Outubro de 2010
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ISSN 1806-2776
 
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ENSAIOS

Blog e memória
Jornalismo e narrativas do eu
configuradas em ambientes coletivos

Por Dahiana dos Santos Araújo*

RESUMO

Esse trabalho [1] é fruto da uma pesquisa realizada para construir uma monografia de conclusão do curso de comunicação social, com habilitação em jornalismo apresentado em 2007. Esse texto é, portanto, um viés da monografia em que comparo as características da autobiografia com os blogs jornalísticos hospedados em sites de jornais de grande circulação no país.

Reprodução

Neste trabalho elenquei alguns pontos e posts para ilustrar a presença marcante de impressões e sensações do eu dentro dos textos dos jornalistas relevando a semelhança com a autobiografia, onde fragmentos da vida são escritos e publicados. Da mesma forma ocorre no blog jornalístico, em que o jornalista blogueiro imprime nos textos, além de informações essenciais sobre acontecimentos e eventos, alguns sentimentos externados durante a cobertura.

PALAVRAS-CHAVE: Blogosfera / Jornalismo Online / Autobiografia

1. Introdução

Falar sobre si, sobre impressões, sentimentos e conclusões reflete a literatura do eu, que de início eram guardadas e trancadas com chaves. Mas essas narrativas do eu, configuradas em ambientes coletivos e divulgadas inclusive na web, é a maneira como muitos jornalistas constroem uma ferreamente de interação e informação capaz de aproximar leitor e repórter: o blog jornalístico.

Numa sintonia entre jornalismo e literatura confessional, o blog jornalístico é construído por meio de posts que além de passarem informações convencionais, revelam um pouco do sentimento do jornalista quando cobre um evento. O blog não revela apenas as impressões do profissional, mas externa as sensações da pessoa que escreve.

Essa mistura de jornalismo e literatura confessional deu-se a partir do desprendimento da sociedade burguesa que e vem modificando as conquistas em relação à individualidade das gerações dos séculos XVIII e XIX. Antes do desprendimento conquistado pela sociedade, as relações entre os grupos sociais eram predominantemente públicas e a personalidade individual de cada componente de uma comunidade não era externada constantemente (SENNETT, 1988; SIBILA, 2003; SCHITTINE, 2004).

Os grupos sociais segmentados, que formavam as comunidades antes do século XVIII, construíam, de acordo com Sennett (1988), uma “identidade coletiva”. Formada através de ações segmentadas por grupos que se identificavam por meio de diferentes formas – classe, localização geográfica e gêneros – a “identidade coletiva” era criada por grupos que tinham uma vida pública realmente coletiva em que as pessoas vivenciavam cotidianos semelhantes e dispunham de símbolos e tradições inseridas em seu dia-a-dia.

Segundo o autor, essa “identidade coletiva” era uma maneira de externar o que era aquela comunidade, quem eram aquelas pessoas e quais as características inseridas no grupo.

De acordo com Sennett, esse sentido de “quem somos nós”, criados pelas pessoas, eram forjados através de “ações coletivas” empreendidas quando a sobrevivência dos grupos sociais era ameaçada por guerras ou outras catástrofes. “Em geral, podemos dizer que o ‘senso de comunidade’, de uma sociedade que tem uma forte vida pública, nasce dessa união da ação compartilhada e de um senso do eu coletivo compartilhado” (Cf. SENNETT, 1988:275).

A partir do século XVIII, a vida pública começa a se modificar, e segundo Sennett, “o relacionamento entre ação compartilhada e identidade coletiva desmorona” (Cf. SENNETT, 1988:275). Fora da convivência coletiva cotidiana as pessoas passam a forjar máscaras e personalidades coletivas durante os encontros públicos, criados “por atos de fantasia e mantida [s] unicamente por meio deles” (Cf. SENNETT, 1988:276).

Nascem então atuações diferenciadas entre a personalidade individual e a personalidade coletiva. A personalidade individual, segundo Sennett, tornou-se uma “ideia anti-social” e a personalidade coletiva, “uma identidade de grupo em sociedade (...)” (Cf. SENNETT, 1988:276).

O autor afirma ainda que “a lógica da personalidade coletiva é o expurgo” e os grupos prezavam pela purificação, na qual todos os membros deveriam ser iguais, por isso as pessoas forjavam suas personalidades em público, para se adequar a seus grupos. Quando a personalidade individual, que é a personalidade real de cada um, começa atuar na sociedade, Sennett afirma que as pessoas passam a ferir umas às outras.

Tudo isso, segundo o autor é consequência da comunidade destrutiva que surge quando a personalidade individual começa a atuar na sociedade. Isso porque na personalidade individual as pessoas mostravam o que realmente eram, mostravam seus sentimentos, sensações e desejos sem precisar esconder-se atrás de máscaras. O Renascimento europeu trouxe consigo a conquista de espaços ligados à vida privada e à importância dada ao individualismo de cada membro da família burguesa, classe que estava em ascensão na época (SENNETT, 1988; SIBILIA, 2003; SCHITTINE 2004).

A carta, o diário e o escrito íntimo, segundo Schittine (2004), são as formas de expressão que ganham força com a ascensão da burguesia. Em seu livro, “O declínio do homem público”, Richard Sennett mostra que as casas passam a prezar por ambientes individuais, onde os membros da família podiam encontrar refúgio para as tarefas íntimas, e a escrita era uma delas, segundo Sibilia (2003).

Paula Sibilia afirma que nesse contexto nasceu a distinção entre o espaço público e o privado. A partir dessa distinção as atividades dos membros da família são separadas e vivenciadas de acordo com o caráter que estava agora delimitado: o público e o íntimo.

No início do século XVIII, pela grande quantidade de burgueses que já havia na sociedade europeia, os burgueses, que antes escondiam suas origens, passaram a atuar em público sem o ressentimento esconderem-se. E o espaço público começa a ser construído dentro da sociedade como um espaço onde aconteciam atividades longe do seio familiar, onde se encontrava o espaço íntimo (SENNETT, 1988).

Nas capitais europeias começam a ser criados espaços onde as pessoas podiam ter encontros públicos. O teatro e a ópera se abrem ao público, bares e cafés tornam-se locais de encontros sociais. Parques e ruas para passeio de pedestre começam a ser construídos. Tudo privilegiando o espaço público como o espaço constituído longe do seio familiar. Tudo isso vem para legitimar a necessidade que os indivíduos tinham de separar a vida pública da intimidade (SENNETT, 1988).

Richard Sennett cita dois fatores que levaram a vida pública a ocupar um lugar inferior à vida em família na sociedade europeia. O primeiro deles foi o capitalismo industrial que, segundo o autor, homogeneizou a vida coletiva ao mesmo tempo em que começou a produzir coisas e estabelecer sentidos para essas coisas junto à sociedade. Esses sentidos incorporados pelo capitalismo junto à sociedade fizeram com que o consumo se tornasse uma frequência.

Com isso as pessoas em sua atuação pública passaram a conter traços semelhantes, devido às produções do capitalismo, e isso homogeneizou a vida pública das pessoas na época. As pessoas eram levadas a consumir produtos semelhantes e isso descaracterizou o público que tinha seus aspectos diferenciados e até misteriosos, que muitas vezes escondiam-se por trás de máscaras. Depois da homogeneização as pessoas podiam revelar-se umas às outras porque já conheciam seus adereços e gostos.

A secularidade do século XIX foi o segundo fator que tornou a vida pública uma atuação inferior da vida em família. A personalidade pode aqui aflorar porque os deuses foram suprimidos e as pessoas passam a creditar nos acontecimentos por si próprios. Assim explicações diversas passam a nascer para muitos fenômenos que antes eram explicados através da religião. A personalidade aflora porque as sensações e os sentimentos são tidos de forma diferente e pessoal, sem ter mais a necessidade de serem explicados através de crenças preexistentes, como afirmou Sennett.

A psicologia é um exemplo de ciência que assume um papel nessa época. Isso porque através da psicologia muitas dúvidas pessoais passam a ser compreendidas. E por tudo isso a vida pública passa a ocupar um plano inferior e ao mesmo tempo delicado. É então nesse momento de valorização do espaço íntimo que nascem manifestações relacionadas ao eu, como os diários íntimos.

Desde então a literatura tem permeado os jornais e revistas que inserem em suas estruturas características literárias que chamam a atenção de leitores.

2. Um pedaço de memória: por uma individualidade coletiva

Relembrar, reviver e contar. A memória dos jovens e dos velhos se debruça sobre suas lembranças carregadas de impressões que compõem cada sujeito e torna algumas narrativas suas próprias expressões.

É assim no diário, na autobiografia e no blog, inclusive no blog jornalístico, que apesar de narrar fatos de interesse social está impregnado de opiniões, impressões e lembranças de quem o escreve. A memória é o elemento indispensável quando as narrativas possuem traços de subjetividade.

Ecléa Bosi (1979) coloca os velhos num patamar destacado dentro da sociedade – quando muitas vezes são esquecidos – porque os mesmos possuem um elemento indispensável para a formação de uma história: a memória. Os velhos possuem suas próprias histórias e junto delas a história de gerações, de comunidades que podiam estar esquecidas se não fossem as lembranças guardadas por eles. De acordo com a autora, a memória possui uma função social.

Na antiguidade clássica a memória era tida como elemento mágico, “um segredo dos protegidos dos deuses greco-romanos.” Além disso, a memória foi associada à cosmogonia cristã e pagã. Na idade média foi associada às “representações do simbólico, da transcendência atemporal do ser e das coisas” (Cf. LOPES, 2002:04).

Segundo Lopes (2002:03), o sentido original da palavra memória “seria a capacidade humana de guardar no cérebro impressões das experiências vividas”. O autor divide essa capacidade em três níveis. No primeiro e no segundo níveis estão armazenados as impressões referentes à própria identidade enquanto indivíduo de uma história, presente em um contexto social. No terceiro nível está a capacidade de lembrar os acontecimentos ocorridos durante o dia e ao mesmo tempo relembrar antigos momentos.

O sujeito é o objeto central das narrativas do diário íntimo e da autobiografia. É a memória individual de cada um que constrói as narrativas desses estilos. Existe, no entanto, uma memória social que marca os traços de histórias que ocorreram simultaneamente inseridas em momentos de interesse social. São lembranças de acontecimentos vivenciados em grupos, em comunidades, com significados diferentes para cada integrante, mas distribuídos no mesmo intervalo de tempo. De acordo com Bosi (1979), a memória grupal é construída a partir de memórias individuais.

Cada membro de um grupo possui sua história diferenciada, assim essa comunidade possui uma história social que pode ser resgatada a partir da memória de cada indivíduo. “As lembranças grupais se apoiam umas às outras formando um sistema que subsiste enquanto puder sobreviver a memória grupal” (Cf. BOSI, 1979:336). Citando Halbwachs, Bosi (1979:335) afirma que “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva”.

A mídia possuiu um grau de responsabilidade sobre essa formação de uma memória social. As novas tecnologias trouxeram às mídias a capacidade de armazenar informações em espaços enormes ou até ilimitados, como a web.

A partir desse momento a memória da imprensa tornou-se equipada de informações que fazem parte da construção de uma memória social, já que os meios de comunicação possuem desde seu nascimento a capacidade de ordenar fatos de interesse social e divulgá-los, armazenando-os. “(...) acredita-se que a televisão, os jornais e as revistas socialmente visíveis são fundamentais no mundo presente na representação de determinados aspectos retrospectivos da vida social brasileira” (Cf. LOPES, 2002:01).

Essa memória coletiva é resgatada a partir de uma memória individual e pode ser percebida dentro dos blogs jornalísticos, onde os jornalistas narram histórias de interesse social sob os seus pontos de vista. Isso acontece porque como já citado, o blog jornalístico também possui traços de subjetividade e o jornalista blogueiro insere dentro dos seus posts suas opiniões e momentos de suas vidas.

A diferença da atuação do blog jornalístico é que o jornalista blogueiro auxilia na construção dessa memória social inserindo suas impressões, como acontece na autobiografia, por exemplo. O jornalista narra fatos de interesse social e ao mesmo tempo insere na estrutura de alguns textos momentos pessoais que complementam e situam algumas informações.

3. Biografemas

Os momentos pessoais da vida de um indivíduo são chamados de biografemas. A palavra é um neologismo criado pelo semiólogo francês Roland Barthes utilizado pela primeira vez em seu livro Sade, Fourier, Loiola de 1971. Definindo biografema, Barthes afirma: “(...) Gosto de certos traços biográficos que, na vida de um escritor, me encantam tanto quanto certas fotografias; chamei esses traços de biografemas; a Fotografia tem com a História a mesma relação que o biografema com a biografia”.

De acordo com o autor, biografemas são fragmentos da vida utilizados na construção de biografias. Não necessariamente grandes momentos, grandes acontecimentos da vida de alguém, mas ao contrário disso.

O semiólogo acreditava que os simples momentos, os singelos acontecimentos da vida de alguém poderiam surtir importantes significados, deixando o texto expressivo. “Barthes procura mostrar que o biógrafo não deve sobrepor o grande espetáculo da vida aos seus pormenores que interessam ao leitor”. (Cf. SCHITTINE, 2004:194). Dessa maneira os biografemas são elementos predominantes nas autobiografias, pois dão em determinadas etapas do texto informações sobre o seu autor, podendo ainda servir como ponto de identificação para o leitor dentro do texto.

Schittine (2004) afirma que ao serem enunciados em primeira pessoa, esses biografemas passam a compor a autobiografia, pois revela os sentimentos do autor, caracterizando assim a escrita confessional.

Esses biografemas encontrados nas autobiografias também estão presentes em alguns posts jornalísticos nos quais os jornalistas blogueiros utilizam algumas experiências nos posts. A partir da narração dessas experiências o jornalista expõe o significado de momentos vivenciados.

4. Memória autobiográfica dentro de uma imprensa subjetiva

Presença marcante nas obras confessionais, o eu desempenha papéis fundamentais nessas narrativas. Incorporando vários aspectos diferenciados, o eu dos textos subjetivos alterna-se entre o esconder-se e o revelar-se assumindo inúmeras posições na narrativa autobiográfica.

Confundindo-se entre o narrador, o autor e o protagonista, o indivíduo utiliza sua memória e procura definir suas sensações, construindo dessa maneira sua história, sua autobiografia. De acordo com Philipe Lejeune, “o eu autobiográfico é na verdade um diálogo de instâncias múltiplas: um é sempre várias pessoas quando escreve, inclusive quando escreve sua própria vida” (Cf. MACIEL, 2004:06).

Procurando reconstruir-se no tempo através das lembranças, o escritor de uma autobiografia se elabora entre parágrafos e retira da memória elementos capazes de o fazer sobressair-se ao revelar somente aquilo que a memória guardou ou permite.

Pois memórias e autobiografias são substitutos dos espelhos. Se estes, metálicos e implacáveis, assinalam o desgaste dos traços, o torpor dos olhos, a redondez do ventre, fechamo-nos contra a maldade dos espelhos e procuramos nos rever no que fomos, como se o percurso da antiga paisagem nos capacitasse a nos explicar ante nós mesmos. (COSTA LIMA, 1985:244, In:ALBERTI, 1991:12).

A autobiografia, nascida em por volta de 1800 na Inglaterra como um elemento da modernidade, era mais uma ramificação da literatura pessoal, como o diário e mais tarde as memórias. Somente no século XX a autobiografia torna-se um gênero independente do romance, depois de conquistar grandes públicos.

Para Maciel (2004:05) a “autobiografia é a experiência textual de alguém de vida extratextual comprovada ou não que deseja contar sua vida para dizer quem é”. Dessa maneira durante a narrativa e as intercalações entre narrador, personagem e autor, o indivíduo relata suas experiências construindo na narrativa o caminho que o levou a chegar onde está. Isso acontece porque o narrador, além de relatar acontecimentos passados, menciona o processo pelo qual passou para chegar ao presente momento em que escreve (MACIEL, 2004).

Exemplo disso é o trecho retirado da autobiografia de Agatha Christie:

A Inglaterra estava em guerra. Acontecera!
Dificilmente posso expressar a diferença entre nossos sentimentos de então e de agora. Agora podemos ficar horrorizados, talvez surpresos, mas não realmente pasmos, se houver outra guerra., porque todos estamos conscientes de que as guerras acontecem. (Cf. CHRISTIE, 1977:235).

O que diferencia a autobiografia dos outros gêneros confessionais é o “pacto autobiográfico”, uma teoria de Philipe Lejeune em que a identidade do autor-narrador é reconhecida pelo leitor e o “narrador se define simultaneamente como uma pessoa real e produtor de um discurso” (Cf. MACIEL, 2004:09). O “pacto autobiográfico”, no entanto, não constitui, de acordo com Alberti (1991), entre autor e personagem, uma relação de identidade, mas de “semelhança”, já que o personagem que vivenciou a história está agora afastado do autor que narra a trajetória vivida por esse personagem.

Sob esse aspecto, Alberti (1991) afirma que o “pacto autobiográfico” apresenta suas limitações que podem ser representadas até mesmo em textos onde o autor afirma narrar somente o que lembra ou o que se permite narrar. Essa é uma prova da distância existente entre o autor e o personagem. Isso também pode ser percebido na autobiografia de Agatha Christie, quando a própria autora afirma não se lembrar de certos acontecimentos.

A relação citada por Lejeune entre o autor-narrador também pode ser percebida no blog jornalístico, pois o leitor tem a possibilidade de estabelecer a identificação entre o narrador e o autor dos posts: o jornalista. Essa identificação pode ser percebida quando analisamos os posts de datas próximas, já que o blog é uma ferramenta recente.

É, portanto, através da narrativa autobiográfica que, com o auxílio da memória, os significados da vida de um indivíduo se tornam visíveis e, na maioria das vezes, compreensíveis para ele e para o leitor.

Durante a construção dos posts jornalísticos a presença de elementos subjetivos predominantes também na autobiografia foi identificada nesta pesquisa em alguns blogs, como os biografemas e a expressão do eu. Dessa forma percebe-se, mais uma vez, sob os aspectos estabelecidos na autobiografia, as características subjetivas inseridas em um meio de comunicação social, o blog jornalístico.

Se comparados alguns posts jornalísticos a alguns textos autobiográficos tem-se a noção da semelhança de características dos textos. Em sua autobiografia, Agatha Christie, famosa escritora inglesa de romance policial, revela através de palavras, importantes experiências ao longo da vida. No entanto, a autora discorre também sobre momentos cotidianos simples, mas embute nessas narrações o significado de cada momento citado.

Divulgando suas impressões acerca de acontecimentos, Agatha Christie constrói uma narrativa confessional em que os “fragmentos de sua vida”, os biografemas propostos por Roland Barhtes, estão organizados de forma que o leitor compreende seu estilo de vida. Além disso, dentro do texto a autora faz descrições físicas e psicológicas – de acordo com suas impressões – de parentes e amigos que fizeram parte de sua vida.

O texto abaixo é parte de um post do blog do jornalista Fábio Zanini, que segundo ele, representa um diário de viagem do repórter que vai da África do Sul até a Etiópia, passando por oito (ou mais) países onde o trajeto é percorrido por qualquer meio d transporte.

Publicado em 23/03/2009
Escrito por Fábio Zanini às 21h49

Um balanço da visita do papa à África

(...) Talvez o aspecto mais surpreendente da viagem tenham sido as palavras finais, em Angola, condenando a bruxaria. A Igreja, aqui, passou um recibo que para mim foi espantoso.
Práticas tradicionais (chamadas genericamente de bruxaria, ou feitiçaria) são seguidas por algo como 10% dos africanos. Podem parecer assustadoras, mas são inofensivas e nãoexcludentes:
“bruxas” costumam ir à missa também, e o sincretismo religioso é comum.

Mas aparentemente o Vaticano agora quer exclusividade, e o papa foi firme ao condenar as práticas tradicionais. É uma cartada de altíssimo risco, porque a tentativa de criar uma religião católica “pura” pode afastar definitivamente pessoas com alguma simpatia pela doutrina de Cristo, mas mais agarradas a suas tradições ancestrais.
Mas esse é um papa que não tem medo de arriscar, como sua movimentada viagem à África mostrou.

Neste parágrafo o repórter fala sobre a passagem do papa Bento XVI pela África. No texto, o jornalista revela abertamente sua opinião sobre a visita do cardeal. Além de escrever um texto informativo, ele mescla ainda suas impressões acerca das opiniões de tradições do Papa e da Igreja Católica e defende uma posição mais tolerante em relação ao país e suas tradições.

A descrição dessa experiência e as impressões que dela teve marcam a presença do eu do jornalista traduzida sobre suas opiniões ao longo do parágrafo. Quando se utiliza da primeira pessoa e coloca suas opiniões – característica marcante dos blogs jornalísticos – para revelar sua experiência e as impressões que teve, o jornalista constrói um texto confessional.

Essa é a subjetividade autobiográfica onde, diferente da subjetividade romântica, as características do eu podem ser atribuídas ao autor do texto. Esse parágrafo é um “fragmento da vida” do jornalista que ele utilizou para dar início ao texto.

Analisando o post de acordo com a definição de Lejeune, sobre o eu autobiográfico ser um diálogo de instâncias múltiplas, também se pode perceber as diferentes instâncias em que se encontram o eu de cada jornalista. Além de assumir papel de um jornalista que precisa contar uma história de interesse social, Fábio Zanini também é uma pessoa que faz parte de uma sociedade e reflete sobre os problemas que rodeiam o mundo.

De maneira semelhante à Agatha Christie, o jornalista narra experiências e mostra qual efeito interior surtiu certos acontecimentos em suas vidas. O parágrafo abaixo foi retirado da autobiografia de Agatha e revelam os pensamentos e sensações da autora quando trabalhou como voluntária em um hospital durante a Primeira Guerra Mundial:

A primeira vez que tive que dar assistência numa operação desprestigiei-me. De repente, as paredes da sala começaram a rodopiar em torno de mim, e somente o firme apoio do braço de outra enfermeira, segurando meus ombros e fazendo com que eu saísse da sala rapidamente, salvou-me de um desastre. Jamais me ocorrera que a vista de sangue ou de ferimentos me poderia causar um desmaio. Mal ousei enfrentar a enfermeira Anderson quando, mais tarde, apareceu. Mas foi ela que, inesperadamente amável, me disse: “Não se preocupe com o que lhe sucedeu, enfermeira. Já aconteceu com muitas de nós, nas primeiras vezes. Primeiro, você não está acostumada com o calor e como cheiro do éter; tudo isso faz com que as pessoas se sintam nauseadas, e aquela era uma operação abdominal difícil, e as operações abdominais são as mais desagradáveis de assistir”. (Cf. CHRISTIE, 1977:241).

A autora coloca esse trabalho como uma experiência e retira dela uma importância, da mesma maneira como ocorrem nos posts jornalísticos. Depois de vivenciar algo, a autora narra de forma confessional a experiência e seus significados, como os fizeram os jornalistas citados acima. Essa experiência é também um “fragmento da vida” da autora utilizado na composição de sua autobiografia.

Como veículos jornalísticos os posts revelam algo de interesse social, – a visita do Papa à África – mas embutidos nos textos está a presença marcante de elementos que transparecem a subjetividade dos jornalistas. A presença de biografemas e as impressões que cada jornalista tem dos acontecimentos que narram como parte de suas experiências de vida fazem parte das narrativas de alguns posts jornalísticos.

Da mesma maneira, a jornalista Patrícia Campos Mello também insere em seus posts características inerentes à autobiografia que tornam seu blog um suporte midiático subjetivo. Relatando acontecimentos que vivenciou, a jornalista insere suas impressões e opiniões acerca de lugares que conheceu, como mostra o post a seguir.

Publicado em: 20.01.2009
Escrito por Patricia Campos Mello às 22:53:43, Seção: Estados Unidos.

Coroando Barack Obama

(...) A despedida de George W Bush foi melancólica. Quando anunciaram o nome dele durante a cerimônia de posse, fiquei arrepiada – achei que estava prestes ao maior momento de vergonha alheia da minha vida, esperava uma vaia estrondosa. Mas o pessoal foi mais contido. Houve vaias aqui e ali, nada extremo. Mesmo assim, o alívio geral era evidente. “Preparem-se para tirar seus sapatos”, gritavam alguns quando foi anunciado o nome do presidente de saída - referindo-se ao sapato atirado em Bush por um jornalista iraquiano. Quando o helicóptero de Bush levantou vôo, rumo a seu rancho em Crawford, no Texas, muitos espectadores deram vivas e fizeram adeus com as mãos.
“Quero ter certeza de que ele está indo embora mesmo”, disse um.

O texto acima é parte de um post da jornalista Patrícia Campos Melo, corresponde do jornal O Estado de S.Paulo em Washington. Ela foi conferir a posse de Barack Obama e além das informações principais sobre a posse do novo presidente e a saída de George W. Bush a repórter coloca em seu texto as impressões e sensações que ela teve durante a cerimônia, elementos que, na maioria das vezes não está presente na linguagem formal da notícia. “(...) fiquei arrepiada – achei que estava prestes ao maior momento de vergonha alheia da minha vida”.

Nessa frase ela se revela, mostra o que estava sentindo, constrói no texto uma relação de proximidade com o leitor que pode ter uma noção além do que vai o texto jornalístico. O leitor pode compreender parte do cenário pessoal que as pessoas sentiam no momento por meio das informações pessoais de Patrícia.

A análise desses e demais posts jornalístico reflete a presença marcantes de características autobiográficas em textos informativos, por meio dos quais o leitor se sente informado e por isso o avalia também como jornalismo, já que por meio desses blogs o leitor tem acesso a informações de interesse público, como é a posse de Obama e o fim da era George W. Bush, que representa algo na vida de cada país.

Esses elementos estão presentes porque dessa maneira existe uma maior interação com o leitor que pode se sentir mais perto do jornalista, que comenta sua vida em público. A exposição é um traço marcante da sociedade do século XXI que, diferente da sociedade dos séculos XVIII e XIX, pode agora revelar-se sem a extrema preocupação de como será recebida sua ousadia em mostrar-se. Dessa maneira é possível revelar-se – e também esconder-se – no ambiente em que aproxima pessoas criando novas relações sociais, a web.

5. Conclusão

O desenvolvimento de novas técnicas jornalísticas possibilitou a criação de uma ferramenta em que não apenas o texto informativo está presente, mas as sensações e impressões do profissional também estão presente. Agora, não basta apenas informar, é preciso chegar mais perto, é melhor ainda fazer o máximo para descrever cenários e sensações no mento de um acontecimento ou evento.

Por isso o blog jornalístico se apoderou de características literárias para produção de informação com formato peculiar. Ao se apropriar de técnicas literárias no discurso jornalístico atual, o blog inova com uma estrutura em que o leitor está mais próximo do jornalista, além de mais próximo do texto. Isso acontece porque a linguagem do blog é de fácil acesso, garantindo dessa forma o fácil entendimento.

As características da autobiografia parecem ter sido então a melhor maneira de conseguir uma nova forma de informar. A presença dos biografemas – que são fragmentos da vida por meio dos quais a autobiografia é construída – e a subjetividade são elementos que compõem os blogs analisados na pesquisa. A inserção desses elementos em alguns posts jornalísticos é uma forma de identificar o jornalista dentro da narrativa e produzir junto ao leitor um texto opinativo, característica marcante desses weblogs.

Portanto a utilização desses elementos nos textos dos blogs jornalísticos possibilitou uma maior abertura não só do jornalista, mas também do leitor, que tem disponível uma ferramenta de interação com o veículo midiático. O caráter lírico dado a alguns posts conquista leitores que se deleitam com as informações estruturadas em formas de textos literários. E o caráter subjetivo desses posts aguça a curiosidade do leitor sobre certos acontecimentos da vida do jornalista, que é uma pessoa pública e sobre sua opinião acerca de determinados eventos.

Ao ler o blog, se satisfaz ao compreender o que aconteceu de uma forma mais profunda, de uma maneira que vai além do texto formal que as reportagens e notícias são capazes de produzir.


NOTAS

[1] Trabalho apresentado na Divisão Temática de Jornalismo do XI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste.

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*Dahiana dos Santos Araújo é graduada em jornalismo pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e aluna da especialização em jornalismo científico da Universidade Federal do Ceará (UFC).

 

 







Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro | ISSN 1806-2776 | Edição 13 | Outubro | 2010
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