Outubro de 2010
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ISSN 1806-2776
 
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ENSAIOS

Jornalismo-Depoimento-Montagem
Discurso, política e memória em Fernando Gabeira

Por Cláudio Rodrigues Coração*

RESUMO

Pretendemos, com este trabalho, investigar três etapas da narrativa jornalística de Fernando Gabeira, a partir do resgate que faz, no final dos anos 70, desde os “anos de chumbo” até a sedimentação de novos olhares e outras demandas de lutas como a discussão de novos discursos políticos, da diversidade sexual e da ecologia.

Reprodução

Acreditamos que a demarcação de tal percurso se faz necessária na medida em que poderemos focalizar e identificar as configurações discursivo-jornalísticas de Gabeira, que se desembocarão futuramente no debate que o autor estabelece no cenário político e cultural do país: a revisão do papel da esquerda socialista; a assimilação dos novos comportamentos sexuais; a pauta da ecologia como marca política, com a mediação do narrador-repórter.

PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo / Memória / Narrativa

1. Introdução

Falar sobre Fernando Gabeira, hoje, pode significar uma valorização a atributos contemporâneos de marcas vanguardísticas. Na última eleição municipal, percebeu-se um forte apelo, na propaganda midiática empreendida por Gabeira, a setores urbanos receptivos de fortes traços dos macetes da indústria cultural.

Gabeira parece se sugerir como um elemento decisório de cisão de antigas marcas tradicionais, sobretudo condicionadas nas dualidades direita x esquerda; capitalismo x socialismo; conservadorismo x progressismo; assim, utiliza-se de novas condutas comportamentais oriundas de um novo processo de entendimento das raízes materialistas desenvolvidas e apreendidas, muitas vezes dolorosamente, a partir, sobretudo, da virada da emblemática década de 60 para os “loucos” anos 70.

Gabeira, como poucos, se alinhou a essa ruptura e adquiriu um estado que o coloca como “mediador-representante” de um novo debate em torno da luta preconizada por setores de esquerda no quadro de polarização mundial estabelecido no pós-guerra.

Revestido de marcas “culturalistas” ou “pós-modernistas”, Gabeira se apropria de códigos urbanos ocidentais fortes (mas também orientais) na tentativa de romper os ingredientes pouco amistosos associados ao estabelecimento enraizado da luta de classes e do próprio papel da luta armada nos anos da ditadura militar. É por esse fluxo de ideias que devemos nos propor na investigação de ordenação dos materiais envolvidos na feitura da narrativa jornalística feita por Gabeira.

Analisaremos três planos da práxis jornalística de Gabeira por meio da interpretação textual de três obras paradigmáticas de Gabeira, respectivamente “O que é isso, Companheiro” (1979), “O Crepúsculo do Macho” (1980) e “Greenpeace: Verde Guerrilha da Paz” (1988). Salientamos ainda que contextualizaremos analiticamente os textos de Gabeira à luz do pensamento crítico sobre tal período e tal experiência narrativa do jornalismo, bem como a interface com a comunicação.

2. A negação da nostalgia: eu era repórter, jovem e “velho”

O narrador de “O Que é Isso, Companheiro?” é um repórter que revê – no fluxo corrosivo da memória – o tempo que se configurou. Sua busca do “tempo perdido” é costurada em uma espécie de (re)fabrico de sua história pessoal e da história do Brasil.

O repórter é o próprio Fernando Gabeira, que, num ponto futuro, no exílio, resgata as peripécias da nova ordem estabelecida no Brasil (o regime ditatorial militar) ao mesmo tempo em que demonstra uma união de suas convicções pretéritas com os novos planos que se materializam no presente (o momento da narração). Ou seja, o passado do narrador-repórter é vislumbrado e ou remontado em uma ordenação de tempo, de memória.

Ao contrário de Proust, Gabeira não busca na inefabilidade dos pequenos detalhes os momentos duradouros estabelecidos, embora trace a propensão do ritmo esvaído do cotidiano pela esfera da informação, do efeito da objetividade, tão vinculado ao universo jornalístico. E é justamente pelo aspecto documental e objetivo que Gabeira reavalia as agruras do passado remoto que o colocava como integrante da luta armada no Brasil.

“O Que é Isso, Companheiro?” mostra e demonstra como as várias facções de esquerda no Brasil desempenhavam suas formas de conduta. E, ao rememorar tais fragmentos, escancara as precariedades e os equívocos cometidos. Nesse sentido, o ponto alto da narrativa é o sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick.

Não se trata puramente de um esforço na tentativa de se justificar tal ato na soltura de outros “companheiros”, não é isso que Gabeira tenta empreender no livro. Aliás, esse episódio parece se configurar como a representação máxima de um erro cometido pelas chamadas forças “progressivas” que dava vazão a uma série de horrores cometidos, tanto de um lado como de outro.

Gabeira começa a obra, com o narrador-repórter localizado na esfera de um ambiente de exílio, situado na segunda metade da década de 70, a empreender uma retomada dos anos anteriores ao golpe de 64.

Assim, a função do jornalista Gabeira, bem como seu contato íntimo nas ruas da Zona Sul carioca parecem se desenvolver dentro de uma lógica de ação em que os aportes das transformações e das cisões ocorridas no Brasil passam, inevitavelmente, pelo Brasil do Leblon, de Ipanema e Copacabana. Assim, as experiências jornalísticas fincadas logo após o golpe de 64 fazem do jovem repórter um observador das inquietações levantadas:

A desgraça às vezes pode ser relativa. Com o golpe de Estado de 64, o secretário do PANFLETO teve de desaparecer por algum tempo e me deixou a chave de seu apartamento por algum tempo em Copacabana. Tínhamos apenas que pagar o aluguel. Mudei-me com um amigo para a Figueiredo Magalhães. Aguentei-me no Jornal do Brasil e, felizmente, o salário não estava mais na primeira metade do mês. (Cf. GABEIRA, 2001:25).

Este é o cenário citadino da vida do narrador-repórter, mas é um espaço também de mediação, na medida em que, por esse universo, se desenha a busca inevitável das dificuldades dos tempos de chumbo que se avizinharão. Gabeira parece deixar estampado que, na observação e na receptividade da juventude, muitos colos são docemente alcunhados na mente do jovem jornalista. Gabeira revê a vida burguesa, no contrassenso das injustiças e dos horrores empreendidos sempre pela ótica da revolução ou da história que se mostra:

Quando você é repórter e quer participar da oposição, não pede juízos de valor nem adjetivos como os grandes articulistas que têm um espaço à sua disposição. O que você pode fazer é organizar os fatos de forma tal que incomode o adversário. (Cf. GABEIRA, 2001:35).

Usando a técnica jornalística a serviço do combate, Gabeira revê justamente na reportagem e na rememoração estampada em “O Que é Isso, Companheiro?” a preconização da “reportagem como meio”, e a estatura do jornalismo como mediador da sua transformação pessoal em um momento nevrálgico da história do país.

O narrador repórter enfatiza nos rituais de iniciação, sobretudo dos movimentos estudantis, uma vida hedonista que se desalojava da dureza da vida empreendida nas fábricas. A descoberta do amor e do sexo obedecia a uma ordem de contracultura que polarizava com os atores demarcados na passeata dos cem mil versus a marcha pela família.

Arrigucci (1988) salienta que a narrativa empreendida por Gabeira se sustenta da documentalidade por se permitir naturalista, mas também evidenciada pelas rupturas estabelecidas pelo desassossego do personagem principal (no caso Gabeira) e as transformações vívidas ocorridas após o desenlace do enredo. Esse enredo, contudo, é verídico. A história canonizada é (re)apresentada por Gabeira:

O depoimento se acerca do romance de formação ou de aprendizagem, numa variante em que o ser que se interroga sobre o sentido da vida o faz depois que tudo se deu (...). Assim, em Gabeira, a vida vivida e dividida se reconstrói pela memória do narrador e se alça e se supera na pergunta pelo sentido. (Cf. ARRIGUCCI JR., 1988:133-134).

Assim, Arrigucci Jr. sugere que a pergunta estabelecida por Gabeira ("O Que é Isso, Companheiro?") reforça os atos cometidos com a pressa emoldurada para salvar o mundo. Tal rememoração é saneadora, é redentora, nunca nostálgica. O erro da colisão dos setores armados é desolador para o narrador, na medida em que sua conduta futura é diametralmente oposta ao que se acreditava como plausível no passado.

Tal veracidade está presente no texto. No capítulo "Babilônia", o narrador-repórter tenta estabelecer a ordem na montagem frenética da mente para passar ao leitor o que de fato teria ocorrido no cárcere, na relação entre os “camaradas”, e depois, na prisão e nos destinos de todos.

Esse é o momento da organização da história pelo viés da esquerda, que Gabeira relativiza, mas não abandona:

Chega um momento em que o narrador precisa ajustar melhor suas linhas, tencionar melhor o seu arco, tirar alguns efeitos técnicos. Todos esperam isso dele, sobretudo na hora da emoção. Mas o narrador já aprendeu, com o tempo, que um livro, um longo relato, não é apenas uma sucessão de histórias que se contam num punhado de paginas brancas. Um livro não se controla. (Cf. GABEIRA, 2001:107).

Bruno Barreto, ao adaptar a obra de Gabeira para o cinema, parte dos componentes do trecho acima em seu esforço de acionar os atores num thriller de aventura. Gabeira é ciente de que a narrativa se coaduna ao documental e se esmera em representar os personagens no jogo: ele próprio, Maria, Jonas, o embaixador. Tal representação é “ficcionalizada” por Barreto na ânsia de se tornar verossímil o que já é costurado na veracidade.

Essa verdade tão rasa de Barreto se choca justamente com a apropriação que Gabeira e seus contemporâneos estabeleceram na segunda metade dos anos 70. A prosa estabelecida em “O Que é Isso, Companheiro?” evidencia a documentalidade fincada em um momento de retomada da ficção realista-naturalista (sobretudo o romance realista-regionalista de 30), mas agora escancarada na experiência
jornalística.

Não apenas Gabeira é o jornalista-narrador, como a confusão estabelecida com a autoridade narrativa se liga a um ente que todos conhecemos, visto ser uma pessoa pública. Por isso, a reconstrução de Gabeira é altaneira e ordeira. Ele narra os fatos a partir da reconfiguração rítmica dos pontos que se entrelaçam e se ligam.

Em algum lugar do futuro ele liga os pontos amarrotados do passado, que nega, que expira, quando não era emancipado, quando era “velho-jovem”, quando era inexperiente.

É por essa perspectiva que as lembranças da prisão na ilha Grande, sua formação começava a se constituir, longe dos prédios erguidos nas redações de jornais, longe dos bares da moda da Zona Sul carioca: o contato inevitável entre os “presos políticos” e os “presos comuns”:

Na Ilha Grande, por iniciativa coletiva, iniciamos um curso geral, que chamávamos Universidade do Povo. Os estudantes de engenharia ensinavam matemática. Daniel ensinava história do Brasil. Um dos marinheiros se interessou tanto que chegou a copiar horários, criar um quadro de avisos. No final era chamado de reitor. (Cf. GABEIRA, 2001:212).

A coletividade vislumbrada fazia parte de uma função alicerçada ao homem de classe média. Gabeira perceberá isso, já “devidamente emancipado”, nas ruas do exílio europeu, pois se permite traçar as benesses estabelecidas naqueles anos loucos e insanos.

Walnice Nogueira Galvão (2005), ao localizar o livro de Gabeira, dentro do quadro da nova narrativa em prosa brasileira, diz:

O primeiro a surgir, e que permaneceu como uma espécie de carro-chefe é O que é isso Companheiro (1979), de Fernando Gabeira. O autor participou do grupo que, em façanha sem precedentes em qualquer lugar do mundo, raptou o embaixador americano e o manteve em sequestro por largo período, em 1969, no Rio de Janeiro. O objetivo era obter a libertação ecumênica daqueles que estavam presos e eram torturados, pertencentes às várias agremiações em que a esquerda se dividia, fossem operários ou militares, fossem estudantes. (Cf. GALVÃO, 2005:99).

Os atores elencados por Galvão não estão soltos nas amarras que o autor remonta, como já foi mostrado. Cada um desempenha o seu verdadeiro papel. Gabeira, ao remontar o fluxo da memória, se personifica numa espécie de Benjamin Button por rejuvenescer com o passar do tempo.

Esse rejuvenescimento se dá pela absorção dos ideários novos que se instaura, pela experiências vividas, pelas intensas agruras pelas quais passa. Tudo isso evidenciado por uma prosa documental, em que a narrativa subverte o bom tom do mito do herói romanesco, já que o narrador agora é o repórter que tenta pôr ordem no caos da vida resgatada:

A montagem dos dados era o segredo dos bons repórteres e redatores, que, mesmo prisioneiros do mito da isenção jornalística, têm seus métodos para veicular suas ideias (...). Na vida real, o engajamento dos jornalistas se daria não de forma intempestiva (...) mas lenta e gradual, como descreve Fernando Gabeira em O Que é Isso, Companheiro?; “Era preciso fazer alguma coisa. Quantas vezes você não ouviu esta frase?” (Cf. COSTA, 2005:158-163).

A (re)montagem dos fatos obedece, no entanto, a uma organização da mente, em pólos levantados da experiência vivida, carregado pela marca de um ciclo político que se fecha, antevendo um novo tempo que nascerá, futuramente, no exílio. Um tempo de negação e reavaliação do passado. Ao final de “O Que é Isso, Companheiro?”, o narrador jornalista esboça o sentido dos caminhos novos que virão, na amarga imagem da despedida de um tempo que se fecha:

Se soubesse que era por muito tempo ou talvez para sempre, se soubesse que não era eu que estava partindo, mas que o carrossel empurrava aquele avião para um caminho, num certo sentido, sem volta, até que diria: tchau, Vera Cruz; tchau, Santa Cruz; tchau, Brasil. (Cf. GABEIRA, 2001:224).

3. Depoimento do repórter no exílio: novos emblemas, novos atores

Antes de tudo, Gabeira assina “Crepúsculo do Macho” (1980) como um depoimento, embora o texto sugira, novamente, um encontro consigo mesmo e com o passado desalentado. O cenário embutido na memória organizativa de “O Que é Isso, Companheiro?” agora se materializa nas novas portas que se abrem, ou seja, a rememoração do passado serve de polarização a novos quadros que se apresentam em cena.

A metáfora do jornalista-repórter no exílio (o próprio Gabeira) faz que suas vicissitudes se estendam a diversas representações pelas quais a esquerda universal passaria.

Esse é o sopro fundamental de “O Crepúsculo do Macho”: a fossilização de uma luta autocrática empreendida no seio das lutas armadas, das atitudes desprovidas de um passado bem próximo. No depoimento jornalístico de Gabeira, em “O Crepúsculo do Macho”, a inevitável absorção dos novos códigos de resistência surge na experiência pela qual o jornalista-escritor passa.

No exílio, empreende o discurso da saudade da terra, tão docemente escancarada ao final de “O Que é Isso, Companheiro?”. Porém, tal lembrança agora serve de demarcação de infindáveis elementos que não farão parte da possível volta que se estabelecerá, quem sabe, um dia: esse é o debate dolorido empreendido por Gabeira em “O Crepúsculo do Macho”.

Todos sabemos que a famigerada sunga de crochê, nas praias cariocas um tempo depois, corroborará com as sutilezas preconizadas por Gabeira. Percorrendo, no depoimento de suas andanças no exílio, Gabeira pontua Suécia, Argélia, Cuba, Chile como espaços de trocas, de experiências sexuais despojadas, do consumo de drogas para fins de expansão da mente.

Há um rompimento valorativo, por parte do narrador-repórter, de um “avanço” no pensamento progressista ocidental, vinculando tais comportamentos não mais a uma ideia alienatória de subjugação aos valores dominantes e imperialistas.

Dessa maneira, os novos amores não se coadunavam mais à dureza dos cárceres, das manifestações de grupos autocráticos.

Agora, a paixão era pulverizada no contato cultural, em uma espécie de multiculturalismo preenchido dentro do próprio olho do furacão. A Babel se mostrava incauta, livre, desproporcional. A paixão do narrador repórter por Vera, por exemplo, é estampada nos costumes e nas apreensões que passavam na Argélia. Nota-se uma ritmização da vida amorosa na esfera do desprendimento e fragilidade. Há uma negação da dureza, poderíamos aferir:

Nosso tempo na Argélia estava contado. Ficaríamos pouco, porque Vera também viajaria para a Europa. Um dia entenderíamos tudo aquilo, estudaríamos todos os seus detalhes para explicarmos melhor, dando um balanço do exílio. No momento, queríamos apenas namorar e trocar uns beijinhos sem que nos aborrecessem. Isso de ficar pouco nos países acabou nos deixando um pouco mais tolerantes com as coisas que não aprovamos. (Cf. GABEIRA, 1981:37).

O convívio com grupos de exilados, de amigos novos, de comunidades improvisadas fazia com que o escritor-jornalista entendesse as mudanças do pós-guerra por outros olhares que não apenas o político representativo. A luta e o debate acerca dos culturalismos, como modo, como metodologia, parece ter fincado suas amarras em diversas instâncias, na medida em que pulverizaram desde a demanda das manifestações culturais mais recônditas, até o embate realizado em relação ao feminismo e aos direitos humanos.

Gabeira, a nosso ver, parte dessa lógica (ou nova lógica) para tecer as fundamentações de tolerância que poderão movê-lo. O depoimento passa, por isso, por um momento de reflexão e auto-análise:

Temos esperado amplamente uma revolução socialista no Ocidente e esta revolução não vem. E se estamos empenhando nossas vidas em algo que não existe? E se baseamos todos nossos esforços num suposto reino dos céus que não existe a não ser em nossas fantasias teóricas? (Cf. GABEIRA, 1981:74).

A frase proferida em Estocolmo, em uma reunião de organização política, evidencia um Gabeira negador das aspirações burguesas, ou, negador de um fundamentalismo presente nas entrelinhas do debate de setores “revolucionários”. A ideia da religião é estampada em uma dualidade interessante em “O Crepúsculo do Macho”: de um lado, a constituição da fé e da esperança, da meditação e autoconhecimento; de outro, as estabelecidas como preces da violência, como as virgens sugeridas por alguns religiosos islâmicos, no doce firmamento.

A absorção da cultura religiosa (o budismo, o hindu, o islã), pelas andanças de Gabeira no exílio, lhe permitem averiguar o condicionante fundamentalista da ordem política desfacelada. Assim, a revolução é o messias que nunca chega, que nunca se corporifica, restando ao bom homem burguês de esquerda a sanha individualista da contradição, a se polarizar, e isso é essencial, com os novos ditames e as novas caras que surgem, nos ambientes religiosos, sexuais, culturais etc.

A pergunta que Ferreira (2004) faz, em “Literatura e Jornalismo, Práticas
Políticas”, sobre os propósitos de Gabeira, na tessitura de uma nova ordem, polemiza o que de fato se mostrou, futuramente, nas empreitadas desenvolvidas por Gabeira, sob o viés de um pragmático direcionamento da esquerda a outras quimeras, não mais politizadas e, por isso, mais vulneráveis no jogo da redemocratização brasileira:

Pois é de importância sabermos se Gabeira pôde ou não estar descolado da ingenuidade ambiente ou tenha tido não uma consciência crítica capaz de antecipar as tragédias que viriam. Não seria significativo nesse quadro saber se ele estaria interpelando e/ou interpelado pelo discurso oficial da história formulado pelas classes dominantes, difundido pelo jornalismo oficialista. (Cf. FERREIRA, 2004:151).

A partir da provocação de Ferreira, sabemos que a extensão das ideias liberalizadas se solta – de forma vertiginosa – nos anos 80, nos cadernos culturais de São Paulo e Rio, numa intensa assimilação da cultura pop inglesa e norte-americana, nos grandes periódicos brasileiros, sendo que Gabeira é um dos porta-vozes dessa nova visão das coisas: em uma espécie de relativismo multicultural.

Voltando a “O Crepúsculo do Macho”, nota-se um narrador-repórter “desinteressado” da sisudez dos debates colocados nas comunidades, nas reuniões e nas conversas com os “companheiros”. O que lhe interessava eram outras aventuras:

Ainda guardo daquela alguns defeitos básicos: o de fazer uma ampla preleção meio teórica para contar um episódio que afinal é um lugar-comum em qualquer história de amor. Cada vez que discutíamos a questão da saída de Cuba, queríamos eu e Márcia sair juntos. (Cf. GABEIRA, 1981:83).

O narrador sente que alguma coisa não anda devidamente compassada na esquerda. Percebe, como demonstra na organização enviesada de seu depoimento, a falta de propósitos dos setores (pseudo)organizados.

A negação da política, como identifica a crítica de Ferreira, é uma espécie de pertencimento grupal a entregas mais duradouras, mais viscerais. Assim, o hedonismo que se vislumbra é uma saída, também lógica, do quadro desintegrador dos setores da esquerda que o autor identifica:

Nosso grande medo era o de ficar fora do centro dos acontecimentos e perder com isto a oportunidade de aprender mais. O debate puro tinha seus limites. Muitos alemães saídos do movimento antiautoritário estavam completamente perdidos na sociedade. (Cf. GABEIRA, 1981:115).

Gabeira não se sentia confortável com a hipótese de se “perder no tempo”. Daí, a necessidade de se culturalizar em todas as frentes. Daí o rock ‘n’ roll se fazer parte integrante dos seus ídolos da Bossa Nova.

No atravessamento antropofágico que Gabeira sugere, a juventude hedonista pós-flower power, pós contracultura, mostra-se alvissareira, na medida em que nega o paternalismo estampado da política de classes e suas propensões - para o narrador - autoritárias.

Nesse sentido, quando percorre as lojas de vinis em Berlim, ou quando adentra às “clínicas” de tatuagem em Estocolmo, salienta que as marcas corpóreas não são mais ditadas sob as regras da tortura e do vilipendiamento. A liberdade sexual e corpórea funcionaria como um novo espaço de ação: espaço este hedonista, individualista por vezes, mas que se sedimentaria como um espaço da verdadeira liberdade, ou, ao menos, de uma liberdade mais intensa.

A maconha sozinha não resolveria os desajustes. Nem o ácido lisérgico de outrora. Com a liberação de gostos e de trocas, novos sintomas aparecerão nos centros urbanos: cocaína, heroína, prostituição de elite, disco music, punk rock etc.

Cremos de suma importância salientar a localização que Gabeira faz de uma nova ordem sexual estampada no homossexualismo e do feminismo, insígnias importantes das cisões ocorridas no seio do debate da esquerda e de seus desalojamentos.

Assim como os fatores em jogo, elencados acima, a homossexualidade se mostra vinculada ao “desbunde” como uma saída crepuscular e branda das opressões e horrores de uma etapa de luta anterior. Porém, já no retorno da anistia propagada, Gabeira verifica as marcas e enfrentamento (de um novo enfrentamento, no mais, político) que começava a se avizinhar:

Vera costumava telefonar dando notícias. A colônia estava em polvorosa. Dois cantores que formavam um conjunto chamado Les Etoiles tinham se disposto a fazer show no Brasil. Eram cantores negros e homossexuais que atuavam no Discoahage e que iam abrindo seu caminho na França com bastante desenvoltura. O Comitê de Anistia recusou a ajuda porque eram homossexuais. Vera estava furiosa e contava das reuniões da Comissão de Cultura que se faziam em sua casa. Estavam em franca rebelião contra o Comitê e iam promover um debate sobre o homossexualismo. (Cf. GABEIRA, 1981:233).

O depoimento rememorativo de “O Crepúsculo do Macho” guarda, propositadamente, as novas marcas de um discurso de esquerda no Brasil, após o exílio. Os ingredientes estão devidamente demonstrados nas lembranças de Gabeira.

Mostrados, todavia, em pleno fluxo da rememoração e das histórias, como algo inefável, na tentativa de organizar um pensamento lógico à luz de sua empreitada memorialística. Arrigucci Jr. clareia tal acepção:

Certamente no projeto proustiano o distanciamento rememorativo, o tema do esquecimento, do olvido e da lembrança são importantes. É a tessitura, como diz Benjamin na imagem famosa, em que ele compara a tarefa do narrador proustiano à tarefa de Penélope, só que uma Penélope do esquecimento. A lembrança é uma espécie de significante de um conteúdo que é o olvido, o levantamento dos fatos mais banais, que são os mais perecíveis, contém um conteúdo do esquecimento, que é o que se perdeu. (Cf. ARRIGUCCI JR., 1979:87-88).

É evidente que Gabeira, em “O Crepúsculo do Macho”, parece usar as lembranças surgidas nas “imagens famosas” em que atuou, numa tentativa de rumar a um futuro mágico, negando, pois, uma nostalgia da modernidade, ou algo assim.

Negando mais do que esquecendo, é bom salientar. Quando termina seu depoimento, agora de volta à terra mãe, sente-se inquietado pelas incertezas:

Cheguei e aqui vai o primeiro cartão. Centenas de pessoas esperando. Felicidade geral e uma banda de música. No avião em Paris entrou um quadro de futebol e os amigos me carregavam no aeroporto ao lado de uma imensa taça esportiva. Vi o filme na televisão ainda ontem. O repórter me perguntava o que iria fazer de agora em diante e respondo assim: Não tenho a mínima ideia. (Cf. GABEIRA, 1981:244-245).

Gabeira fará muitas coisas, como continuaremos a ver.

4. O jornalista verde: um corpo da biosfera, uma nova política

Ao voltar do exílio, Gabeira se transforma no porta-voz, junto a determinadas lutas empreendidas no Brasil, de um movimento verde. O cenário carioca dos anos 80 ajuda Gabeira na edificação de uma proposta política de forte teor de despojamento.

O hedonismo, agora vitimizado pela Aids, os urros da galera do rock, as performances do Circo Voador, o início da “comédia besteirol” do Asdrúbal trouxe o trombone são personagens de um novo molde de ação, onde o conceito de democracia se vincula a própria estratificação da cidade do Rio de Janeiro: bela, desigual, desintegrada.

É no Rio de Janeiro, a propósito, que ocorrerá, um tempo depois, em 1992, a ECO-92.

Mas, Gabeira não está falando sozinho. No Rio de Janeiro, outros protagonistas se colocam (Alfredo Sirkis, Carlos Minc), na Amazônia também (Chico Mendes, Marina Silva), em São Paulo, ademais (Fábio Feldman, Eduardo Jorge).

Nota-se uma configuração política ligada a um novo atributo de ação. Não afincado aos dogmas estabelecidos pelos movimentos revolucionários, mas agora “domados” pelas inquietudes de um setor juvenil dos grandes centros, com preocupações humanitárias de cunho representacional global.

Poder-se-ia pensar que se trata de mais um componente da globalização ou da transnacionalização cultural. O certo, porém, que o debate que Gabeira faz nos anos 80 é um debate de proposições pontuais que se deslocam ao pensamento estrutural do Brasil, como hoje todos podem perceber.

É nesse contexto que Gabeira publica em 1988, “Greenpeace: Verde Guerrilha da Paz”, uma espécie de manifesto-reportagem, em que determina o histórico da organização verde fincada num paradigma de ética e de ação.

A guerrilha sugerida no título reforça não os aparatos da luta armada; a luta seria empreendida agora sob a égide da conscientização, da desintegração dos grandes conglomerados transnacionais. O inimigo muda de cara e se transforma nas ruminações preponderantes de tal fenômeno.

Os verdes instauram o modelo de vida fincado na luta desmedida pela natureza, por um hedonismo tardio no que se refere à valorização do corpo. É evidente que em tal discurso se instaura consequências negativas de grande monta.

Entretanto, a confrontação não-violenta do Greenpeace facilitaria as entregas as quais Gabeira se lança: volta à política se elegendo deputado federal em várias ocasiões. Com o passar das legislaturas, parte para discussões que não se separam da visão preconizada pelos “dogmas” do Greenpeace: legalização da maconha, profissionalização das prostitutas etc.

Assim, o cerne do Greenpeace está estabelecido por uma “luta verde”:

A revolução mental que deu origem ao Greenpeace e a outros movimentos modernos, como o Partido Verde alemão e o feminismo, só foi possível porque se cumpriu a primeira parte da profecia de Olhos de fogo: pássaros caindo do céu, peixes mortos nas correntezas do rio. (Cf. GABEIRA, 1988:16).

Verifica-se que a ‘revolução mental’ é contrária à revolução socialista ortodoxa da qual Gabeira também atuou em outros tempos. A absorção de um novo código de ética, ou de uma nova visão, pelos verdes, situa Gabeira em uma esfera muito própria das tendências de esquerda do final do século XX e início do XXI.

A esquerda contemporânea parece assimilar outros códigos “assépticos” de luta, na medida em que se liga a setores organizados de classe média na tentativa de se emoldurar um quadro de outras demandas, outras necessidades.

A crítica que se faz a esta ‘esquerda moderada’ pode estar alicerçada ao que Gabeira preconiza em “Greenpeace: Verde Guerrilha da Paz”. Ao biografar a entidade ecológica e suas diversas nuances, escancara as cisões e fraturas dentro do pensamento esquerdista contemporâneo.

Ferreira tenta localizar quem são os atores da contra-ordem política no período da redemocratização brasileira. Não à toa, coloca Gabeira e os verdes em aproximação/distanciamento com o PT, Partido dos Trabalhadores:

Como exemplos possíveis, teríamos: os “verdes”, no caminho de Gabeira e Sirkis, ou em caso paralelo, os democratas do Partido dos Trabalhadores, nas pegadas de outros autores. Pois, como “saída” (aqui entre aspas porque a busca de uma alternativa transformadora parece pressupor certo espaço para a sua elaboração e não uma pistola, apontada para a cabeça, determinando condições). (Cf. FERREIRA, 2004:152).

Como se vê, movimentos organizados de base surgem ao sabor de um novo questionamento ético que não apenas o vinculado a uma luta renhida e fratricida com a morte e a violência.

Nesse sentido, talvez, a ligação de tais emblemas às aspirações dos direitos humanos, possam se sedimentar num novo arcabouço de ação política desenhada: de mais austeridade, de mais equilíbrio. Mas de menos enfrentamento, de menos educação de classes.

É justamente nesse plano de pensamento que Gabeira parece resumir o papel dos ecologistas:

Talvez seja essa a origem do slogan entre os ecologistas: pensar globalmente, agir localmente. E talvez seja esse também um dos pontos que distinguem o Greenpeace do Partido Verde alemão. Ao se distanciar da política por achar que fatalmente seria conduzido a uma polêmica entre esquerda e direita, o Greenpeace não renunciou a influenciar decisões governamentais. (Cf. GABEIRA, 1988:64).

5. Considerações finais

O jogo está colocado, ou seja, os novos atores em cena desenham a explanação do fim das utopias clássicas, por se permitirem alijados e ou exilados da política tradicional. Essa é a postura desempenhada por Gabeira nas três obras anteriormente abordadas.

Tal conjectura é caracterizada pelo ensaísta Silviano Santiago (1997) como desmiolada, visto que seus principais atores se enredam em demandas brandas, se transformando em “desmemoriados radicais da atualidade”. Não deixa de ser uma urgente provocação, já que Gabeira tece o debate das novas tendências e dos novos comportamentos à luz de um esforço memorialístico de ajuste e de resgate de equívocos e tensões.

Santiago analisa, acidamente, o quadro de ação política instalado sob os auspícios de homens como Gabeira:

A transição deste século [XX] para o seu “fim” se define pelo luto dos que saem, apoiados pelos companheiros de luta e pela lembrança dos fatos políticos recentes, e, ao mesmo tempo, pela audácia da nova geração que entra, arrombando a porta como impotentes e desmemoriados radicais da atualidade. Ao luto dos que saem opõe-se o vazio a ser povoado pelos atos e palavras dos que estão entrando. (Cf. SANTIAGO, 1997:02).

A assertiva de Santiago é tão premente que sintetiza o contra-discurso e
atividade jornalística de Gabeira, esboçado desde “O Que é Isso, Companheiro?”, de 1979.

O próprio Gabeira corrobora a cisão estampada por Santiago, quando, em “Greenpeace: Verde Guerrilha da Paz”, demarca as mudanças ocorridas desde o sequestro do embaixador Elbrick até as lutas do Greenpeace:

Uma das frases mais significativas que ouvi de um motorista de táxi, após o sequestro do embaixador norte-americano em 69, no Rio, foi esta: “Admiro os sequestradores. Para mim, são uma espécie de astronautas”. Essa distância entre homem comum e as ações espetaculares, essa relativa impotência à qual ele é condenado, como espectador que não tem outro caminho a não ser admirar pela tevê, é a grande fragilidade de todo o esquema. O Greenpeace soube superá-la, talvez, não por uma reflexão especial sobre o assunto, porque os problemas da guerrilha atingiram mais os países de III mundo. (Cf. GABEIRA, 1988:111).

A superação do debate político passa também pelo problema da mediação e da transmissão de valores pelos fluxos midiáticos, em que o jornalismo se torna elo e práxis. A superação da linguagem política e também jornalística é demonstrada por Gabeira à luz do que diz, do que monta, do que rememora.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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______________. Enigma e comentário. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

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COSSON, R. “Romance-reportagem:o império contaminado”. In: CASTRO, G.; GALENO, A. (Org.). Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo: Escrituras, 2005. 2ª Ed.

COSTA, C. Pena de aluguel. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

FERREIRA, C. R. Literatura e jornalismo, práticas políticas. São Paulo: Edusp, 2004.

GABEIRA, F. O crepúsculo do macho. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. 21ª Ed.

_________. Greenpeace: verde guerrilha da paz. São Paulo: Clube do Livro, 1988.

_________. O que é isso, companheiro? São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 2ª Ed.

GALVÃO, W. N. As musas sob assédio. São Paulo: Senac, 2005.

MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003. 2ª Ed.

PENA, F. Jornalismo literário. São Paulo: Contexto, 2006.

SANTIAGO, S. Crítica cultural, crítica literária: desafios do fim do século. Guadalajara: Latin American Studies Association, 1997.


*Cláudio Rodrigues Coração é jornalista graduado pelo FAAC/UNESP e doutorando em ciências da comunicação pela ECA/USP.

 

 







Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro | ISSN 1806-2776 | Edição 13 | Outubro | 2010
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