Novembro de 2011
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ISSN 1806-2776
 
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ARTIGOS

A temporalidade no discurso jornalístico
Os títulos sobre um acontecimento histórico

Por Lidiane Santos de Lima Pinheiro*

RESUMO

O acontecimento, quando noticiado, é emoldurado em esquemas que lhe dão coerência espacial e temporal. Portanto, para compreender como o acontecimento é construído discursivamente pelo jornal, faz-se necessário observar como a temporalidade é edificada no texto.

Visando explicar a construção de sentido de um acontecimento histórico no discurso da imprensa, a partir da noção de tempo, serão analisados os títulos das matérias sobre a Guerra de Canudos, do jornal O Estado de S.Paulo no ano do conflito (1897) e no período do seu centenário.

Reprodução
Prisioneiros de guerra em Canudos
registrados por Flávio de Barros (1897)


As principais bases teóricas serão a noção de triplo presente (de Santo Agostinho), a partir do olhar de Ricoeur, e os estudos de Mouillaud sobre os títulos dos jornais.

PALAVRAS-CHAVE: Discurso / Temporalidade / Títulos

1. Introdução

Os jornalistas possuem um considerável papel na definição do que se conhece por acontecimento. Segundo Adriano Rodrigues (1993, p. 27), o excesso (como o massacre de uma aldeia pelas tropas regulares), a falha (como a queda repentina e imprevisível dos valores da bolsa) e a inversão (como um homem que morde o cão) do funcionamento de uma normalidade são registros de notabilidade do acontecimento e, portanto, registros prováveis do interesse jornalístico.

O acontecimento é uma coleção de ocorrências (de aspectos relativamente heterogêneos), que se destaca por sua singularidade, sua imprevisibilidade e seu poder de ruptura social; mas sua qualificação requer uma síntese que faça dele uma totalidade inteligível. Desse modo, informar é tornar manifesto algo que era desconhecido, dando aparência a um real até então sem forma, mas que é possível e legítimo mostrar; é transformar “dados que estão no estado difuso, em unidades homogêneas”, explica Mouillaud (2002, p. 42).

A aparência de encadeamento e espessura temporal do acontecimento, com uma origem e um fim, se dá pelo processo narrativo que o converte em notícia (CHARAUDEAU, 2006).

Assim, o acontecimento é determinado pela dedicação dos media em tratar uma ocorrência como tal e, antes, por sua apreensão interpretativa, situando-o no tempo e no espaço. Logo, os media não agem somente como os meios transmissores dos acontecimentos, mas como a condição mesma de sua existência.

No processo de construção do sentido do acontecimento, inclui-se: a escolha de uma descrição entre outras possíveis, a sua constituição simbólica, os contratos que entram em jogo no trabalho de sua configuração, os contextos e tudo, enfim, que fizer parte das condições de produção, circulação e recepção de tal discurso. Para entender a construção do acontecimento na imprensa, então, é importante observar como esses elementos são ativados na narrativa jornalística. Um dos que consideramos mais importantes aqui é a noção de tempo.

A singularidade atribuída a determinados acontecimentos recentes atrai o interesse dos indivíduos e, por isso, também o dos media – principalmente no jornalismo moderno, que parece desempenhar o papel de produzir uma apologia ao instante, ao momento atual, à afirmação radical do “agora”.

Entretanto, os acontecimentos do passado têm sido recorrentemente trazidos ao presente pela imprensa. Não importa se a celebração é de uma rebelião ou da morte de um grande escritor; constantemente o acontecido, mesmo já conhecido pelos leitores, volta à superfície mediática, apontando ainda algo digno do interesse público.

Este artigo visa investigar a produção de sentidos sobre um importante acontecimento jornalístico que, cem anos depois, tornou-se um acontecimento histórico bastante explorado nas páginas dos jornais: a Guerra de Canudos. Para isso, será realizada uma análise dos títulos das matérias de O Estado de S. Paulo sobre a Guerra de Canudos, publicadas em 1897 (término da guerra), 1996 (centenário do início da guerra) e 1997 (centenário do fim da guerra).

Antes, porém, a fim de observar como a temporalidade é construída no discurso jornalístico sobre o acontecimento, será apresentada uma breve revisão bibliográfica sobre o triplo presente (de Santo Agostinho), a partir das releituras feitas por Paul Ricoeur, e sobre o sistema discursivo dos títulos dos jornais, de acordo com Maurice Mouillaud.
 
2. A temporalidade do acontecimento no enunciado narrativo

Como o acontecimento é contado pelo discurso mediático? Como ele se ancora na história e na atualidade? Estas questões resumem o ponto de partida de Isabelle Garcin-Marrou, no texto L’événement dans l’information sur l’Irlande do Nord.

A autora trabalha com a noção do acontecimento que ressoa nos discursos dos media e com a natureza discursiva dos acontecimentos. Para ela, há uma aparente simplicidade na designação do acontecimento por parte dos veículos de comunicação, que mascara algumas dificuldades de definição da noção em um discurso informativo.

O acontecimento é compreendido como uma inscrição na memória social, política e histórica, que não surge de um vazio histórico, como os media fazem parecer, mas “se articula a um passado que tem uma carga de significações e que informa sua percepção atual”. Seu surgimento na atualidade não é espontâneo; “sua definição articula as dimensões do passado, do presente e do futuro” (GARCIN-MARROU, 1996, p. 49, tradução nossa).

Na produção discursiva do que aconteceu, o narrador ressalta o presente, a fim de dar a sensação de que o fato se dá à medida que o leitor corre os olhos sob o jornal. Por isso, ao transformar uma ocorrência em informação, o narrador tem que dominar as estruturas de inteligibilidade do acontecimento – os elementos que permitem a identificação da ocorrência como um fato destacável: circunstâncias, duração, ritmo, atores, enfim, a situação social e política na qual se produziu o acontecimento.

A fim de caracterizar a estrutura temporal do acontecimento na informação sobre a Irlanda do Norte, a autora se baseia no conceito de “triplo presente” explanado por Paul Ricoeur (1994), a partir das reflexões de Santo Agostinho (2008), de que uma informação condensa o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes e o presente das coisas futuras. Segundo Paul Ricoeur (1994), a articulação entre esses três presentes constitui o mais elementar indutor da narrativa.

O tempo, na percepção humana, só se realiza narrativamente, semioticamente, ou, enfim, através da linguagem. Por outro lado, a inteligibilidade narrativa só se dá pela noção do tempo. Como explica Ricoeur (1994, p. 15): “O tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal”.

Daí o autor considerar a argumentação de Santo Agostinho: se as coisas de que falamos, quando as narramos, já não existem, e as que predizemos ainda não existem, só podemos considerar suas qualidades temporais, no único tempo que efetivamente existe (ainda que fugidio): o presente. Por isso, concorda que além do presente do presente (o agora), existe apenas o presente do passado, que é a memória (o pensamento do passado no presente), e o presente do futuro, que é a espera (a projeção do futuro no presente).

O presente das coisas passadas corresponde à atualização da história pelo acontecimento; e nisso, o acontecimento pode ser compreendido por referência à história, objeto de uma memória. O presente das coisas presentes corresponde ao fato mesmo. O acontecimento se produz num certo momento e cria uma nova situação sobre a qual se focaliza a atenção presente. E o presente das coisas futuras corresponde à influência vindoura do acontecimento.

Quando um jornalista narra um acontecimento qualquer, o presente instantaneamente se move e se esvai. Ao chegar ao fim da narrativa, o acontecimento já ficou no passado; e o futuro, a cada segundo, torna-se presente. Os presentes deslizam e a significação do acontecimento evolui. O discurso informativo marca esse deslizamento e essa evolução. Entretanto, no regime de urgência que caracteriza a construção do discurso jornalístico, o sentido que se quer atribuir ao fato é o de atualidade. Como o instante do presente é impossível de ser mantido, ele é dilatado na produção discursiva da imprensa.

Segundo Charaudeau (2006, p. 102), “O potencial de ‘atualidade’ é avaliado segundo a distância que separa o momento de aparição do acontecimento do momento da informação”. Tratar o acontecimento em seu imediatismo, como se existisse num estado definitivo, passa a ser uma tendência dos media.

As mídias têm como tarefa dar conta de acontecimentos que se situam numa co-temporalidade enunciativa. Por isso, devem tentar aproximar ao máximo os dois momentos opostos na cadeia temporal: instante do surgimento do acontecimento > instante da produção midiática > instante da saída do produto midiático > instante do consumo da notícia. (CHARAUDEAU, 2006, p. 133, destaque do autor). 

Maurice Mouillard (2002), de forma semelhante, fala do acontecimento relacionado a um presente perpétuo. Para ele, a atualidade legitima o trabalho do jornalista. Seu discurso é posto sob um presente que se fez passado, mas que volta a se fazer presente na enunciação e na leitura. Por ser feita de presentes que se sucedem, a atualidade está fundamentada no presente do leitor.

O presente pode ser muito estendido; por isso, podemos afirmar que a informação jornalística cria uma temporalidade outra, cuja natureza é predominantemente discursiva. Ainda de acordo com o autor, antes de tornarem-se passados simples da História, alguns acontecimentos se mantém no horizonte de diversos presentes.

Ou seja, um acontecimento não cessa de ser reescrito “por tanto tempo quanto tenha permanecido um acontecimento problemático da história (...) A narrativa histórica não é somente seqüencial, é secretamente animada por uma atualidade” (p. 79).

É também por meio desse percurso de atualizações e sucessão de presentes que um acontecimento do passado pode ganhar uma nova versão mediática e tornar-se referência para fatos jornalísticos recentes (FERREIRA, 2002). Afinal, a fim de ir além dos fatos cotidianos e limitados num tempo e num espaço específicos, o jornalismo tem usado o passado para falar do presente. Um olhar sobre o ontem pode confirmar ou determinar certas leituras do hoje.

O acontecimento histórico, enquanto narrativa, resgata no seu interior uma tripla temporalidade. Não mais sob a urgência da atualidade, mas sob a latência do passado que traz implicações para o presente e para o futuro.

3. A análise de títulos no discurso jornalístico

No jornal, segundo Maurice Mouillaud (2002, p. 77), “dever-se-ia dizer que o acontecimento tem um lugar privilegiado, que é a região dos títulos. É ao nível do título que o leitor se depara com o acontecimento no estado puro”. O título é o lugar da seleção das matérias que serão lidas pelos leitores. Boa parte destes, inclusive, diante do jornal, lê apenas os títulos. Por isso, o título é visto aqui como um importante elemento para o início de uma análise do discurso jornalístico.

Falamos em início porque este artigo é parte dos resultados iniciais da nossa pesquisa de doutorado sobre a temporalidade e as expectativas do leitor no discurso jornalístico sobre a Guerra de Canudos. Nela, analisaremos mais de cem anos de publicações sobre este acontecimento no jornal O Estado de S. Paulo.

Concordamos com Verón (2004, p. 108) de que, nesse tipo de análise, o que deve ser feito não é “comparar o título ao próprio acontecimento, sendo este, para nós, uma constante desconhecida; trata-se antes de comparar os títulos entre si e também comparar cada título com o acontecimento, tal como ele é descrito no texto”. Afinal, importa-nos aqui o discurso e não o referente.

Ao relacionar o título ao lead e ao artigo, o acontecimento parece expandir-se a um passado e a um futuro, desenvolvidos em seqüências superpostas. Para Mouillaud (2002), portanto, o título é como a ponta de uma pirâmide (o artigo) na qual o tempo vai se expandindo à medida que se aproxima da base. O título tende para a atualidade e a base para a História. Contudo, explica o autor, “este tempo ainda não é o tempo da História na medida em que o passado do jornal se apóia sobre o presente do leitor. O passado do artigo é um passado composto, não é o passado puro da narrativa histórica” (p. 78).

Conforme Mouillaud, o título pode ser estudado como uma inscrição, como um enunciado e como uma marca da articulação do jornal. Em um percurso linear da página, e de página em página, aparecem títulos-assuntos, que são enunciados intemporais e sem variantes do jornal (exemplos: Nacional; Política; Eleições). Esses títulos não possuem determinantes ou predicados, não acrescentam informação, mas referenciam um saber pressuposto, categorizam os enunciados.

Subordinados ou não a um título-assunto, títulos informativos e não-informativos compõem o jornal. Verón (2004) explica que existem distintas operações de enquadramento do acontecimento nos títulos: alguns o nomeiam (colocam o acontecimento numa classe, identificam um membro dessa classe) e outros são muito abstratos, não fazem referência direta a um acontecimento específico. Por isso, estes poderiam ser também aplicados a outras matérias envolvendo o mesmo tema, mas não necessariamente o mesmo fato.

O título que anuncia um evento singular e o identifica por meio de um operador é chamado de informativo. O não-informativo “designa um fato singular, mas não o anuncia: apresenta-o como já conhecido do leitor” (VÉRON, 2004, p. 183). Assim, ele “serve para construir a cumplicidade de entre o enunciador e o destinatário, por meio de um retorno permanente a objetos culturais que supostamente um e outro conhecem” (VÉRON, 2004, p. 232).

Dessa forma, o título é construído a partir de denominações que remetem a lembranças culturais (o nome de um filme, de um livro, de uma novela ou mesmo um título com a simples aparência de algo conhecido, ainda que não o seja realmente). A novidade ou a atualidade é inserida aí “no molde de um efeito de reconhecimento” (VÉRON, 2004, p. 138).

O título não-informativo ou título referência requer um complemento e um determinante (um artigo definido), que lhe dão uma função anafórica – pois remete aos acontecimentos iniciados antes daquele número do jornal e cuja duração excede à cotidiana. A temporalidade desse tipo de título é diferente da urgência tipicamente refletida nos títulos informativos, limitados ao hoje do jornal.

O título informativo forma uma frase e é uma ocorrência única, um enunciado autônomo. Nele, o aspecto de acontecimento domina a referência. Enquanto o título referência evoca e reforça um paradigma (um tema caro ao jornal), o informativo produz uma diferença, apresenta algo novo. Naquele, há referência a acontecimentos anteriores; neste, há um relevo do acontecimento atual. Aliás, esses títulos cumprem as duas funções de um jornal: reforçar um paradigma e apresentar informações novas (MOUILLAUD, 2002).

O título referencial remete a um processo em curso, para além do acontecimento datado e narrado no texto. Ele faz com que o fato perdure pelo tempo de produção e leitura do jornal; por isso, institui um presente atemporal – o presente da informação (do jornal e da leitura), indiferente à temporalidade histórica.

A data de determinada edição da revista ou número do jornal pertence a um tempo autônomo, do calendário. No título, entretanto, não é desenvolvida uma marca de temporalidade. “O leitor é posto em presença daquilo que os títulos anafóricos constituem em atualidade” (MOUILLAUD, 2002, p. 110).

No título informacional, geralmente, também não se encontra referência à data. É em relação ao número da publicação que o presente, o passado e o futuro são enunciados. A marca temporal (indicada geralmente pelo verbo) pode apontar o término do acontecimento (fechamento – passado) ou a sua seqüência (abertura – presente ou futuro).

Quando há a supressão do verbo, não apenas a marca temporal desaparece, como “o acontecimento tende a transformar-se em classe. Esta produz uma sedimentação do presente que faz desaparecer a dinâmica da abertura. O jornal não se abre mais sobre um processo em curso, fecha-se em uma classificação” (MOUILLAUD, 2002, p. 115). Ao passo que o artigo remonta a uma seqüência cronológica e, portanto, histórica, o título sedimenta um tempo (presente).

Os títulos informacionais não podem ser conservados. Se há uma continuação do assunto em número posterior do jornal, outro título renovará o presente e a presença do acontecimento. Assim, enquanto o título informacional aponta uma informação que será apagada pelo esquecimento e pela substituição de outras informações, o título referencial aponta para a sedimentação de uma memória paradigmática.

4. Os títulos sobre Canudos em O Estado de S. Paulo

A fim de avaliar comparativamente como a temporalidade é constituída nos títulos dos jornais, analisaremos a titulação das matérias de O Estado de S. Paulo relacionadas à Guerra de Canudos em dois momentos: no período do conflito, quando o acontecimento era manchete nos jornais da época e cem anos depois, como acontecimento histórico re-valorizado pela imprensa.

A campanha de Canudos (iniciada em novembro de 1896) foi uma das conseqüências da confusa instauração da República Brasileira. Contra o lugarejo monarquista, então segunda maior cidade da Bahia, e seu líder Antonio Conselheiro, foram enviadas quatro expedições militares. No início de outubro de 1897, terminou a resistência sertaneja, vencida também pela fome, pelo cansaço e pela morte de Conselheiro.

Pela primeira vez, o país havia testemunhado uma cobertura diária de um acontecimento estritamente nacional, para o qual foi dada tamanha importância que jornalistas de diversas instituições de notícias foram enviados àquela região, como correspondentes, e os jornais que não o fizeram, quase cotidianamente transcreviam reportagens sobre o evento, de outros periódicos.

Mesmo antes da última expedição militar, os periódicos brasileiros deram grande visibilidade aos acontecimentos de Canudos, que geralmente tornavam-se públicos em matérias de primeira ou segunda lauda e em anúncios publicitários que exploravam o assunto do dia.

Euclides da Cunha, que posteriormente publicaria Os sertões (considerado ainda hoje “o livro de Canudos”), foi o correspondente especial do jornal O Estado de S. Paulo, enviado a Canudos durante a guerra. Seus dois primeiros artigos sobre o tema foram intitulados “A Nossa Vendéia” (O Estado de S. Paulo, 14 de março e 18 de julho de 1897). A revolta da Vendéia foi uma sublevação católica ocorrida no oeste da França, por camponeses e nobres contrários aos ideais da Revolução Francesa.

Analisar o título como um enunciado é observar como a sua construção define a situação da enunciação lingüística (enunciador, receptor ou co-enunciador, momento e lugar da enunciação). Em “A nossa Vendéia”, ao usar um determinante da primeira pessoa do plural (“nossa”), não apenas é deixado um vestígio explícito do enunciador, como, ao mesmo tempo, o co-enunciador é interpelado. Este embreante (ou dêitico) – operação pela qual um enunciado se ancora na sua situação de enunciação (MAINGUENEAU, 2002, p. 108) – permite que o co-enunciador identifique a referência ao presente (não é a Vendéia do passado. É a nossa).

Naquele contexto, a Revolução Francesa era vista como exemplo inspirador para os então republicanos brasileiros e, portanto, era bastante conhecida. Para o leitor ideal, que possuía o conhecimento enciclopédico requerido, era clara a relação entre a Vendéia e a qualificação de revolta monarquista contra a República. No entanto, a Vendéia à qual o enunciador se referia não era a francesa. Logo, ela estava sendo usada como metáfora de uma situação brasileira (Canudos: referência apenas revelada no corpo do texto).

“A nossa Vendéia”, portanto, é um título anafórico que: institui um presente atemporal (assim como a revolta monarquista francesa foi iniciada em algum momento histórico, esta também o foi; mas o título não remete a um acontecimento datado e determinado, e sim a um processo em curso) e é valorizado pela referência a um signo francês – em alta naquele momento histórico. O presente, o passado e o futuro deslizam como um instante sempre atual neste processo temporal, indicando não uma marca de tempo preciso, mas uma presença.

Ao todo foram 61 telegramas (publicados na coluna “CANUDOS”, um ou dois dias depois de enviados) e 34 artigos escritos, de março a outubro de 1897, por Euclides da Cunha sobre Canudos, publicados em primeira ou segunda página. A maioria das matérias tinha o mesmo título-assunto, “Canudos”, seguido por um subtítulo: “Diário de uma expedição”.

Além dos textos assinados por Euclides (selecionados aqui para análise), o tema apareceu em colunas ou notas também com títulos fixos – como, aliás, era costume na época: “Antonio Conselheiro”, “Pela República”, “O combate de Canudos” ou variações semelhantes. O título-assunto caracteriza um tema de importância para o jornal, um paradigma. É apenas um índice, uma classificação que auxilia o leitor na identificação do assunto; mas não acrescenta informações sobre o acontecimento e é intemporal.

Os textos eram publicados em datas diferentes das que haviam sido produzidos, por causa do lento sistema de correios e pelas condições de transporte através dos quais as correspondências de guerra eram enviadas. Por isso, o mais importante da seqüência de artigos de Euclides da Cunha, publicados posteriormente no livro Canudos: diário de uma expedição, era indicar a situação da produção do enunciado: após o título-assunto, ao invés de um título específico para o artigo, havia o registro do local e da data na qual Euclides havia escrito o texto: “Bahia, 23 de agosto”; “Alagoinhas, 31 de agosto”; “Queimadas, 1º de setembro” etc.

Aqui não mais o processo em curso é posto em destaque, mas um espaço geográfico e uma data cronológica. O que importa, então, é a idéia de seqüência. Um artigo isolado não é um todo; é uma parte que só pode ser perfeitamente significada quando relacionada ao seu conjunto. Como as datas da produção do enunciado eram diferentes das datas da leitura do mesmo, para que fosse organizado o quebra-cabeça do encadeamento dos acontecimentos narrados, era necessário indicar o momento exato da enunciação.

Ao chegar a São Paulo, Euclides publica mais uma matéria sobre Canudos: “O batalhão de São Paulo” (26/10/1897). Este é um título referencial (anafórico), atemporal, cujo artigo definido singular (“o”) generaliza o grupo ao qual se refere – cujas ações interessavam particularmente aos leitores do jornal paulista. Não indica um acontecimento preciso e sim uma classe, um tema então atual. Portanto, não é parte de um encadeamento de fatos, nem, nesse caso, um processo em curso.

5. Cem anos depois

Como indica Nelson Traquina (2005), o fator tempo é um valor-notícia, pois um acontecimento já publicado pode servir como gancho (“new peg”: “cabide”) para outros acontecimentos a ele ligados. Existem ganchos a partir de uma data específica (alguma notícia publicada em ano anterior, mas nesse mesmo dia), a partir de aniversários ou de um assunto que permanece mais tempo nos media, por seu impacto. Enfim, algo importante aconteceu no passado e o “próprio fator tempo é utilizado como gancho para justificar falar de novo sobre o assunto” (TRAQUINA, 2005, p. 81). Por isso, ainda hoje o acontecimento Canudos tem sido lembrado pela imprensa.

O jornal O Estado de S. Paulo passou um longo período sem colocar Canudos em pauta. Por outro lado, seu antigo jornalista Euclides da Cunha nunca foi esquecido. Foram publicadas matérias sobre sua controvertida morte, seu cinqüentenário etc. Nelas, contudo, a Guerra de Canudos sempre acabava por ser citada.

Em 1996, cem anos depois do início do conflito, volta a crescer o número de matérias sobre o tema de Canudos, publicadas neste jornal. Os títulos principais de 1996 (grifos nossos) são: “Exército faz autocrítica sobre Canudos” (22/07), “Saga de Canudos ressurge da fé e das cinzas” (04/08), “Refaça o roteiro de Euclides da Cunha” – Turismo / Viagem (03/09), “Massacre de Canudos faz cem anos hoje” (03/09), “Em busca do inimigo” (30/11), “Canudos. Para historiador, Conselheiro sobreviveu a Os Sertões” (30/11), “A nossa Vendéia” (30/11 – texto de Euclides da Cunha).

Assim como os textos de 1996, os de 1997, em sua maioria, estavam localizados sob os títulos-assuntos: Brasil; História; Revolução de 1897/ Guerra de Canudos.

Os títulos principais de 1997: “Instituto festeja centenário de Canudos” (14/01), “Parente revê história do vilão de Canudos” (04/03), “Exposição documenta cem anos de Canudos” (10/03), “Canudos, o enigma que ninguém decifrou” (01/04), “Atos culturais lembram cem anos de Canudos” (05/08), “História de Canudos é revista como tragédia” (07/09), “Historiadores debatem Guerra de Canudos” (17/09), “Há um Século, “Estado” chegava a Canudos” (21/09), “Texto de Euclides narra chegada a Canudos” (22/09), “Toque de Degolla! Bayonetas caladas!” (26/09), “Caíram as torres da igreja de Canudos!” (27/09), “Cem anos de Canudos” (05/10), “Canudos, cem anos” (05/10), “Livro de Benício é anterior ao de Euclides” (05/10), “Obra joga luz sobre o maior genocídio do país” (05/10), “Fim da ilusão Jacobina” (05/10), “Conselheiro deve ser visto como patriarca sertanejo” (05/10), “Livro recria cenário de Canudos em preto-e-branco” (06/10), “Crônica ao rés do sertão” (22/11).

 Com exceção do “A nossa Vendéia” (mesmo texto de 1897, que volta ao jornal como um dispositivo de auto-referencialidade: para valorizar o próprio jornal, por ter sido o responsável pela ida de Euclides a Canudos), todos os 27 textos publicados entre 1996 e 1997 possuem títulos informacionais. Destes, sete são não-verbais – tipo de título que representa uma forma em trânsito da informação para a referência, pois não possui a marca temporal do verbo e sedimenta uma memória paradigmática, um tema caro ao jornal. Por isso, ele pode ser repetido – construído de forma muito semelhante no mesmo periódico: “Cem anos de Canudos” e “Canudos, cem anos”. A marca temporal nesses títulos está por conta do registro numérico de anos passados após a guerra de Canudos.

Assim, o passado é comemorado no presente, por meio de um título que mobiliza os dois tempos sem precisar nenhum deles com exatidão. Há aqui um processo em curso, mas não o do acontecimento da guerra e sim o do próprio tempo histórico.

Citações, seqüência cronológica e sujeitos do discurso são suprimidos no título. Em todos os títulos informacionais não-verbais, verifica-se, por meio da competência enciclopédica, uma carga de significações de um passado histórico tornado presente apenas pela atualidade da enunciação e da leitura.

Dos títulos verbais, que dominam as notícias associadas a Canudos cem anos após o acontecimento, apenas o do Caderno de Turismo / Viagem utiliza o tempo no imperativo: “refaça”. Uma ordem-apelo dada ao leitor-consumidor acostumado com esse tipo de linguagem tipicamente publicitária.

A ordem ou sugestão de o receptor refazer o roteiro de Euclides da Cunha remete ao futuro, pois só neste tempo seria possível obedecer a tal apelo; mas não apenas o futuro é mobilizado por este enunciado. O passado aparece na referência a um autor que morreu em 1909 e o presente é apresentado pelo próprio momento da enunciação. Algo como: o eu-enunciador sugere hoje a você-leitor que refaça amanhã o roteiro feito ontem por Euclides-terceiro sujeito do discurso.

“Canudos. Para historiador, Conselheiro sobreviveu a Os Sertões”, “Canudos, o enigma que ninguém decifrou”, “Há um Século, ‘Estado’ chegava a Canudos” e “Caíram as torres da igreja de Canudos!” são títulos informacionais. Eles marcam o tempo das ocorrências no passado. Diante da premissa jornalística de noticiar apenas o novo e atual, esses enunciados parecem ser injustificáveis; porém, conforme já apresentado neste artigo, o aniversário de um acontecimento é também um valor-notícia. Entretanto, a carga valorativa desses discursos não está apenas na simples repetição de um importante fato da História brasileira.

O penúltimo título, por exemplo, apresenta a função auto-referencial de valorizar o próprio jornal por ter estado presente na guerra há um século. Os dois primeiros são valorizados pela renovação das leituras sobre o acontecimento: se Conselheiro sobreviveu ao livro euclidiano (que o criticava ferozmente), é porque o personagem foi re-significado (mas tal sentido só se faz completo no próprio artigo, ao trazer como sujeito do discurso o historiador Calasans, que, através da História oral, refaz o acontecimento); e se ninguém decifrou Canudos, mesmo cem anos depois da guerra, é porque este acontecimento está ainda aberto a investigações históricas e jornalísticas.

Esses títulos, portanto, são enunciados no presente do enunciador e do co-enunciador de 1997, abordam o passado, mas sugerem também expectativas para o futuro (a manutenção das investigações sobre o assunto).

Os outros títulos são construídos no presente do indicativo. Aqui o triplo presente aparece não apenas pela dilatação da atualidade que num instante torna passado o presente e presente o futuro, mas também porque o passado e o futuro são solicitados para a construção do sentido sobre o presente. Nos títulos observados, o acontecimento histórico é atualizado por acontecimentos contemporâneos ao enunciador e ao co-enunciador (leitor).

O presente do verbo pode se referir a discursos atemporais (próprios a produtos culturais) ou a eventos da atualidade da enunciação: “Exército faz autocríticas”, “Parente revê a história do vilão de Canudos”, “Texto de Euclides narra chegada a Canudos”, “Saga de Canudos ressurge da fé e das cinzas”, “História de Canudos é revista como tragédia”, “Livro de Benício é anterior ao de Euclides”, “Obra joga luz sobre o maior genocídio do país” e “Livro recria cenário de Canudos em preto-e-branco”, “Instituto festeja centenário de Canudos”, “Exposição documenta cem anos de Canudos”, “Atos culturais lembram cem anos de Canudos”, “Historiadores debatem Guerra de Canudos”.

A conjugação do verbo no presente tanto pode indicar um presente do passado (passado ainda atual na declaração do exército ou na entrevista com o parente do vilão de Canudos, por exemplo) como um presente do futuro (futuro próximo que já se faz presente pela informação sobre os lançamentos dos livros ou as promoções de eventos).

Esses títulos transformam passado e futuro em presente, faz desaparecer datas, condições espaciais e temporais da enunciação, citações ou declarações, mas apresentam verbos factuais e marcas de processo ou de estado.

O artigo intitulado “Massacre de Canudos faz cem anos hoje” não anuncia um acontecimento novo para o qual Canudos é um gancho; o próprio acontecimento histórico é o sujeito da frase. Porém, a ênfase aqui não está sob o processo em curso (os cem anos do massacre) e sim sobre um momento preciso, válido somente para aquele número do jornal (hoje). “Hoje” é um dêitico temporal, ou seja, uma palavra que revela a situação (o momento) da enunciação e uma marca do presente.

Este advérbio no discurso designa o momento em que se fala: o próprio dia da enunciação. Portanto, a valorização não está tanto no passado (massacre), nem no processo histórico (cem anos), mas na atualidade (hoje), que é o tempo mais importante para o discurso jornalístico.

6. Considerações finais

Do ponto de vista jornalístico, um fato ganha estatuto de acontecimento por sua imprevisibilidade e atualidade. Quando um acontecimento é mediatizado, ele pode ser posteriormente esquecido ou insistentemente lembrado pelo próprio medium. Para que ele ganhe notoriedade nos arquivos sociais dos meios de comunicação, conforme Mouillaud (2002), ele não tem apenas que permitir ver, mas também não ver. Ou seja, quanto menos um acontecimento é suscetível de ser conhecido, mais ele possui valor informativo. Quanto mais recuado de esclarecimentos ele parecer, mais produzirá um “excesso de falas destinadas a dissimular sua ausência” (MOUILLAUD, 2002, p. 82).

A Guerra de Canudos fez-se incompreendida mesmo em meio a muitas descrições jornalísticas da época. Após cem anos de produções discursivas de campos distintos sobre o acontecimento, enigmas continuam despertando o interesse dos media, que permanecem fazendo inventários sobre o que ocorreu. Assim, o tema continua obsessivamente presente na atualidade, principalmente em datas “comemorativas”. Os vazios das narrativas de outrora produzem um excesso de discursos ainda hoje.

Uma vez que o título referencial remete a acontecimentos anteriores e o informacional dá relevo ao acontecimento atual, pensaríamos inicialmente que uma informação ancorada num acontecimento histórico seria construída por um título referencial. Entretanto, como foi observado na análise dos títulos recentes sobre Canudos, não é o que acontece.

Mesmo porque, como explica Elton Antunes (2007, p. 248): “É muito característico que os jornais brasileiros, diferentemente dos diários franceses analisados por Mouillaud, não tragam os anafóricos como títulos principais das matérias”.

A temporalidade no discurso jornalístico é diferente do tempo cronológico, do sentir o instante. No título informativo, o lançamento de um livro sobre Canudos que acontecerá em alguns dias, pela conjugação do verbo, já se faz atual. O passado distante do massacre de Canudos se faz igualmente presente por seus enigmas ainda não respondidos, pelos discursos produzidos sobre ele e anunciados pela imprensa na comemoração do seu centenário.

O tempo do acontecimento enunciado, o tempo da enunciação e o tempo da produção de sentidos pelo co-enunciador são distintos. No discurso, entretanto, eles se misturam e se articulam como triplo presente – o que faz com que o passado histórico possa ser sempre atualizado, a depender dos interesses e valores da sociedade e da imprensa.

Portanto, para manter a relevância jornalística do acontecimento, o enunciador o constrói a partir da condensação do passado, presente e futuro, dando ao fato histórico uma atualidade dilatada no tempo do discurso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANTUNES, Elton. Videntes Imprevidentes: temporalidade e modos de construção do sentido de atualidade em jornais impressos diários. Salvador: Tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas na UFBA, 2007.

CHARAUDEAU. Patrick. Discurso das mídias. Tradução Ângela S. M. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2006.

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MOUILLAUD, Maurice; PORTO, Sérgio Dayrell (org.). O Jornal: da forma ao sentido. 2. ed. Brasília: UNB, 2002. (Coleção Comunicação, 2).

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*Lidiane Santos de Lima Pinheiro é doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro | ISSN 1806-2776 | Edição 14 | Novembro | 2011
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