Outubro de 2010
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ISSN 1806-2776
 
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ARTIGOS

Caricatura e charge:
Apontamentos sobre carnavalização
e inversão da realidade no jornalismo

Por Adriano Charles S. Cruz*

RESUMO

Este artigo apresenta um panorama diacrônico da constituição do gênero jornalístico charge a partir de sua emergência histórica no campo das artes à migração aos veículos jornalísticos.

Ademais, discute a possibilidade de transposição do conceito de “carnavalização” do filósofo Mikhail Bakhtin ao campo.

Nessa direção, defende-se a tese que a charge funcionaria como uma “memória carnavalizada” dos acontecimentos.

Imagens: Reprodução

Gargantua por Gustave Doré.

PALAVRAS-CHAVE: Caricatura / Charge / Carnavalização

1. Introdução

“Pois bem – continua Gargantua – só se limpa o cu quando ele está sujo;
ora, ele só está sujo quando se caga: logo para limpar o cu é preciso cagar.”

François Rabelais

Atualmente, o termo charge [1] se refere a um tipo específico de desenho humorístico, geralmente, de caráter político com o objetivo de criticar algum fato atual e específico.

Texto cultural bastante difundido na atualidade, a charge se constituiu ao longo da história como um gênero no qual a inversão da realidade não é apenas permitida como desejada. O que não significa dizer que não tenha sofrido interdições e repressões. Conforme detalharemos, a história comprova as dificuldades que muitos chargistas enfrentaram na produção e circulação de seus textos.

Apesar do termo “charge” ser amplamente utilizado, em alguns países, como os hispânicos, o termo “caricatura” é o designador desses desenhos irônicos. Nos países de língua portuguesa, o termo caricatura passou a nomear, exclusivamente, as representações cômicas da face humana − isso se deve a uma confusão etimológica, pois a palavra caricatura deriva do verbo italiano caricare (carregar, acentuar ou exagerar) e não da palavra cara [2] (rosto).

Entretanto, alguns pesquisadores brasileiros, como Lima (1963) utiliza os dois termos como sinônimos.
 
De fato, o termo caricatura pode ser compreendido de duas formas: uma mais ampla que se refere a toda forma gráfica humorística: charge, cartum, histórias em quadrinhos e caricaturas pessoais. Dessa forma, os historiadores empregam o termo caricatura no sentido amplo; [3] medida que, também, adotaremos ao falarmos da história da charge/caricatura, uma vez que não temos como separar os termos até o século XIX.

Nossa intenção é analisar o gênero charge à luz do conceito de carnavalização do russo Mikhail Bakhtin. Por conseguinte, a pergunta que nos guia, neste trabalho, pode ser enunciada nesses termos: “é possível aplicar o conceito de carnavalização às charges atuais?”

Pressupomos que a transposição do conceito oriundo do campo literário ao jornalístico auxilia-nos a entender com maior profundamente tal gênero e sua ampla aceitação por parte do público-leitor.

2. O Renascimento como mudança paradigmática e as condições de existência das charges

As origens remotas da caricatura podem ser encontradas desde a pré-história, onde há registros de desenhos com intenção satírica. Segundo Fonseca (1999), os egípcios também representavam os homens como animais e em situações ridículas.

Lima (1963:34) é ainda mais enfático: “quanto ao seu aparecimento, muito embora o primeiro caricaturista de que se conhece o nome fosse o grego Pauson, a caricatura nasceu, efetivamente, no Egito”. Na Grécia, por seu turno, o humor satírico encontrava espaço no espírito teatral da época e nas festas dionisíacas.

Já os desenhos satíricos eram encontrados nos vasos e outros objetos pessoais. “Os gregos eram apaixonados pelas paródias de todos os gêneros na literatura e na pintura” (Cf. FONSECA, 1999:44). Em Roma e Pompéia são famosos os graffiti, rabiscos feitos nas paredes dos edifícios públicos e privados com a intenção de criticar, especialmente, os políticos da época. Entre os romanos também havia o hábito de se escrever comentários irônicos em estátuas, a mais famosa delas foi Pasquino, [4] datada do século III a.C.

Na Idade Média o gosto pelo grotesco e as festas populares dão um tom de humor à época do rígido controle da Igreja. Entretanto, é somente com a ruptura dos valores medievais que a caricatura conseguirá se desenvolver.

Apesar da consideração de Lima (1963), defendendo a origem egípcia da caricatura, defendemos apoiados em Fonseca (1999) e na maioria dos historiadores, que foi a partir do Renascimento que as caricaturas e as charges atuais tiveram sua origem imediata ”como um produto da ênfase dada ao indivíduo (...)”.

Conforme nos adverte Michel Foucault (1999b), a história humana é repleta de contradições, rupturas e atualizações, mas, ao que nos parece, há nos homens o desejo de completude e acabamento, que os faz “esquecer” esse fato, encarando o andamento histórico de forma progressiva e linear.

Em meados do século XV, inicia-se um período histórico de fundamental importância para a contemporaneidade, que marca a passagem do feudalismo para o capitalismo: A Renascença ou Renascimento, movimento filosófico e artístico que teve como berço a Itália, [5] espalhando-se pela Inglaterra, Alemanha, Países Baixos, entre outros.

Os renascentistas acreditavam que o Renascimento era um momento de ruptura com a “longa noite da humanidade” que foi a Idade Média, pois a consideravam como uma era de irracionalidade e ignorância. Agora, no amanhecer da razão, outros valores estariam em voga, entre eles: a revalorização do homem; [6] a retomada dos ideais do classicismo greco-romano; o fortalecimento do pensamento laico; a construção de um saber científico e o consequente enfraquecimento do poder da Igreja.

Tudo isso se configurou numa nova ordenação do mundo: o império da Razão [7] que se consolidaria ainda mais com a Reforma Protestante e o Iluminismo no século XVIII.

O Renascimento foi de fato uma erupção histórica, todavia as suas bases estão ligadas ao momento anterior, a chamada Baixa Idade Média, em virtude da intensificação do comércio e da vida urbana europeia que ali se iniciava.

A visão positiva desse período como um momento de reflorescimento da cultura e da arte clássica contrasta com os inúmeros conflitos, guerra e perseguições religiosas abundantes. Essas contradições, conforme nos lembra Costa (2002:19), se expressam na arte do período, gerando um “clima de fim de mundo” na “Divina comédia” de Dante Alighieri, no “Juízo final”de Michelangelo, e em vários quadros de Hieronymus Bosch. “Um clima de insegurança e instabilidade perpassa a todos nessa época de profunda transição”.

Os quadros de Bosch e os de Brueghel são considerados exemplos mais altos do grotesco, elementos que algumas caricaturas utilizarão para satirizar os seus objetos, embora, a arte grotesca já existisse desde a Idade Média, apesar de todo o controle da Igreja. [8] Esses desenhos têm a sátira e o humor como elementos característicos e prenunciam o advento das caricaturas.

O termo grotesco do italiano La Grottesca ou Grotesco, derivado de grotta (gruta), surgiu no século XVI, quando se descobriram, através de escavações, pinturas ornamentais até então desconhecidas. Havia nessas imagens distorções, figuras humanas mescladas com animais ou plantas e, por isso, foram duramente criticadas. Porém, segundo Kayser (1986:18), a arte grotesca se expandiu alcançando os próprios pintores renascentistas como Rafael Sanzio.

Uma das características da “deformação“ grotesca é a relação do corpo humano, que muitas vezes, se confunde com os animais. É uma perspectiva artística que não despreza os aspectos considerados fisiológicos do corpo: a excreção, a sexualidade e as eliminações. Essa concepção de corpo “aberto e incompleto”, segundo Bakhtin (1993:24): “(...) alcançou sua perfeição mais completa e genial na obra de Rabelais. A mesma concepção preside a arte pictórica de Jerônimo Bosch e Brueghel, o velho”.

De fato, as imagens extravagantes do pintor flamengo Pieter Brueghel também são um sinal dos tempos. Segundo Fonseca (1999:48), o pintor era chamado de Pierre le Drôle (algo como “Pedro, o travesso”), os demônios, bastantes presentes nas obras do autor, “representam montagens tão heterogêneas quanto engraçadas de porções de seres vivos que nada têm em comum umas com as outras”.


Pieter Brueghel, o velho (1525-1569). "Luta entre Carnaval e Quaresma", óleo sobre madeira de carvalho (1559). Wien Kunsthistorisches Museum, Gemäldegalerie.
 

Essas imagens são contemporâneas às obras do francês François Rabelais, criador de um universo literário repleto de grotescos gigantes, presentes no imaginário popular medieval.

As pinturas, por exemplo, de Pieter Bruegel, o Velho, parecem cenários de viagem para Gargantua, também para Pantagruel e Panurgo, ou o próprio espaço onde eles transitavam constantemente. E isso nos ajudar a ampliar ainda mais a visão da obra para sua época. (OLIVEIRA, 2009).  

O mais importante das imagens desses e de outros pintores do século XVI é o fato que eles apontam para a transição histórica que se realizaria a partir do século XVII nas artes e na sociedade. Momento artístico classificado posteriormente como a denominação genérica de Barroco.

Com o passar dos tempos o termo grotesco foi ampliado e mudando de configuração. É nesse percurso que se identificará a presença da arte grotesca na literatura, por exemplo, as poesias de Baudelaire e de Augusto dos Anjos e os contos de Hoffmann; na pintura, particularmente, o surrealismo; no cinema de terror ou no expressionismo alemão, entre outros.

Nos desenhos de humor, a noção de grotesco também será polissêmica, algumas vezes, identificada com relação a formas disformes/animalescas, ou ainda, associado ao traçado ligeiro, com poucos detalhes e despreocupação com a perfeição estética. Segundo Fonseca (1999:55) um exemplo histórico do grotesco são as caricaturas do francês Jacques Callot (1592-1635), que inaugura a sátira social.

Já Cavalcanti (1996) emprega o termo grotesco em sua segunda acepção, traços simples e sem rebuscamento, trazendo como exemplo as charges do pernambucano Abelardo Pontes de Maia e Silva (Crayon). “Sem contar com a precisão linear de Cardozo, seus bonecos são feitos a princípio com linhas incompletas, mas que trazem em si o grotesco e a mordacidade”.

Por outro lado, as imagens que vêem a nossa mente quando falamos do Renascimento são certamente as obras dos artistas dos Cinquecento, tidos como gênios: as Madonas de Rafael e os afrescos da Capela Sistina de Michelangelo e, particularmente, a Mona Lisa de Da Vinci, este último ainda do século XV. Esses artistas buscaram atingir a todo o custo os ideais do belo clássico: perfeição, harmonia, equilíbrio e beleza.

A busca pela perfeição das formas e pela reprodução perfeita da realidade impulsionou-os a se dedicarem aos estudos da anatomia e da fisiologia humana (tanto no plano teórico como na prática, através da interditada dissecação de cadáveres).

Esse trabalho de observação e estudo do corpo, só foi possível pela revalorização do mundo mundano e do antropocentrismo. Segundo Foucault (1999a), estaríamos vivendo a Idade da similitude que persistiria até o fim do século XVI, caracterizada por uma semelhança entre as palavras e as coisas.

De toda forma, as caricaturas devem o seu surgimento a esse período, uma vez que nascem como ruptura do ideal clássico. Conforme destaca Fonseca (1999: 18), “foram as concepções estéticas e humanísticas do Renascimento que permitiram o nascimento da caricatura”, pois como sabemos na Idade Média o ideal de beleza estava associado às virtudes, à pureza, já a feiúra era relacionada ao mal e ao pecado.

A formação discursiva da Renascença estabelece novas conformações e uma nova maneira de expressar, nas quais o “homem passou a ser a medida de todas as coisas”.

Esse sistema de ordenação do mundo (epistéme) e das práticas artísticas, mas não somente elas, será cindido no século XVII, a era clássica − na classificação foucaultiana; na qual, as palavras estavam deslocadas das coisas. É justamente no final do século XVI que surgem as primeiras caricaturas como reação ao naturalismo renascentista.

Ao contrário do ideal de “belo clássico” da Renascença a reprodução fiel da realidade, a harmonia das formas e a beleza e perfeição dos traçados não interessa às caricaturas; ao invés disso, o que se deseja é acentuar, carregar e até mesmo deformar o objeto retratado. Nas palavras de Gombrinchi (1986:296) “(...) a invenção do retrato caricatural pressupõe a descoberta teórica da diferença entre semelhança e equivalência”.

A fundação do ateliê da família Carracci em Bolonha no final do século XVI é tida como a erupção final da caricatura na história, o seu nascedouro: “(...) a caricatura no sentido do retrato satírico de um indivíduo é quase impossível de ser identificada antes de Agostino Carracci” (Cf. FONSECA, 1999:49).


Agostino Carracci. "Consequence of the so-called Lascivie (Lot and his daughters)". Department of Drawings, The Metropolitan Museum.

Esses italianos eram observadores do cotidiano e caricaturavam, a partir desse olhar, os principais acontecimentos e as pessoas da cidade. Segundo Fonseca (1999) a expressão ritrati carichi [9] foi utilizado inicialmente em um tratado sobre arte, publicado em 1645 por A. Monsini, no qual se encontram menções aos desenhos dos Carracci.

Com o surgimento dos colecionadores de artes no século XVII, disseminaram-se as caricaturas e o trabalho dos italianos de Bolonha serviu de inspiração para novos desenhos.

Tais imagens possuíam uma relação com a sociedade e com o cotidiano dos europeus, existia nesse tipo de riso uma ligação com a realidade que o distinguia do imaginário fantástico da Idade Média, repleta de demônios e seres sobrenaturais.  

Se o grotesco medieval era associado ao demoníaco, a caricatura se afastará desse enquadramento, conforme ressalta Queluz (2005:240). Essa imagem ainda “questiona as normas de representação, satirizando o conceito de arte como imitação da natureza, a busca do belo, ampliando as fronteiras do real na pintura, na gravura e no desenho, especialmente”.

Entretanto para Tazitti (2005), essa associação da caricatura com o mal persistirá até o século XIX, quando ela será encarada apenas como uma oposição ao realismo na representação. Por outro lado, defendemos que a caricatura sempre estará se remetendo ao lado caótico da vida e de uma ordem que se assemelha ao grotesco.

A carnavalização do mundo, conceito bakhitiniano, é para nós, uma característica marcante das charges.

3. As charges na carnavalização do mundo

Mikhail Bakhtin em “A cultura popular na Idade Média e no Renascimento”aprofunda o conceito de carnavalização já apontado no capítulo IV da obra “Problemas da poética de Dostoievski”. Para ele, as obras do francês François Rabelais, autor de Gargantua e Pantagruel, não foram compreendidas pelos críticos literários russos, em razão de eles ignorarem a associação dos escritos do autor com as festas populares e carnavalescas da Idade Média.

Essas festas provocavam uma verdadeira desconstrução do mundo, onde as classes sociais eram invertidas e aboliam-se as regras morais. Machado (1989:76) defende que o carnaval interessa a Bakhtin por ser um momento em que os conflitos sociais afloram, permitindo-se ouvir a voz do Outro.

Nesse sentido, ele recorre ao carnaval por ser este uma festa democrática, cujos ritos são marcados pelo destronamento do velho e entronização do novo, o que garante o reinado da cultura marginal às formas de poder. Mas Bakhtin não estuda o carnaval. Ele se ocupa da cosmovisão carnavalesca, da fenomenologia de suas formas expressivas. (Cf. MACHADO, 1989:75).

Conforme nos adverte Machado (1989), o carnaval não é o objeto de estudo de Bakhtin, mas sim a carnavalização, um principio estético que se presentificava em diversas manifestações artísticas, o que tinha por objetivo satirizar as rígidas estruturas sociais, através da paródia, do trocadilho e da ironia. “Para Bakhtin, o carnaval tem múltiplas facetas; é ao mesmo tempo textual, intertextual e contextual” (Cf. STAM, 1992:46).

O carnaval, ligado ao grotesco, criava também uma nova forma de linguagem, mais libertária e vivenciada pelos participantes.

(...) essa eliminação provisória, ao mesmo tempo ideal e efetiva, das relações hierárquicas entre os indivíduos, criava na praça pública um tipo particular de comunicação, inconcebível em situações normais. Elaboravam-se formas especiais de vocabulário e do gesto da praça pública, francas e sem restrições, que aboliam toda a distância entre os indivíduos em comunicação, liberados das normas correntes da etiqueta e da decência. (Cf. BAKHTIN, 1993:9).

O autor defende ainda que um gênero literário conserva traços arcaicos, ressignificando-os e renovando-os. É o caso dos romances de Dostoievski os quais têm sua origem nos gêneros sério-cômicos, especialmente, a sátira menipeia. Foi por meio da observação da sátira menipeia que Bakhtin aprofundou o conceito de carnavalização no romance.

O nome desse gênero é derivado do filósofo Menipo de Gadare (III a.C.) que lhe deu a forma clássica. A sátira menipeia se caracteriza por um acentuado grau cômico e uma liberdade de invenção temática e se constitui “(...) num dos principais veículos portadores da cosmovisão carnavalesca na literatura até os nossos dias” (Cf. BAKHTIN, 1993:97-98).

Segundo Bakhtin (1993:02), Rabelais afastava-se dos cânones literários e das regras formais da literatura para beber profundamente do espírito popular. As imagens do autor francês possuem um caráter não-oficial e satírico. “(...) as imagens rabelaisianas, (são) decididamente hostis a toda perfeição definitiva, a toda estabilidade a toda formalidade limitada (...)”.

O riso carnavalesco se apresentava de três formas: espetáculos e rituais cômicos, composições verbais cômicas e vários tipos e gêneros de linguagem familiar e grosseira da praça pública. A influência desse espírito de carnavalização na literatura e, como pressupomos, na charge, se dá pelo uso de recursos estilísticos, dos quais se destacam a ironia, o burlesco, o estereótipo e os jogos de palavras.

A partir da recuperação desse conceito, poderemos afirmar que as charges provocam essa desconstrução do social, essa carnavalização do mundo. Uma vez que à charge é permitida a opinião e a construção do cômico e do humor nas páginas “sérias” do jornal (ninguém se espanta ao ver numa charge um traçado exagerado representando, por exemplo, o nariz de um presidente da república ou de um monarca). Ao contrário é justamente isso que se espera de tais textos.

É claro que a visão de Bakhtin é voltada especificamente à construção literária renascentista e a sua ligação com a cultura popular. O próprio autor aponta as evoluções históricas do riso, a sua vertente mais ligada ao humor, a ironia e ao sarcasmo a partir do Romantismo. Todavia, acreditamos que as charges possuem essa relação de carnavalização e defendemos as suas hibridas raízes populares. [10]

Seguindo a afirmação anterior que há uma liberdade de expressão das charges no jornal, poderia se inferir que não há limites ou censura a esses desenhos, o que seria equivocado, posto que em todos os períodos históricos ocorreram perseguições e proibições aos humoristas e às manifestações do humor.

As reações contrárias ao carnaval medieval apontam para a veracidade do que afirmamos. A partir de meados do século XVI, pouco tempo antes do ateliê dos Carracci, começa-se uma verdadeira perseguição às festas populares, por parte da Igreja e dos organismos civis.

Ora, esse período, coincide ainda com a formação dos Estados Nacionais e a ascensão do poder dos monarcas, tendo como ápice o absolutismo do século XVIII. O que no leva a pressupor que com a unificação do poder o controle sobre o humor foi intensificado. E o que teria motivado essa perseguição? “O riso torna-se suspeito. Se não se pode negar que ele seja próprio do homem, então ele é a marca do homem decaído” (Cf. MINOIS, 2003:317).

No século XVII, inicia o império da seriedade, conforme Minois (2003) é necessário colocar ordem em um mundo marcado pelas grandes descobertas e pela reestruturação das reformas. É nesse contexto também que não há mais espaço para a loucura, conforme nos mostrou Michel Foucault. Acreditava-se que não havia mais espaço para Quijotes no mundo marcado pelo racionalismo.  

É tempo de colocar o mundo nos eixos e de eliminar dele a loucura. A grande desvalorização da loucura também começa no século XVI, e com ela é rejeitada a visão cômica e carnavalesca do mundo invertido. (Cf. MINOIS, 2003:321).

Para Bakhtin (1993:30), no século XVII, as festas populares realizadas na praça são diminuídas, existe a tentativa de pôr fim ao espírito de carnavalização, o autor acrescenta que a “(...) festa quase deixa de ser a segunda vida do povo”. A ênfase no advérbio é explicada pelo autor pelo caráter indestrutível do carnaval. “Embora reduzido e debilitado, ela ainda assim continua a fecundar os diversos domínios da vida e da cultura”.

Minois (2003) recorda também que houve muitas resistências às proibições do humor em toda parte Europa. Apesar de toda perseguição, o riso conseguiu sobreviver e com ele as caricaturas, acompanhando o progresso da imprensa; graças à invenção da linotipia por volta 1796, as charges tiveram a sua circulação aumentada e, se tornaram frequentes nos jornais impressos de quase todo o mundo, tanto no Velho quanto no Novo Continente.

Para Romualdo (2000), aos poucos as ilustrações, não apenas as de caráter humorístico, foram se estabelecendo nos impressos, de forma esporádica até alcançar a regularidade – o aumento das vendagens dos jornais a partir dessas publicações contribui nesse processo. O primeiro jornal diário americano a publicar, regularmente, as ilustrações gráficas foi o Daily Graphic de Nova Iorque em 1873. "Os outros jornais perceberam a tendência do público em consumir os diários ilustrados e, na década de 1880, as ilustrações passaram definitivamente a fazer parte dos jornais americanos.” (Cf. ROMUALDO, 2000:11).

No contexto europeu, de acordo com Motta (2006), foi a partir do século XVIII, que as caricaturas/charges adquiririam um caráter político mais acentuado:

O amadurecimento da caricatura política deu-se na Inglaterra do século XVIII, para o que contribuiu o clima de relativa liberdade vigente naquela monarquia moderada e as paixões despertadas pelas lutas revolucionárias (e contra-revolucionárias) do período de 1780-1820, igualmente responsável por impulsionar a produção caricatural na França. (Cf. MOTTA, 2006:16).

O interesse pelos desenhos de humor foi crescendo com a evolução das técnicas de impressão, alcançando as terras portuguesas e, em seguida, a sua mais importante colônia, o Brasil. Segundo Motta (2006:19), a procura foi tanta que, a partir do século XIX, surgiram publicações periódicas “(...) exclusivamente dedicadas à sátira e, simultaneamente, a incorporação das caricaturas aos jornais da nascente grande Imprensa (...)”. O que, segundo autor, pressupõe uma evidência forte de suas raízes populares – o seu espírito de praça pública.

4. Considerações finais

Se admitirmos como verdade que o carnaval “continua a fecundar os diversos campos da cultura”, poderemos ver nas charges atuais um resquício desse espírito que, ao empregar a dualidade e riso, atrai os leitores, fazendo-os participar ativamente da construção de sentido.

Mas como se constituem na atualidade tais textos? A charge é um importante tipo de texto jornalístico que tem uma clara função opinativa, revelando as ideias e as questões sociais que são debatidas em uma determinada época histórica.

Nesse sentindo percebemos que a charge como um texto de modelização secundária traz em si elementos que só podem ser compreendidos à luz da história e da cultura [11] nas quais se insere. “(...) os textos se situam num espaço cultural e respondem a condições próprias de produção e recepção. Fundamentalmente mostram um mundo – de modelização em termos lotmanianos – que está ancorado em situações particulares.” (Cf. BAREI, 2007:235).

Aparentemente simples, tais textos carregam uma crítica de caráter sociopolítico, provocando o leitor e levando-o a participar, de forma ativa, do processo de construção de sentido. Possuindo um caráter volátil, como o jornal que depois de lido é jogado fora, a charge está condenada a não ser uma obra de arte, como a pintura e a fotografia. Entretanto, defendemos que além da sua utilidade sociodiscursiva, a sensibilidade e o apuro estético também podem ser encontrados nesses desenhos. [12]

Como conclusão,
é possível afirmar, com base nas reflexões levantadas ao longo do texto, que a charge desempenha um lugar de “memória carnavalizada” e se constitui em um espaço de catarse da crítica política aos discursos hegemônicos. Nesse sentido, o conceito de memória não se limita à conservação de informações, é ainda o espaço onde essas podem ser re-significadas.


NOTAS

[1] A charge se caracteriza, também, por ser um gênero discursivo que pretende criticar um fato ou acontecimento atual e específico, geralmente, possuindo um caráter político. Utiliza-se aqui o conceito de gênero de Bakhtin (2003), formas cristalizadas de dizer, construídas segundo regras sócio-históricas. “(...) cada enunciado é particular, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso”. (Cf. BAKHTIN, 2003:262, grifos do autor). Nessa perspectiva, o gênero discursivo se caracteriza por possuir certos aspectos fundamentais que os distingue de outros, logo, uma charge, apesar da variação cultural, terá traços específicos em sua forma que a identificará. 

[2] Na verdade, o termo cara vem do grego kára, que significava cabeça.

[3] Na maior obra sobre o tema no país, “História da caricatura no Brasil” (1963) de Herman Lima, publicada em quatro volumes, o autor aplica o termo caricatura para todos os desenhos de humor encontrados nos jornais impressos e reserva o francês portrait-charge para as caricaturas faciais.

[4] “O povo chamava a estátua de Pasquino em homenagem a um alfaiate instalado na vizinhança famoso por sua boca ferina. Durante a noite, secretamente, comentários satíricos eram colocados nas estátuas e, no dia seguinte, essas “pasquinadas” espelhavam-se entre o povo, pelas sete colinas de Roma” (Cf. FONSECA, 1999:45).

[5] Recordamos que nesse período a Itália ainda não havia realizado a sua unificação, estando divida em diversas cidades independentes como Veneza, Nápoles, Florença, Milão, Roma etc. A relação entre elas não era pacífica, pois havia muitas disputas por questões comerciais, sendo os conflitos militares bastante comuns.

[6] O “homem” que é valorizado nesse momento é o homem burguês. As populações campesinas e os mais pobres não foram contemplados com essa mudança paradigmática. Nesse sentido, numa perspectiva gramsciana, o Renascimento é visto como “um movimento essencialmente de cúpula, como movimento que aprofunda a distância entre intelectual e povo” (Cf. GRUPPI, 1991:03).

[7] Logo não se terá mais espaço para a loucura no mundo, conforme nos mostra Foucault (1999b) em sua “História da loucura”. Chegávamos ao tempo da produção.

[8] Esse tipo de representação pictórica estava presente até mesmo nas iluminarias e nos pequenos desenhos da Bíblia e da Liturgia das Horas.

[9] Relembramos que até o século XX não havia divisão entre charge, cartum e caricatura, todas elas eram denominadas latu sensu de caricaturas.

[10] Cf. Canclini (2005).

[11] Em “Sobre o problema da tipologia da cultura”, Lotman (1979) define cultura como “o conjunto de informações não-hereditárias, que as diversas coletividades da sociedade humana acumulam, conservam e transmitem”.

[12] Um argumento favorável a isso é que, no decorrer da história, grandes artistas se dedicaram à caricatura de forma geral, tais como: Albrecht Dürer e Honoré Daumier.


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*Adriano Charles S. Cruz é professor do departamento de comunicação social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
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Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro | ISSN 1806-2776 | Edição 13 | Outubro | 2010
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