Outubro de 2010
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ISSN 1806-2776
 
Publique
Contato
 


Site da ECA





 

 

 


 

 

 

 

 

 

 



ENSAIOS

De olhos e ouvidos atentos:
"Capitu" é pop na contramão
da cultura de massa

Por Ana Paula Heck e Lougan Manzke*

RESUMO

A função dos comunicadores sociais vai além de conhecimentos acerca de design, marketing e produções nas mais diversas mídias; é necessário também um conhecimento sobre os bens simbólicos que criamos.

A criação simbólica está inserida em um universo cultural que nos cerca, e por isso é necessário o entendimento das mais diversas ideologias culturais para que possamos produzir um material condizente com nosso público-alvo.

Reprodução

A partir disto, e com base na minissérie “Capitu”, exibida em dezembro de 2008 na Rede Globo de TV, é proposta uma discussão acerca da “máscara” pop adotada pelo diretor Luiz Fernando Carvalho para produzir a trama na tentativa de transcender o conceito de Cultura de Massa em que o público está imerso. A estrutura deste artigo é dividida em diálogos dispostos em atos e cenas, cujos títulos são compostos a partir daqueles colocados pelo autor no livro.

PALAVRAS-CHAVE: Televisão / Cultura de Massa / Adaptação Literária

1. Ato I: “Em que se explica o explicado” – Introdução ao tema

O tema central desta pesquisa é uma adaptação da obra literária "Dom Casmurro" de Machado de Assis para a TV. Em função disto, identifica-se a necessidade de introdução ao tema através do livro, visando ambientar a ópera através de um primeiro diálogo composto por uma síntese do romance.

Para que se possa entender o objeto de estudo de maneira mais abrangente e minuciosa expõem-se as particularidades de Machado de Assis, autor do livro, pois este é a essência da produção. A etapa seguinte consiste em relatar as influências de Luiz Fernando Carvalho, diretor da minissérie “Capitu”, para melhor compreender o universo em que ele adapta a obra.


O desfecho desta ópera consiste na fundamentação do objeto de estudo enquanto signo pop, cujas características vão defronte a preceitos da Cultura de Massa.

1.1. Cena I: Do livro – Atando as duas pontas da história

O livro "Dom Casmurro" é um romance de Machado de Assis publicado em 1899, considerado uma obra-prima da literatura brasileira. Sua história se passa no Rio de Janeiro na época do Segundo Império, [1] relata o romance entre Bento Santiago e Capitolina, a famosa Capitu. A obra foi considerada nos anos 60, por uma crítica americana, chamada Helen Caldwell, como o “Otelo Brasileiro”. [2]

Narrado em primeira pessoa pelo protagonista,
é um romance psicológico, que contém um enigma impossível de ser elucidado. Inicia quando Bento decide atar as duas pontas de sua vida (adolescência/maturidade) relatando suas lembranças, proporcionando à trama uma divisão em duas fases, sendo a primeira até a ida de Bentinho para a faculdade de Direito e a segunda marcada pelo ciúme e a dúvida sobre a suposta traição de Capitu.

Sua história inicia no Rio de Janeiro na Rua de Matacavalos, onde o então Bentinho morava com sua mãe Dona Glória. Ele foi o segundo filho, sendo que o primeiro morreu logo após o parto. Em função disto sua mãe traçou seu destino, prometeu a Deus fazê-lo padre. Bentinho tinha uma vizinha que conviveu com ele como irmã, era ela Capitu, a “jovem dos olhos de ressaca, de cigana oblíqua e dissimulada” (Cf. ASSIS, 2000:48), com quem ele mantinha um amor de infância.

Ele cumpre a promessa da mãe e vai para o seminário, onde conhece Escobar que se torna seu amigo confidente. Bentinho vive anos no seminário sempre desejando voltar para os braços de Capitu. Com a ajuda de José Dias, um agregado da família, Bentinho consegue escapar da vida eclesiástica imposta pela mãe, porém vai estudar no exterior.

Quando retorna consegue finalmente casar com Capitu, e reencontra Escobar, que também estava casado com Sancha, uma antiga amiga de Capitu. Os casais se tornam amigos íntimos.

A vida dos casais corre bem até que surgem as desconfianças de Bentinho com relação a Escobar e Capitu, estas que se fortalecem no momento em que nasce Ezequiel, o filho de Capitu que Bento pressupõe que não seja seu e sim de Escobar, por ver no menino os traços e trejeitos do amigo, o qual já tinha sido flagrado por vezes sozinho com sua esposa.

Escobar falece algum tempo depois, e Bento nota que Capitu não chorava, mas em seus olhos ele via um sentimento fortíssimo, fato esse que reforça o ciúme de Bento e aponta indícios para uma futura separação. Eles vão morar na Europa, mas Bento retorna sozinho ao Brasil, Capitu escreve-lhe cartas.

Anos mais tarde Ezequiel vai visitar o pai no Brasil e lhe conta que a mãe morreu, posteriormente também este morre e Bento, ou como era então definido, Dom Casmurro, encontra-se literalmente solitário, pois seus familiares também já estavam mortos.

A partir desta temática, o espetáculo se dá em torno da adaptação feita com base no livro para a televisão onde Luiz Fernando Carvalho adota uma temática pop para retratar a obra de forma mais contemporânea visando uma maior adesão do público.

1.2. Cena II: A Ópera – A leitura Romanesca Realista de Machado de Assis e o combate à Indústria Cultural através da experimentação estética de Luiz Fernando Carvalho

O espetáculo, que é o objeto de estudo desta pesquisa, é interpretado por dois tenores.

O primeiro, mulato pobre, Joaquim Maria Machado de Assis, carioca que nasceu no Morro do Livramento em 1839. Era gago, epiléptico e não pôde estudar em escolas; frente a tantas dificuldades tornou-se, contudo, um grande autodidata.

O escritor tem estilo sutil e irônico, trazendo à tona sempre profundas reflexões sobre peripécias corriqueiras com um tom de advertência. Com frases curtas e bem construídas e um vocabulário rico, escreveu romances, crônicas, poesias, peças de teatro e artigos para jornais.


Suas produções podem ser divididas em duas fases distintas, p
ode-se dizer, a grosso modo, que os romances da primeira fase tendem ao Romantismo [3] e os da segunda fase ao Realismo. [4]

No contexto brasileiro o Romantismo e o Naturalismo caminharam juntos em descompasso, em função do duelo entre o real e o ideal. Com essas diretrizes, Machado de Assis escreve seu primeiro romance Realista/Naturalista em 1881, "Memórias Póstumas de Brás Cubas", considerado marco inicial do Realismo no país, onde o autor rompe definitivamente com o Romantismo.


Suas obras contemplam com um modo de compreender melhor a sociedade na qual vivemos e da qual usufruímos. Valores éticos e morais muitas vezes são relativizados com destreza, bom humor e ceticismo. Utiliza a metalinguagem [5] em romances sociais, psicológicos e de tese com uma extrema preocupação formal.

Possui personagens esféricos com uma enorme densidade psicológica, rompendo com a linearidade romântica. Por ser uma narrativa lenta devido ao acúmulo de pormenores, a ação e o enredo perdem a importância para a caracterização dos personagens e dos ambientes.


A canonização do primeiro tenor considerado nesta pesquisa, Machado de Assis, pela elite intelectual tenta torná-lo grave e sisudo, no entanto, é todo engraçado, porque sua literatura corrói por dentro, pela ironia, a seriedade vigente.

A interpretação do segundo tenor, diretor e cineasta Luiz Fernando Carvalho, se fundamenta na experimentação estética, uma particularidade do diretor. O carioca começou sua trajetória aos 18 anos, quando conheceu o filho do diretor Roberto Farias e a partir disso começou alguns estágios em cinema.

Filho de engenheiro e neto de caminhoneiro, cursou arquitetura e se apaixonou pela história da arte, mesmo assim não concluiu o curso, foi trancando matérias em função dos estágios em cinema. Com a crise ocorrida no cinema na década de 80, ele migrou para a TV, entrando no núcleo da Globo Usina, onde atuou como assistente de direção de minisséries, e conheceu o diretor de fotografia Walter Carvalho, com quem realizou diversos trabalhos desde então.

Sua relação com a literatura começou neste tempo, entre os estágios escreveu "A Espera", seu primeiro curta-metragem. Além do curta inspirado em Roland Barthes, [6] que recebeu diversos prêmios, participou da direção das minisséries “Grande Sertão: Veredas” e “O Tempo e o Vento”, todas adaptações literárias.

Em meio a todos esses trabalhos cursou letras, presumindo que a faculdade contribuísse para seu trabalho como escritor, e em meio à faculdade e sua entrada no mundo da teledramaturgia aprendeu a usar a linguagem como forma de contestação.

Entre seus principais trabalhos na TV estão a minissérie “Riacho Doce” (1990), as novelas “Pedra sobre Pedra” (1992), “Renascer” (1993) e “O Rei do Gado” (1996) e os especiais “Os Homens Querem Paz” (1991), “Uma Mulher Vestida de Sol” (1994) e “A Farsa da Boa Preguiça” (1995).

Em 2005 produziu a minissérie “Hoje é Dia de Maria”, que foi comparada a “Lavoura Arcaica” por ter uma linguagem inovadora. Mais tarde, em 2007, dirigiu a série “A Pedra do Reino”, exibida na Rede Globo e baseada no “Romance d'a Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta”, de Ariano Suassuna.

Vindo de uma geração marcada por padrões consumistas de produção radiofusiva de som e imagem, o carioca consegue se desvincular disto e construir sua forma de mostrar o mundo, até ficar mundialmente conhecido pela produção do filme “Lavoura Arcaica”, que reflete a busca pelo diferencial estético do diretor. Todos os seus trabalhos refletem a contramão da tendência de mercado.

2. Ato II: um pretexto honesto

Neste ato consta a justificativa da composição desta ópera, os pretextos para esta pesquisa.

2.1. Cena I: Uma ideia

O protagonista da história foi alcunhado como Casmurro por cochilar, a partir disto a evocação dos “olhos e ouvidos atentos” para captar toda a essência contemporânea adotada pelo diretor Luiz Fernando Carvalho para reapresentar e representar o romance Dom Casmurro.

Com base nisto, este estudo se baseia na montagem que o diretor fez da minissérie, englobando signos da cultura pop, sendo divergente das demais obras televisivas. Sendo assim esta análise de cunho científico da produção visa elucidar dúvidas acerca da contraposição adotada por Luis à industrial cultural e à cultura de massas.

3. Ato III: Capitu refletindo

Este ato consiste na interpretação das três melodias desta ópera. A primeira é a minissérie fazendo analogia a um cenário, o local onde se passa a interpretação. Na sequência vestem-se os trajes, sendo o figurino a cultura pop, que completa a caracterização para representar o espetáculo.

Por fim, ascendem-se as luzes, representando a indústria cultural, que emprega sua composição de luz e sombra, remetendo às teorias da cultura de massa em relação à democratização da cultura contrapondo a banalização da mesma.

3.1. Cena I: As curiosidades de "Capitu"

“Capitu” é uma minissérie adaptada do romance “Dom Casmurro”, clássico da literatura brasileira de Machado de Assis, exibida pela Rede Globo em dezembro de 2008, para celebrar o centenário do autor. A série celebra a imortalidade da obra com sua permanente dúvida acerca de um adultério de forma inovadora e contemporânea.

O conteúdo desta página requer uma versão mais recente do Adobe Flash Player.

Obter Adobe Flash player


Estética pop: abertura da minissérie "Capitu" (Rede Globo, 2008).

O folhetim televisivo é parte do Projeto Quadrante, série de adaptações literárias que começou em 2007 com uma homenagem a Ariano Suassuna com “A Pedra do Reino”. O projeto leva obras renomadas da literatura brasileira para a TV, e o diretor de ambas as séries é também o criador do projeto, Luiz Fernando Carvalho.

A série foi composta por cinco capítulos e utiliza diversas vertentes da arte como a ópera, o teatro, o cinema mudo, todos estes atrelados a cultura pop, [7] parte principal e essência da produção, o que quebrou com a solenidade, muitas vezes rejeitada, de Machado de Assis.

A trama apresenta ao público um melancólico Dom Casmurro, que escreve um livro para contar sua história e também restaurar, na velhice, os momentos vividos na adolescência ao lado do grande amor de sua vida, Capitu. Essa melancolia vem da consciência da finitude, do fim de um encantamento que não voltaria jamais.

O elenco é de quase todo desconhecido, sendo Maria Fernanda Cândido, que vive Capitu adulta, é um dos únicos rostos conhecidos do "triângulo" presente no romance, ela que já emprestou seu olhar a protagonista deste romance no filme “Dom” (2003), de Moacyr Góes. [8]

Também está presente a famosa atriz Eliane Giardine, que vive Dona Glória, a matriarca. A maioria dos outros atores vem do teatro, como Michel Melamed, que estreia na TV como o protagonista na fase madura, Bento Santiago. O diretor buscou que o personagem-título e narrador do romance tivesse aspecto precário e mais envelhecido do que o ator de 35 anos.

A primeira fase do romance é estrelada pelo jovem César Carda, um ator também do ramo teatral que vive Bentinho. Letícia Persiles, a atriz que interpreta Capitu por quem o jovem se apaixona, é cantora de uma banda de rock, aprendeu a fazer teatro e circo, porém nunca tinha atuado em televisão. Ela foi escolhida por Luiz Fernando por este ter se encantado com o olhar da moça num show da sua banda Manacá.

A estrutura da minissérie se faz operística e teatral seguindo a premissa que o próprio narrador coloca no livro em questão, “a vida é uma ópera”, onde o cenário é literal, assim como o escritor lembra seu leitor a cada página de que ele lê ficção e não “a verdade”.

3.2. Cena II: O Papa – O pop não poupa ninguém?

Alguns consideram que cultura é sinônimo de conhecimento letrado, erudição, para outros, é expressão artística. O conceito antropológico considera que a cultura se refere à capacidade dos seres humanos de dar significados às ações que praticam à realidade natural e à realidade construída que os cercam.

Portanto todos os conhecimentos que adquirimos nas mais diversas formas de expressão constituem a cultura. Ela é um mundo de significados, é um código simbólico construído socialmente, e compartilhado por todos os seus integrantes.

Exatamente por ser construída é que a cultura popular pode ser tão variada, cada grupo desenvolve a sua e, pode ser também, transformada, modificada pelos próprios integrantes do grupo, por meio de contato e convivência com outros grupos, o que tem possibilitado o encontro e a combinação de tradições culturais diversas, recriadas em novas combinações multiétnicas e pluriculturais, ou como coloca Canclini, “híbrida” (2003).

A cultura é um aglomerado de fragmentos que apresenta significados bastante heterogêneos e variáveis. No livro “O que é cultura popular”, Antonio A. Arantes cita Aurélio Buarque de Holanda, que define, em seu bem conceituado dicionário de língua portuguesa, cultura como "saber, estudo, elegância, esmero, conhecimento, informação" (2004:09), mas ao evocar o termo "popular" entramos num paradoxo entre "cultura" e "povo", como se tudo que vem do "povo" fosse desprovido de saber.

O povo é formado por uma porção denominada massa, composta por diversas etnias e origens, cada qual com sua carga histórica acerca da cultura, religião e também os costumes, e, em função disto, estamos imersos no universo popular. Nosso universo é regido pela escola, a igreja e a família, que são instituições formadoras e, juntamente com os meios de comunicação massivos, têm a função de produzir e divulgar ideias contendo os modos ideais de agir e de pensar, ditos cultos.

Isto, de certa maneira, nos condiciona ao repúdio de tudo que está relacionado com o “povo”, qualificando como de mau gosto, indigesto, errado, porém, ao construir nossas teorias, tendemos a inserir coisas contraditórias em relação à cultura popular em nossos planos individuais.

A "cultura popular" surge como uma outra ‘cultura’ que, por contraste ao saber culto dominante, apresenta-se como ‘totalidade’ embora sendo, na verdade, construída através da justaposição de elementos residuais e fragmentários considerados resistentes a um processo ‘natural’ de deteriorização. (...) O que é identificado e escolhido como elemento constitutivo das tradições nacionais é recriado segundo os moldes ditados pelas elites cultas e, com nova roupagem, digerido e devolvido a todos os cidadãos. (Cf. ARANTES, 2004:18).

Seguindo o raciocínio de Arantes, esses procedimentos procuram sanar um impasse, de “como aceitar a recorrência e a força simbólica dos modos ‘populares’ de expressão, sem comprometer a supremacia do saber das elites cultas” (2004:18-19).

Essa ambivalência corresponde a uma percepção da vida e da sociedade do observador onde o seu próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através de valores, modelos e definições do que é a existência de maneira unilateral, e as outras sociedades são pensadas em função da nossa, providas de inúmeros pré-conceitos.

Partindo deste pressuposto, supomos que a cultura popular surge para contrariar o saber culto dominante dotado de duas interpretações: onde o diferente é desvalorizado como incivilizado e outra onde atua como grupo de comparação crítica com relação às deficiências práticas do grupo central, onde o grupo considerado da "elite", julgando-se detentor do saber sempre se exclui do grupo destacado como "povo", a massa homogeneizada comporta por várias camadas.

Assim, como coloca Arantes, “o primeiro refere-se, em geral, a aspectos da tecnologia (técnicas de trabalho, procedimentos de cura etc.) e de ‘conhecimento’ do universo, enquanto o segundo enfatiza as formas artísticas de expressão” (2004:08), muitas vezes considerado ao extremo como “o papel de resistência contra a dominação de classe” (2004:07).

A respeito destas diferenças, “alguns valores e concepções são implementados socialmente, através de complexos mecanismos de produção e divulgação de ideias, como se fosse, ou devessem se tornar, os modos de agir e de pensar de todos.

A cultura popular é frequentemente entendida como folclore ou até como cultura de massa, porque os três são expressões de um processo contínuo de mútuas influências e transformações, no qual chegam a se confundir. Folclore é definido, habitualmente, como a cultura popular transformada em norma pela tradição. Cultura de massa é a cultura produzida pela chamada indústria cultural.

Mas a cultura é plural e possui uma concepção não normativa e dinâmica. No que diz respeito à cultura popular a antropologia surge para intermediar a questão da "diferença" através do processo harmonioso de reciprocidade como forma de entendimento, de diálogo entre os povos, assim como a cultura popular busca dialogar com a cultura erudita.

A cultura popular e a cultura erudita acabam se interrelacionado e tendo uma adoção de elementos populares para o erudito. Com isso, as duas culturas não estão completamente separadas entre elas.

3.3. Cena III: Aceita a teoria – Teorização em tempos modernos

Com a modernidade houve a adoção da razão como fundamento regente e o capitalismo entrou em cena de mãos dadas com a Indústria Cultural. Esta reduziu os seres humanos ao estado de massa, quebrando a promessa de autodeterminação atribuída aos tempos modernos. Teixeira Coelho expõe em seu livro, “O que é indústria cultural”, que:

Não se poderia, de todo modo, falar em indústria cultural num período anterior ao da Revolução Industrial, (...) embora esta Revolução seja uma condição básica para a existência daquela indústria e daquela cultura, ela não é ainda a condição suficiente. É necessário acrescentar a esse quadro a existência (...) de uma economia baseada no consumo de bens; é necessário, enfim, a ocorrência de uma sociedade de consumo (...). É esta, através das alterações que produz no modo de produção e na forma do trabalho humano, que determina um tipo particular de indústria (a cultural) e de cultura (a de massa) (...). Estes são alguns dos traços marcantes da sociedade capitalista liberal, onde é nítida a oposição de classes e em cujo interior começa a surgir a cultura de massa. (Cf. COELHO, 1993:10-11).

A partir disto e com a evolução da tecnologia surge a mídia, que deveria informar, educar e distrair, mas assume funções paralelas a estas, vigiam, anunciam e vendem, alienando a população. “A indústria cultural, os meios de comunicação de massa e a cultura de massa surgem como funções do fenômeno da industrialização” (Cf. COELHO, 1999:10) e impedem o esclarecimento, como colocam Adorno e Horkheimer, os homens se formam segundo preceitos atrelados à aparelhagem técnica (1969:41).

Tais funções proporcionam aos meios de comunicação de massa a manipulação das pessoas, criando esteriótipos que os remetem a introjeções e projeções visando criar uma falsa necessidade de consumo. “
Cada manifestação da indústria cultural reproduz as pessoas tais como as modelou a indústria em seu todo” (Cf. ADORNO; HORKHEIMER, 1969:119), ocasionando, segundo Coelho:

A reificação (ou transformação em coisa: a coisificação) e a alienação. Para essa sociedade, o padrão maior de avaliação tende a ser a coisa, o bem, o produto; tudo é julgado como coisa, portanto tudo se transforma em coisa — inclusive o homem. (...) a cultura — feita em série, industrialmente, para o grande número — passa a ser vista não como instrumento de livre expressão, crítica e conhecimento, mas como produto trocável por dinheiro e que deve ser consumido como se consome qualquer outra coisa. (1993:11).

Adorno e Horkheimer tratam acerca da alienação como a “negação” do esclarecimento proposto pela revolução, eles citam a definição kantiana [9] de que o esclarecimento “é a saída do homem de sua menoridade, no qual o próprio é culpado.

A menoridade é a incapacidade de se servir de seu entendimento sem a direção de outrem” (1969:81), essa expressão de esclarecimento traduz com perfeição não apenas o significado histórico-filosófico, mas também o sentido mais amplo que o termo encontra nos autores que afirmar que o esclarecimento visa livrar a humanidade do medo de forma a provocar o “desencantamento do mundo” substituindo a imaginação pelo saber, que é a superioridade do homem (1969:19).

O receptor destas produções é distraído e por isso não há uma "análise" da obra, como afirma Teixeira Coelho, “a TV media a sociedade de consumo” (1993:12), causando, a “atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural” (Cf. ADORNO; HORKHEIMER, 1969:119), concebendo assim a Cultura de Massa.

Essa Indústria define a cultura como lazer e entretenimento, de modo com que tudo o que obras de arte e de pensamento significa trabalho da sensibilidade, da imaginação, da inteligência, da reflexão e da crítica, não tem interesse, não "vende", banalizando a expressão artística e cultural e vulgarizando-a. “Em toda obra de arte, o estilo é uma promessa” (Cf. ADORNO; HORKHEIMER, 1969:122), onde a “indústria cultural permanece a indústria da diversão. Seu controle sobre os consumidores é mediado pela diversão” (Idem, 1969:128). “A diversão se alinha ela própria entre os ideais, ela toma o lugar dos bens superiores” (Idem, 1969:134), confirmando assim a alienação.

Desta maneira a ideologia da indústria cultural faz com que a consciência seja trocada pelo conformismo, onde tudo que é imposto é facilmente aceito sem o menor empenho intelectual. Não há uma preocupação profunda com a forma, consumindo o que lhe é imposto.

A eliminação do privilégio da cultura pela venda em liquidação dos bens culturais não introduz as massas nas áreas de que eram antes excluídas, mas serve, ao contrário, nas condições sociais existentes, justamente para a decadência da cultura e para o progresso da incoerência bárbara. (Cf. ADORNO; HORKHEIMER, 1969:150).

As pessoas não desenvolvem uma consciência crítica, sócio-política e cultural em função da manipulação exercida pelos produtos e pelos meios de comunicação de massa que veiculam estes.

A sociedade é organizada em função do consumo, como coloca Néstor García Canclini, onde “agentes calculam tecnicamente suas decisões e organizam tecnoburocraticamente o atendimento às demandas segundo critérios de rentabilidade e eficiência (...) a subjetividade recolhe-se ao âmbito privado” (2003:288), onde os meios e o mercado organizam o mundo público em função do consumo e da “dramatização dos signos de status” (2003:288).

Considera-se a cultura como sendo uma mercadoria paradoxal, esta é de tal modo sujeita à lei da troca que não é nem mesmo trocável. As obras culturais foram submetidas a uma nova servidão conforme as regras do mercado capitalista, não se democratizou, apenas massificou-se para o consumo rápido, perdendo algumas de suas principais características como a expressividade, o trabalho de criação e de experimentação do novo.

O desenvolvimento moderno tentou distribuir os objetos e os signos em lugares específicos. (...) Uma classificação rigorosa das coisas, e das linguagens que falam delas, sustém a organização sistemática dos espaços sociais em que devem ser consumidos. Essa ordem estrutura a vida dos consumidores e prescreve comportamentos e modos de percepção adequados a cada situação. Ser culto em uma cidade moderna consiste em saber distinguir entre o que se compra para usar, o que se rememora e o que se goza simbolicamente. (...) A vida urbana transgride a cada momento essa ordem. No movimento da cidade, os interesses mercantis cruzam-se com os históricos, estéticos e comunicacionais. As lutas semânticas para neutralizar, perturbar a mensagem dos outros ou mudar seu significado, e subordinar os demais à própria lógica, são encenações dos conflitos entre as forças sociais: entre o mercado, a história, o Estado, a publicidade e a luta popular para sobreviver. (Cf. CANCLINI; 2003:300-301).

Sendo assim é considerada a classificação de cultura segundo preceitos do autor  Dwight MacDonald, [10] ele admite três formas de manifestação cultural: a superior, que “são todos os produtos canonizados pela crítica erudita; a midcult, sendo “os Mozarts executados no ritmo de discoteca; as pinturas queimadas na selva que se pode comprar todos os domingos nas praças públicas” (Cf. COELHO;1993:14-15); já a ou masscult, ou cultura inferior, colocada como a cultura produzida pelos meios de comunicação de massa.

A partir das considerações de MacDonald o objeto de estudo em questão se encaixaria como uma manifestação cultural de essência da cultura média, devido a infidelidade em representar a obra.

Porém se considerarmos a fidelidade ao texto associado à tentativa de democratização através de uma demonstração cultural de cunho popular, associando sua construção no contexto atual, a forma contemporânea de reapresentar “Dom Casmurro”, mesmo sendo em um meio de comunicação massivo, atrela uma simbologia que resiste a deteriorização que ocorre com obras desta categoria, combatendo a alienação e a retificação.

Seguindo esta análise, a adaptação busca que a arte e a cultura tenham o seu verdadeiro sentido resgatado, pois esta não é apenas mais um produto da indústria.

Desta maneira ocorre à interrupção da retificação e da alienação e os indivíduos poderiam traçar seus caminhos rumo ao esclarecimento, podendo assim compreender as diversas manifestações estéticas que conservam sua aura, [11] fazendo uma reflexão acerca da produção.

Consideramos então a análise de Néstor G. Canclini em que ele aponta que “as transformações culturais geradas pelas últimas tecnologias e por mudanças na produção e circulação simbólica não eram responsabilidade exclusiva dos meios comunicacionais” (2003:284), isso evoca a necessidade de noções mais abrangentes com relação ao tema.

Assim “as ideologias urbanas atribuíram a um aspecto da transformação, produzida pelo entrecruzamento de muitas forças da modernidade” (Cf. CANCLINI; 2003:285), mas é necessário considerar que “o rádio e a televisão, ao relacionar patrimônios históricos, étnicos e regionais diversos, e difundidos maciçamente, coordena as múltiplas temporalidades de espectadores diferentes” (Idem; 2003:286).

Mais que uma substituição absoluta da vida urbana pelos meios audiovisuais, percebo um jogo de ecos. A publicidade comercial e os lemas políticos que vemos na televisão são os que reencontramos nas ruas, e vice-versa: umas ressoam na outras. A essa circularidade do comunicacional e do urbano subordinam se os testemunhos da história, o sentido público construído em experiências de longa duração. (Cf. CANCLINI, 2003:290).

Admite-se então que viver em um grande centro não é sinônimo de dissolução à massa e ao anonimato, onde “às vezes, o sentido do urbano se restitui, e o massivo deixa de ser um sistema vertical de difusão para transformar-se em expressão amplificada de poderes locais, complementação dos fragmentos” (Cf. CANCLINI, 2003:288).

A emergência de múltiplas exigências, ampliada em parte pelo crescimento de reivindicações culturais e relativas à qualidade de vida, suscita um espectro diversificado de órgãos porta vozes: movimentos urbanos, étnicos, juvenis, feministas, de consumidores, ecológicos etc. A mobilização social, do mesmo modo que a estrutura da cidade, fragmenta-se em processos cada vez mais difíceis de totalizar. (Cf. CANCLINI, 2003:287-288).

Neste sentido existem “os dispositivos de reprodução que não podemos definir como cultos ou populares” (Cf. CANCLINI, 2003:304) e dependem de uma interpretação, que remete a um esclarecimento do indivíduo por construir sua própria concepção de cultura. Ainda segundo o autor, como foi estabelecido em estudos acerca da TV, onde ele analisa que “os novos recursos não são neutros, nem tampouco onipotentes, sua simples inovação formal implica mudanças culturais, mas o significado final depende dos usos que lhes atribuem diversos agentes” (Idem, 2003:307).

Ao analisar as considerações do mexicano Garcia, mais especificamente suas avaliações acerca das relações entre a modernidade sociocultural e a modernização econômica, focando a atenção nos papéis dos agentes sociais envolvidos na construção dos produtos culturais ditos cultos, populares ou massivose suas relações com a modernidade na construção de uma cultura híbrida, observa-se que a modernidade é sinônimo de pluralidade, mesclando relações entre hegemônicos e subalternos, tradicional e moderno, culto, popular e massivo.

Buscando uma relação entre as culturas cultas, populares e dos meios de comunicação de massa, o estudioso defende que cultura atual deve ser encarada procurando entender a existência de um processo hibridação. Conclui-se que a divisão da cultura estabelecida por MacDonald é, de certa forma, equivocada em função do hibridismo da cultura na modernidade.

Dentro deste contexto, examina-se o objeto de estudo em questão, como uma manifestação cultural que se encaixa nos conceitos de classes populares, de elite e de massa, definindo seu caráter híbrido.

Para Canclini, “há um componente autoritário quando se quer que as interpretações dos receptores coincidam inteiramente com o sentido proposto pelo emissor. Democracia é pluralidade cultural, polissemia interpretativa” (2003:339).

4. Ato IV: Dúvidas sobre dúvidas

O penúltimo ato desta ópera tem como objetivo a problematização, fundamentada na questão acerca da minissérie “Capitu” como tentativa de popularizar o renomado autor Machado de Assis a partir de sua reapresentação ao público de maneira pop e contemporânea, analisando se esta atinge seu real objetivo de transpor o conceito de cultura de massa em produções televisivas.

4.1. Cena I – O filho é a cara do pai

Esta cena traz a fragmentação da minissérie em função da problematização e da teorização propostas.

O diretor Carvalho de 48 anos trouxe para a TV o romance de 1899, pensando um novo conceito para a obra, ele fez visualmente o que Machado fazia verbalmente, deixou nas entrelinhas o que era importante como se não o fosse. Realiza o imperativo categórico que Machado de Assis afirmou no ensaio “A nova geração”: “a realidade é boa, o realismo é que não presta para nada” (Cf. ASSIS, 1938:239) a proverbial condenação ao realismo.

"Capitu" chega à TV com elementos ousados que ainda causaram estranheza ao público, mas que foram marcas da linha adotada em sua construção. O diretor utilizou elementos modernos em uma trama ambientada no século XIX, e, segundo Canclini, ser culto na modernidade implica não só vincular-se a objetos e mensagens contemporâneas, mas também “saber incorporar a arte e a literatura de vanguarda, assim como os avanços tecnológicos, matrizes tradicionais de privilégio social e distinção simbólica” (2003:74).

O diretor explica o projeto como uma tentativa e um desejo de reencontrar e contar o país, além de ser uma declaração de amor à literatura, com o intuito de transpor para a televisão obras literárias e assim propor uma reflexão sobre a cultura brasileira, que, atualmente, consiste na “falsa identidade do universal e do particular. Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica” (Cf. ADORNO; HORKHEIMER, 1969:114).

Para Luiz, o desafio foi transformar a obra do escritor em um programa atraente para os espectadores, assim utilizou uma linguagem moderna e atemporal, em uma montagem mágica e bem cuidada. Todos esses requisitos utilizados por Luiz refletem seu combate à degradação das obras televisivas, sendo assim, sobre as obras televisivas atuais é possível afirmar que é “verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem” (Cf. ADORNO, 1969:111) para as massas.

Para Canclini, “Essa fascinação pelos produtos, o descaso pelos processos e agentes sociais que os geram, pelos usos que os modificam, leva a valorizar nos objetos mais a sua repetição que sua transformação” (2003:211).

A produção possui discurso de revolução estética conciliando o clássico e o novo. Composta por uma relação forte entre o plano imagético e sonoro, transpondo a barreira atribuída por muitos ao livro, expõe de forma lírica a história sob a visão do diretor como agente do meio artístico travando um embate entre a busca pelo mercado e, ao mesmo tempo, a luta pela distinção de sua produção em relação aos meios massivos. É uma produção extremamente pós-moderna, sendo transtemporal, pois “reúne melodias e imagens de várias épocas, cita despreocupadamente fatos fora do contexto” (Cf. CANCLINI, 2003:305).

Segundo Canclini “as sociedades modernas necessitam ao mesmo tempo da ‘divulgação’ – ampliar o mercado e o consumo dos bens para aumentar a margem de lucro – e da ‘distinção’ – que, para enfrentar os efeitos massificadores da divulgação, recria os signos que diferenciam os setores hegemônicos (2003:37).

A estética da “aproximação”, como coloca o diretor, é de coragem incomum, sendo ao mesmo tempo fidelíssima e infidelíssima à obra, como afirma Gustavo Bernardo Krause em seu blog Prosa & Verso no portal O Globo, site do jornal. “Sua simples inovação formal não implica mudanças culturais, mas o significado final depende dos usos que lhes atribuem diversos agentes” (Cf. CANCLINI, 2003:307), pois a arte culta e a popular constroem sentido em suas mesclas inevitáveis e sua interação com a simbologia massiva (Idem, 2003:336).

O diretor apropriou-se da ótica e da palavra do próprio narrador da história como artifício de metalinguagem, muito utilizado pelo autor. Cada palavra do texto de “Capitu” está no texto de Machado. Luiz Fernando respeitou a narrativa linear de “Dom Casmurro”, assim ele conseguiu se aproximar do público, rompendo a inatingibilidade que marcou a primeira obra do Projeto Quadrante,A pedra do Reino”, que teve a linguagem considerada confusa e que espantou a audiência.

Com sua estética não-naturalista, não ignora o fato de que “a televisão é um veículo de grande alcance, ela atinge igualmente o todo e a parte” (Cf. ADORNO; HORKHEIMER, 1969:118). “Essa apropriação múltipla de patrimônios culturais abre possibilidades originais de experimentação e comunicação, com usos democratizadores” (Idem, 2003:308), onde:

A intervenção tecnológica (...) é a reorganização dos vínculos entre grupos e sistemas simbólicos; os descolecionamentos e as hibridações já não permitem vincular rigidamente as classes sociais com os estratos culturais. Ainda que muitas obras permaneçam dentro dos circuitos minoritários ou populares para que foram feitas, a tendência predominante é que todos os setores misturem em seus gostos objetos de procedências antes separadas. Não quero dizer que essa circulação mais fluida e complexa tenha dissolvido as diferenças entre as classes. Apenas afirmo que a reorganização dos cenários culturais e os cruzamentos constantes das identidades exigem investigar de outro modo as ordens que sistematizam as relações materiais e simbólicas entre os grupos. (Cf. CANCLINI, 2003:309).

Compondo uma espécie de “intergênero” de música, imagem e texto, a minissérie é atenuada por uma trilha sonora composta minuciosamente, regada a rock e pop, com canções que vão da banda de rock clássico Black Sabbath à banda de folk rock [12] Beirut, passando também por Manacá, banda independente da atriz Letícia Persiles, que interpreta a jovem Capitu na trama.

O diretor afirmou, em entrevista para Carla Neves da sessão “Televisão” do site UOL em 9 de dezembro de 2008, que as escolhas de trilhas foram objetos estratégicos para atrair a atenção do público e que buscou romper com os preconceitos que os jovens tem em relação a esse autor, ele disse que quer mostrar que Machado está vivo e é pop.

Para o visual, Luiz Fernando Carvalho escolheu um universo de ópera rock, na montagem os personagens são expostos de forma lacônica, a ação da trama é dividida em cenas curtas e densas como no livro, ou como em uma ópera, e anunciados ao modo das antigas radionovelas, reforçando a ironia com que a narrativa trágica toma corpo.

O figurino, os elementos cenográficos emprestados do teatro, a trilha sonora, os atores e atrizes, a maioria das cenas foi ambientada no prédio do Automóvel Clube, um antigo palácio restaurado na Rua Gomes Freire, no Centro do Rio, não muito longe da mítica Rua de Matacavalos, atual Mem de Sá, principal cenário do livro onde, no romance, morava Bentinho. Nos extras do DVD encontra-se uma espécie de documentário em que o diretor comenta a obra, ali ele descreve o cenário:

No centro da cidade encontrei um cenário que é um palácio, (...) Quando percebi que o orçamento da minissérie não possibilitava gravar nas diversas ruas e casarões antigos, o velho palácio em ruínas passou a representar um pouco da alma da historia de Dom Casmurro. Me pareceu interessante contar a história toda lá dentro encenando todos os ambientes, todas as situações e me agarrei a essa ideia da ópera e das ruínas e fui. O palácio é de uma Riqueza de ambientação impensável com informações gigantescas do século XIX de arquitetura eclética e em ruínas exatamente que refletem todas as partes viscerais do romance expondo-as nas paredes (...) e propõe outra coisa que não o realismo. (CARVALHO, 2008).

Com um orçamento estimado em cinco milhões, seria difícil retratar a história do século XIX, porém sendo gravado em um local fechado e quase sem locações externas foi possível economizar e manter a estrutura machadiana de retratar os contextos, surpreendendo a transformação ocorrida no espaço físico onde um mesmo local corresponde a cantos diferentes da memória de Dom Casmurro, com alguns dos cenários feitos somente com desenhos de giz.

Mas é necessário considerar que pelos “descuidos” das outras produções do Projeto Quadrante, os telespectadores passaram a associar à minissérie certo preconceito, pois, na grande maioria, os espectadores não estão dispostos a pensar quando ligam a TV. Segundo Giovannini, a massa está acostumada com novelas e programas de auditório que não estimulam (e nem exigem) a inteligência dos receptores.

A popularidade da televisão satisfaz em grandes dimensões as necessidades dos telespectadores e serve como “espelho deformador”, fazendo com que suas funções sociais pareçam mais numerosas do que o são na realidade. A própria percepção do público, às vezes, é enganadora, ou seja, contrária àquilo que é seu verdadeiro comportamento (2000:265).

Carvalho propõe sempre inovações onde as regras gerais da teledramaturgia são subvertidas ao expor cenas com diálogos interrompidos com citações, cortes bruscos, enquadramentos totalmente fora do convencional que juntam diversos cenários em um só local. E isso provoca, por vezes, o afastamento da realidade do público mesmo contando a história de forma inteligível com seu toque moderno, pois “a técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema social” (Cf. ADORNO; HORKHEIMER, 1969:114).

A experimentação do diretor teve repercussão internacional e chegou a ser utilizada como objeto de estudo com alunos do curso de Cinema e Televisão de uma universidade de Los Angeles. No seminário em que foi discutida a minissérie analisaram as transformações do apurado estilo visual de Luiz Fernando, na direção da incorporação de elementos de teatro, mímica, dança e circo para a linguagem televisiva.

O coordenador do debate teceu elogios ao diretor em entrevista à Marília Martins, correspondente da sessão “Revista da TV” do jornal O Globo em Nova Iorque:

Luiz Fernando Carvalho é hoje, sem dúvida, o diretor que tem o trabalho mais autoral de toda a produção de TV e cinema no Brasil. Ele é um autor, no sentido amplo da palavra, o criador de uma estética própria, que ele vem construindo desde “Os Maias”. Seu filme, “Lavoura arcaica”, impressionou muitíssimo os alunos pela extrema originalidade de sua abordagem visual e literária. E as minisséries, em especial “Capitu”, que foram exibidas para estudantes que não conheciam sequer o enredo, começam a atrair pesquisadores nos EUA para a produção brasileira. (JOHNSON, 2008). [13]

Para Canclini, a compreensão da modernidade requer observar, ao mesmo tempo, as formas de entrada e saída que nela ocorrem, compreender como se reestruturam os agentes sociais que participam tanto do campo culto ou popular quanto do massivo e como isso abranda as fronteiras entre seus praticantes e seus estilos. Em função disto identificou-se a necessidade de análise da obra em função de sua diferenciação estética.

5. Ato V – É bem, e o resto?

Este ato consiste na conclusão desta pesquisa a partir das diversas análises expostas em sua fundamentação.

O objetivo desta pesquisa foi trazer à tona o tema das produções televisivas contemporâneas inseridas nos estudos culturais. Procurou-se centrar nas definições da máscara pop adotada pelo diretor Luiz Fernando Carvalho em oposição aos conceitos de cultura de massa fundamentadas nas teorias de Adorno e Horkheimer e complementadas pela análise de hibridismo cultural de Canclini.

A valorização cultural popular é colocada à prova fronte a produção designada para as massas realizada pela indústria cultural através dos meios de comunicação contemporâneos. Analisando de maneira mais abrangente, a produção destes veículos, na maioria das vezes, visa somente atender a demanda de uma população alienada por ter sido educada através de conceitos massificadores que atendem somente aos interesses da lógica capitalista.

Há uma mudança clara na função social da cultura, quando esta se estende para outros públicos e procura novos suportes não convencionais. Estes novos espaços híbridos da cultura, resultam em uma sociedade mais plural e democrática que pode ser um ponto de partida na questão da cultura retratada pela mídia massiva, pois às vezes os meios massivos também contribuem para superar a fragmentação.

Os meios acabam tornando popular os bens simbólicos da elite, a qual tenta ir contra a este movimento. Mas o popular não media esforços para conseguir manter aquilo que o identifica, sustentando a distinção de uma oposição ao outro.

Em contraposição a isso nota-se a característica híbrida da cultura que sobrevive mesmo sem o reconhecimento da Indústria massiva. Com base no livro “Culturas híbridas”, de Néstor García Canclini, que expõe perspectivas questões sobre a relação entre o produtor e seu público, entre o ver e o ser visto por meio do qual é possível dar uma maior visibilidade à arte reelaborando concepções de espaço e tempo, uma espécie de modernização na formação destes.

A cultura popular atual se baseia na mistura do que é novo com o tradicional e o local e o objeto de estudo serve como uma representação de uma cultura em hibridação, pois sua exibição ocorre no campo culto e popular-massivo, reestruturando conceitos e desenvolvendo novas experimentações além de novas formas de linguagem propostas pelo diretor.

Ambas as intenções coexistem e podem ser entendidas e apreciadas, em diversos níveis, por públicos diferentes. O reconhecimento em um espaço não impede que a minissérie Capitu seja identificada no outro.

O diretor expõe que é possível fundir heranças culturais de uma sociedade, a reflexão crítica sobre seu sentido contemporâneo e os requisitos comunicacionais da difusão de massa.

Meios massivos como a televisão interferem diretamente na formação deste público e, com isso, surge uma maior demanda sobre informações a respeito deste assunto. Por isso a importância de os pesquisadores em Comunicação Social estarem atentos a fenômenos com este.

Após esta análise conclui-se que a produção realizada por Luiz Fernando Carvalho é uma maneira de transpor conceitos massivos por expor em um veículo massivo de comunicação, um projeto que visa expandir a literatura brasileira aos mais diversos públicos.

Não se trata, é claro, de retornar às denúncias paranóicas, às concepções conspirativas da história, que acusavam a modernização da cultura massiva e cotidiana de ser um instrumento dos poderosos para explorar mais. A questão é entender como a dinâmica própria do desenvolvimento tecnológico remodela a sociedade, coincide com movimentos sociais ou os contradiz. Há tecnologias de diferentes signos, cada uma com várias possibilidades de desenvolvimento e articulação com as outras. Há setores sociais com capitais culturais e disposições diversas de apropriar se delas, com sentidos diferentes: a descoleção e a hibridação não são iguais para os adolescentes populares que vão às casas públicas de video games e para os de classe média e alta que os têm em suas casas. Os sentidos das tecnologias se constroem conforme os modos pelos quais se institucionalizam e se socializam. (Cf. CANCLINI, 2003:308).

A máscara pop adotada pelo diretor, com novas formas de exposição tanto televisiva quanto literária, fazem referência a contemporaneidade do autor no centenário de sua morte. O diretor faz juz a sua frase de que “Machado está vivo e é pop”, pois, conforme afirmam diversos críticos, é o autor mais moderno nas produções literárias brasileiras. “A arte culta e a popular constroem sentidos em suas mesclas inevitáveis e sua interação com a simbologia massiva” (Cf. CANCLINI, 2003:326).

Ao “deitar no papel as reminiscências que vierem vindo” (Cf. ASSIS, 2000:12) conclui-se que a minissérie “Capitu” transpõe os conceitos da cultura de massa por mesclar o clássico e o popular e expor de forma inovadora e contemporânea a renomada obra de Machado de Assis.


NOTAS

[1] O Segundo Reinado consolida o projeto conservador de elite. Vários aspectos econômicos, políticos e sociais marcaram essa época, que inclui diversas questões diplomáticas e a abolição da escravidão.

[2] Personagem da peça “Othello, the Moor of Venice” ("Otelo, o mouro de Veneza"), do dramaturgo inglês William Shakespeare. Comparado a peça pela grandiosidade e pelo ciúme presente em ambos os personagens.

[3] Movimento artístico, político e filosófico surgido nas últimas décadas do século XVIII, caracterizado como uma visão de mundo contrária ao racionalismo que marcou o período neoclássico e buscou o nacionalismo.

[4] Os escritores realistas desejavam retratar o homem e a sociedade em sua totalidade, uma característica comum é o seu forte poder de crítica, adotando a objetividade que faltou ao romantismo.

[5] Linguagem de descrição de outra língua formal.

[6] Roland Barthes formou-se em Literatura Clássica e Filologia e é considerado um dos mais importantes críticos literários. Fez a crítica das atitudes sociais e cotidianas e trabalhou em uma ciência geral dos signos.

[7] O termo surge para complementar o conceito de Indústria Cultural, são produções que apresentam inovações significativas dentro de determinado canal. São peças que ganham uma nova dimensão em decorrência de sua carga arquetípica e provocam o receptor com uma leitura crítica do mundo, assim mesmo passando pelos mesmos mecanismos de reprodutibilidade técnica se diferencia do que se define como Indústria Cultural.

[8] Moacyr Góes é roteirista e diretor de cinema e teatro brasileiro e estreou como cineasta em 2003 com o filme "Dom", livremente inspirado em Machado de Assis.

[9] Refere-se ao filósofo alemão Immanuel Kant, considerado o pensador mais influente dos tempos modernos.

[10] Dwight MacDonald (1906-1982) foi um escritor americano, editor, crítico social, filósofo e político radical.

[11] A aura, segundo Walter Benjamin (1992), é a autenticidade da obra, a aparição única de uma realidade longínqua.

[12] Folk rock é um gênero musical que combina elementos de música folclórica e rock ‘n’ roll.

[13] Randal Johnson é roteirista, professor e pesquisador de cinema docente no curso de Cinema e Televisão na Universidade da Califórnia (UCLA), em Los Angeles.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. Seleção de textos por Jorge Matos Brito e Almeida. Tradução de Julia Elisabeth Levy.

ASSIS, M. Obras completas: crítica literária. Rio de Janeiro; São Paulo; Porto Alegre: W. M. Jackson Inc. Editores, 1938.

________. Dom Casmurro. Curitiba: HD Livros Editora, 2000. Comentado por Vicente Ataide

BENJAMIN, W. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio D’Água, 1992. Tradução de Maria L. Moita, Maria A. Cruz e Manuela Alberto, Prefácio de T. W. Adorno.

BERNARDO, G. “A Capitu de Luiz Fernando Carvalho”. O Globo, Rio de Janeiro/RJ, 9 dez. 2008. Disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2008/12/09/a-capitu-de-luiz-fernando-carvalho-145085.asp. Acesso em: 11 jul. 2009.

CANCLINI, N. G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1998. 2ª Ed. Trad. Heloísa P. Cintrão e Ana Regina Lessa.

CARVALHO, L.; AVELAR, J. Sobre o filme Lavoura Arcaica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

GIOVANINNI, G. Evolução na comunicação: do sílex ao silício. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1987. Tradução de Wilma Freitas e Ronald de Carvalho.

LEITTIERE, G. “Minissérie 'Capitu' estreia dia 9 na Globo de olho nos jovens com trilha sonora de rock”. O Globo, Rio de Janeiro/RJ, 27 nov. 2008. Disponível em: http://oglobo.globo.com. Acesso em: 11 jul. 2009.

MARTINS, M. “Universidade americana estuda obra de Luiz Fernando Carvalho”. O Globo, Rio de Janeiro/RJ, 24 maio 2009. Disponível em: http://oglobo.globo.com. Acesso em: 12 jul. 2009.

NEVES, C. “‘Capitu’ moderniza Machado de Assis com tatuagem, rock e capítulos de R$ 1 milhão”. UOL, 9 dez. 2008. Disponível em: http://televisao.uol.com.br/ultimas-noticias/2008/12/09/ult4244u2099.jhtm. Acesso em: 11 jul. 2009.


*Ana Paula Heck é
graduada em comunicação social com habilitação em publicidade e propaganda pela Faculdade Assis Gurgacz (FAG), de Cascavel/PR. Lougan Manzke é docente do curso de comunicação social com habilitação em publicidade e propaganda pela FAG.

 

 







Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro | ISSN 1806-2776 | Edição 13 | Outubro | 2010
Ombudsman: opine sobre a revista