.P. foi percebido em rápidos lampejos pelos demais internos nos horários mais díspares que se seguiram ao assassinato praticado, segundo policiais encarregados das investigações, por Ronaldo Pinto de Oliveira, o Ronaldo da Tabajaras (Copacabana) comunidade igualmente dominada pelo Comando Vermelho; quais sejam: após o café, nos intervalos para as refeições, depois do confere noturno etc.
       
Persignando-se, um dos entrevistados disse ao autor que Marcinho V.P. realmente ali esteve sob a forma de aparição por vários dias, como assinalado, sentado na beirada do catre, como aconteceu na madrugada insone que precedeu a sua morte e já isolado do coletivo, conforme decisão da cúpula da Organização, para que ninguém o ajudasse interferindo no justiçamento (o crime foi praticado na hora do almoço, quando todas as celas são abertas pelas equipes de vigilância) e, em seguida, nos demais atos acessórios que deixaram eriçados os cabelos do Secretário de Administração Penitenciária, promotor (e coronel PM reformado) Astério Pereira dos Santos.
      
O corpo do traficante foi em seguida retirado da cela localizada na Galeria A-3 (ocupada por 56 internos) e jogado de cabeça para baixo em uma caçamba destinada à coleta do lixo. Em síntese: Marcinho V.P. pagou com a vida o preço da ousadia. Mas, nos dias seguintes, enquanto o seu espírito atormentado não conseguia alçar vôo rumo ao espaço infinito, é possível acreditar que a sua energia fluídica ainda captava fragmentos das conversas dos demais vizinhos de cárcere naquele Complexo de Segurança Máxima, na tórrida Zona Oeste do Rio de Janeiro ─ também conhecido como O Sarcófago.
      
Enfim, aquele espectro emergente na contabilidade dos séculos, além de não superar os limites das paredes e muros reforçados, presumia-se (quem sabe?) mesmo transmutado em ectoplasma, forte o suficiente para assegurar um tempo a mais de permanência no plano terreno e, longe de acreditar na própria morte, permitir o êxito das manobras jurídicas interpostas por seu advogado, Ezequiel Costa (que, por mera coincidência, estava aguardando permissão de acesso às dependências do presídio enquanto o seu cliente era despachado para as profundezas do inferno).
      
É bem provável que uma centelha do espírito de Marcinho V. P. projetada para além da intangibilidade, continuasse acreditando no sonho da ajuda financeira mensal concedida pelo cineasta João Moreira Salles (diretor do documentário de “Notícias de uma Guerra Particular”, onde ele próprio, Marcinho, aparecia em algumas sequências não vinculadas ao tráfico de drogas) para que, afastado do submundo do crime e morando em Buenos Aires (Argentina), onde buscou refúgio, escrevesse um livro contando detalhes sobre a sua vida.
       
Poucos anos depois (descartada aqui a datação histórica) o outrora figurante promovido a xerife da favela, chamou a atenção da Opinião Pública ao “permitir” (graças à omissão e/ou indiferença do Estado) que o pop star Michael Jackson (morto em julho de 2009 nos EUA em consequência de uma overdose de medicamentos) ali realizasse algumas tomadas especiais para o clipe “They Don’t Care About Us”, dirigido pelo cineasta norte-americano Spike Lee.
       
Michael Jackson, durante a sua curta permanência no morro, exercitou as sequências dos passos que ele próprio coreografou, cantou, carregou nos braços uma criança, foi aplaudido enquanto exibia a sua arte e compreendeu imediatamente o impacto derivado da sua própria presença naquela comunidade dominada pelo tráfico.

Quanto a Marcinho V. P., na época auto-rotulado todo-poderoso xerife do tráfico na favela (onde moram aproximadamente 7500 pessoas), uma das poucas na Capital Fluminense que não pode se expandir, dada a topografia da região, ignorou as oportunidades que a vida lhe proporcionou, e, com a confiança exacerbada para além dos limites da temeridade, resolveu abrir a guarda e concedeu a longa entrevista já citada, desrespeitando as normas impostas pela Executiva do Comando Vermelho no sentido de preservar identidades e demais segredos da Organização.

As reações foram desastrosas para ambas as partes. Ótimo repórter, Caco Barcelos foi acusado de quebrar o voto de confiança concedido por Marcinho V.P. (ameaça esta, pelo que soube, ainda perdura); os traficantes sofreram baixas consideráveis (mortes e capturas), além de prejuízos derivados da apreensão de armas e drogas.

Como aquele morro abrigava até então o terceiro maior ponto de venda de entorpecentes da Zona Sul, perdendo tão-somente para a Rocinha, o complexo de favelas Cantagalo-Pavão-Pavãozinho e o micro-sistema Cabritos-Tabajaras-São João (os dois últimos dominados pelo Comando Vermelho), é fácil deduzir o que aconteceu no curto prazo.

Marcinho V.P. cometeu, além disso, outros erros graves. O primeiro deles foi alardear, por intermédio da Imprensa sensacionalista, que apreciava matar policiais e, se dependesse da sua própria vontade (e não das circunstâncias), faria isso ao menos uma vez por dia.

Ninguém sobrevive incólume a um desafio como este, principalmente no Rio de Janeiro. O Tribunal Secreto do Comando Vermelho avocou para si a decisão final e irrecorrível: Marcinho V.P. deveria ser executado como forma de advertência para os demais. Os integrantes do Conselho de Justiça não acataram os argumentos apresentados pela defesa. “Morte sem pena” foi o veredicto.

Post Scriptum
: Embora a morte tenha ocorrido no anoitecer do dia 9 de maio e o sepultamento, no Cemitério São Francisco Xavier (no Caju, Zona Portuária do Rio de Janeiro), no dia seguinte, às 17 horas, preferi manter o texto conforme o original.


*José Amaral Argolo é advogado, jornalista e professor-associado do Quadro Permanente da Escola de Comunicação da UFRJ.

 

 







Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro | ISSN 1806-2776 | Edição 13 | Outubro | 2010
Ombudsman: opine sobre a revista