Novembro de 2011
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ISSN 1806-2776
 
Publique
Contato
 


Site da ECA





 

 

 


 

 

 

 

 

 

 



ARTIGOS

História do Pensamento Jornalístico Português
Os jornalistas do Porto e a
Gazeta Literária
(1952-1971)

Por Jorge Pedro Sousa, Nair Silva, Patrícia
Teixeira e Maria Érica de Oliveira Lima*

RESUMO

Este trabalho [1] recupera, através da análise qualitativa do discurso, o contributo da “Gazeta Literária” (1952-1971), jornal da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, para o Pensamento Jornalístico Português, num momento de modernização, profissionalização e rejuvenescimento do jornalismo em Portugal.

AJHLP - Reprodução

Concluiu-se que os jornalistas portugueses procuravam, à época, um sustentáculo teórico e referentes identitários para uma actividade em transformação, pelo que discutiram quer questões académicas (versando, por exemplo, a história do jornalismo, importante para transmitir um sentido histórico de identidade aos jornalistas; a definição do jornalismo; o conceito de jornalista; e a formação em jornalismo), quer os problemas profissionais, incluindo os provocados pela censura, pelo mercado e pelas empresas jornalísticas.

PALAVRAS-CHAVE: História Do Jornalismo / Jornalismo português / Gazeta Literária

1. Introdução

Entre o final dos anos cinquenta e 1974, ano da revolução que permitiu a reinstituição de um regime democrático em Portugal, o jornalismo português atravessou um período de modernização das empresas, de rejuvenescimento e profissionalização de quadros e de mudança nos padrões de recrutamento, sendo notória uma melhoria do nível de escolaridade dos jornalistas (CORREIA E BAPTISTA, 2007; 2010; SOBREIRA, 2003; 2010).

O processo não foi fácil. As empresas jornalísticas eram débeis, o país pobre, a liberdade de imprensa constrangida pelos e os próprios jornalistas estavam divididos em questões como a censura prévia; a possibilidade – e eventual necessidade – de se aceder ao exercício do jornalismo através da frequência de um curso específico, eventualmente ao nível superior; ou a definição identitária do jornalismo (SOUSA, coord. et al., 2010, CORREIA E BAPTISTA, 2007; 2010; SOBREIRA, 2003; 2010).

Nessa época, para os herdeiros portugueses da tradição retórica e literária do período do periodismo doutrinário oitocentista, que viam os seus referentes identitários cada vez mais ameaçados pelo triunfo do jornalismo industrial, o jornalismo seria um ramo da literatura ou mesmo da história, impondo-se os jornalistas pelas suas qualidades “inatas”, sobretudo retóricas; outros consideravam-no pelo menos uma arte liberal, ainda que não concordassem com a atribuição à actividade do estatuto de profissão liberal (de onde emergia, por exemplo, a discórdia sobre a necessidade, ou não, de uma Ordem dos Jornalistas), e encaravam a sua actividade como uma profissão que, como outras, seria passível de ser ensinada e aprendida (SOUSA, coord. et al, 2010, SOBREIRA, 2003; 2010).

Ao publicar-se, embora com interrupções, ao longo de quatro séries, entre 1952 e 1971, em pleno Estado Novo, num momento em que existiam tensões e divergências entre os que se diziam jornalistas, a Gazeta Literária, órgão da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, constitui um objecto de estudo relevante para se compreender o pensamento dos jornalistas portugueses dessa época.

Este trabalho tem, assim, por objecto o discurso metajornalístico da Gazeta Literária, entendido como discurso auto-referencial sobre o jornalismo feito por jornalistas e homens de letras num jornal cujo público-alvo era, também ele, constituído por jornalistas e homens de letras.

O objectivo geral desta pesquisa é apreciar o discurso da Gazeta Literária, prestando especial atenção ao enquadramento discursivo dado ao jornalismo e ao exercício da actividade jornalística, num contexto histórico marcado pela ditadura do Estado Novo (1933-1974), pela censura e, ao nível profissional, pelo agitado processo de profissionalização, modernização e rejuvenescimento do jornalismo português a que se fez referência.

Ou seja, pretende apurar-se do que fala e como fala a Gazeta Literária quando fala de jornalismo, recuperando o seu papel na construção das bases do Pensamento Jornalístico Português. A hipótese a testar é a de que os jornalistas portuenses, através da Gazeta Literária, participaram na construção do Pensamento Jornalístico Português, discutindo os temas que Sousa (coord.) et al. (2010a) afirmam terem sido osmais relevantes da teorização portuguesa do jornalismo anterior a 1974 (conceptualização do jornalismo e da profissão de jornalista; liberdade de imprensa; ensino do jornalismo; história do jornalismo e dos jornalistas, tema importante para a definição da identidade profissional). Tentou-se responder às seguintes perguntas de investigação:

1) Quais os temas do discurso metajornalístico da Gazeta Literária?
2) Quais os enquadramentos sugeridos pela Gazeta Literária no seu discurso metajornalístico? Ou seja, como olharam os redactores da Gazeta Literária para o jornalismo, tendo em conta o contexto da época?

A apuração de dados qualitativos sobre o discurso da Gazeta Literária, conforme sugere Sousa (2006, pp. 343-376), restringiu-se à inventariação, anotação e descrição dos principais enquadramentos discursivamente sugeridos para o jornalismo e à tentativa de clarificação das intenções dos respectivos enunciadores. Tendo em conta a vastidão do universo sobre o qual incidiu a análise, criou-se, tal como aconselha o mesmo autor (SOUSA, 2006, pp. 352-374), uma grelha de assuntos abordados pela Gazeta Literária, lendo-se o periódico em causa, e procuraram-se determinar e registar exemplos dos principais enquadramentos de sentido (incluindo os contraditórios) sugeridos para os assuntos identificados como centrais.

2. Os jornalistas e o jornalismo

O que sugerem os redactores da Gazeta Literária – e aqueles a quem os redactores do periódico dão voz – que o jornalismo é? Primeiro, entendem-no de uma forma útil – e positiva – ao seu imaginário identitário profissional. Norberto Lopes (cit. in ANÓNIMO, 1959a, pp. 1-2), histórico director do Diário de Lisboa, afirmava, por exemplo:

Como D. Quixote, o jornalista procura bater-se sempre pelas causas justas – quantas vezes até pelas causas perdidas – afrontando, por via da regra, as mesmas incompreensões e a mesma ingratidão (…) do Cavaleiro da Triste Figura. Por isso, a nossa profissão exige (…) faculdade de isenção, espírito de sacrifício e vocação missionária (…). O velho lugar-comum do “sacerdócio da imprensa” não é (…) descabido. (…) Desde as primeiras gazetas (…) que o jornalista passou a exercer uma função essencial ao progresso dos povos. Lisonjeado por uns e temido por outros, o jornalismo foi sempre olhado com desconfiança (…). E, no entanto, a ele se devem muitos benefícios, muitas sugestões úteis (…) para o progresso da humanidade. Foram os jornalistas que exerceram (…) grande papel histórico na conquista e na defesa das liberdades públicas. (…) E (…) o jornalismo de opinião (…) contribui (…) para orientar as massas.

Já Acúrcio Pereira (1959, p. 11) é mais irónico:

Eu não conheço profissão de que se exijam as qualidades mais díspares. Comecemos porque o jornalista deve possuir uma cultura geral, a consciência do humano; deve ser audacioso e prudente; enérgico e paciente; astuto e sincero; desinteressado e apaixonado; rápido e reflexivo; dispor de uma ginástica mental e dum espírito de improvisação que lhe permitam resolver num abrir e fechar de olhos um problema difícil (…).

Nota-se, nas palavras dos autores citados, um esforço teorizador do jornalismo direccionado para a delimitação e solidificação do sustentáculo teórico de uma profissão que se estava a transformar. Os redactores da Gazeta Literária andavam, efectivamente, à procura de respostas que permitissem construir teoricamente a identidade da sua profissão. Às vezes faziam-no idealizadamente, como Acúrcio Pereira (1959, p. 11):

O jornalista sofre as inclemências do frio ou do calor, calcorreia a cidade (…) à procura da notícia (…), tem de se informar em vertigem – e de informar-se com exactidão, empanturra-se de discursos (…) balofos, trabalha (…) contra relógio, arrisca-se a não almoçar, a não jantar, a não dormir (…). E todavia, que pitoresca concepção faz o público (…). Para ele, o jornalista é um homem que entra em toda a parte (…), é um homem que pode tudo e sabe tudo. E afinal, não sabe tudo e sabe o que é possível. Ai dele se um pormenor não é exacto, se se esquece de um nome (…). O menos que lhe acontece é ser lapidado com ironias, quando não o acometem com frases rudes. Distribui um elogio, é muito inteligente (…); esqueceu-se do elogio, é um burro ou um malfeitor. E, todavia, sobre os ombros deste homem pesa uma grande responsabilidade (…).

Uma das perguntas sobre o substrato teórico do jornalismo para as quais se procuraram respostas foi a seguinte – seria o jornalismo história? O jornalista Norberto Lopes (cit. in ANÓNIMO, 1959a, p. 2), citando o académico brasileiro Danton Jobin, disse “A imprensa não é história, assim como o jornalista não é um historiador”, pois o primeiro “conta os factos como chegam ao seu conhecimento ou como ele próprio os viu” e “quando comenta um acontecimento não o faz com o fim de servir a história, de pronunciar um juízo definitivo”. “O máximo que se pode exigir dele são conclusões provisórias”.

No mesmo sentido, mas propondo uma certa intemporalidade ao impacto historiográfico do labor diário do jornalista, escreve, com certa razão, o jornalista Jaime Ferreira (1959, p. 13): “Ser jornalista é escrever, dia a dia, páginas que sirvam de alicerce aos futuros historiadores.”

Uma segunda questão colocada com insistência na Gazeta Literária foi a da confluência entre jornalismo e literatura, que tinha repercussões num dilema profissional que se arrastava desde o século XIX: poderia um “escritor de jornal” ser verdadeiramente considerado jornalista? Quem verdadeiramente é jornalista? A resposta a essa questão mexia com a identidade profissional, em especial com o imaginário e com os valores profissionais dos repórteres.

Para jornalistas como Acúrcio Pereira (1959, p. 11), o jornalismo era um ramo da literatura, ainda que o jornalismo profissional do seu tempo não devesse ser confundido com o do passado, nem o repórter profissional da sua época com o aventureiro boémio de antigamente:

O jornalista não é (…) na actualidade (…) aquele plumitivo que nele se refugiava quando verificava que não tinha jeito para qualquer outra profissão, nem o boémio transviado que corria em busca de aventuras emotivas. O jornalismo é uma profissão, é, quer queiram, quer não, uma modalidade – e que difícil modalidade – da literatura. (…) Escrever nos jornais é muito diferente de todos os outros aspectos da literatura e, todavia, é também literatura (…) de acção directa, com o seu estilo próprio (…). O jornalista, aquele que tem no sangue o vírus do jornalismo, escreve sobre o que presenciou ou lhe narraram (…).

Contudo, uma das respostas teóricas mais relevantes à questão da proximidade entre jornalismo e literatura é dada nas páginas da Gazeta Literária não por um português, mas sim pelo professor de Jornalismo da Universidade do Brasil Danton Jobin (cit. in ANÓNIMO, 1957, p. 48), numa conferência realizada na Faculdade de Letras de Lisboa, devidamente noticiada pelo periódico.

Das palavras de Jobin emerge uma destrinça entre jornalismo e literatura, o que contrariava uma das linhas de opinião entre aqueles que, em Portugal, se diziam jornalistas. Com excepção de alguns casos de crónicas e reportagens, o enunciado jornalístico não teria por fim sobreviver ao tempo, assevera Jobin, mas sim causar “impacto” no leitor:

O jornalismo não é (…) um género literário. O seu fim não é produzir literatura. (…) O impacto sobre o leitor, que é o objectivo, não depende da alta qualidade literária, mas da oportunidade (…), a proximidade (…) veda ao jornalista a perspectiva histórica e priva-o (…) da perspectiva literária. (…) No fundo (…), o jornalista que se preocupa em escrever bem é o escritor que não se realizou (…), mas (…) os processos jornalísticos modernos não opõem jornalismo e literatura. Seria impossível traçar com nitidez uma linha de demarcação entre um e outra. Essa linha ténue (…) marcará (…) a diferença de ângulo em que se colocam o repórter e o romancista (…) – um voltado para as exigências imediatas e transitórias do grande público, outro debruçado sobre os temas universais e permanentes (…).

Se jornalismo e literatura são realidades diferentes, ainda que a separação entre elas seja pouco nítida, porquê, então, a sobrevivência dos literatos, dos “escritores de jornal” no jornalismo europeu? Danton Jobin é categórico: por ausência de “especialização” em “grau acentuado” entre os jornalistas europeus.

Contrariamente a Danton Jobin, o escritor Augusto de Castro (1952, p. 79) afirmava que um jornalista deveria ser um cultor da arte da expressão:

Escrever nos jornais é uma coisa. Ser jornalista é outra. (…) A única diferença entre um homem de letras e um jornalista é que o homem de letras aproveita (…) bocadinhos de papel – e o jornalista deita-os para o ar. Às vezes, lá cai um no chão, mas a maior parte perde-se a voar. (…) Diz-se que é um mister que queima. (…) E queima porque jornalismo é, essencialmente, profissão de entusiasmo. Entusiasmo por uma ideia, por um acontecimento, por uma figura, por uma paisagem. Às vezes, até, entusiasmo por um pedaço de asno. Porque a grande matéria-prima do jornalista é a vaidade humana. Ele é o cronista dos exibicionismos do seu tempo. (…) Estranha profissão que tem (…) esta essencial característica: o trabalho (…) nunca está completo, renova-se todos os dias e todas as noites (…), nasce e morre ao mesmo tempo. (…) O jornal nunca está concluído. (…) Dentro desta labuta fugitiva (…) o verdadeiro homem da imprensa é uma espécie de caçador de borboletas. Às vezes, engana-se e apanha mosquitos, que zumbem. Outras vezes apanha vespas, que picam. Mas se tem no sangue a vocação e o vício, é a borboleta que o tenta, é atrás dela que corre toda a vida (…) indiferente ao zumbido ou à picadela. Sucede, episodicamente, haver na imprensa outros caçadores. São os que caçam melros. Mas em geral são os adventícios, os que vêm de fora. (…) A imprensa já se faz (…) em série. Os bardos estão a desaparecer. Os acontecimentos, que dantes era preciso ir buscar a casa, escovar, polir e trazer para a rua (…) vêm hoje encaixotados (…).

Em jeito de consideração final sobre este ponto, pode reconhecer-se o esforço desenvolvido pelos redactores da Gazeta Literária para, ao teorizarem sobre um campo jornalístico em transformação, dotarem os jornalistas portuenses e portugueses de valores e de um imaginário que os conduzissem a um entendimento da nobreza e utilidade pública da profissão.

3. A crítica ao jornalismo

A crítica ao jornalismo também estava presente na Gazeta Literária. Assiste-se, em primeiro lugar, a uma tentativa de clarificar os valores jornalísticos e quais seriam subalternos em relação a outros tidos como centrais. Por exemplo, intui-se das palavras de Norberto Lopes (cit. in ANÓNIMO, 1959a, pp. 1-2) que o princípio da objectividade da informação poderia ser sacrificado ao valor da actualidade, embora isso pudesse descredibilizar um órgão de comunicação social:

[A objectividade da informação e a exactidão das notícias não podem] levar a excessos de escrúpulos que impediriam ou retardariam a sua publicação, com prejuízo da actualidade, a deusa a que o jornalismo tem de render culto (…). Eis a razão porque nenhum mortal está como ele [jornalista] sujeito à incoerência. As revisões de juízo, as mudanças de ponto de vista em face de situações novas, desapontam o público e podem desacreditar um jornal. Mas são coisas inevitáveis e os verdadeiros jornalistas mudam com humildade e elegância.

Segundo Norberto Lopes, no mesmo texto, haveria, porém, um valor central, o mesmo que a historiografia clássica de Tucídides e Xenofonte propunha, que os jornalistas deveriam respeitar – a verdade:

É evidente que uma informação exacta é sempre preferível a uma notícia incompleta e precipitada. É opinião corrente que um jornal que corre, deliberadamente, o risco de publicar notícias deficientes e não controladas sacrifica o presente ao futuro. Há princípios morais a que tem de se submeter o exercício da nossa profissão, princípios que impedem de adulterar conscientemente a verdade ou de deturpar os factos e os textos para servir uma causa (…).

Tão desculpabilizador como Norberto Lopes para com as falhas do jornalista na exactidão da informação é Acúrcio Pereira (1959, p. 14). Com ironia, diz ele:

A imaginação é uma (…) arma para resolver problemas, não para inventar acontecimentos sensacionais, e ao menos para não dar causa a desmentidos ou correcções, sim, porque um jornal nunca tem lapsos. Lapso é uma palavra que um jornalista deve apagar do seu dicionário. Acontece uma vez por outra não ser verdade o que narra, mas se é jornalista a valer, errou involuntariamente. E o público não perdoa, apesar de esportular um triste escudo pela gazeta. Já me tem sucedido interpelarem-me por uma notícia não ser exacta. A esses infalíveis costumo responder (…): “E queria por um escudo nada mais do que a verdade?”.

Além do valor da verdade, também o valor da independência, para Norberto Lopes (cit. in ANÓNIMO, 1959a, pp. 1-2), seria central. A independência, dentro do princípio da máxima liberdade para a máxima responsabilidade, convocaria a obediência a um outro princípio – o da contenção verbal:

O jornal (…) deve manter-se acima e à margem dos partidos, dos interesses privados, das oligarquias reinantes. Mas, mesmo sem serem solidários com o poder, os grandes órgãos de informação têm de ter (…) em conta as responsabilidades que assumem e são obrigados a exprimir-se com certa circunspecção (…). Um grande jornal não se deve empregar a fundo para combater uma pequena falta (…).

Um dos temas mais abordados no campo da crítica ao jornalismo pelos redactores da Gazeta Literária é o da alegada mercantilização capitalista da imprensa e da sua subordinação ao lucro, que geraria um escusado sensacionalismo, provocado pela ânsia de conquistar público. Mas Norberto Lopes (cit. in ANÓNIMO, 1959a, p. 2), debruçando-se sobre a questão, tem uma visão mais optimista do assunto:

Acusa-se por vezes a imprensa, pelo facto de querer agradar ao maior número possível de leitores, de transigir com o mau gosto e de lisonjear a mediocridade. Claro que esta sentença não se pode tomar à letra. O jornal não deve, só pelo facto de querer captar simpatias e aumentar a sua expansão, lisonjear os baixos instintos de certos leitores, atender às solicitações mórbidas de muitos e transigir com a vulgaridade de tantos. A febre de sensacionalismo (…) é um dos aspectos mais salientes e deploráveis dessa transigência para com o público (…). A preocupação do sensacional implica (…) uma confusão grave dos valores da informação, corrompe o gosto do público, leva os jornais a adoptar formas afastadas da verdade objectiva que deve constituir a sua maior preocupação.

Na linha da doutrina católica, o académico e sacerdote Álvaro Vieira de Madureira (cit. in ANÓNIMO, 1956, p. 9), num discurso transcrito pela Gazeta Literária, prega, também ele, contra a mercantilização do jornalismo e contra as tentações do jornalista em sucumbir às pressões de agentes de poder ou do próprio público:

Ninguém ignora, por outro lado, que no mundo da imprensa (…) existe uma escumalha (…) mercantilista (…). Os próprios jornalistas (…), como notou Pio XII (…) estão sujeitos a (…) tentações tanto da parte dos partidos políticos, como das empresas (…), como ainda (…) das opiniões do público que o jornalista não pode seguir sem reservas (…).

O mesmo tom crítico da mercantilização da comunicação social emerge de um texto sobre rádio, da autoria de Amadeu Meireles (1959, p. 7):

A rádio está transformada em “banca” de negócios e tudo se passa como se se tratasse de vender batatas (…). Ora, aqui é que começa o mal. (…) Na rádio, o que importa é o pagamento dos contratos de anúncios ou programas publicitários (…) o que quer dizer que a rádio é uma empresa comercial, mais nada. (…) A rádio (…) [assim] não tem carácter.

Mas se a imprensa era alvo de críticas, muitas seriam injustas:

Até à grande revolução feita com a iniciativa de (…) Émile Girardin (…), nem a reportagem passava de meia-dúzia de linhas, nem a publicidade dava ensejo ao aumento das tiragens e do número de páginas de cada jornal. Ninguém pode dizer com verdade que a industrialização da imprensa (…) roubou a esse admirável instrumento de divulgação da cultura e de orientação as antigas características de independência e de dignidade; ao contrário, com mais largos meios, de acção, a imprensa exerceu a sua actividade com melhor conhecimento dos factos, das ideias e dos problemas ou questões e mais seguras bases de crítica (ANÓNIMO, 1959b, p. 14).

Em conclusão, os redactores da Gazeta Literária olharam para a realidade jornalística e fizeram-no, afinal, como jornalistas que, com alguma independência, não pouparam à crítica o seu campo de actividade.

4. O ensino do jornalismo

Um dilema que se colocava aos jornalistas portugueses era o da acelerada profissionalização do jornalismo, que reclamava mais investimento na formação dos jornalistas e ameaçava os “escritores de jornal” e os que faziam do jornalismo “um biscate”. Em 1963, a Gazeta Literária defendia, em nome da dignidade da profissão, mais exigência na contratação e apelava a uma alteração dos padrões de recrutamento que implicassem o reconhecimento dos diplomas em jornalismo. Ao fazê-lo, chamava a atenção para uma discussão que, em Portugal, já se arrastava desde o final do século XIX (Sousa, coord. et al, 2010, pp. 157-158) – a formação em jornalismo seria uma forma legítima e pertinente de acesso à profissão e, mais do que isto, seria necessária a quem quisesse ser jornalista?

Como se vê, estamos na presença duma reforma (…) em que o problema do profissionalismo tem de ser encarado (…) a fim de que o acesso à profissão não dependa de um capricho (…), mas sim de um direito conquistado pelo estudo, pela vocação, pela competência, por um diploma em forma. (…). É evidente que o jornalismo não pode, não deve, ser um “gancho”, um “expediente de vida”, um “recurso de emergência”, mas sim uma profissão (ANÓNIMO, 1963, p. 2).

No segundo número da Gazeta Literária surge um texto de autor anónimo, transcrito do Jornal de Notícias de 21 de Outubro de 1952, no qual se apela à fundação de uma escola de jornalismo:

Se para ser jornalista a condição primacial é uma decidida vocação, nem por isso o exercício desta profissão dispensa certos requisitos que só raramente os indivíduos podem adquirir pelo esforço próprio. Lá fora já o problema foi encarado de há muito (…) com a criação de escolas de jornalismo. (…) Para nós, torna-se evidente que uma escola de jornalismo se recomenda (…) não apenas como elemento de cultura geral indispensável a todos aqueles que praticam a profissão, mas como aprendizagem para todos os aspectos técnicos que ela abarca (…), convindo quanto a nós dar ao curso um carácter prático (…) e (…) um (…) cabedal de cultura que valorize as qualidades naturais de vocação que o jornalista porventura possua. Se todas as profissões exigem aprendizagem – o jornalismo não a pode dispensar (ANÓNIMO, 1952, p. 26).

Esse texto mereceu uma resposta antagónica de Juliano Ribeiro (1953, p. 101). Para ele, “O problema a equacionar, simples e decisivo, é este: O jornalismo será uma profissão técnica que se aprende?”

Volta a falar-se numa Escola de Jornalismo ou de jornalistas (…). Citam-se os exemplos da Argentina, da Espanha e do Brasil, mas não se diz nada sobre os resultados obtidos. Reconhece-se que sem vocação, não é possível “obter” um bom redactor ou um diligente repórter. A vocação acima de tudo, bem entendido. O resto – a escola – viria por acréscimo. (…) Cultura, muita cultura, insistimos. O conhecimento e a prática (…) de uma ou duas das grandes línguas europeias (…). Muita geografia e um pouco de história. O hábito de boas, escolhidas leituras. Tudo isto está certo (…). Quanto à Escola de Jornalistas – que se pronunciem os repórteres do Porto que alheios à escola tão boa conta dão de si!

O jornalista Acúrcio Pereira (1959, p. 11) também se pronuncia a favor da instituição de uma escola de jornalismo, por muito que, segundo ele, as qualidades pessoais fossem importantes para um jornalista:

Evidentemente que não é a escola que faz o jornalista, como não é a faculdade que faz o médico ou o advogado (…). Os diplomas autenticam uma preparação, mas não criam a psicologia profissional. [Mas] Uma escola de jornalismo (…) [é importante porque]  acabou-se a época em que o jornalismo não reclamava uma cultura. Hoje é indispensável. A intenção é muito, o conhecimento técnico é muito mais.

Os textos documentam e exemplificam a divisão de opiniões entre os jornalistas sobre a necessidade, ou não, do ensino do jornalismo, cuja implantação, em Portugal, só ocorreria em 1979.

5. A liberdade de imprensa

Num país amarrado a uma ditadura corporativa que impunha a censura, seria provável que os jornalistas, talvez os profissionais mais atingidos pelos censores, bradassem contra ela e que a Gazeta Literária fizesse eco – de forma clara ou dissimulada – desses brados. É o que ocorre em vários números do periódico. Num deles, é dada voz ao sacerdote Álvaro Vieira de Madureira (cit. in ANÓNIMO, 1956, p. 9), isto porque o autor se debruça sobre a falta de liberdade de imprensa, investido da autoridade clerical:

A liberdade de imprensa é um caso de liberdade de expressão e esta liga-se à liberdade de pensamento. (…). Os defensores de uma apertada censura (…) afirmam que a ampla liberdade de imprensa (…) favorece a multiplicação dos erros e dos vícios. Respondemos: (…) surge um perigo muito maior ainda: o de o estado ou os seus turiferários multiplicarem (…) os erros, as arbitrariedades, sem possibilidade alguma de defesa da parte do público. No sistema de ampla liberdade, os erros duns particulares poderão ser combatidos por outros. (…) Dir-se-á ainda: É preciso educar o povo e, portanto, torna-se imprescindível uma apertada censura. Respondo: Será o estado o grande educador do povo? (…) Além disso, educar-se-á o povo a usar a liberdade de expressão suprimindo-a? (…) Em consequência, dê-se à imprensa ampla liberdade (…). Não há razão para temores: uma doutrina que não se consegue aguentar na luta, em pé de igualdade legal, com as contrárias (…) não merece sobreviver.

A Gazeta Literária aproveita, efectivamente, todas as citações que pode fazer das “vozes insuspeitas” do regime para esgrimir argumentos em favor da liberdade de imprensa. Um dos citados foi o ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Cunha (cit. in ANÓNIMO, 1957, p. 82):

O direito mais elementar que a imprensa reivindica é o da sua própria liberdade, sem o que não será (…) permitido falar de opinião pública (…). Querer que a imprensa desempenhe (…) o papel de orientadora da opinião pública recusando-lhe o direito de se exercer livremente representa (…) uma (…) contradição e (…) um contrassenso.

O jornal República (cit. in ANÓNIMO, 1957, p. 84), mencionado pela Gazeta Literária,logo aproveitou para reforçar as palavras do governante:

Para que o jornalismo se revista da dignidade e da gravidade da magistratura e possa ser o melhor orientador e formador de uma opinião pública (…) esclarecida, que (..) traduza a vontade e o sentir dos cidadãos (…), tem de operar em franca liberdade de imprensa, porque não há dignidade sem liberdade. Por isso mesmo é a liberdade de imprensa que ambicionamos para o jornalismo português e de todo o mundo.

A reivindicação da liberdade de imprensa e a sua defesa enquanto princípio é efectivamente constante na Gazeta Literária, até porque dela dependeria a dignificação do jornalismo português e a sua utilidade pública.

6. Considerações finais

A primeira conclusão que se pode tirar deste trabalho é que os jornalistas portugueses dos anos cinquenta e sessenta procuravam um sustentáculo teórico e referentes identitários para uma actividade cada vez mais complexa mas também cada vez mais profissionalizada – o jornalismo.

Fizeram-no tendo por referente fundamental o jornalismo português, por razões de proximidade e interesse. Tenderam, também, a restringir o debate ao mundo dos jornais, não estendendo, significativamente, a discussão ao radiojornalismo, ao telejornalismo ou a outras formas de jornalismo.

Contudo, pelas páginas da Gazeta Literária passaram, com algum grau de pluralismo na discussão, com maior ou menor dissimulação, muitas das preocupações dos jornalistas – e também dos académicos – sobre o rumo que o jornalismo e os jornalistas tomavam, em Portugal e no mundo, nesses tempos de transformação que foram as décadas de cinquenta e de sessenta do século XX, pelo que se pode aceitar a hipótese colocada – a consonância do discurso da Gazeta Literária com os grandes temas do Pensamento Jornalístico Português anterior a 1974, inventariados por Sousa, coord., et al. (2010).

Alguns dos textos mais relevantes da Gazeta Literária são os que colocam a nu as tensões teóricas entre linhas divergentes no entendimento do jornalismo. De um lado, os que defendiam a proximidade entre jornalismo e literatura, para os quais o jornalista se imporia pela sua capacidade retórica e literária inata, que não necessitaria de aprendizagem; os outros encaram o jornalismo como uma profissão técnica – ainda que não como profissão liberal – que pode e deve ser ensinada e aprendida e que, sendo aparentada com a literatura, não se pode confundir com ela.

O radiojornalismo, o cinejornalismo, o fotojornalismo e o telejornalismo ficaram algo ausentes da argumentação dos redactores da Gazeta Literária sobre a necessidade, ou não, do ensino do jornalismo. Talvez porque, num país – Portugal – onde o jornalismo significava, ainda, essencialmente, jornal impresso, esses outros jornalismos, para os quais a necessidade de aprendizagem formal e técnica talvez seja mais facilmente aceite, não estavam na ordem do dia, apesar da sua importância

Finalmente, os jornalistas portugueses das décadas de cinquenta e sessenta do século passado, tal como transparece no discurso da Gazeta Literária, tendiam a defender a liberdade de imprensa e uma consequente ética jornalística assente no princípio da máxima responsabilidade para a máxima liberdade. Uma ética que preconizava, ademais, a recusa do sensacionalismo e da mercantilização da imprensa provocados pela industrialização capitalista da comunicação social.

NOTA

[1] Pesquisa produzida no âmbito do projecto Teorização do Jornalismo em Portugal: Das Origens a Abril de 1974, referência PTDC/CCI-JOR/100266/2008 e FCOMP-010124-FEDER-009078, apoiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Portugal) e com co-financiamento da União Europeia através do QREN, programa COMPETE, fundos FEDER.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANÓNIMO, “Condições de vida da imprensa”. Em: Gazeta Literária, 2ª série, nº 4, Outubro de 1959b, p. 7 e p. 14.

ANÓNIMO, “Do difícil problema da tolerância”. Em: Gazeta Literária, nº 41/42, Janeiro/Fevereiro de 1956, p. 9.

ANÓNIMO, “Escola de jornalismo”. Em: Gazeta Literária, n.º 2, Outubro de 1952, p. 26.

ANÓNIMO, “Meditações sobre um congresso, O congresso da Federation Internationale des Redateurs en Chef”. Em: Gazeta Literária, n.º 57, Maio de 1957, pp. 71-72.

ANÓNIMO, “O profissionalismo da imprensa e os seus problemas”. Em: Gazeta Literária, 3ª série, n.º 8, Setembro/Novembro de 1963, p. 2.

ANÓNIMO, “O 77º aniversário da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, A conferência do Dr. Norberto Lopes: A imprensa e a sua missão”. Em: Gazeta Literária, 2ª série, nº 5, Novembro de 1959a, pp. 1-2.

ANÓNIMO, “Uma conferência do Dr. Danton Jobin sobre jornalismo”. Em: Gazeta Literária, nº 56, Abril de 1957, p. 48.

CASTRO, A. de, “Jornalismo”. Em: Gazeta Literária, nº 4, Dezembro de 1952, p. 79.

CORREIA, F. e BAPTISTA, C. Anos 60: Um período de viragem no jornalismo português. Em: TRAQUINA, Nelson (Org.). Do chumbo à era digital. 13 Leituras do jornalismo em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, pp. 53-70.

_______________________. Jornalistas: Do ofício à profissão. Mudanças no jornalismo português (1956-1968). Lisboa: Caminho, 2007.

FERREIRA, J., “Elogio do Dr. Norberto Lopes”. Em: Gazeta Literária, 2ª série, n.º 5, Novembro de 1959, p. 13.

MEIRELES, A., “Rádio”. Em: Gazeta Literária, 2ª série, nº 4, Outubro de 1959, p. 7.

PEREIRA, Acúrcio, “Jornais, jornalistas e público”. Em: Gazeta Literária, 2ª série, nº 5, Novembro de 1959, p. 11 e p. 14.

RIBEIRO, J., “Escolas de jornalistas. O jornalismo será uma profissão que se aprende?”. Em: Gazeta Literária, nº 5, Janeiro de 1953, p. 101.

SOBREIRA, R. M. O ensino do jornalismo e a profissionalização dos jornalistas em Portugal (1933-1974). Em: TRAQUINA, Nelson (Org.). Do chumbo à era digital. 13 Leituras do jornalismo em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, pp. 17-36.

_____________. Os Jornalistas Portugueses 1933-1974.Uma profissão em construção. Lisboa: Livros Horizonte, 2003.

SOUSA, J. P. (coord.) [et all]. O pensamento jornalístico português: Das Origens a Abril de 1974. Covilhã: Livros LabCom, 2010.

__________. Elementos de teoria e pesquisa da comunicação e dos media. 2ª edição revista e ampliada. Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa, 2006.

*Jorge Pedro Sousa é professor da Universidade Fernando Pessoa (Porto, Portugal). Nair Silva é diretora do Laboratório de Rádio da Universidade Fernando Pessoa. Patrícia Teixeira é doutoranda em Jornalismo na Universidade Fernando Pessoa. Maria Érica de Oliveira Lima é professora adjunta do Departamento de Comunicação Social da UFRN.

VOLTAR

 

 







Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro | ISSN 1806-2776 | Edição 14 | Novembro | 2011
Ombudsman: opine sobre a revista