Novembro de 2011
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ISSN 1806-2776
 
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DOSSIÊ: TELEJORNALISMO

Do jornalismo participativo ao telejornalismo apócrifo
Novos aspectos da narrativa jornalística

Por Ana Paula Goulart de Andrade e Sandro Tôrres de Azevedo*

RESUMO

Buscando suporte em análises sobre agenda-setting, valores-notícias, elementos da noticiabilidade e jornalismo participativo, o presente artigo se propõe a discutir de que forma o uso de imagens capturadas por câmeras de vigilância e de vídeos produzidos por indivíduos alheios à instituição jornalística implicam na narrativa telejornalística e possibilitam outra significação na dinâmica discursiva televisiva em relação aos acontecimentos, criando o que se propõe por “jornalismo apócrifo”.

Reprodução

PALAVRAS-CHAVE: Narrativa / Vigilância / Vídeos Amadores

1. Introdução

Nos últimos anos, tem se tornado comum o uso de imagens capturadas por câmeras de vigilância e de vídeos produzidos por indivíduos alheios à instituição jornalística na construção de narrativas telejornalísticas. Assim, diante da intensa ocorrência de tal artifício na composição dos diversos telejornais locais, nacionais e internacionais, torna-se preeminente que as instâncias acadêmicas conexas ao campo do Jornalismo busquem refletir sobre esse fenômeno.

Por esse caminho, determinadas formas midiáticas que caracterizam a comunicação na contemporaneidade – em particular o que tem se chamado de jornalismo participativo – são colocadas em cena nesse trabalho para se analisar aspectos próprios do telejornalismo, que se constitui, por fim, como o campo de debate com o qual esse trabalho se identifica.

Questões sobre agenda-setting, valores-notícias e elementos da noticiabilidade comparecem na pesquisa para suscitarem posicionamentos mais seguros para a discussão da construção de narrativas que se valem de imagens produzidas fora da instituição jornalística.

No decorrer do artigo, são propostos conceitos como o de “jornalismo apócrifo” e de “dupla performance”, numa tentativa ensaística de jogar mais luz sobre os fenômenos que caracterizam o tema proposto e, enfim, endereçar uma crítica ao processo jornalístico que envolve o uso de imagens “leigas” (aquelas que não são geradas por equipes de reportagem).

2. Telejornalismo, agenda-setting e critérios de noticiabilidade

Segundo Beatriz Becker (2005, pp. 57-58), a informação jornalística na TV é demarcada pelas estratégias comunicativas pontuadas pela agenda-setting, que surte um efeito sobre os telespectadores a partir da escolha de exibição dos produtos jornalísticos nos noticiários. A autora recorre ao pensamento de Nelson Traquina para destacar os modos de identificação dos valores-notícias para a constituição de uma hierarquia editorial dos acontecimentos do cotidiano.

Dentro dessa lógica seria interessante destacar a análise de Vilches feita por Becker. Segundo ela:

A importância e a prioridade das notícias na TV, associadas ao conceito de visibilidade, constituem um critério de análise importante, o da tematização - uma forma de seleção que foca a atenção e o interesse público sobre alguns temas e valores em detrimento de outros (idem, p. 55).

Ainda, para Becker, é fundamental analisar se a lógica da produção está diretamente relacionada ao padrão do mercado e às rotinas produtivas. “A definição de notícia ainda é problemática, porque também envolve o ethos jornalístico e a cultura profissional” (idem, p.58). Recorrendo às assertivas de Alfredo Vizeu, Becker parte do pressuposto de que a notícia enquadra de forma equânime o registro da realidade social e o produto que dela decorre (idem, ibidem).

Fabiana Cardoso (2009, p. 11) também se apropria das análises de Vizeu para organizar uma estrutura a ser seguida pelo jornalismo tradicional, na qual a separação dos fatos deve ser feita conforme critérios de noticiabilidade e valores-notícia que se enquadram em pelo menos cinco categorias. São elas:

1) a categoria substantiva que aborda aspectos de relevância social envolvidas em um fato impactante que possibilite desdobramentos;

2) relativo à qualidade técnica do material a ser exibido;

3) a forma como a informação é exibida;

4) relação do jornalista com o público; e

5) a concorrência e a busca para noticiar um determinado fato.

Esses critérios são operados por equipes que integram redações de emissoras de TV, onde comumente se realizam os trabalhos de apuração, produção, edição, reportagem e apresentação, além de outros setores técnicos e administrativos, envolvendo uma série de profissionais habilitados, submetidos a lógicas hierárquicas estabelecidas, para que um telejornal seja transmitido.

Para o conteúdo das matérias jornalísticas, seguindo a lógica desse fazer, tornou-se tradicional e corriqueiro preencher alguns quesitos que ajudavam a sintetizar o texto, obedecendo a características próprias do meio televisivo, em especial a objetividade: o quê? quem? como? onde? quando? por quê? Assim, a mensagem televisual coloca a disposição do telespectador um menu completo do fato a ser exibido. Ele, por sua vez, elenca alguns desses itens para medir o nível de interesse, mesmo que a imagem tenha um valor maior do que qualquer uma das indagações.

Ocorre que, de poucos anos para cá, um novo elemento tem comparecido assiduamente nesse jogo discursivo: as imagens oriundas de câmeras de vigilância e as de autoria anônima têm rivalizado com as imagens profissionalmente produzidas pelas emissoras de televisão na composição dos noticiários de todas as ordens, seja nas produções locais, nacionais ou internacionais, e em todos os turnos.

Assim, torna-se importante investigar as formas de tratamento e o modo narrativo que são próprios das informações jornalísticas televisivas promovidas a partir das imagens de câmeras de vigilância e de captações amadoras, dado que facultam, inexoravelmente, uma nova percepção na linguagem televisual.

3. Do jornalismo participativo ao telejornalismo apócrifo

A popularização de diversos tipos de dispositivos de captura de imagem, como é o caso das câmeras de vigilância, filmadoras amadoras, câmeras fotográficas e celulares dotados de recursos audiovisuais, webcams etc. têm ocasionado uma infinidade de conteúdos que originariamente não estariam comprometidos com a noticiabilidade, mas que têm sido utilizados em demasia no resultado das edições de produtos telejornalísticos.

Assim, o olhar do indivíduo comum tem coabitado a cena jornalística, concretizando o que se tem chamado de “jornalismo participativo”, no qual se evidencia um espaço de representação que outrora era exclusivamente circunscrito às redações dos veículos.

Talvez seja esse um dos motivos pelos quais a época de predominância do oficialismo das fontes, em que a voz dos cidadãos pouco recebia atenção, deu lugar a uma relação dialógica com um jornalismo que, além de dar voz, também se vale de textos, imagens e vídeos produzidos por esse cidadão. Dessa forma, configuram-se novas maneiras de relação entre as distintas mídias e suas audiências, novas formas e processos de comunicação (AMORIM, 2009, p. 03).

Esse fenômeno se integra a realidade da cultura contemporânea marcada pelas novas tecnologias de informação e comunicação, na qual cada um pode ser “produtor, criador, compositor, montador, apresentador, difusor de seus próprios conteúdos” (SANTAELLA, 2004, p. 82), e, assim, pode-se constatar que a televisão vem sentido os efeitos da virada de uma sociedade determinada pela distribuição piramidal de conteúdos para uma marcada pela distribuição reticular (idem, ibidem).

Destarte, pode-se observar que as novas tecnologias têm contribuído a cada dia para a construção de novos modos de interpretação dos fatos cotidianos a partir de perspectivas construídas por dispositivos audiovisuais operados por “leigos”, que resultam no que se pode considerar um jornalismo apócrifo: aquele que se origina (ou flerta) no exterior dos cânones tradicionais do fazer jornalístico.

A hipótese aqui levantada é a de que se pode notar que o fato/notícia ficou ainda mais enxuto. Em verdade, essas imagens de produção externa à jornalística reúnem em si artifícios significantes que sublimam um ou outro elemento do menu. Acredita-se que a exiguidade de tempo de exposição da narrativa de imagens “leigas”, fruto de vídeos normalmente curtos, acabam por sintetizar os tradicionais questionamentos do lide. Trata-se de identificar que são sequências hipnóticas reproduzidas na velocidade de relâmpagos, onde são privilegiadas cenas que se destacam pelo flagrante, pelo inusitado ou até pelo grotesco.

Nesse sentido, nota-se um empobrecimento da notícia, que acaba por valorizar, no período de transmissão do telejornal, a quantidade em detrimento da qualidade dos produtos editoriais. Dessa forma, boa parte do noticiário é preenchida por diversas imagens cedidas pelo cidadão comum, pela polícia local, pelas câmeras de controle de tráfego etc., comumente cobertas por locuções em off ou mesmo por ancoragem do apresentador ao vivo.

4. Interpretação do contexto: uma dupla performance

Pode-se perceber, então, que essas imagens são reconhecidas pelo telespectador como uma narrativa que encerra verdades. Esvazia-se toda e qualquer ideia de opinião ou ponto-de-vista. O efeito de verdade surge exatamente da sensação de que a imagem cedida, independente da fonte, é descolada da linha editorial do veículo de comunicação – já que foi capturada pelo telespectador/autor, parece ser sincera.

Interessante destacar que a instituição “redação jornalística” atribui uma construção discursiva de independência e/ou imparcialidade na captação dos fatos contidos na imagens “leigas”, porque foi, a princípio, livre de negociações inerentes ao fazer jornalístico, que incluem o planejamento editorial (esse sim calcado na lógica de versões).

Mais que isso, a imagem cedida força o telespectador a ocupar o lugar do olho do observador que efetivamente testemunhou o facto, driblando qualquer outro elemento que compareça na narrativa como um todo.

O que se pretende, então, como propósito chave da análise empreendida aqui, é questionar / por em discussão justamente esse ponto: o efeito de verdade é fator característico das imagens cedidas, e não dos outros elementos da narrativa que compõem as matérias. A verdade decorrente da exibição exclusiva de imagens cedidas por fontes externas à redação jornalística, imaculadas por edições ou locuções em off, já caracterizaria um ponto-de-vista por parte do telespectador e, portanto, não redundariam em verdades definitivas.

Mas o que se vê, na maioria absoluta dos casos (o senso comum é capaz de constatar), é que as imagens “leigas” têm o seu áudio original suprimido (quando existe) pela edição da reportagem; em seu lugar são anexadas narrações, gravadas ou ao vivo, que passam a integrar a construção discursiva daquilo que é exibido.

Acontece que o efeito de verdade característico dessas imagens se estende à narração que as cobre, conferindo ao segundo elemento a mesma impressão de realidade que está presente na aura do primeiro.

Em outras palavras, o texto que se ouve nas matérias se exime de qualquer expressão de julgamento porque é chancelado pelo efeito de verdade que a imagem exprime. Apesar desses textos, notadamente, assumirem caráter descritivo ao se redundarem a narrar o que se vê, palavras e expressões qualificativas acabam por estabelecer ponderações que se convertem em condução das conclusões.

Além do que, a própria seleção das partes das cenas cria um sentido que se anela à percepção do jornalista que monta o plano de sequências. As imagens de circuito interno ou de cinegrafistas amadores, apesar de já carregarem um enredo próprio capaz de possibilitar uma interpretação imediata, chegam à emissora para serem trabalhadas; é preciso levar em consideração que nem todas estão audíveis ou com boa resolução. O propósito, portanto, é tratá-las e atribuí-las efeitos para que pareçam o mais real possível.

Assim, evidencia-se que o produto bruto é efetivamente influenciado por um olhar, portanto se revelam interpretações prévias e interferências na construção do valor-notícia.

Para efeito de elucidação, veja-se o exemplo: a BandNews, assim como todas as emissoras, veiculou em sua programação as imagens capturadas pelo circuito interno de vigilância de um supermercado que registravam a família Nardoni, [1] isso supostamente momentos antes da morte da menina Isabela Nardoni – caso de ampla repercussão nacional em 2008.

Agora, a locução que cobriu essas imagens:

A primeira imagem mostra Isabela e os irmãos dentro de um carrinho de supermercado. O pai, Alexandre Nardoni, veste uma camiseta branca, bermuda jeans e chinelos. Ele empurra o carrinho. A madrasta, Ana Carolina Jatobá, carrega nos braços o filho mais novo do casal. Eles sobem a esteira rolante. Tudo com aparente tranqüilidade. Nessa outra imagem, Isabela e o irmão de três anos já não estão mais no carrinho. Alexandre se dirige ao setor de crediário para fazer um cartão de supermercado e pagar a conta. Enquanto o marido fica no balcão, Ana Carolina segura Isabela pelas mãos e leva as crianças dali. Alexandre permanece no local por mais de dez minutos. Paga a compra e vai embora. A família se reencontra, as crianças estão novamente no carrinho. Todos descem a esteira rolante e seguem para o estacionamento do supermercado.

Destacadas a seguir algumas sentenças do texto acima, busca-se refletir: “Tudo com aparente tranqüilidade”, demonstra uma fala carregada de ideias pré-concebidas, pois, afinal, como saber se a tranqüilidade observada (se é que havia) era aparente ou legítima? “Nessa outra imagem” indica um corte/montagem de um quebra-cabeça produzido para criar um sentido (início, meio e fim) para o ocorrido, mas o que foi selecionado e o que foi ocultado obedeceram a que critérios e segundo que lógica? De que forma essas assertivas elencadas contribuem para a elucidação do possível crime?
Vale ressaltar que não se trata aqui de julgar o mérito do caso Nardoni. A análise se concentra exclusivamente na observância da construção da narrativa, sem comprometimento algum com o desenvolvimento do ocorrido.

Ainda, reiterando, esse é apenas um exemplo que, apesar da envergadura das repercussões do fato, apenas ilustra uma prática recorrente no que aqui se propõe a considerar como jornalismo apócrifo.

E, apesar de tantas questões já levantadas, talvez, não especificamente a esse caso, mas a todos, o que mais importa nessa discussão seja avaliar o quanto a imprensa televisiva, ao proceder com esses métodos de construção narrativa, acaba por conduzir a opinião pública para determinadas “constatações”.

Esse processo discursivo acaba por transformar a tela da televisão em um momentâneo, porém, irrefutável, tribunal. Nele, o enredo da notícia e os personagens envolvidos em um determinado fato, ganham, num primeiro momento, tratamento técnico dentro do contexto capturado e, em seguida, o produto disso é exibido.

O telespectador, do outro lado da tela, absorve e julga de forma praticamente instantânea, no ritmo acelerado da sucessão de imagens, sem chances de se defenderem das influências escamoteadas pelo efeito de verdade estendido a todos os elementos que compõem construção da narrativa telejornalística (com destaque para a narração e edição).

Propõe-se aqui, ademais, uma outra hipótese que se sustenta numa ideia que pode ser compreendida por “dupla performance”. Quando há a captura de imagens de uma câmera de vigilância, por exemplo, há também neste momento uma performance do âmbito da simulação da vigilância (Cf. Bogard, 1996), na qual de forma alguma evita os fatos que se desenrolam a sua frente, mas, por estarem ali, interferem de alguma forma nos acontecimentos. Assim, uma sociedade que vem se acostumando com a onipresença de dispositivos visuais de vigilância acaba por produzir efeitos subjetivos nos comportamentos dos indivíduos diante dos olhos eletrônicos. Isso se dá de forma sutil e compartilhada, pois que:

Uma primeira questão a ser colocada diz respeito aos mecanismos e valores sociais que podem legitimar tal vigilância, desfazendo a sua face conspiratória, monstruosa e ameaçadora em proveito de uma face mais amigável e até desejada pelos indivíduos. Uma possível resposta reside naquilo que nossa sociedade define como o perigo que os dispositivos de vigilância podem evitar (BRUNO, 2004, p. 119).

Por esse caminho, percebe-se uma docilidade e uma incorporação do olho de poder (Cf. Foucault, 1984) – uma performance – na hora em que as pessoas são alvo da filmagem (e sabem disso). De fato, atualmente, essa vigília é altamente desejada, dadas as circunstâncias que envolvem o risco presente no ulterior da sociedade contemporânea.

A preocupação com o risco em nossa sociedade vai contribuir para ‘justificar’ uma vigilância que é sobretudo preditiva e muitas vezes preventiva (...) Esta vigilância é tão mais eficiente quanto maior for a identificação dos indivíduos com os perfis projetados (doentes potenciais, vítimas de crimes antecipados, responsáveis por catástrofes naturais potenciais etc). Deste modo, eles não apenas ‘autorizam’ a vigilância como a estendem na relação e no cuidado consigo mesmos (idem, p.120).

Vê-se que, mesmo antes das imagens de circuitos internos chegarem à redação jornalística para ilustrarem uma narrativa qualquer, elas já estavam impregnadas de “modos comportamentais” encenados pelos agentes da notícia, próprio do “saber ser visto”. Essa mise-en-scéne é o que se pode considerar a primeira performance.

A segunda performance acontece quando a equipe jornalística recebe essas imagem brutas cedidas como matéria-prima e tem a função de transformá-la em um produto telejornalístico para ser exibido. Sob o olhar do editor, as imagens recebem cortes e destaques, procurando sentido dentro de uma perspectiva de enredo para a matéria produzida, e, em seguida, são cobertas por um texto desenvolvido de acordo o interesse editorial inerente à programação do telejornal.

Inclusive, a pratica cotidiana da edição jornalística revela o quanto o uso constante desse tipo de imagens suprimem assuntos que poderiam ganhar (mais) destaque dentro da produção telejornalística segundo os critérios de noticiabilidade. A pauta, que deveria ser mote da realização do fazer jornalístico, é deprimida em função do espaço ocupado por essas narrativas, dado o efeito espetacular que elas vêm gerando em termos de audiência na programação.

Dessa forma, a edição “dobra” a significação da encenação dos agentes da notícia. Ocorre uma dupla performance, que potencializa exponencialmente o acontecimento, promovendo uma sobre-teatralidade daquilo que, enfim, vai se tornar conteúdo dos telejornais.

Em se tratando de vídeos amadores, a primeira performance se dá tanto quanto ocorre com as câmeras de vigilância, apenas é preciso substituir a docilidade e introspecção do olho do poder pela simples mudança no comportamento das pessoas quando se posicionam diante do “play-rec”, promovendo uma artificialidade automática, situação já de senso comum.

Nesse último caso, a segunda performance de dimensiona da mesma forma já expressa, sem nenhum tipo de diferença, já que, antes de ir ao ar, todo produto tem que necessariamente passar pelo trabalho do editor.

5. Considerações finais

O uso cada vez mais constante das imagens captadas por cinegrafistas amadores e das câmeras de vigilância formam atualmente novos mecanismos de visibilidade: seja pela cessão das imagens, que carrega com o “co-autor” uma sensação de pertencimento e participação; seja pelo comportamento do vigiado pelos olhos eletrônicos. 

É possível perceber que, numa narração jornalística relacionada com câmeras de vigilância, o conceito de panoptismo (Foucault, Op. Cit.) muitas vezes é superado, pois existe uma interação do vigiado com a máquina, anulando o tradicional modelo arquitetônico de tradição de vigilância. Sendo assim, hoje, o mais importante é ser o reflexo do olho do outro e, de preferência, com identidade. Isso se constata a partir da exibição das imagens do suposto ladrão da joalheria que, ao perceber que estava sendo filmado, cumprimenta a máquina e foge.

Também, no telespectador/autor que teve o seu nome divulgado em créditos ou ainda em off (voz do locutor em cima das imagens). O uso de suas imagens pode gerar um grau de aproximação, pois as pessoas podem se ver como integrantes do processo de produção das notícias e também, de certa forma, retratadas na televisão.

E, neste sentido, vale observar o pensamento de Becker (Op. Cit.): para que o telejornalismo tenha qualidade é preciso pluralidade de interpretações, diversidade de temas e também de atores sociais. Da mesma forma, a relação entre imagem e texto também precisa ser valorizada para que se possa permitir a construção de novos olhares da realidade social.

Mas, é necessário, enfim, compreender que a credibilidade na seleção dos fatos e na construção da narrativa a serem exibidos é de suma importância. Afinal, de quem é a responsabilidade sobre essa credibilidade?

Quando o telejornalismo se apropria de imagens “leigas”, construindo o que se chamou aqui de jornalismo apócrifo, a questão da credibilidade assume a forma de um sofisma. Por um lado, o telejornal, em todas as suas instâncias, se exime da responsabilidade pela credibilidade do que se exibe, já que não foi produtor das imagens que ilustram uma determinada narrativa noticiosa. Elas vieram de fontes externas. Mas, em verdade, por outro lado, o telejornal não é responsável pelo que veicula?

Esse sofisma se sofistica justamente pela ocasião da dupla performance explicada mais acima. Como há interpretações por cima de interpretações, a veracidade do fato acaba por perder o seu titular. A quem cabe, afinal, responsabilidade da credibilidade do jornalismo apócrifo? Ao cinegrafista amador que capturou as imagens brutas? À fonte que cedeu as imagens de tal circuito interno de vigilância? À produção jornalística que apurou o tema? Ao editor que selecionou e montou as cenas? Ao narrador que cobre as imagens? Ou ao âncora que comentou a narrativa?

A entrelinha da coisa é bem maior do que se pode imaginar.

Na hipótese das imagens “leigas” ocasionarem um grande furo de reportagem, que agreguem valor noticioso ao ponto de elevar a audiência e fazer com que o telejornal – e o veículo, por consequência – tenha aumentada a sua respeitabilidade, a questão da responsabilidade sobre a credibilidade se dilui e o eventual sucesso, no fim, será atribuído às novas tendências de jornalismo participativo, em que diversos atores sociais concorrem para os processos de informação.

Mas se, de alguma forma, o fato exibido apontar algum tipo de erro de apuração ou gerar qualquer consequência que evidencie deturpação de fatos, é muito fácil para a instituição jornalística se eximir de responsabilidades, já que não foi a proponente primária de elementos para constituição do processo narrativo.

Sobre as imagens captadas por cinegrafistas amadores, é inegável que o telespectador/autor representa um indício para a checagem de um fato, mas não pode ser considerado fonte inverossímil de apuração. O mesmo ocorre com a fonte de um vídeo de segurança.

Esse não é um manifesto pelo fim do jornalismo apócrifo. Ao contrário, tem-se a dimensão do quanto essas novas práticas jornalísticas enriquecem os produtos midiáticos contemporâneos e indicam um tendência que caracteriza a atualidade. O que se ressalta, em última análise, é uma autocrítica que os jornalistas devem incorporar a sua rotina que inclua uma responsabilidade mais contundente quando do uso de elementos visuais produzidos por instâncias externas ao telejornal.

NOTA

[1] Conforme pode ser conferido em: http://www.youtube.com/watch?v=9GXP0tkZ_Hg.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORIM, Lidiane Ramirez de. (Tele)jornalismo participativo: novos olhares sobre a notícia de TV. In: Anais do XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. São Paulo: Intercom, 2009.

BECKER, Beatriz. Telejornalismo de qualidade: um conceito em construção. Revista Galáxia, São Paulo, n. 10, p. 51-64, dez. 2005.

BOGARD, William. The simulation of surveillance: hypercontrol in telematic societies. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

BRUNO, Fernanda. Máquinas de ver, modos de ser: visibilidade e subjetividade nas novas tecnologias de informação e de comunicação. In: Revista da FAMECOS, Porto Alegre, v. 24, p. 110-124, 2004. Disponível em: http://www.pucrs.br/famecos/pos/revfamecos/24/Fernanda.pdf

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de janeiro: Vozes, 1984.

SANTAELLA, Lucia. Culturas e Artes do Pós-humano: da Cultura das Mídias à Cibercultura. 2ª Ed. São Paulo: Paulus, 2004.

SARTRE, J. Paul. O Muro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

SIQUEIRA, Fabiana Cardoso de. A relação entre as imagens captadas pelo telespectador e a qualidade. In: Anais do XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. São Paulo: Intercom, 2009.

*Ana Paula Goulart de Andrade é professora do Curso de Comunicação Social – Habilitação Jornalismo da UNESA. Sandro Tôrres de Azevedo é professor dos Cursos de Comunicação Social (Jornalismo e Publicidade e Propaganda) da UNESA e da UVA.

 

 







Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro | ISSN 1806-2776 | Edição 14 | Novembro | 2011
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