Novembro de 2011
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ISSN 1806-2776
 
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ENSAIOS

[continuação]

6. Sena, Rive Gauche

O que vou dizer-lhes não é uma defesa. Não estou tentando escapar do castigo imposto pela sociedade que ataquei. Além do mais, só reconheço um tribunal capaz de julgar-me – eu próprio – e o veredito de qualquer outro não tem importância para mim. Emile Henry [16]

Paris, margem esquerda do Sena, primeira metade do Século XIX. Exatamente ali, na mais cosmopolita e revolucionária das capitais europeias, ativistas de variadas tendências reuniam-se para discutir o provável “futuro do Estado” e as fórmulas capazes de minorar o sistema de semiescravidão do operariado. Três dentre esses homens e mulheres conquistaram notável projeção: Pierre-Joseph Proudhon, Michael Alexandrovich Bakhunin e Karl Marx. Os dois primeiros eram anarquistas; o último, na vanguarda das correntes socialistas, teórico do comunismo pleno.

Embora esses três homens tenham logrado passar à História pela força das próprias ideias, a denominação revolucionário profissional deve ser aplicada integralmente a Michael Bakunin, ex-combatente nas barricadas (da Comuna) de Paris e nos levantes de Praga e Dresden. Capturado em seguida e mantido preso na Fortaleza de Pedro e Paulo, escapou através da Sibéria e foi parar no Japão, de onde seguiu para os Estados Unidos da América e retornou ao continente europeu. Na Espanha, sob a sua orientação, foi criado o maior movimento anarquista do mundo. [17]

A fidelidade à História exige, porém, que seja creditado aos italianos o mérito de colocar em prática a tese da Propaganda pela Ação. Carlo Pisacane, republicano extremista, após rejeitar o título de Duque de San Giovanni – que, aliás, lhe cabia de direito – disse:

A propaganda do pensamento é uma quimera. As idéias são uma conseqüência da ação e não o contrário, e o povo não será livre quando for educado,  mas educado quando for livre. [18]

A partir da inspiração proporcionada por Carlo Pisacane aos anarquistas italianos, foram desencadeadas insurreições em cascata. Daí por diante aconteceram atentados a chefes de Estado (Espanha, EUA, Itália, França, Áustria), que impactaram a Opinião Pública. Essas ações individuais conquistaram espaço no imaginário popular, alimentaram e retroalimentaram a imagem dos militantes anarquistas protegidos pelas sombras e escondendo, sob os respectivos capotes, bombas de fabricação artesanal.

Outro importante revolucionário, Piotr Kropotkin, utilizava o seu jornal (Le Révolté) como tribuna para justificar as ações práticas. Por exemplo, na edição de 25 de dezembro de 1880, salientou: [19]

A revolta permanente pela palavra falada e escrita, pelo punhal, pelo fuzil, pela dinamite (...), tudo o que não pertença à legalidade, é bom para nós.

Em sua análise sobre o terrorismo anarquista praticado no final do Século XIX, Daniel Guérin explica que este: [20]

Apresentava, em seus aspectos dramáticos e anedóticos, um cheiro a sangue que cativou o gosto do grande público. Todavia, se o terrorismo constituiu, naquela época, uma escola de energia individual e de coragem, que merece respeito; se ele teve o mérito de chamar a atenção da Opinião Pública para a injustiça social, ele aparece, hoje, como um desvio episódico e esterilizante do anarquismo. O terrorismo anarquista é uma recordação do passado.

Ressalte-se, porém, que não foram tão somente os anarquistas que recorreram aos métodos violentos supra-assinalados para impor as ideias-força que abraçavam. Leon Trotsky, em uma das suas obras provavelmente menos conhecidas no Brasil: Stálin, o Militante Anônimo, recorda o período turbulento em queofuturo senhor absoluto da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, conhecido pelo apelido de juventude, Koba, agia na clandestinidade, explodindo poços de petróleo e dinamitando ferrovias.

Acrescenta o teórico da Revolução Permanente que o curso da insurreição podia ser traduzido com clareza pelas estatísticas do terror. Em 1905, ano que historicamente marca a impulsão dos bolcheviques, 233 pessoas foram assassinadas; 768, em 1906, e 1231, em 1907.

7. Sobre a “mitificação dos ‘mártires”

Ao receber do corpo de jurados a confirmação da sentença de morte que lhe fora atribuída e seria aplicada por intermédio de uma injeção letal, Timothy McVeigh, 29 anos, não esboçou qualquer reação. Responsável pela colocação de um carro-bomba que explodiu, no dia 19 de abril de 1995, em Oklahoma City (no estado do Colorado), o ex-soldado condecorado durante a campanha no Golfo Pérsico teria pela frente dois ou três anos numa prisão de segurança máxima até o julgamento dos inúmeros recursos impetrados por seu advogado, Richard Burr, e a execução.

McVeigh não foi e nem será o único dentre os açougueiros do Século XX a se beneficiari com o espetáculo proporcionado pelas mídias; a projetar-se como uma espécie de “vingador solitário”; como representante de um segmento social oprimido pelo establishment norte-americano. O argumento principal apresentado na sua defesa perante o juiz de Direito foi o da indignação demonstrada por seu cliente uma vez consumada a invasão seguida de incêndio do rancho onde estavam abrigados centenas de adeptos da seita Davidiana – em Waco (Texas) –situação essa bastante grave que exigia a adoção de represálias.

“Mártires das causas”, tantos osplanejadores como os agentes de campo das organizações extremistas mortos durante confronto com as forças de segurança ou – caso de Timothy McVeigh – condenados à morte (após julgamentos nem sempre conduzidos adequadamente), costumam ser elevados à estatura de heróis. Sem que disponham do glamour dos semideuses, mas com direito a homenagens, discursos inflamados durante os respectivos funerais e outras formas de exteriorização da simpatia.

Assim era observado nas reportagens teledifundidas, quando caixões lacrados contendo os corpos de ativistas do Exército Republicano Irlandês (IRA), mortos por unidades britânicas de contrainsurgência (antes da dissolução do braço armado da organização), eram carregados por multidões nas ruas de Belfast; ou, em seguida ao autoextermínio de um ativista palestino, numa rua qualquer de Tel Aviv, Haifa, Hebron ou outra grande cidade israelense.

São basicamente jovens que perpassam aos olhos da Opinião Pública como “sentinelas” da justiça e da verdade. Quanto ao auto-extermínio dos chamados homens-bomba (agora também mulheres!!!), reveste-se de uma espetaculosidade ainda maior, principalmente se acompanhada de intenso morticínio. Para tanto existe uma explicação: a eliminação de um ou mais inimigos durante a operação é, geralmente, interpretada como ponto de honra

Sob este ângulo, vale comparar esse hipotético extremista morto em uma explosão aos antigos heróis da mitologia.  Da mesma forma que Héracles – herói nacional da Hélade – precisou ser purificado pelo fogo para (simbolicamente) despir-se dos elementos mortais representados por sua própria mãe, Alcmena, o extremista cumpre desígnios quase sagrados.

De volta ao episódio que motivou o atentado de Oklahoma City, ou seja, a tragédia dos davidianos.

Às 6h5min, de 21 de abril de 1993, após 51 dias de cerco ininterrupto, iniciado a 28 de fevereiro, originário este, por sua vez, de uma incursão fracassada que resultou na morte de quatro agentes do Departamento de Álcool, Tabaco e Armas de Fogo (ATF), além de ferimentos em 16 pessoas, agentes do Federal Bureau of Investigation (FBI) e do já citado ATF, apoiados por tanques da Guarda Nacional dos EUA, atacaram a ala principal do Rancho Apocalipse, ocupado por dezenas de fanáticos integrantes da seita Ramo Davidiano, liderada por David Koresh (batizado Vernon Howell).

Inicialmente os agentes federais injetaram gás lacrimogêneo nas brechas abertas nas paredes de madeira pela ação dos carros de combate, enquanto seguidores de David Koresh revidavam disparando submetralhadoras (ao término do tiroteio foram recolhidas 268 armas, incluindo rifles de precisão, carabinas e pistolas automáticas, bem como 8100 cartuchos), no esforço desesperado para rechaçar a invasão. De repente, às 12h5min, teve início um incêndio incontrolável — com ventos de 45 km/h — que se estendeu por muito tempo apesar dos esforços despendidos pelo Corpo de Bombeiros.

Ao fim da operação de rescaldo, os agentes federais encontraram 86 corpos carbonizados e nove sobreviventes entre os davidianos: cinco americanos, dois ingleses, um australiano e um hispano-americano. O então presidente Bill Clinton, que fora empossado 100 dias antes para exercer o seu primeiro mandato, sofreu pequeno desgaste perante a Opinião Pública (18% segundo pesquisas) por ter sido favorável ao ataque; todavia, as críticas recaíram bem mais sobre o FBI (33%), enquanto 23% das pessoas consultadas responsabilizaram a secretária de Justiça, Janet Reno.

O episódio em si não teria provocado tantas consequências (até porque a Segunda Emenda à Constituição assegura, a qualquer cidadão, a prerrogativa de comprar ou portar armas e apoia o direito de o Estado utilizar a força quando, dentro ou fora do território dos EUA, caso venha a sentir-se ameaçado ou desafiado), não fosse por um detalhe: a direção do FBI confirmou o que muita gente suspeitava: as suas equipes somente partiram para o ataque porque, do lado de fora do Rancho Apocalipse ,ligeiramente afastados, “dia a dia, minuto a minuto, câmeras, lentes, microfones e computadores esperavam e seus operadores cobravam o desfecho”.

As imagens do incêndio no Rancho Apocalipse, permeadas por gritos, disparos e explosões, transmitidas coast to coast ao vivo e a cores para 150 milhões de telespectadores por uma legião de repórteres, apresentadores, técnicos e cinegrafistas — acampados desde o início da operação em barracas, station wagons ou nos apartamentos dos 16 hotéis de Waco— motivaram intensa reverberação nos EUA, particularmente nas universidades e centros de pesquisa de Comunicação.

O episódio supra-assinalado serviu como confirmação da força das mídias quando querem provocar e/ou acelerar o desfecho de uma situação.

8. Batismo de sangue

Em muitos episódios registrados pela crônica diária, cujos resultados implicam em mortos e feridos (estejam estes comprometidos ou não com o aparato de Segurança e Informações do Estado), o que acontece de fato é uma espécie de rito sangrento e iniciático que transforma um indivíduo comum em um quadro confiável.

Assim aconteceu com Ilich Ramirez Sanchez, quando disparou com uma pistola Beretta — à queima-roupa — no rosto de Edward Sieff, vice-presidente da Federação Sionista da Grã-Bretanha, na semana seguinte ao Natal de 1973, ferindo-o gravemente e, poucos dias depois (janeiro de 1974), jogou uma granada contendo explosivo plástico no interior do banco israelense Hapoalim (em plena City), provocando muita destruição, embora sem vítimas. Ele deixou de ser classificado entre os integrantes dos quadros de apoio da Frente Popular para a Libertação da Palestina (comandada por Waddi Haddad), e obteve ampla respeitabilidade no submundo do terrorismo.

Registre-se, aliás, que esses episódios impulsionaram a trajetória do extremista venezuelanojunto aos serviços secretos continentais, que o rotularam como o terrorista mais perigoso em operação na Europa Ocidental. Essa reputação foi reforçada após o atentado no Le Drugstore, um complexo de lojas com entrada pelo Boulevard Saint Germain, no coração de Paris. Carlos arremessou uma granada de mão do tipo M26 sobre centenas de jovens, matando duas pessoas e ferindo mais de 30.

Entrevistado tempos depois pelo jornalista e escritor britânico David Yallop, um alter ego do terrorista venezuelano explicou as verdadeiras razões dessa notoriedade. [21]

As pessoas comuns têm muito poder, muita influência. E isso se manifesta naquilo a que chamam Opinião Pública. Essa gente pode não ligar para os palestinos. Elas certamente não ligam para os membros do Exército Vermelho. Mas atire uma granada no meio delas, aí vão ligar muito.

A captura de Ilich Ramirez Sanchez no Sudão (1994) — materializada de forma melancólica — ocupou por três dias o eixo do noticiário internacional. Examinado friamente, pouco, bem pouco, diante do papel que ele representou durante quase vinte anos de operações clandestinas no Oriente Médio e Europa Continental.
Alguns títulos dos principais diários e revistas do País sobre a prisão de Carlos

  • Globo: Carlos, o terrorista, enfim está preso (16 ago. 1994); O ocaso do Chacal e de um estilo do terror (21 ago. 1994);
  • Jornal do Brasil: Carlos é preso após ser caçado por vinte anos (16 ago. 1994);
  • Veja: O Chacal vai para a jaula (24 ago. 1994);
  • O Estado de S. Paulo: Chacal enfrenta a Justiça fazendo piadas (17 ago. 1994);
  • Espião convenceu Cartum a entregar terrorista (17 ago. 1994); A prisão de Carlos, o homem que sabe demais (18 ago. 1994);
  • Jornal da Tarde: Prisão marca fim da era do terror (17 ago.1994);
  • Durante as sessões de interrogatório a que foi submetido em local secreto nos arredores de Paris, o ex-Inimigo Público Numero 1 não demonstrou inquietação quanto à hipótese de represálias. Sua atenção estava, isto sim, voltada para o noticiário dos jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão a seu respeito. Ele sabia que os repórteres, editorialistas e escritores contribuíram para impulsionar a sua lenda, de tal maneira e com tamanha ênfase, que seria inconveniente desmenti-los. Convidado a expressar sua opinião, Frederick Forsyth ressaltou que o venezuelano não passava de um blefe como agente do terrorismo islâmico. [22]

(...) Assim, o que tem esse homenzinho venezuelano extremamente brutal e essencialmente malsucedido que tanto fascina o Ocidente? Acredito que existem três fatores, todos eles falhos. Em primeiro lugar ele sempre gozou de publicidade, e a publicidade é uma dama inconstante. Ela gosta de ser lisonjeada. Carlos a lisonjeava com uma arrogância e atitudes bombásticas cujas recompensas apareciam sob a forma de centimetragem nas colunas da Imprensa.
(...) Em segundo lugar, ele tinha fama - assiduamente alimentada - de ser mulherengo. Na condição de terrorista proeminente, ele, sem dúvida, tinha a seu fácil dispor a classe habitual das mulheres super excitadas e sexualmente disponíveis que rejeitavam a classe média de onde provinham.
(...) Em terceiro lugar — e nisso é preciso lhe dar crédito — ele era um camaleão humano, deslocando-se pela Europa inúmeras vezes sem ser identificado.

9. Um outsider perigoso

Todo indivíduo que, observa Howard Becker, [23] voluntária e individualmente, ou por associação, desrespeita as normas estabelecidas pelos grupos sociais, numa determinada época e região, é visto como marginal ou desviante. Eram assim os chamados wandervögel (pássaros errantes pacíficos) da Alemanha antes do nacional-socialismo, ao contrário, por exemplo, dos holligans britânicos ou de uma parcela dos rappers das ruas de Nova Iorque, quase sempre provocadores.

Esse desvio será maior ainda caso o transgressor provoque danos ao patrimônio do Estado ou de uma pessoa em particular. O terrorista é um outsider no mais elevado patamar.

Ao desafiar o sistema em vigor, passa a apresentar uma valoração superestimada sobre a causa que abraçou. Além do mais, como consequência dos treinamentos que o capacitaram a integrar a organização extralegal, incorpora no seu imaginário uma formidável crença na própria infalibilidade/letalidade (o que não é de todo irreal). Por fim, a partir do momento em que assume o ônus previsível da morte em combate, da execração pública e o risco da prisão por longas temporadas, reforça a resistência destinada a suportar a aspereza dos interrogatórios.

10. Poderes, poderes

Se, ainda que en passant, foi aberto um hiato na narrativa para ressaltar as características psicológicas desse “novo homem” a serviço do terror, porque não fazê-lo tomando como parâmetro sua associação com as tecnologias de destruição e, também,  de informação?

Por hipótese: admita-se que uma organização extremista invista o que amealhou no mercado formal/aberto de equipamentos eletrônicos e compre sistemas capazes de interferir na programação de uma emissora de rádio ou televisão; e mais: que consiga inserir no chamado horário nobre sob a forma de inserts ultrarrápidos (três, quatro segundos) do tipo:

Amanhã, às l7hs15min, explodiremos um dos alicerces da Ponte Rio-Niterói.
Vencer ou Morrer - Grupo Liberdade

Até que as contramedidas eficazes sejam ativadas, ao custo provável de milhares de dólares, o mal já estaria feito. Ainda que os extremistas consigam viabilizar uma única transmissão, o balanço final seria favorável; mesmo porque, somente com muita rapidez (e ainda assim numa pequena cidade), as forças de Segurança conseguiriam rastrear e localizar essa minúscula emissora, transportada no interior de uma station wagon, rapidamentedesmontável e, em seguida, suas peças principais novamente carregadas em mochilas do tipo escolar para esconderijos distantes uns dos outros.  

A prévia advertência sobre uma bomba dotada de dispositivo de tempo à semelhança de algumas op1erações do Grupo denominado Euzkadi Ta Askatana – ETA (Pátria Basca e Liberdade) colocada aqui ou acolá; as ações clandestinas e escalonadas; a contrapartida representada pela manutenção em Alerta Vermelho das equipes de guerra eletrônica, dos grupos especializados no desmonte de bombas e de retomada e resgate, implica num custo elevado para os cofres públicos. Sem falar dos transtornos derivados da retenção no tráfego, blitzen nas avenidas e estradas de acesso à metrópole, região etc.

Outros exemplos interessantes a serem pesquisados são os hackers, isto é, indivíduos que, pelo prazer de violar os códigos de segurança, acessam ilegalmente os mais complexos sistemas de computadores e são habilidosos o suficiente para interferir nas redes vitais para a segurança de um país.

Imaginem alguém capaz de invadir as defesas eletrônicas da National Aeronautics and Space Administration (Nasa) ou do Centro de Operações do North American Aerospace Defense Command (Norad), anulando senhas,  reprogramando ou congelando os códigos de comando. A indústria cinematográfica explorou razoavelmente bem essa em Goldeneye  (produção de 1994). O Agente 007 é convocado a desarticular o plano mirabolante no qual um expert em computação tenta e quase consegue apagar as informações bancárias do Reino Unido, transferindo online os depósitos para a conta do vilão.

Imaginação à parte, há alguns anos um desses hackers norte-americanos, filho de um militar de alta patente classificado no Departamento de Defesa (Pentágono), acessou arquivos contendo as planilhas do orçamento das Corporações Armadas (Exército, Marinha, Força Aérea e Corpo de Fuzileiros Navais), e promoveu tamanha confusão que, pela primeira vez, os chamados falcões do Pentágono se convenceram da vulnerabilidade daquela rede e providenciaram novos sistemas de proteção eletrônica.

A propósito, a sucessão de escândalos e denúncias derivadas do vazamento de aproximadamente quinhentos mil documentos (principalmente telegramas enviados pelos serviços diplomáticos não somente norte-americanos em todo o mundo) levados a termo pelo Wikileaks, provocou uma revolução nos meandros dos serviços de  Inteligência dos EUA.

Walter Laqueur [24] ressalta que, nos últimos tempos, cresceram as especulações sobre o terrorismo informático e a guerra cibernética.

Laqueur:

Um funcionário anônimo do Serviço Secreto americano vangloriou-se de que, com US$ l bilhão e vinte hackers competentes, ele poderia parar os Estados Unidos.

Os hackers, entretanto, não oferecem tanto perigo quanto os crackers (categoria mais agressiva entre os computer maniacs) que, além de invadir os softwares e descobrir os segredos contidos nos arquivos, tentam destruí-los por intermédio da inoculação de vírus (programas criados especificamente para este fim); ou, pior que tudo, deletando os dados ou tornando-os irrecuperáveis até para os mais experientes analistas e programadores.

Um cracker dotado de conhecimentos aprofundados sobre química poderia, por hipótese, acessar os computadores/sistemas de um laboratório farmacêutico e, mediante comandos ainda mais sofisticados, alterar nos arquivos as fórmulas de alguns medicamentos e, em seguida, reprogramar os equipamentos da linha de produção, minimizando ou maximizando a dosagem de um ou mais insumos.

Não é difícil visualizar um renovado Dr. Strangelove (personagem de um dos filmes de Stanley Kubrick produzido nos anos sessenta), de carne e osso, revirando/misturando, a milhares de quilômetros de distância, os arquivos da Inteligência Francesa, modificando relatórios de pesquisas ou alterando informações nas homepages das corporações financeiras.

Tampouco deve ser olvidada a ameaça representada pela inclusão online deum ou mais sites destinados a oferecer “conselhos úteis” àqueles que pretendem enveredar pelos caminhos do extremismo. É o caso, por exemplo, de um (deplorável, grifo do autor) Verdadeiro Livro Negro: Introdução aos explosivos, confecção de bombas caseiras e diversas dicas sobre o assunto.

Esse documento, que pode ser impresso em doze páginas firmadas pelo “autor” (possivelmente um engodo para distrair a atenção dos incautos), um engenheiro e professor, secundado pela sigla G.E.T (Grupo dos Estudantes Terroristas), enuncia quais os principais fabricantes de explosivos no País, define critérios para a escolha e manuseio do material destinado à produção de petardos caseiros, e ensina como preparar dispositivos de tempo. Tudo isso com o suporte de ilustrações e diagramas de fácil compreensão e apresentando risco ínfimo para os futuros candidatos a imitar extremistas como Abu Nidal e Yahya Ayyash.

11. Inspiração para best-sellers

O simples fato de todos aqueles homens terem a habilidade de conseguir reputação limpa depois de uma existência de crimes e traições bastava como condição para seu ingresso na S.P.E.C.T.R.E. (Sociedade Política Especializada em Contra-Espionagem, Terrorismo, Rapinagem e Extorsão). Ian Fleming - Chantagem Atômica

Entre as nações econômica e tecnologicamente mais desenvolvidas, o terrorismo com formatação ideológica, religiosa ou mesmo embasado em propósitos de chantagem financeira, não somente ocupa generoso espaço nos blocos de noticiário como invade e se instala no imaginário coletivo por intermédio de obras ficcionais elaboradas pelos mestres do gênero, tais como Ian Fleming, John Le Carré, Frederick Forsyth, Tom Clancy etc.

Nos anos cinquenta, sob o denso nevoeiro da Guerra Fria, alguns desses autores consolidaram reputação e conquistaram milhões de admiradores graças às tramas bem urdidas, apresentando quase sempre vilões multimilionários e discretamente sustentados, em seus vícios e idiossincrasias, pelos serviços secretos daqueles países do (hoje extinto) Bloco Socialista, bem como agentes coadjuvantes hiperinteligentes e glamorosos.

Tais personagens, idealizados como contrapartida ao proclamado “cientificismo mecanicista” da Alemanha Oriental, República Democrática da China e URSS (em relação a esta última, o simples fato de ter enviado a primeira nave tripulada ao espaço, além de dispor de um formidável aparato de propaganda, contribuiu para que se transformasse no alvo preferido dos escritores do gênero), proporcionaram um conjunto de aventuras que, mesmo consolidadas as mudanças derivadas da perestroika, além de superada a fase crítica da corrida armamentista, continuam atraentes para os (as) leitores (as).

Ian Fleming, ex-agente do Serviço Secreto Britânico (assistente do contra-almirante John Godfrey nomeado diretor da Divisão de Inteligência Naval, e envolvido diretamente, entre outras missões, no planejamento de uma operação de sabotagem contra postos defensivos alemães durante a Segunda Guerra Mundial), pode não ter sido o primeiro a explorar esse caminho, mas abriu portas para que outros ficcionistas, aproveitando-se da prévia experiência como repórteres de agências noticiosas internacionais ou freelances bem sucedidos, retroalimentassem as estratégias da Guerra-Fria e construíssem pontes imaginárias unindo os serviços de segurança ocidentais (muitas vezes empenhados em disputas nem sempre cordiais pela hegemonia operacional numa região), “alertando” a Opinião Pública sobre os perigos do totalitarismo que, acreditavam, ameaçava a Europa Ocidental.

Fleming tornou-se um expert na criação de histórias mirabolantes, para a satisfação dos leitores e glória eterna do Agente 007 (Sean Connery e Roger Moore que o digam!), o superespião com licença para matar, concessão imaginária que pressupõe um status incomum.

Em Thunderball, por exemplo, a trama gira em torno do roubo de duas bombas atômicas transportadas num bombardeio Williers Vindicator da Royal Air Force, mediante o assassinato da tripulação por um agente traidor infiltrado. Segue-se o impasse: ou as potências ocidentais aceitariam pagar 100 milhões de libras em barras de ouro em troca dos artefatos nucleares, ou milhares de vidas humanas escolhidas, aleatoriamente, seriam sacrificadas, sem falar dos prejuízos materiais incalculáveis. Com o auxílio da Agência Central de Inteligência dos EUA (CIA)— e o apoio de um moderníssimo submarino nuclear norte-americano — James Bond resolve a questão.

Outra aventura: Auric Goldfinger, milionário excêntrico que não se envergonha em roubar no jogo de cartas, é o financista do Smersh [25](abreviação russa para Smyert Shpionam, ou seja, Morte aos Espiões). Sua meta: com o auxílio de algumas das maiores quadrilhas de gangsters norte-americanos, assaltar Fort Knox (o superprotegido depósito das reservas de ouro dos EUA), transportar em um trem de carga a res furtiva para os porões um navio de guerra soviético “casualmente ancorado em visita de cortesia nas proximidades” e, de passagem, eliminar – por intermédio de gás venenoso – toda uma divisão do Exército e tropas da Guarda Nacional. Alguns reveses, um romance frustrado e... vitória para 007!

Sir Hugo Drax é o arquivilão em O Foguete da Morte. Atuando sob disfarce como se fora um empresário britânico ultranacionalista, é, na verdade, ex-oficial nazista (e agente duplo sob as ordens de Moscou). Com ajuda do próprio Governo de Sua Majestade, constrói um míssil poderoso que, tão somente pelo fato de saberem da sua existência, os países do Bloco Oriental se curvariam diante do Reino Unido. Só que o verdadeiro alvo do experimento é Londres. A destruição da capital do Império serviria como compensação parcial pela derrota militar do Terceiro Reich e, ao mesmo tempo, agradaria os falcões do Exército Vermelho. Chamado a investigar um estranho assassinato, 007 sofre algumas queimaduras e arranhões, mas resolve tudo e... adeus ameaça!

Morte no Japão revela um James Bond mais humilde. Acionado para colaborar com o Serviço Secreto japonês na tarefa de eliminar um falso botânico (identificado ao longo da história como Ernest Blofeld, a quem derrotara em Thunderball) que - iludindo a boa-fé das autoridades japonesas — construíra em seu castelo-fortaleza, no litoral, um jardim repleto de flores e frutos venenosos, répteis e insetos peçonhentos. O agente britânico cumpre a missão. Quanto ao criminoso, que somente aparece aos olhos dos visitantes disfarçados com uma armadura de samurai, vinha estimulando o desejo de milhares de suicidas em potencial. Para vencer o adversário temível, 007 passa por um árduo aprendizado sobre os usos e costumes do Japão, disfarça-se como pescador, casa-se com uma linda pescadora de pérolas, entra no santuário de Blofeld, duela com ele e... happy end!

É fácil depreender o pânico que o antigo e sempre renovado espectro do comunismo representava para os povos da Europa Ocidental, principalmente devido às demonstrações de força do aparato militar soviético durante o bloqueio e a construção do Muro de Berlim, na repressão ao levante húngaro (1956) e na Primavera de Praga (1967).

Mesmo a derrota política imposta pelo então Presidente norte-americano John Kennedy ao Primeiro-Ministro Nikita Khruschev e seu staff, por ocasião do episódio dos Mísseis de Cuba, não conseguiu afastar esse temor generalizado.

O acirramento da disputa pela hegemonia mundial entre as duas superpotências (a China ainda não manifestara abertamente as suas aspirações a um lugar no topo do ranking) trouxe consequências funestas no varejo da luta contra o terrorismo. Grupos como a Organização do Exército Secreto (OAS), Fração do Exército Vermelho (Baader-Meinhof), Exército Republicano Irlandês, Frente Popular para a Libertação da Palestina, Brigate Rosse, Pátria Basca e Liberdade, Exército de Libertação da Córsega etc., não somente invadiram o noticiário, como obrigaram os ficcionistas a um amplo repensar sobre as tramas e personagens.

Não havia mais centimetragem disponível nas páginas (sequer na lucrativa indústria cinematográfica) para heróis glamorosos, ricos, bem vestidos e assediados por mulheres com nomes exóticos: Vesper Lynd, Gala Brand, Tiffany Case... Os editores exigiam pragmatismo, ações realistas, locações urbanas conhecidas. A suave tintura romântica, até então visualizada, cedeu lugar a paixões, ainda que momentâneas e arrebatadoras; insinuações aqui e ali sobre a performance sexual dos heróis cederam vez a um novo estilo, privilegiando a descrição crua dos “embates” em lugares como garagens, escadas de edifícios residenciais e automóveis estacionados junto aos postos de vigília.

Houve ainda, durante breve período, algumas iniciativas no sentido de transportar dos livros para as telas do cinema heróis caricatos mobilizados contra psicopatas e organizações terroristas. Destacam-se os exemplos de Flint (James Coburn), Modesty Blaise (Monica Vitti), Napoleon Solo (Robert Vaughn) e Illya Kuriakin (David McCallum) – os dois últimos agentes da U.N.C.L.E. (“Tio” em inglês), poderosa agência de contraespionagem norte-americana empenhada na anulação de operações de sabotagem planejadas pelos comunistas. Tais produções registraram certo sucesso de bilheterias no Brasil, mas não passou disso.

A chacota literária e cinematográfica evoluiu de tal maneira que, como contrapartida ao bombardeio midiático ocidental preocupado em apresentar aos olhos do público os líderes soviéticos como trogloditas e as centrais de treinamento dos agentes secretos daquele país respectivamente como terroristas sem alma e antros de tortura e de aperfeiçoamento das artes negras, um escritor (não se sabe se a convite do Kremlin) idealizou a personagem de um “espião” quase tão charmoso como 007, culto, elegante e capaz de desarticular “operações de sabotagem” elaboradas contra o seu país pelo MI-6 (britânico). Não teve, porém, o mesmo êxito editorial.

Durante esse período, uma disputa feroz pela supremacia comercial perturbava os proprietários dos principais diários europeus. De um lado, jornais conservadores como Le Monde, The Times, Hamburg Zeitung; do outro, a chamada imprensa engajada: L’Unitá, L’Humanité... Essa atmosfera ácida não somente estimulou uma espécie de subcultura preparatória à confrontação militar que se presumia inevitável, como contribuiu para envolver os leitores, indiretamente que seja, com as diretrizes fixadas pelos governos.

Vale registrar que, na Europa, exerciam influência alguns estadistas notáveis: Charles de Gaulle (França), Francisco Franco (Espanha), Antonio Salazar (Portugal), Willy Brandt (República Federal da Alemanha).

Foi esse o gancho que estartou a fase moderna da literatura de espionagem.

 

 

 







Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro | ISSN 1806-2776 | Edição 14 | Novembro | 2011
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