Novembro de 2011
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ISSN 1806-2776
 
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ENSAIOS

Nas fronteiras do olhar

Por Aglair Bernardo e Gustavo Bonfiglioli*

RESUMO

O texto é uma reflexão sobre as relações entre os campos antropológico e jornalístico, principalmente o jornalismo de viagem, partindo da perspectiva de que ambos os universos seguem trajetórias muito similares.

Ao dar ênfase à construção de um determinado olhar sobre o outro, explora-se, sobretudo a ideia de que ambos os domínios podem ser percebidos como tradutores culturais e suas traduções como produções discursivas parcialmente ficcionais.

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PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo de Viagem / Antropologia / Turismo Pós-Moderno

1. Introdução

Nas fronteiras do olhar é uma reflexão sobre as relações entre os campos antropológico e jornalístico partindo-se da perspectiva de que tais universos seguem trajetórias muito parecidas. Explora-se, sobretudo, a construção de um determinado olhar sobre o outro, entendendo ambos os domínios como tradutores culturais e suas traduções como produções discursivas parcialmente ficcionais.

Ainda que se observe que as atuações do antropólogo e do jornalista orientam-se a partir de distintas inserções no social, identifica-se neste artigo um conjunto de questões que lhes são comuns, principalmente no que diz respeito aos modos de olhar o outro e de experimentar a alteridade. Toma-se como base para análise o jornalismo de viagem ao se considerar que é herdeiro direto dos relatos de expedições produzidos pelos viajantes durante os séculos XV e XVI, tal qual a etnografia, objeto da Antropologia. 

Buscando tornar claros os diálogos formulados entre os dois campos, tomam-se como referência as reflexões de Michel Foucault sobre a construção de um determinado conceito de homem inaugurado pelas ciências humanas no decurso do século XVIII.

2. A ruptura do olhar

Michel Foucault, ao tratar do escopo científico atribuído no decurso do século XVIII ao projeto que toma o homem como objeto - antes domínio da filosofia - denominado “ciências humanas”, afirma que, antes desse período, o homem não existia. Segundo ele, a nova ordem de acontecimentos que ocorria na cultura ocidental não foi apenas decisiva na constituição do homem, mas igualmente, em como pensá-lo e sobre o que se deve saber a seu respeito

Entendido como um acontecimento na ordem do saber, Foucault torna claro em As palavras e as coisas que o contexto histórico desencadeado pelas revoluções burguesas e pela sociedade industrial proporcionou o aparecimento de reflexões do tipo sociológico, fragmentando-se em campos de saberes específicos. Refere-se, nesse contexto, ao momento em que o homem transfere o olhar sobre sua própria humanidade para si e à ruptura dos critérios filosóficos e religiosos sobre a existência humana, constituindo, segundo Laplantine, “um evento considerável na história da humanidade” (LAPLANTINE, p. 57).

Convém observar, como o faz Foucault, que esse novo corpo de conhecimento, caracterizado como uma construção discursiva, se inscreve em uma espécie de “região híbrida”, dadas as suas características intersticiais, “perigosas e em perigo”, como ele próprio coloca, em função da precariedade de situá-lo no campo epistemológico mais amplo.

Ao reivindicar “traduzir” a empiricidade humana a partir de uma perspectiva objetiva, as ciências humanas, segundo Foucault, se diluem em um triedro epistemológico, e “flutuam” por ele – sem propriamente estarem por completo incluídas ou excluídas de cada uma de suas três dimensões. As duas primeiras são as ciências físicas e matemáticas e as ciências da vida. Ambas, segundo ele, remetem ao plano matematizável e objetivo que as humanidades vão reivindicar, enquanto que a terceira dimensão é a da reflexão filosófica.

É importante destacar que a instabilidade epistemológica gerada pelas ciências humanas produzirá um deslocamento decisivo na ordem do saber, do qual somos herdeiros até os dias atuais, onde o homem deixou de ser o centro da criação e o núcleo do espaço.

Mas, se as questões que Foucault aborda tornam-se relevantes para se problematizar o papel desempenhado pelas ciências humanas na construção de um determinado conceito de homem, acreditamos que as questões por ele tratadas tornam-se igualmente relevantes para discutirmos outro conjunto de problemáticas que se sobressaem quando pensamos as relações estabelecidas entre as ciências humanas e o jornalismo, mais especificamente, entre Antropologia e jornalismo.

É também de um lugar híbrido e intersticial a que nos referimos quando abordamos essas relações, cujas fronteiras tornam-se enfraquecidas ao se observar as múltiplas convergências e conexões entre esses universos, principalmente quando nosso foco volta-se para o jornalismo de viagem em comparação com os percursos trilhados pela Antropologia.

3. A percepção do outro

Para o homem do Velho Mundo, a percepção do universo e de sua própria humanidade não ultrapassava muito os seus limites geográficos. Foram as navegações colonialistas dos séculos XV e XVI que marcaram a primeira grande ruptura no olhar do homem ocidental sobre si mesmo, momento em que surge o “outro” e quando se interroga sobre a diversidade da experiência humana.

Durante o intervalo de dois séculos, desde as grandes navegações até as revoluções políticas e industriais do final do século XVIII, eram os relatos da observação de expedicionários, missionários e jesuítas, em suas viagens pelas colônias, que sustentavam o que se constituía como o olhar pré-etnográfico:

Os viajantes dos séculos XVI e XVII coletavam “curiosidades” (...). No século XVIII, a questão é: como coletar? E como dominar em seguida o que foi coletado? Com a História Geral das Viagens, do padre Prévost (1746), passa-se da coleta dos materiais para a coleção das coletas. Não basta mais observar, é preciso processar a observação. Não basta mais interpretar, é preciso interpretar interpretações (...). Em 1789, Chavane, o primeiro, dará a essa atividade um nome. Ele a chamará: a etnologia (LAPLANTINE, idem, p. 58).

Laplantine refere-se ao período em que começam a se esboçar as primeiras diretrizes do trabalho antropológico. É quando surge o pesquisador “erudito”, figura chave da ciência no século XIX, período de uma intensa institucionalização acadêmica nas ciências humanas, em que começam a surgir as primeiras sociedades científicas e cadeiras universitárias de etnologia.

É neste período áureo das ciências que surgem o evolucionismo e o positivismo como “justificações teóricas de uma prática: o colonialismo” (LAPLANTINE, idem, p. 69), isto é, a construção de uma “cartilha teórica” para explicar, amparada pela retórica científica, como e porque os “selvagens” assim o são e sob que pressupostos a exploração das terras que habitam e de sua mão-de-obra se faz justificável. Ou, conforme argumenta Leite:

Naquele instante, já estavam sendo fixados alguns critérios para interpretar a sociedade. Um deles era o tecnológico, que forneceu o principal suporte para a Teoria Evolucionista. Os viajantes recorriam aos parâmetros próprios da cultura europeia para interpretar a sociedade visitada: baseavam-se em critérios de superioridade e inferioridade (LEITE, p. 94).

A literatura pré-etnográfica de viagens deu lugar a procedimentos específicos, com metodologias fundamentadas não apenas na descrição reflexiva do que se vê em relação ao outro, mas produzindo um novo modo de acesso àqueles “organismos sociais”. Leite observa como a transição dos relatos pré-etnográficos para a práxis etnográfica propriamente dita se dá justamente quando passa a ser problematizado o lugar do observador:

É interessante observar que, no século XIX, a perspectiva do lugar do observador irá constituir o problema central da Antropologia, sobretudo a partir da obra de Malinowski. No contexto das viagens do século XIX, o relato constituiu-se como uma pré-etnografia, um exercício de observação que não inclui a discussão do lugar do olhar, justamente por não expressar ainda esta preocupação, que só irá se revelar com a crise do sistema colonial e as guerras mundiais, produzindo uma mudança substancial nas representações de si e do outro (LEITE, idem, p. 98).

É apenas no início do século XX que esse trabalho passa a ser propriamente etnográfico. O pesquisador deste novo século, principalmente através da influência dos pais fundadores da etnografia, Franz Boas e Bronislaw Malinowski, percebe que as suas traduções do olhar alheio já não se fazem suficientes e ele próprio se desloca física e culturalmente em direção ao “objeto”. O pesquisador passa, nesse novo período, a fundir seus estudos de gabinete com a experiência in loco, e essa fusão vai influenciar de modo significativo toda e qualquer literatura que envolve o trabalho de campo, a alteridade e as formas de descrever o outro.

Além da emergência das ciências humanas, o contexto histórico do século XVIII também inaugurou novas demandas pela informação. Anteriormente, aquela mesma literatura dos relatos dos viajantes, que refletem a pré-história da etnografia, também cumpria a função hoje denominada jornalística, ou seja, a de informar e contextualizar ao público mais amplo os acontecimentos factuais oriundos das explorações.

Isto quer dizer que o jornalismo também possui na sua “pré-história” estes mesmos relatos para experimentar a alteridade, cumprindo a função de tornar públicas as realidades culturais oriundas de outros contextos sociais. Segundo Leite, no momento da produção das obras dos viajantes, não havia a diferenciação teórico-metodológica entre a descrição etnográfica e a reportagem, revelando assim a nascente comum entre as duas áreas.

Se os relatos de viagem, antes e durante o período colonial, de certa forma fundiam as questões acerca do que o homem é, conceitualmente, e o que o homem faz, factualmente, o novo projeto de positivar o homem como objeto atribui a primeira questão à Antropologia, instituída definitivamente como campo disciplinar dentro das ciências humanas no século XX. A segunda questão, portanto, passa a ser tratada pela imprensa e pelas demais literaturas de “não-ficção”.

Convém observar, no entanto, que o olhar que será produzido sobre o outro no jornalismo compreenderá, igualmente, os mesmos critérios atribuídos ao escopo científico como a objetividade e o relato imparcial, ainda que com ênfase na factualidade. Isto quer dizer que os critérios e as questões de ordem epistemológica formuladas no âmbito das ciências humanas deslizaram com igual força para o universo jornalístico. O que pode se identificar é que ambos os domínios, o da Antropologia e o do jornalismo, são igualmente produtores de verdades sobre o outro, organizando-se a partir de critérios muito similares, tendo a imparcialidade e o a objetividade como dispositivos de sua garantia, autoridade e legitimidade, cabendo, no entanto, à Antropologia a compreensão das diferenças étnico-identitárias entre os homens sob o regime da verdade científica.

Após o início do século XX, nos EUA, as aproximações entre as Ciências Humanas e o jornalismo voltam a se intensificar, quando ficam claras as tentativas de construção de modelos derivados das ciências humanas, principalmente aqueles de tradição teórica funcionalista. Através principalmente de Robert Ezra Park, um dos principais nomes da Escola de Chicago, a reportagem jornalística começa a ser concebida, inicialmente, como uma espécie de forma inferior de pesquisa sociológica. Sob a lógica da cidade como “laboratório social”, Park faz alguns questionamentos sobre a função dos jornais e da informação. Conforme explica Mattelart:

Entre 1915 e 1935, as contribuições mais importantes de seus pesquisadores [da Escola de Chicago] são consagradas à questão da imigração e da integração dos imigrantes na sociedade americana. É a partir dessas comunidades étnicas que Park se interroga sobre a função assimiladora dos jornais e, em particular, das inúmeras publicações em língua estrangeira sobre a natureza da informação, o profissionalismo do jornalismo e a diferença entre ele e a “propaganda social” (MATTELART,  p. 31).

Aqui se percebe como a alteridade, já consolidada como fenômeno urbano, funda as bases do jornalismo como prática social, importando metodologias da etnografia. A função social da reportagem e da mídia passa a ser atribuída aos processos de construção de identidade do homem no ambiente urbano, onde os processos de alteridade são cada vez mais constantes, dinâmicos e em conflito. De acordo com Mattelart:

A opção etnográfica é, por sua vez, comandada por uma concepção do processo de individualização, da construção do self. O indivíduo é capaz de uma experiência singular, única, que traduz sua história de vida, sendo ao mesmo tempo submetido às forças de nivelamento e homogeneização do comportamento. Essa ambivalência da personalidade urbana volta a aparecer na concepção de mídia da Escola de Chicago (MATTELART, idem, p. 36).

O que se observa, porém, é que o foco sobre o urbano, característica da prática jornalística, se distancia da representação do “pesquisador-viajante” que se faz do antropólogo. Para Travancas:

O jornalista é antes de tudo um habitante da cidade. O mundo urbano tem características e particularidades que se expressam no jornalismo. Quando Simmel (1979) cita o anonimato, as relações transitórias, a superficialidade como aspectos dos indivíduos urbanos, não se pode deixar de associar estas características ao jornalista. Assim como a metrópole determina um novo modo de vida, a intensidade com que o tempo é vivido também é diferente na cidade grande e na zona rural. E se o antropólogo vai se defrontar constantemente com a questão da diferença, o jornalista experimentará no seu cotidiano a cidade como espaço da diversidade, do cruzamento de mundos e “tribos” diferentes, desvendando territórios heterogêneos e construindo assim um mapa, para muitos habitantes, desconhecido (TRAVANCAS, p. 27).

Enquanto a Antropologia ainda estava direcionada ao estudo de sociedades distantese ao ideal das formas puras de cultura e identidade, o caráter urbano do jornalismo consegue apreender o hibridismo cultural, o cotidiano e as diversas formas de alteridade da própria sociedade a que pertence, construindo uma apreensão heterogênea do imaginário social. Nesse ambiente, saturado da experiência urbana essencialmente fragmentada, o jornalismo de viagem surge como resposta a uma demanda crescente pelo turismo e pelo descobrimento do outro distante, idealizado em sua "forma pura", o que reinstaura a perplexidade no encontro com o diferente. Conforme destaca Jalé:

Dirigidas aos diferentes grupos de viajantes – sejam turistas convencionais, aventureiros ou “viajantes de poltrona” – aficionados por geografia, antropologia, natureza ou turismo, há no mercado um grupo de revistas especializadas (...) que se alimentam, por um lado, dos relatos e pela literatura de viagem e, por outro, dos textos de divulgação científica (JALÉ, p. 35).

Observamos que essa vertente do jornalismo se reaproxima da antropologia não só em método, mas também no olhar decorrente do deslocamento e na possibilidade de apreensão e de tradução de outras culturas, enfrentando questões similares como o lugar do olhar e a imersão cultural. Também se relaciona com o método etnográfico quanto ao próprio modo de narrar o outro, como a descrição minuciosa e fotográfica e o apelo realista dos textos, característicos da literatura da modernidade. 

4. A crise do trabalho de campo

É certo que os percursos e os debates travados ao interior da Antropologia foram e ainda são variados e decisivos. Sem pretender detalhá-los, elegemos uma, entre tantas outras questões, por considerá-la fundamental em nossas problematizações, conferindo especial destaque às contribuições de Clifford Geertz. Com Geertz presencia-se a construção de um novo paradigma da Antropologia no século XX, com a inauguração da antropologia hermenêutica ou interpretativa, que não procura mais saber, no estudo da cultura de outros povos, quem eles são, mas sim quem eles pensam que são, assim como o que pensam que estão fazendo e sob que finalidades (GEERTZ, p. 26).

O autor afirma que é preciso sim, através do trabalho de campo, adquirir uma “familiaridade operacional” com os conjuntos de códigos simbólicos da cultura em questão, mas que isso não pressupõe sentir como os outros e pensar como eles, porque isso seria “simplesmente impossível”. Nesta perspectiva, um trabalho etnológico não tratará mais do que se vê, mas da relação do que se vê com os referenciais culturais de quem olha. Ou, como explica Leite:

Nem objetividade científica, nem propriamente ficção, porém o texto situando-se entre uma e outra. A riqueza está justamente aí, no trânsito que transforma observação escrita e leitura em viagem. Ou vice-versa (LEITE, op. cit., p. 101).

Com esse reconhecimento, a subjetividade do etnógrafo, e aqui a comparação com a prática jornalística é inevitável, passa a não apenas ser reconhecida nos trabalhos de campo, mas também valorizada como elemento constituinte da construção da realidade do outro. Geertz igualmente vai problematizar a relação direta e irônica entre antropólogo e informante, reflexão que possui uma semelhança significativa com o processo de captação de dados no jornalismo.

Irônica porque, segundo ele, acaba se baseando justamente em uma velada relação ficcional de auto-compreensão para garantir o sucesso de uma experiência de campo. É essa ficção – ficção, não falsidade – que está no coração da pesquisa antropológica de campo bem-sucedida; e é por nunca ser completamente convincente para nenhum dos participantes que ela torna continuamente irônica essa pesquisa, considerada como forma de conduta (GEERTZ, Op. Cit., p. 43).

Diferente dos pressupostos anteriores do trabalho de campo, que procuravam de fato a imersão na comunidade referencial e moral da cultura estudada, a antropologia interpretativa de Geertz atribui a autenticidade da pesquisa de campo ao reconhecimento dessa tensão moral, para “ainda assim ser capaz de dissipá-la através das próprias ações e atitudes (...). Descobrir isso é descobrir também algo muito complicado e não inteiramente claro sobre a natureza da sinceridade e da insinceridade, da autenticidade e da hipocrisia, da honestidade e da autoilusão” (GEERTZ, idem, p. 43).

Com a redefinição do papel da subjetividade e as questões a serem abordadas em campo, o que se passa a se observar na Antropologia é uma crise auto-reflexiva, um questionamento epistemológico-conceitual interno acerca de sua própria legitimidade científica. Não há, nesse caso, como desconhecer que tais questões colocam-se, igualmente, como decisivas na discussão do universo jornalístico. 

5. A diferença como escape

De acordo com Harvey, vivemos em um processo de compressão do tempo-espaço, que cria um “sentido avassalador para a sua compreensão”, baseado em fortes movimentos estéticos:

A experiência do tempo e do espaço se transformou, a confiança na associação entre juízos científicos e morais ruiu, a estética triunfou sobre a ética como foco primário de preocupação intelectual e social, as imagens dominaram as narrativas, a efemeridade e a fragmentação assumiram precedência sobre verdades eternas e sobre a política unificada e as explicações deixaram o âmbito dos fundamentos materiais e político-econômicos e passaram para a consideração de práticas políticas e culturais autônomas (HARVEY, p. 293).

É possível identificar nesse novo contexto a configuração de um novo olhar para a alteridade. O olhar sobre a diferença, esta de certa forma “naturalizada” pela experiência urbano-social, só volta a ser colocado em perspectiva quando há a demanda emdescrevê-lo e narrá-lo. Para Krysinski essa necessidade da escritura, de certa forma justifica a viagem como restauradora da perplexidade pela diferença:

Se, pois, a viagem é um operador cognitivo, ela o é enquanto dialética simbólica das trocas semânticas entre a topologia variável dos deslocamentos e a multiplicação dos signos que o viajante-narrador produz para superar as alteridades com que ele se defronta. A viagem opera recursivamente de algum modo como operador de cognição, e isso na medida em que o narrador, que se encontra constantemente numa posição exotópica, isto é, exterior em relação ao objeto de seu olhar, deve manifestar sua curiosidade e seu desejo de empatia e, ao mesmo tempo, desenrolar seu ato representativo, mimético, para situar o sentido (KRYSINSKI, p. 183).

É nesse contexto que surgem a viagem e o turismo como são concebidos contemporaneamente, assim como seus relatos. Urry relaciona o turismo contemporâneo com a necessidade do sujeito pós-moderno de encontrar a diferença como escape:

O olhar é construído através de signos, e o turismo abrange uma coleção de signos. Quando os turistas vêem duas pessoas se beijando em Paris, o que seu olhar capta é uma “Paris intemporal em seu romantismo”. Quando se vê uma pequena aldeia na Inglaterra, o que o olhar contempla é a “velha e boa Inglaterra”. Conforme Culler, “o turista se interessa por tudo como um sinal da coisa em si... No mundo inteiro, esses exércitos não declarados de semióticos, isto é, os turistas, se inflamam, à procura dos sinais das demonstrações de francesismo, do comportamento italiano típico, de cenas orientais exemplares, de autopistas americanas típicas, de pubs tradicionais ingleses  (URRY, p. 18).

É possível deduzir que essa busca pelo típico e pelo tradicional se aproxima da abordagem rousseaneana de Levi-Strauss sobre a cultura, e não seria equivocado afirmar que o imaginário que se tem de cultura ainda possui um forte apelo dos fatores tradicionais de identidades nacionais, regionais ou típicas. Mas se o consumidor do turismo, em grande parte, ainda é influenciado por este olhar, isso acontece porque os meios de comunicação – incluindo aqui o jornalismo, especificamente o de viagens – contribuem para construir e reforçar no imaginário do consumidor os estereótipos e referenciais culturais dos destinos turísticos. 

A partir das reflexões de Geertz, é possível concluir que, assim como na etnografia e no jornalismo, a experiência turística também é baseada em ficções parciais. Aqui, destacamos a figura do pós-turista – o viajante que prefere a interpretação do turismo como uma construção de realidade. Segundo Urry:

Concluiu-se recentemente que alguns visitantes – aqueles a quem Feifer denomina “pós-turistas” – quase se deliciam com a inautenticidade da experiência turística normal. Os pós-turistas encontram prazer na multiplicidade dos jogos turísticos. Sabem que a experiência turística não existe, que ela não passa de uma série de jogos ou textos que podem ser exercitados ou interpretados (URRY, p. 28).

O pós-turista seria, assim, um sujeito-viajante que se desloca meramente pelo "lazer da diferença", e compreende que está diante de ficções parciais; de uma realidade que ele também constrói no ato de descrever a viagem (qualquer que seja o formato discursivo dessa descrição) e seus processos de alteridade.

O pós-turista sabe que ele não é um viajante no tempo, quando vai a algum lugar histórico (...); que não é um observador invisível, quando visita habitações nativas. Resolutamente realista, ele não pode escapar à sua condição de intruso (FEIFER, 1985, p. 271 In URRY, idem, p. 139).

O que se identifica, na realidade, seja nos relatos de viagens diversos, na Antropologia e no jornalismo de viagem, é a produção de narrativas híbridas, onde distintos universos  dialogam entre si. Jalé chama atenção para esse debate ao interior da própria Antropologia sobre o aspecto formal do texto etnográfico:

Um exemplo representativo é o interessante debate que existe entre os antropólogos a respeito da forma de relatar seus textos. A linguagem e os recursos literários dos antropólogos, a visão pessoal nas narrações de etnografias, as descrições; são temas que já foram abordados por diferentes autores da área (JALÈ, Op. Cit, p. 34).

Observa-se, nesse aspecto, hibridações e empréstimos formais, metodológicos e teóricos não apenas nos modos de acessar o outro como também nas formas de narrá-lo.

6. Considerações finais

É dos vários tipos de encontro entre jornalismo e Antropologia que trata esse artigo. Como foi possível identificar, seus percursos estão imbricados e dialogam intensamente com o contexto histórico dos quais fazem parte. Os dois campos compartilham ideários mais amplos no que diz respeito aos desdobramentos do conceito de homem ao longo da história da cultura ocidental moderna e, igualmente, compartilham questões contemporâneas muito similares, algumas delas assinaladas no decorrer do trabalho.

Esse texto, mais do que apresentar conclusões definitivas sobre a relação entre esses diferentes e semelhantes domínios, aposta que se está diante de um objeto extremamente fértil e rico em termos de possibilidades de pesquisa. Acreditamos que pensar o jornalismo contemporâneo sob o viés do jornalismo de viagem nos coloca diante de questões mais gerais, que podem contribuir de modo significativo para a reflexão da narrativa, do sujeito e do olhar contemporâneos.

Isto porque o jornalismo de viagem pode ser entendido como um fenômeno midiático importante nos dias atuais, dado seu alcance e presença cada vez mais intensa em várias mídias. Seja na condição de reportagem, encarte, editoria especializada, programa televisual, livro, blog, projeto hipermídia etc., o jornalismo de viagem narra, de algum modo, os encontros com culturas distintas, sinaliza a movimentação do sujeito contemporâneo, ao mesmo tempo em que confecciona as novas cartografias de descobertas, experiências e aventuras dos dias atuais.

Através dele, é possível identificar os novos mapas de desejos que se desenham a cada matéria, onde o leitor imaginariamente descobre mundos e culturas distintas em uma tentativa de se colocar fantasiosamente naqueles lugares.

Por outro lado, a perspectiva teórica de Foucault, assim como as reflexões de Geertz, contribuem decisivamente para relativizar e desnaturalizar o olhar, considerando que tais narrativas nada mais são do que construções discursivas e ficções parciais.

Apostaríamos em afirmar que o jornalismo de viagem localiza-se em um entre-lugar entre o jornalismo e a Antropologia, com potencial para novas explorações teóricas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FOUCAULT, M. (2000). As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes.

GEERTZ, C. (2001). Nova luz sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Zahar.

__________ (1978). A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar.

HARVEY, D.(2009). Condição Pós-Moderna - 18ª Ed. São Paulo: Loyola.

JALÉ, M.B. (2002).Periodismo de viaje. Comunicación Social Ediciones y Publicaciones.

KRYSINSKI, W. (2007). Dialéticas da Transgressão: o novo e o moderno na literatura do século XX. São Paulo: Perspectiva.

LAGO, C. (2003). Reflexões sobre Antropologia e comunicação: o ethos romântico do jornalismo enquanto um estudo de caso. In: Antropologia e comunicação. Isabel Travancas, Patrícia Farias (Orgs.). Rio de Janeiro: Garamond.

LAPLANTINE, F. (1994). Aprender Antropologia – 7ª Ed. São Paulo: Brasiliense. 

LEITE, I. B. (1996). Antropologia da Viagem. Belo Horizonte: Editora UFMG.

MATTELART, A. & MATTELART, M. (1999). História das Teorias da Comunicação. São Paulo: Loyola.

STROZENBERG, I. (2003).Antropologia e Comunicação: que conversa é essa?In: Antropologia e comunicação. Isabel Travancas, Patrícia Farias (orgs.). Rio de Janeiro: Garamond.

TRAVANCAS, I. (2003). O livro no jornal. In: Antropologia e comunicação. Isabel Travancas, Patrícia Farias (orgs.). Rio de Janeiro: Garamond.

___________. Jornalistas e antropólogos: semelhanças e distinções da prática profissional. In: Revista Vozes & Diálogo – ano 6, nº 6. Itajaí: Univali, 2002-2003.

___________. (1993). O Mundo dos Jornalistas. São Paulo: Summus.

URRY, J. (1996). O olhar do turista: lazer e viagens nas sociedades contemporâneas. São Paulo: Studio Nobel: SESC.

*Aglair Bernardo é doutora em Literatura e professora dos cursos de Cinema e de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Gustavo Bonfiglioli é graduado em Jornalismo pela UFSC.

 

 







Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro | ISSN 1806-2776 | Edição 14 | Novembro | 2011
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