Novembro de 2011
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ISSN 1806-2776
 
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DOSSIÊ: TELEJORNALISMO

Uma abordagem compreensiva
Comunicação e Pós-Modernidade
no Jornal Nacional

Por Carlos Golembiewski*

RESUMO

Este texto [1] analisa o papel social do Jornal Nacional (JN) a partir da reportagem Violência que foi ao ar no telejornal em 2004. Em setembro do ano passado, o JN completou 40 anos no ar.

É o telejornal de maior audiência no Brasil e o seu público, estimado em 25 milhões de telespectadores supera os principais programas do gênero na Europa e nos Estados Unidos.

Reprodução

Para fazer a análise uso como referencial teórico as noções de Comunicação, Empatia, Imaginário, Cultura e Pós-Modernidade presentes nos estudos de Michel Maffesoli. Deste autor, utilizo como método, a sua releitura da Sociologia Compreensiva.

PALAVRAS-CHAVE: Telejornalismo / Jornal Nacional / Violência

1. Introdução

Os telejornais fazem parte do nosso cotidiano. Revelam o que aconteceu nas últimas horas do dia. Para manter o telespectador atualizado, há edições matutinas, vespertinas, noturnas e no final da noite. Os exibidos, à noite, são os que têm maior audiência. É nesta hora do dia que a maioria das pessoas está em casa. As crianças já voltaram da escola. E os adultos já retornaram do trabalho.

Depois de um dia cheio de atividades, as pessoas querem saber o que está acontecendo na sua cidade, no seu país e no mundo. Na sala de estar de suas casas, ligam a televisão. Querem relaxar, se divertir, mas também se informar. Os noticiários, exibidos à noite, oferecem isso. Na TV Globo, emissora escolhida para esta pesquisa, o nosso objeto de estudo é Jornal Nacional, exibido diariamente as 8 e 15 da noite, com o objetivo de nos informar sobre os principais acontecimentos do Brasil e do mundo. O programa é o mais antigo telejornal do país, completou 40 anos em 2009.

Quando vai ao ar, acontece um encontro virtual entre milhares de brasileiros através da televisão. Eles podem sorrir ao ver a vitória do seu time de futebol e chorar ao ver o sofrimento de um conterrâneo que perdeu a sua casa por causa de uma enchente. Nos últimos seis anos houve uma diminuição na audiência. O fortalecimento dos telejornais concorrentes pode ser uma explicação.

Em Santa Catarina, segundo o IBOPE (Diário Catarinense, 2010) o recuo foi de 19%. Mesmo assim, o JN ainda figura entre os cinco programas mais assistido da televisão brasileira. Se aplicarmos a mesma queda para todo país, o telejornal teria hoje algo em torno de 25 milhões de espectadores, contra 31 milhões em 2004 (Lima, 2004). Atualmente, o programa é apresentado pelos jornalistas William Bonner e Fátima Bernardes, sendo que o primeiro acumula a função de editor-chefe.

Intrigado com esse sucesso, esta pesquisa quer revelar qual o papel social do JN para os brasileiros? Para responder esta pergunta utilizamos como método os escritos do francês Michel Maffesoli (1985) sobre a Sociologia Compreensiva. Do mesmo autor, montamos um referencial teórico com as seguintes noções: Comunicação, Empatia, Imaginário, Cultura e Pós- Modernidade.  Em função da limitação do espaço para este artigo, apresento apenas a análise feita na reportagem Violência que tem como ponto de partida o tráfico de drogas no Rio de Janeiro.
      
2. Noções para Compreender o Telejornal

2.1. Comunicação

Para Maffesoli (2003, p. 15), a Comunicação é mais do que a simples emissão e recepção de mensagens: “As pessoas não querem só informação na mídia, mas também e fundamentalmente ver-se, ouvir-se, participar, contar o próprio cotidiano para si mesmas e para aqueles com quem convivem”. Já Dimbleby e Burton (1991) trazem uma posição mais próxima do pensamento do sociólogo francês.

Para eles, Comunicação é criar e compartilhar significados, um processo que envolve pessoas e meios mecânicos. Segundo Maffesoli (1999), a Comunicação faz o laço social entre as pessoas, permite o que ele chama de estar-junto. Ele explica que o laço social não é algo abstrato, mas está baseada na posse de valores comuns como a língua, os costumes, a culinária, as coisas concretas do cotidiano, o material e o espiritual de um povo:

Por meio de noções, ou metáforas, como orgia, socialidade, tribo, emoção, estética, pretendo mostrar que o laço social não é mais unicamente contratual, racional, simplesmente utilitário ou funcional, mas contém uma boa parte de não racional, de não-lógico, algo que se exprime na efervescência de todas as formas ritualizadas (esporte, música, canções, consumo, consumição, revoltas, explosões sociais), ou, em geral, totalmente espontâneas (Maffesoli, 2005, p. 7).

De acordo com Maffesoli (2003, p.15), este é o papel da Comunicação: ligar as pessoas, que têm interesses comuns. Permitir um estar-junto no dizer do autor. “A sociedade da informação, portanto, pode até fazer crer que o mais importante são os seus jornais, televisões, rádios, mas no fundo o que conta é a partilha cotidiana e segmentada de emoções e de pequenos acontecimentos”. O sociólogo (2003) esclarece que a Comunicação funciona como uma espécie de “cimento social”. O JN liga os brasileiros de Norte a Sul. Apesar das diferenças e das desigualdades sociais, todos têm um sentimento comum: o Brasil.

2.2. Empatia

Maffesoli (1999) assinala que só existimos em relação ao outro. Que não estamos isolados no mundo. Que vivemos num mundo comum carregado de simbolismo. Que o outro pode ser Deus, a família, a tribo, o grupo de amigos. Em todos esses momentos, segundo Maffesoli (1999, p. 310), há uma forte carga de Empatia, considerada pelo autor como: “Um despojar-se de si mesmo; uma abertura aos outros, um desejo de fusão, de participação, de vitalismo tribal”. Maffesoli (1999) observa ainda que, para que isso ocorra com o indivíduo, é preciso haver Identificação, princípio que preside qualquer forma de agregação social.

2.3. Imaginário

A Mídia abriga o Imaginário de um povo. Serve de suporte para ele se manifestar. Maffesoli (2001, p. 76) salienta que o Imaginário é “um estado de espírito de um grupo, de um país, de um Estado-Nação, de uma comunidade”. O autor dá como exemplo os jornais O Globo e o JB que encarnam até certo ponto “o jeito carioca de ser”. Do mesmo modo que a Folha de São Paulo e o Estado de SP, expressam “o estilo paulista de ser”. No Rio Grande do Sul, os jornais Zero Hora e Correio do Povo cumprem essa função.

2.4. Cultura

Santaella (2003, p. 31) situa a Cultura como “a parte do ambiente que é feita pelo homem”. A autora explica que, nesta noção, está implícito que a vida humana é vivida num contexto duplo: “o habitat natural e seu ambiente social”. Maffesoli (1985, p. 240) está de acordo com Santaella, mas avança um pouco. “Não é mais possível haver, de um lado, a Cultura e, do outro, a natureza, considerando-se ainda todas as conseqüências que implica esta rígida dicotomia”.

Na visão de Maffesoli (1985, p. 235), o homem vive em contato com a natureza, seja nas praias, nas florestas e até na religião, quando celebra os cultos africanos. Ele observa que a natureza está presente em vários momentos da nossa vida: “Um modo de viver que, em inúmeros domínios – alimentação, medicinas, sexualidade, vestuário – ultrapassa a clássica dicotomia natureza-cultura, objetivo-subjetivo, que ocorria até então”. Lembra que a Beleza, uma coincidência entre o real e o ideal, é um exemplo da sinergia, que ocorre entre a natureza e a Cultura.

2.5. Pós-Modernidade

Maffesoli (1999, p. 49) explicou que a Pós-Modernidade surgiu depois do esgotamento do modelo vivido na Modernidade, baseado em temas, como Estado-Nação e os sistemas ideológicos. Segundo o autor, a nova era trouxe de volta “o retorno ao local, a importância da tribo e a colagem mitológica”. O sociólogo citou como exemplo o fim do ex-Império do Leste europeu, onde muitas províncias lutaram pela autonomia e independência. Houve luta armada e pacífica. O localismo, para o autor, é uma das características centrais da nossa época.

Outra característica da Pós-Modernidade é a idéia de que vivemos numa “Sociedade do Espetáculo”, onde os acontecimentos diários se transformam em “show” para nós mesmos. Debord (1998, p. 14 e 15) esclarece que o espetáculo não é um conjunto de Imagens, mas uma relação social mediada por Imagens. Para ele, “a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real”. Ianni (2000, p. 241) diz que Imagem predomina na Cultura de Massa. Ela disputa um lugar com a palavra impressa: “a Imagem enquanto meio de Comunicação, Informação e Entretenimento; sem esquecer seus usos no que se refere à compreensão, reflexão e fantasia” – salienta o autor.
            
3. Opções Metodólogicas

A Sociologia Compreensiva, de Maffesoli, método escolhido para desenvolver este artigo, baseia-se em cinco pressupostos explicados no livro O Conhecimento Comum, escrito em 1985, e publicado no Brasil três anos depois. São eles: 1 - crítica do Dualismo Esquemático; 2 - a “Forma”; 3 – uma Sensibilidade Relativista; 4 - uma Pesquisa Estilística; e 5 - o Pensamento Libertário. Maffesoli (1985, p. 25) considera que a Sociologia Compreensiva é uma espécie de sociologia romântica: “Uma atitude que pensa em termos de globalidade, recusa a discriminação, a avaliação do que seria importante, e do que não o fosse”. Segundo o autor, a Sociologia Compreensiva “descreve o vivido naquilo que é, contentando-se, assim, em discernir as visadas dos diferentes atores envolvidos”.

Maffesoli (1998) concentra seus estudos na vida cotidiana. Ele observa que a Comunicação, a Imagem e o estilo são elementos marcantes de uma nova Cultura que está nascendo. Cultura essa, segundo o autor, que está revolucionando o “estar-junto” Pós-Moderno.

Em função, certamente, da massificação da Cultura, mas também porque todas as situações e práticas minúsculas constituem a terra fértil sobre as quais crescem Cultura e civilização. Sem querer se aprofundar aqui pode-se dizer que o interesse culinário, o jogo das aparências, os pequenos momentos festivos, as perambulações diárias e o lazer não podem ser mais vistos como elementos sem importância ou frívolos da vida social (Maffesoli, 2005, p. 12).

O sociólogo salienta que a vida cotidiana como obra arte exerce o mesmo papel que a “arte” desempenhou nas civilizações antigas. Para ele (2005, p.8), vivemos uma ética da estética, isto é: “Um ethos constituído a partir de emoções partilhadas em comum”. Ele cita como exemplo, os espetáculos de variedades, as práticas desportivas, as campanhas eleitorais na televisão, os fait divers mais ou menos espetaculares. Tudo isso faz parte de um jogo social, onde a emoção é compartilhada:

Pratica-se a comunhão de emoções ou de sensações que, sem isso, perderiam a graça. Essa partilha de emoções ou de sensações – difundida nas ações mais comuns ou cristalizada nos grandes eventos pontuais ou comemorativos (aniversários, revoluções, movimentos de massa, greves, manifestações, etc.) – é, stricto sensu, o que funda a vida social ou lembra a sua fundação (Maffesoli, 2005, p. 54 e 55).

Em 2006, Maffesoli explicou durante um Seminário, realizado em Porto Alegre, qual é a tarefa da Sociologia Compreensiva. Segundo ele, o seu papel é compreender tudo aquilo que foi separado na Modernidade. Ressaltou que, em Latim, a palavra “compreender” vem de com/preendere que significa “pegar tudo junto”.

Ele explicou que durante a Modernidade (século XIX), época em que houve a invenção do Indivíduo, prevaleceu a idéia de que era preciso “separar” para explicar o mundo. De acordo com pensador francês, uma das conseqüências dessa maneira pensar é a destruição da natureza. O homem acreditava que podia tudo, que era soberano, que nada podia lhe acontecer. Hoje, início do século XXI vive-se uma luta global para preservar o que ainda resta do planeta Terra.

4. Uma reportagem sobre a Violência no Rio de Janeiro

A matéria da repórter Sandra Moreira fez um diagnóstico sobre como a Violência se desenvolveu no Rio de Janeiro. Ela informou que 10% dos moradores da cidade moram em favelas. E, alertou: “onde o Estado não entra com serviços públicos básicos à população, o crime entra”. A reportagem salientou que a Violência é alimentada pelo comércio de drogas, sobre o tema falou um sociólogo, um comandante da polícia e moradores. Apesar desse ambiente adverso, as pessoas lutam para encontrar soluções, como a criação de uma cooperativa de costumeiras ou de um grupo de Teatro.

Transcrição – Matéria Violência – JN

Cabeça – Âncora – Fátima Bernardes

A violência faz parte do cotidiano de centenas de milhares de brasileiros que habitam comunidades pobres das grandes cidades. Cidadãos que muitas vezes não têm acesso a inúmeros serviços que deveriam ser prestados pelo serviço público, mas que tem a capacidade de se organizar em busca de soluções.

Off 1 - Barracos pendurados sobre o asfalto. Invadem as matas. Ocupam os morros da cidade. A favela cresce.

Passagem – Repórter Sandra Moreira

“O Rio de Janeiro é uma cidade onde mais cresce a ocupação irregular. Hoje, 10% dos moradores da cidade vivem em favelas. De acordo com dados do último censo, nos últimos dez anos, o numero de favelas da cidade passou de 660 para 811”.

Off 2 - Cabe a prefeitura conter esse avanço com programas de habilitação e urbanização. Mas na rocinha, apesar dos projetos, o número de casas duplicou em 10 anos. Educação e saúde são também deveres do estado, que ainda é responsável pela segurança pública. Nas favelas faltam escolas, saneamento, postos de saúde. E onde o poder público não entra, entra a crime, o tráfico de drogas, a violência. Criminosos usam armas que atravessam as fronteiras e chegam as favelas do rio. A fiscalização é um dever do governo federal. Este sociólogo diz que a responsabilidade é de todos.//

Sonora – Michel Misse - sociólogo

“A luta pelo poder entre diferentes esferas, municipais, estaduais e federais, incompetência de todo do tipo, todos esses fatores estão envolvidos e complicam por demais o quadro”.

Off 3 - Em um estudo encomendado pela organização das nações unidas, de cada cem reais gastos pelos usuários de drogas da cidade, oitenta acabam financiando a violência.

Sonora II – Carlos Fernando Bell – Cel. Polícia Militar – RJ

“Se não houver quem compre não há quem venda, não havendo quem venda, necessariamente nós não vamos ter esses poderio bélico matando pessoas inocentes”.

Off 4 - Mas a sociedade reage. Uma pesquisa do conselho regional antidrogas do Rio, mostra que é cada vez maior o número de dependentes que procuram ajuda. Quem faz parte do programa sabe que é preciso conquistar um dia de cada vez.

Sonora III – Não identificada.

“Eu sei que se eu voltar a usar drogas, vai voltar tudo como era antes, todo o inferno volta novamente”.

Off 5 - Para combater a violência os próprios moradores da favela encontraram um caminho. As costureiras da rocinha criaram uma cooperativa e formam centenas de jovens.

Sonora IV – Viviane Bezerra- Costureira

“Tenho sonho de estudar, de fazer uma faculdade de estilismo, continuar nessa linha. O importante é sonhar”.

Off 6 - O grupo de teatro nós do morro, criado por um grupo de moradores do vidigal, hoje interpreta shakespeare.

Sonora – Guido Fraga- Diretor do Espetáculo

“Eu acho que arte é transformadora, ela te dá uma auto-estima e você se sente capaz. Você sente a possibilidade de viajar no sonho, ou de realizar o seu sonho e de lutar pelos sonhos”.

Análise - Essa reportagem tentou explicar porque há tanta Violência na cidade do Rio de Janeiro. Não noticiou prisões, nem apreensões de drogas, mas tentou ir ao cerne da questão. A matéria exerceu o papel da Comunicação, ou seja, tornou comum a milhares de brasileiros o contexto da Violência no Brasil. Ficamos sabendo que a Violência nas favelas é mantida pelo tráfico de drogas, dinheiro que sustenta estas organizações, e mantém um Estado paralelo nas favelas. Isso não acontece por acaso, mas conseqüência do fato de pessoas comprarem drogas. 

Entretanto, a reportagem também mostrou que há moradores que encontraram maneiras de sobreviver neste mundo caótico. Montaram, por exemplo, um ateliê de costura e um grupo de Teatro, projetos que fomentam a perspectiva de um futuro melhor. Os telespectadores do JN ficaram sabendo dessas iniciativas através da matéria Violência. Permitiu que uma ex-dependente de drogas e uma costureira pudessem contar os seus dramas e seus sonhos a milhares de brasileiros.

No dizer de Maffesoli (2003), a Comunicação serve para isso: fazer com que as pessoas possam “expressar seus sentimentos vividos no dia-a-dia da existência humana”. Por fim, a matéria estabeleceu aquilo que o sociólogo francês chama de laço social, isto é, ligar todos os brasileiros àquele problema. A reportagem nos fez perceber que a realidade vivida no Rio Janeiro não é exclusiva, também pode ser encontrada nas outras grandes cidades brasileiras. Portanto, é uma realidade que pertence a todos nós.

Embora, muitas vezes, não queiramos admitir, a favela faz parte do cotidiano das grandes cidades brasileiras. Ela é sinônimo de pobreza, crimes e de marginalidade. A favela nos pertence. É lá que vivem milhares de brasileiros. Somente no Rio de Janeiro, há um milhão de pessoas nessas condições. Como disse Maffesoli (1999): “Só existimos em relação ao outro”. Na favela, esconde-se o crime, mas nela que vivem milhares de pessoas trabalhadoras e honestas. Gente que trabalha duro na parte mais rica da cidade. É a mão de obra que ajuda no funcionamento das empresas e até das casas de família de parte da classe média brasileira.

De outro lado, alguns moradores da cidade, também da parte rica, sustentam a Violência nas favelas, consumindo drogas. Com isso, verifica-se a interdependência social entre os bairros ricos e pobres das grandes cidades. A favela não existe isolada no mundo. Depende dos bairros ricos e vice-versa. Portanto, o que acontece na favela nos diz respeito e a Violência é um desses acontecimentos.

Esta reportagem fez um desenho do problema. Enquanto o sociólogo observou que os poderes agem isolados, a polícia ressaltou que os usuários de drogas financiam a Violência. Com o passar do tempo, os consumidores viram dependentes químicos e transformam suas vidas num inferno. Mesmo num ambiente tão hostil, pessoas do bem se unem para montar cooperativas de trabalho e grupos de teatro.

A favela, embora não pareça, guarda semelhanças com os bairros ricos. Há pessoas honestas e trabalhadoras, mas há muita gente que vive do crime. Todos os dias, ficamos sabendo de atos praticados por pessoas que moram no chamado asfalto. São usuários de drogas, empresários, funcionários públicos, etc. Os crimes acontecem em diferentes lados, inclusive por pessoas que atuam nos governos legalmente estabelecidos.

Podemos falar, também, do dono da droga vendida na favela. Ele mora no asfalto. Quem vende o produto é apenas um laranja que está num cargo provisório, podendo morrer a qualquer momento. Já o verdadeiro dono da droga vive num bairro nobre, tem dinheiro para comprar as armas e a própria polícia.

Não há como deixar de se chocar e se identificar essa realidade. Todos os dias, assistimos, na TV a pessoas inocentes que morrem no asfalto e na favela. É um círculo vicioso. A matéria Violência tentou explicar esse drama do nosso cotidiano. Mostrou por exemplo, um ex-dependente, que não quer voltar a consumir drogas, e uma jovem costureira que sonha com uma vida melhor. A reportagem resumiu a sociedade brasileira. Mostrou o caos das favelas e também a força dos brasileiros que lutam com dignidade pela sobrevivência.

A reportagem conseguiu ressaltar o Imaginário existente nas grandes cidades brasileiras. A Violência comum provocada principalmente pelo comércio ilegal de drogas, e a Violência silenciosa que se manifesta através das condições de moradia, de saneamento básico, de educação, saúde, oportunidades. A repórter Sandra Moreira sintetizou essa realidade brasileira: “Onde o poder público não entra, entra o crime”.

Entretanto, a matéria captou outro Imaginário: o desejo de acertar, de caminhar na direção certa de vencer. Esse “estado de espírito” apareceu no depoimento das pessoas, que fizeram uma fala positiva, se posicionaram contra a Violência, a favor de uma sociedade melhor. A sonora da costureira Viviane exemplificou esse desejo: “Tenho um sonho de estudar, de fazer uma faculdade de estilismo, continuar nessa linha. O importante é sonhar”.

Portanto, a matéria Violência nos revelou a complexidade do Imaginário brasileiro. De um lado, o crime, as condições de moradia, a fragilidade dos poderes constituídos. Do outro, o desejo de melhorar de vida, de construir um mundo melhor. Maffesoli (2001, p. 75) explica que o Imaginário funciona como uma espécie de “cimento social que liga e une a todos numa única atmosfera”. Como já havia dito antes, a favela pertence à nossa sociedade, é preciso compreender isso.

A reportagem Violência abordou, também, o crescimento do número de favelas nas grandes cidades. Na maioria das vezes, os morros são ocupados de maneira irregular, sem a permissão do poder público municipal. São ocupações de áreas urbanas, muitas delas destinadas à preservação do Meio Ambiente. Na favela, há todo um ambiente social e, portanto, Cultural diferenciado daquele vivido nos demais bairros das grandes metrópoles. Existem casas de madeira construídas de maneira precária e casas de material, cuja cobertura é uma laje de concreto. A laje indica que, na favela, as casas são pequenas e só podem crescer para cima. Enquanto não há dinheiro para aumentar a casa, a laje se transforma num lugar para fazer festas e estender a roupa.

As favelas são bairros de poucas ruas, cheias de vielas, subidas e descidas que parecem labirintos. Um lugar sem trânsito de carros. Por isso, os moradores chamam de “asfalto” os outros locais da cidade. Numa referência àquilo que não possuem. Os habitantes da favela moram próximo um do outro, e, talvez por isso, se autodenominem de “comunidade”.

Por ser um lugar marginal, no sentido de ficar à margem da cidade, ocupado de maneira ilegal, os marginais lá se instalam, escondem armas, drogas e até pessoas. Nesse ambiente social, há toda uma Cultura diferenciada: venda de drogas, crimes, exclusão social, medo, luta pela sobrevivência. Numa palavra: Violência.

Ainda em relação à Cultura, outra situação pode ser mencionada: o papel exercido pela Televisão na nossa sociedade. Ao ser veiculado no JN, a reportagem Violência trouxe, até a nossa sala de estar, o caos vivido nos morros do Rio de Janeiro sem que precisássemos sair de casa. Segundo Hall (1976 apud ORTIZ, 1988), a Mídia encurta as distâncias e vem fazendo uma revolução Cultural na nossa sociedade desde o século XX. A matéria evidenciou um lugar esquecido pelo Estado e dominado pelo crime. Também nos revelou pessoas do bem, que querem mudar suas vidas. A costureira quer ser estilista, o ex-dependente de drogas não quer voltar a consumir. 

O sociólogo criticou a luta pelo poder, revelou a ineficiência do Estado, que ficou grande e burocrático demais para agir. A sua interpretação resgatou uma espécie de Cultura do atraso a que estamos submetidos. Cada poder constituído age isolado e a seu modo. Por que não há ações planejadas e de forma conjunta? Por que os poderes públicos não levantam as prioridades e começam a agir? Por exemplo, só se fala de Segurança, de crimes, da Violência nas comunidades pobres. Mas, essa população precisa mais do que isso. Por que não se planejam Postos de Saúde qualificados funcionando 24 horas por dia? Escolas de qualidade e assim por diante. Um ex-chefe de Polícia do Rio de Janeiro disse, com todas as letras, no documentário “Notícias de uma Guerra Particular” (1999): “O único serviço do Estado que sobe o morro é a polícia”. 

Por isso, as favelas do Rio se transformaram em verdadeiras bombas-relógio, que podem explodir a qualquer momento. Em setembro de 2005, visitamos o Cristo Redentor, um dos pontos turísticos mais bonitos da cidade. Na subida do morro, encontramos pelo menos dois carros da polícia em pontos estratégicos. Os policiais estavam fora do carro com metralhadoras na mão. Ora, se o Estado está nos morros com a polícia, por que não pode oferecer outros serviços?

Por fim, a reportagem cristalizou o medo e a violência a que os cariocas e os turistas estão sujeitos e levantou a dicotomia que é morar num lugar daqueles. Uma natureza tão bela, com paisagens privilegiadas, numa atmosfera carregada. Ou seja, o ambiente social, portanto, Cultural, está degradado, impedindo que os moradores possam usufruir das belezas naturais da cidade com tranqüilidade.

A matéria Violência constitui um exemplo de narrativa Pós-Moderna. Para mostrar projetos que resgatam a cidadania das pessoas que vivem nas favelas, a repórter optou por contextualizar a Violência nos morros. Para isso, recorreu a cenas de arquivo que continham Imagens de pessoas armadas, de drogas e armas apreendidas pela polícia.
A repórter fez uma colagem de Imagens, para poder contar esta história. O fato novo não era a Violência, mas os seus antecedentes e os projetos sociais que dão esperança àquelas populações. Este recurso usado pela repórter, segundo Ianni (2000), é uma das características da narrativa Pós-Moderna.

Ao fazer o resgate dessas cenas, a reportagem nos lembrou a onipresença do vídeo, da chamada hiper-comunicação. Quase sempre há uma câmera ligada para registrar algo proibido. Rouanet (1986) revela que este é o aspecto social da Pós-Modernidade: as pessoas se relacionam muito mais pelo vídeo do que frente a frente. Já fiz menção a esse fato. A Violência das cidades chega a nossa casa através dos telejornais.

No aspecto econômico, ainda apoiado nas idéias de Rouanet (1986), temos o que ele chama de Capitalismo planetário. As armas de alto poder de fogo, citadas na reportagem, chegam impunemente ao Rio de Janeiro. São fabricadas por grandes empresas da Europa e dos Estados Unidos. Quer dizer, onde há demanda, o produto consegue chegar, mesmo que seja de forma ilegal. São os lucros da Violência, do tráfico de drogas gerando receita para empresas estrangeiras.

A Pós-Modernidade, também, valoriza o político. Neste viés, segundo Rouanet (1986), ocorre uma elevação da sociedade civil, onde “as conquistas passam a ser de grupos e não mais universais”. O enfoque da reportagem teve este olhar. Valorizou o trabalho do Conselho Antidrogas do Rio, a Cooperativa de costureiras que ensina o ofício aos mais jovens e a criação do Grupo de Teatro Nós do Morro que, na matéria, estava apresentando uma peça do dramaturgo inglês Shakespeare.

Maffesoli (1999, p. 258) já ponderou em entrevistas que aprende muito quando visita o Brasil. Que o país é uma espécie de laboratório da Pós-Modernidade. Se olharmos para o Rio de Janeiro, uma das cidades mais importantes do Brasil compreende-se o que o sociólogo quer dizer sobre a Pós-Modernidade: “Um processo complexo feito de atrações, de repulsões, de emoções e de paixões”.

Por ser um apaixonado pelo Rio de Janeiro, percebemos este tipo de sentimento: “Que litoral bonito, cheio de morros, de encostas, com tanta beleza natural e urbana”. Algo que atrai e emociona milhões de pessoas de todas as partes do mundo. Ao mesmo tempo, quando descobrimos o que tem atrás de todo esse visual, o desgosto aparece. São as grandes favelas que parecem não ter fim. Como não se entristecer com isso?

Já disse antes, ao subir o morro que leva ao Cristo Redentor, avistamos o bairro das Laranjeiras, mas vemos também a favela, encravada no morro, com a presença de policiais. Esse é o trajeto que temos que fazer para chegar a um dos pontos turísticos mais bonitos do Brasil e do mundo. Portanto, temos que viver num espaço tão belo, bonito e ao mesmo tempo violento. A mesma cidade que nos atrai também nos causa repulsa. Maffesoli (1999) chama isso de “mundo comum”, cuja realidade se constrói a partir das referências simbólicas.

Podemos dizer que na matéria Violência está presente o que Debord (1998) chama de Sociedade do Espetáculo. Isto é, os acontecimentos do cotidiano se transformam num show para nós mesmos ao chegar até nós através da Televisão. O interessante nisso é que o dia-a-dia de uma favela, em tese, não tem nada de excepcional para os moradores. Afinal, há pobreza, prisões, mortes, tiroteios, venda de droga e muito medo. Entretanto, isso se transforma em notícia às oito horas da noite.

Debord (1998) chega a dizer que “a realidade surge no espetáculo, o espetáculo é real”. Nessa matéria, por exemplo, vimos Imagens de violência, mas, também, cenas de pessoas, lutando por uma vida melhor. Portanto, a matéria mostrou uma realidade complexa, que não é fechada, onde não existe somente o lado ruim. Para Debord (1998), o verdadeiro espetáculo não é um conjunto de Imagens, mas uma “relação social mediada por Imagens”. Quer dizer, nós brasileiros não precisamos ir até a favela para conhecer aquela realidade. A Mídia, nesse caso o telejornal, exibido na TV, traz aquele mundo até nós.

Maffesoli (1999) observa que o espetáculo é a matéria-prima dos telejornais. E que a vida cotidiana tem, hoje, o mesmo valor que a obra de arte tinha nas antigas civilizações. Mesmo sendo uma situação adversa, como é na matéria Violência, ela representa o poder da vida. Por fim, a reportagem deu brilho ao cotidiano daquelas pessoas, as suas histórias nos emocionaram. A matéria mostrou um mundo sofrido, cheio de dor, mas também um lugar onde a esperança, o sonho e a alegria podem estar presentes, com a proposta de transformar o nosso país num lugar melhor.

NOTA

[1] Artigo apresentado no 8º Encontro Nacional de História da Mídia, em Guarapuava de 28 a 30 de abril de 2011.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Documentário:

Notícias de uma Guerra Particular. Kátia Lund e João Moreira Salles. 56 min. 1998/1999.

*Carlos Golembiewski é professor de Telejornalismo e Realidade Brasileira da Univali (SC).

 

 







Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro | ISSN 1806-2776 | Edição 14 | Novembro | 2011
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