Outubro de 2010
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ISSN 1806-2776
 
Publique
Contato
 


Site da ECA





 

 

 


 

 

 

 

 

 

 



ENSAIOS

Estereótipos em “Viver a Vida”:
Favela e representações de identidade

Por Marcos Paulo de Araújo Barros*

RESUMO

A telenovela tem papel fundamental no processo de construção das identidades na contemporaneidade.

Imagens: Reprodução

Ela é produto originado na mídia, com potencial para estruturar imaginários e visões de mundo, porque os indivíduos configuram suas ações com base nos significados que lhes são ofertados pelos meios de comunicação. A telenovela é uma obra midiática de ficção da qual suas representações geram estereótipos e preconceitos que acabam enraizados no imaginário coletivo.

PALAVRAS-CHAVE: Teledramaturgia / Narrativa / Imaginário

1. Introdução

Tornaram-se mais evidentes, a cada dia, a presença de conteúdos baseados no cotidiano das periferias urbanas na constituição de histórias ficcionais. Este tipo de abordagem foi impulsionada pela Retomada do Cinema Brasileiro, iniciada em 1995.

Desde então a favela vem sendo tratada como lugar representativo da exclusão. O que foi evidenciado pelo longa-metragem "Cidade de Deus" (2002), de Fernando Meirelles, que alcançou grande sucesso de público e de crítica, agora é banalizado pela televisão, que cede o seu horário nobre para tratar do assunto.

Exibida pela Rede Globo, a novela “Viver a Vida”, de Manoel Carlos, toca na ferida do problema de segurança pública do Rio de Janeiro, por meio da história dos personagens Benê e Sandrinha, que são moradores de uma favela comandada por traficantes de droga. Ele está envolvido com a criminalidade do lugar e ela é a irmã da protagonista rica, que poderia optar por um rumo melhor em sua vida, mas apaixona-se pelo bandido.

Esta não é a primeira vez que o novelista aborda a violência na cidade maravilhosa. Em 2003, uma bala perdida matou a personagem Fernanda em “Mulheres Apaixonadas”. De lá para cá, o assunto tem alcançado destaque nos gêneros de ficção lançados pela tevê brasileira, pautando muitas vezes o debate público.

Como exemplo, é a exibição de diversas produções que tiveram audiências consideradas satisfatórias por seu produtores. Destaca-se, neste sentido, “Falcão - meninos do Tráfico”, um vídeo concebido de forma independente pelo rapper MV Bill, que foi veiculado em 2006 pelo “Fantástico”, a maior revista eletrônica brasileira produzida pela Rede Globo. A mesma emissora também investiu em produções como “Cidade dos Homens”, “Antônia” e “Central da Periferia”.

Percebe-se assim que, para uma grande empresa de comunicação do porte da Rede Globo, seria impossível manter-se ao largo das discussões que envolviam a sociedade brasileira. Seguindo o mesmo caminho, a Rede Record não se fez de rogada e lançou a novela “Vidas Opostas” (2006), de Marcílio Moraes, cuja temática principal estava focalizada na violência de uma favela fictícia no Rio de Janeiro.

Entretanto, o fato de a principal telenovela do país transformar a favela como um de seus temas promove o debate público sobre a imagem que os telespectadores fazem da periferia? Ou o enredo de Manoel Carlos apenas contribui para reforçar estereótipos?

Em 2007, a novela “Duas Caras”, última trama da emissora a abordar o tema favela em horário nobre, surpreendeu o público, pois seu autor, Aguinaldo Silva, construiu uma comunidade diferente da qual os espectadores estão habituados a imaginar como representação de uma comunidade periférica.

Em “Duas Caras”, a favela “Portelinha” não sofria com problemas de violência e criminalidade. O objetivo do novelista era desmistificar a ideia de que na favela só residem bandidos, enfatizando o caráter humano e caracterizando a favela como espaço de pessoas honestas e trabalhadoras.

Todavia, ao contrário de Aguinaldo Silva, o escritor de “Viver a Vida” parece que optou por representar o morro como um espaço dominado por quadrilhas de traficantes de droga e isolado do resto dos cenários de cartão postal, tão evidenciados na telenovela.

2. Identidade midiatizada

Por que pensar acerca da representação da identidade da periferia e de seus moradores exibida pela televisão? Porque vive-se, atualmente, em uma sociedade envolvida pelos meios de comunicação, em que a tevê consegue alcançar um grande número de pessoas, interferindo na construção das identidades dos indivíduos. Para tal, a televisão oferece a base sobre a qual as identificações irão se formar.

Como pontua Fernandes (2007), a teledramaturgia não intervém na realidade por meio de uma narrativa desvinculada de um projeto ideológico. Ao contrário, sua intenção é construir a realidade. Assim, a tevê não pode ser considerada como lugar para a narrativa do real, mas da construção do real.

O importante, neste ponto, é nunca perder a noção de que esta realidade fabricada é perpassada nitidamente por processos de controle político que têm a finalidade de homogeneizar o coletivo.

Ainda sob o ponto de vista de Fernandes, a telenovela, no contexto brasileiro, não é apenas um produto da indústria da mídia. Trata-se de um dos mais importantes pela sua grande audiência e pela sua enorme capacidade de pautar a agenda social. Este produto ficcional serve para difundir discursos a partir dos quais o sujeito negociará a definição de si mesmo e do “outro”, estabelecendo uma hierarquia de valores e concepções muito dependente de influências originadas na mídia.

Deste modo, a telenovela é considerada como responsável pela elaboração e propagação de modelos identitários que são referência para o telespectador, que muitas vezes utiliza-se dos bordões ou dos acessórios usados por certo personagem. Deve-se levar em conta também que uma telenovela é presença diária no dia a dia dos brasileiros há quase 50 anos. Para Fernandes, este fato potencializa sobremaneira seu campo de interferência no imaginário nacional.

A telenovela pode ser considerada, no contexto brasileiro, o nutriente de maior potência do imaginário nacional e, mais que isso, ela participa ativamente na construção da realidade, num progresso permanente em que ficção e realidade se nutrem uma da outra, ambas se modificam, dando origem a novas realidades, que alimentarão outras ficções, que produzirão novas realidades. O ritmo dessas transformações passa a ser a questão. (Cf. MOTTER, 2003:174, Apud: FERNANDES, 2007:05).

É pensando na questão da interferência do imaginário coletivo, que por sua vez incide sobre a construção de modelos identitários, faz-se necessária a reflexão da identidade sendo configurada numa sociedade midiatizada, que caracteriza os tempos atuais.

Neste sentido, Trinta (2008) pontua que a contemporaneidade promove a desconstrução, a desregulamentação e o aspecto movente das identidades, que, hoje, são confundidas com as produções sociais, inserções culturais, atividades discursivas e proposições imaginárias.

Na visão dele, a identidade não mais se baseia em aspectos biológicos e psicofísicos, ela é marcada por compromissos em curto prazo e absoluta liquidez. Assim, vive-se, na atualidade, o tempo do real fragmentado em muitas verdades ou desprovido de toda a veracidade.

Tudo o que é solido se desmancha quando vai ao ar: o que ontem detinha uma essência e parecia imutável, é hoje performático, marcadamente estético e francamente transitório. A identidade não é mais compreendida como edificação perene, de talhe metafísico; vale agora como um movimento de transitoriedade ou uma contingência emergente, com “muita adrenalina”: vigorosa em sua vigência, mas anêmica quanto à sua estabilidade. (Cf. TRINTA, 2008:34).

Neste ponto, o pensamento de Trinta aproxima-se do de Hall (1999), para quem as mudanças estruturais existentes na contemporaneidade estão transformando as sociedades, provocando uma descentração dos indivíduos, tanto de seu lugar no mundo social quanto de si mesmos.

Para Hall, as noções de identidades que estiveram em vigor até agora foram trocadas pelo sujeito pós-moderno. Este, ao contrário de uma identidade fixa, passou a ter uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades, com as quais as pessoas se identificam momentaneamente.

Seguindo um raciocínio semelhante, Bauman (2005) afirma que a identidade é algo negociável e revogável, sendo fruto de decisões do próprio indivíduo e dos caminhos que escolhe para trilhar, sendo consequências do seu modo de agir. Sob o ponto de vista construtivista, Bauman destaca que a identidade constitui-se de um trabalho de criação de uma individualidade própria e particular, sugerindo a existência de um “eu” singular e único, com variáveis possibilidades de realização.

A identidade, assim, é enxergada como algo a ser engendrado. Entretanto, neste contexto em que o sujeito é capaz de construir-se de forma livre, Esteves (1999) pondera que é preciso refletir a função da mídia na construção das identidades, uma vez que os indivíduos estão inseridos em uma sociedade envolta pelos meios de comunicação e consumista.

Conforme Esteves, a mídia cumpre papéis sociais básicos como reprodução cultural, socialização e integração social dos indivíduos. De acordo com ele, essas funções sociais são garantidas pela mídia através de uma abrangente oferta que esta dispõe de modelos de pensamento e ação, de quadros simbólicos difundidos e impostos socialmente por processos de imitação e formas ritualizadas.

Neste sentido, o que ele afirma é que a perspectiva pós-moderna pode encobrir a função que os meios de comunicação muitas vezes exercem em produzir identidades estereotipadas. Na visão dele, o tempo atual é marcado pela saturação da identidade.

Com a existência de pseudoidentidades produzidas à margem do próprio indivíduo, com a finalidade de domesticá-lo, servindo a generalidade dos modelos em circulação como dispositivo de disciplinamento do corpo social.

Temos nesta forma de conceber a identidade uma exaltação apoteótica da individualidade que esquece o fato de ser a mesma sociedade que incita até a exaustão o sujeito (e a subjetividade) – compelindo cada um a ser e a fazer-se único, distinto de todos os demais - que, ao mesmo tempo, explora do modo mais despudorado os recursos da identidade: dirigindo-os, administrando-os e centralizando-os a partir do exterior do indivíduo, através do sistema de consumo, das indústrias da cultura e dos media em geral, que assim realizam uma “desinteriorização da esfera íntima”. (Cf. ESTEVES, 1999:02).

Nesta perspectiva Kellner (2001) considera que a cultura veiculada pela mídia transformou-se em uma força dominante de socialização. Conforme o autor, as imagens e celebridades do universo dos meios de comunicação substituem a família, a escola e a igreja como árbitros do gosto, do valor e do pensamento, produzindo novos modelos de identificação e imagens vibrantes de estilo, moda e comportamento.

Por isso, ele defende o ensinamento da leitura e da análise dos textos da mídia de um modo semelhante ao que se faz com textos escritos.

Para Kellner, a pedagogia da arte da mídia, por sua vez, ensina a avaliar as qualidades estéticas das produções da mídia e a usar várias tecnologias como ferramentas de auto-expressão e criação. A pedagogia crítica da mídia terá por base a análise das representações e dos discursos proferidos pelos meios de comunicação, sempre ressaltando a importância de aprender a usar a mídia como modalidade de auto-expressão e ativismo social.

A pedagogia crítica da mídia tem potencial ainda para cultivar a cidadania, ajudando a formar indivíduos imunes à manipulação, capazes de criticar o que recebem dos meios de comunicação e de obter informações de diversas fontes, criando-se assim uma cidadania bem informada e capaz de ter juízos políticos inteligentes.

A cultura da mídia, em si, está produzindo novas esferas públicas e criando a necessidade de intervenção em novas arenas do debate público – rádio comunitário, televisão aberta, vias de comunicação por computador etc. Portanto, está produzindo novos textos e criando a necessidade de cultivar uma pedagogia que ensine a ler e a descodificar imagens, cenas, narrativas e espetáculos do tipo fundamental à cultura da mídia. (Cf. KELNNER, 2001: 430).

3. Realidade proposital

Com o tom naturalista característico do gênero, as cenas da telenovela “Viver a Vida” que se passam na favela tentam criar no imaginário do telespectador a impressão de realidade. Para tanto, o diretor da obra Jayme Monjardim utiliza a tecnologia para alterar as cenas que mostram o ambiente externo da comunidade, como as escadarias que dão acesso ao morro, e aquelas que se passam no interior do barraco onde vivem Benê e Sandrinha.

Segundo Monjardim, em entrevista à Folha Online, estas imagens são diferentes quando comparadas com os demais cenários da novela e têm efeitos que se aproximam das imagens de cinema. Talvez exista nessa intenção o desejo de assemelhar as sequências mostradas no horário nobre da tevê às cenas de filmes como “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, que foram campeões de bilheteria nas salas de exibição, chamando a atenção do público admirador destes longas-metragens para a novela.

O software que resulta em tal efeito, denominado Base light, conforme o diretor – que também é utilizado para rejuvenescer atores e atrizes – dá a impressão de que de fato os personagens estão em uma favela real. Este clima de realidade propalado por Monjardim, entretanto, no lugar de induzir à reflexão acerca da diversidade e dos problemas de infraestrutura que maltratam os moradores da favela, acaba por representá-la de maneira estigmatizada.

Nesta direção, constata-se que os meios de comunicação, no caso em questão a televisão, funcionam como agentes significantes, produtores de sentido que não reproduzem a realidade, mas sim a definem. A violência exibida pela novela, com ares cinematográficos, pode resultar na glamourização da criminalidade.

Na visão de Ivana Bentes (2001), representar a favela utilizando a linguagem do entretenimento, as imagens-clichê, folclóricas e publicitárias reafirmam o que é exposto na mídia todos os dias. Nesta perspectiva, a novela “Viver a Vida” acaba apenas por transpor a criminalidade das notícias dos jornais para o público de forma espetacularizada por meio de artifícios tecnológicos.

Deste modo, a obra evidencia um maniqueísmo determinista, sempre presente nos produtos midiáticos, que faz uma divisão entre personagens do bem e do mal, configurando numa redução da abordagem do tema favela, deixando de tratar de outros enquadramentos a respeito do tema.

De acordo com Corrêa (2006), reduzir uma favela ao tráfico de drogas e à violência, mostrando os personagens com estereótipos animalescos, é estabelecer um jogo de alteridade com o espectador, em que ninguém se identifica com as atrocidades que acontecem na trama. Para Corrêa, esta redução implica na tentativa de se criar é um território de barbárie que não tem contato com o mundo externo.

Já foi representada como foco de doenças; o local da pureza do samba e, mais recentemente, assumiu a conotação de antro da marginalidade, habitat de classes perigosas. A favela, agora mais do que nunca, carrega o peso de ser o território, por excelência, de traficantes de droga. A violência é a associação mais corriqueira quando o assunto favela é debatido, mencionado ou representado nas narrativas que circulam na cultura das mídias. (Cf. CORRÊA, 2006:52).

Ao longo da trama de “Viver a Vida”, a questão do estereótipo é percebida em diversos trechos. A representação da favela, de Benê e de alguns de seus comparsas confirmam a imagem preconceituosa que a mídia faz do local e das pessoas que vivem na periferia. Para Trinta (2008), os estereótipos marcam sua presença no âmbito das representações sociais, dando destaque para fatores afetivos e origens inconscientes no comportamento coletivo.

Na visão dele, são considerados como representação rígida e redutora, na maioria das vezes compartilhados por um grupo humano, com referência a instituições, pessoas ou grupos. Nesta linha de pensamento, os estereótipos valem-se de imagens preestabelecidas para todos os indivíduos de uma classe social, que se fixam mediante à atribuição genérica de qualidades de caráter apreciativas ou depreciativas, resvalando ao preconceito.

Trinta não deixa de enfatizar que a disseminação e o reforço de estereótipos, tal como são veiculados pelos meios de comunicação, têm a função de organizar e mesmo antecipar experiências reais.

Ele opina que clichês, chavões e lugares-comuns podem ser utilizados como um freio ante as constantes mudanças da vida e do mundo, à medida que significam permanência, referência imutável e tranquilizadora. Desde modo, os estereótipos podem forjar uma “miopia social”, promovendo um conhecimento deformado do que sejam uma dada sociedade e seus membros.

Eis porque precisamos aprender a mudar a ótica restritiva das impressões cristalizadas. Mal conhecemos alguém e, para maior conforto interior ou proteção, logo o classificamos, catalogamos, imobilizamos. E assim nos relacionamos com o que está no rótulo, fugindo a novas descobertas e abrindo mão do esforço de descobrir características pouco perceptíveis de cada um. (Cf. TRINTA, 2008:48).

Entende-se assim que por meio de estereótipos a realidade passa a ser vista de forma distorcida, em que indivíduos e coisas tendem a generalizações indevidas, abusivas ou prematuras. No caso de “Viver a Vida”, as imagens negativas ultrapassam o horário nobre e acabam fazendo parte do discurso de revistas e sites especializados em novelas.

Tanto que no endereço eletrônico oficial da trama, por exemplo, o personagem de Benê, interpretado pelo ator Marcello Melo, é descrito como mau-caráter e está sempre envolvido com as pessoas erradas, além de guardar algumas passagens pela polícia. Ele gosta de Sandra, com quem tem um filho, mas seu objetivo é sempre levar vantagem.

4. Visão negativa

Quem acompanha a história de Manoel Carlos pode ter a tendência a construir mentalmente uma visão negativa, com padrões e formulações rígidos, a respeito da favela e de seus moradores. Já que o preconceito aparece arraigado também nas falas de outros personagens. Quando, por exemplo, Sandrinha e Benê decidem sair da favela de vez e vão morar na pensão da mãe de Ellen. Os dois se mudam assim que Benê deixa uma clínica clandestina, depois de se tratar de um ferimento de arma de fogo.

O casal é recebido na vila, porém, Ellen não gosta da ideia e externa o medo de tê-los por perto. A personagem Yolanda, que vive no lugar, chega a comentar: “acho que vamos ter dias e noites muito divertidos por aqui”. A médica Ariane, que também é moradora da pensão, resume o medo de todos: “isso se não aparecerem bandidos e polícia atrás dele (Benê)”.

Nesta passagem percebe-se que, mesmo numa tentativa de regeneração, Benê não consegue se livrar do estigma de ser morador de favela.

Ainda na mesma sequência da novela, ao chegar no quarto onde irá permanecer com Sandrinha, Benê revista o local para saber se não há ninguém, desconfiando da boa vontade de todos. Sandrinha lhe dá uma bronca: “eles é que podiam estar preocupados em receber você. Ou já esqueceu que entrou uma vez no apartamento da Ellen, dando tiro?”.


Fig. 1. Em cena da novela, Benê (Marcelo Mello) é preso ao invadir o prédio de Helena.

Benê baixa a crista, Sandrinha amolece e insiste para que ele mude de vida: “pega o caminho certo, Benê, enquanto é tempo. Enquanto tá vivo!”. Os dois selam a paz com um abraço. Mais uma vez a novela faz questão de lembrar quem é o ex-traficante, evidenciando o quanto será difícil para o personagem desligar-se do seu passado criminoso.

A concepção de que a favela é um local fadado à violência fica evidente em diversas cenas do folhetim eletrônico. Em uma delas, depois que o marido, Benê, foi agredido, Sandrinha perde tudo, inclusive o barraco, que foi todo quebrado pelos bandidos. Ao saber disso, Edite, mãe de Sandrinha, sai de Búzios e vai ao encontro da filha. Ela pede que a filha volte para casa e deixe o barraco, mas Sandrinha se recusa, já que quer ficar perto de Benê, que está sendo cuidado por um médico clandestino da comunidade.

Em seu discurso, Edite não cansa de enfatizar o quanto é perigoso morar em favela. Sendo assim, a personagem de Manoel Carlos confirma no imaginário do telespectador a relação entre criminalidade e periferia. A carga negativa ganha força, inclusive, no nome de um dos personagens, o Coisa Ruim, que é morador da favela e comparsa de Benê.

Assim, é necessário compreender que elementos como a expressão facial, os gestos, os movimentos do corpo, a postura, as roupas, a aparência e os aspectos do discurso como o tom de voz dos personagens, nas produções de tevê, são fatores que também comunicam e transmitem mensagens.

Em “Viver a Vida”, Benê e seus comparsas, são caracterizados não apenas por sua maneira de agir, mas por seus gestos, expressões e movimentos do corpo, que tentam aproximar-se do real, configurando os tipos humanos da periferia.

Logo, é por meio destes códigos que se pode analisar as formas e os conteúdos das imagens veiculadas pela mídia. Eles funcionam como objetos ou símbolos que possuem sentido.

Numa telenovela, as imagens se nutrem de códigos de comunicação que vão muito além da caracterização dos atores, mas que utilizam ainda elementos como ângulos e trilhas sonoras inseridas nas produções audiovisuais. Na novela de Manoel Carlos estes códigos são acionados e tentam aproximar-se do mundo real ou que é considerado como real.

5. Considerações finais

Conclui-se que uma telenovela tem papel fundamental no processo de construção das identidades na contemporaneidade. Ela é produto originado na mídia, com potencial para estruturar imaginários e visões de mundo, porque os indivíduos configuram suas ações com base nos significados que lhes são ofertados pelos meios de comunicação. A telenovela é uma obra midiática de ficção da qual suas representações geram estereótipos e preconceitos que acabam enraizados no imaginário coletivo.

Desta maneira, presume-se que “Viver a Vida” corrobora para que seu público crie sua imagem particular do território denominado favela. Uma vez que o espectador não tem acesso ao local de verdade, mas sim a sua representação constituída por meio da mediação televisiva.

Este acesso através do discurso originado na mídia, muitas vezes calcado no artifício da espetacularização, pode formar uma falsa percepção da realidade e visão distorcida da favela e de seus moradores. A periferia vista através do horário nobre pode ser que se pareça mais com aquela enxergada sob o olhar da classe média.

A identidade do favelado exibida na tela, por meio do personagem Benê, repleta de estereótipo, costuma ter consequências nas relações humanas na sociedade, uma vez que o indivíduo da periferia é apresentado com uma conotação violenta, gerando um símbolo renegado pela grande maioria do público. Para Corrêa (2006), apenas o fato de a favela ser chamada por outro nome que não o do bairro onde está inserida já é um deslocamento do resto da cidade.

Nesta direção, chega-se a conclusão de que a novela, ao atribuir ações de violência a esses locais, tem a intenção de dar maior audiência para a emissora, gerando assim mais lucro no bolo publicitário, visto que a criminalidade espetacularizada funciona como atrativo para o público. Diante disso, torna-se necessário refletir a respeito da leitura que se faz dos textos culturais produzidos pelos produtos midiáticos.

Como bem lembra Kellner (2001), numa cultura da imagem dos meios de comunicação de massa, são as representações que ajudam a constituir a visão de mundo do indivíduo, o seu senso de identidade e sexo, consumando estilos e modos de vida, bem como pensamentos e ações sociopolíticas. Kellner pontua que a ideologia é, pois, tanto um processo de representação, figuração, imagem e retórica quanto um processo de discursos e ideias.

Portanto, é necessário que as pessoas sejam capacitadas para discernir sobre as mensagens, valores e ideologias que constituem a cultura divulgada pelos meios de comunicação. Acredita-se que assim possa haver uma maior reflexão por parte do público consumidor de novelas, tendendo a sair da passividade. Espera-se, com isso, que o telespectador possa romper com as estruturas fixas e seja incentivado a pensar a diversidade e contribuir para que haja, realmente, benéficas transformações sociais.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Z. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. Entrevista a Benedetto Vecchi.

BENTES, I. “O copyright da miséria e os discursos sobre a exclusão”. In: Cinemais, nº 33, 2003a.

________. “Estéticas da violência no cinema”. In: Interseções, Rio de Janeiro/RJ, Ano 5, nº 1, 2003b.

CORRÊA, F. B.. “As projeções de alteridade no espaço urbano carioca. A favela no
cinema brasileiro contemporâneo”. In: Lumina, Facom/UFJF, Vol. 9, nº 1/2, Juiz de Fora/MG, jan./dez. 2006, pp. 51-61.

ESTEVES, J. P. “Os mídia e a questão da identidade. Sob as leituras pós-modernas do
fim do sujeito”. Universidade de Lisboa, mar. 1999. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt.

FERNANDES, D. A. “Representação da identidade negra na telenovela brasileira”. In: Revista Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós), 2007. Disponível em: http://www.compos.org.br.

FOLHA. “Outro Canal: Computador retoca favela em ‘Viver a Vida’”. S/r, S/d. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u689818.shtml. Acesso em: 30 mar. 2010.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. 3ª Ed.

KELLNER, D. A cultura da mídia. Bauru: EDUSC, 2001.

SANTANA, F. C. “Favela como espaço de identidade: Representações na telenovela
Duas Caras”. In: Revista Internacional de Folkcomunicação, Vol. 1, 2009.


*Marcos Paulo de Araújo Barros é jornalista formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e aluno especial do mestrado em comunicação social da UFJF.

 

 







Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro | ISSN 1806-2776 | Edição 13 | Outubro | 2010
Ombudsman: opine sobre a revista