Novembro de 2011
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ISSN 1806-2776
 
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ENTREVISTA


NELSON TRAQUINA
"Formação em jornalismo

cresce em todos os pa
íses"

Por Valquíria Kneipp*

"A profissão de jornalismo é difícil". Com estas palavras, Nelson Traquina, professor e coordenador do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Nova de Lisboa, refere-se à necessidade de uma formação transdisciplinar na área, como forma de garantir a qualidade e a independência do profissional nas relações (sempre de poder) com as fontes.

Reprodução
Neste depoimento – concedido à Valquíria Kneipp por email em julho de 2011 – Traquina também defende a Licenciatura em Jornalismo como vital para o desenvolvimento de um campo jornalístico, ao passo que aponta os níveis de poder do jornalista e a "decisão de vida ou morte sobre o acontecimento" como uma de suas principais atribuições profissionais.


Valquíria Kneipp:
No Brasil, com a desregulamentação da profissão, ainda é necessário estudar jornalismo?

Nelson Traquina: Com as novas tecnologias, é cada vez mais importante o papel do jornalista e é cada vez mais importante a Licenciatura em Jornalismo, onde o Brasil teve um papel pioneiro precisamente porque, até recentemente, ocupou a posição de liderança no MUNDO no campo do ensino do jornalismo ao exigir uma Licenciatura em Jornalismo, posição que melhor entendemos ao compreender a situação socioeconômica do país.

Hoje em dia, é preciso continuar a vossa luta pelo reconhecimento da importância de uma Licenciatura em Jornalismo na batalha pela informação de maior qualidade e de maior independência numa sociedade democrática – a vossa luta que envolve a opinião pública, os empresários das empresas jornalísticas, os jornalistas do presente e do futuro, todos.

A profissão de jornalismo é difícil. Não só os jornalistas são confrontados constantemente com a pressão do tempo (ainda maior na era do jornalismo online), mas também são confrontados pela anarquia da vida. Tudo pode ser notícia. Assim qualquer preparação será inadequada.

Mas uma formação em Jornalismo, que contempla uma base de formação nas ciências sociais (sociologia, economia, história, metodologias quantitativas e qualitativas), com uma base nas ciências da comunicação (semiologia, história dos média, sociologia da comunicação) e disciplinas teóricas (teoria da notícia, ética na comunicação social) e práticas (gêneros jornalísticos, ciberjornalismo etc.) de jornalismo, é o caminho histórico do mundo onde a Licenciatura em Jornalismo (ou área afins como Ciências da Comunicação) cresce cada vez mais em todos os países.

E é um caminho IRREVERSÍVEL. Se no início do século XX, o Licenciado era um espécime raro, no fim do século XXI, o Licenciado será comum. Já temos 90% dos jornalistas que são Licenciados nos Estados Unidos e entre 50 e 60% na Grã-Bretanha, Suécia ou Alemanha.

A pessoa Licenciada sentirá em pé de igualdade com a fonte e não numa posição de inferioridade, porque as relações entre o jornalista e a fonte serão sempre relações de poder.

Mas se a redação de uma empresa jornalística pode ganhar com pessoas com Licenciaturas numa variedade de especialidades (Economia, História, Ciências Políticas etc.), a esmagadora maioria de jornalistas deve ter uma Licenciatura em Jornalismo.

A minha posição não é apenas uma opinião pessoal, mas uma posição apoiada por dados empíricos, testemunhados no estudo comparativo de Patterson e Donsbach (PATTERSON e DONSBACH, 1998). Senão, vejamos.

País
EUA
R.U.
Alemanha
Itália
Suécia
Total
Processar Jornalistas
3.28
2.6
2.67
1.86
1.89
2.46
Quebra de promessa de confidencialidade
5.84
5.47
5.61
4.26
6.49
5.56
Facilitar casos de difamação
4.82
3.73
4.51
3.22
4.22
4.10

Quadro I: Os deveres e as responsabilidades dos jornalistas. Escala: 1 (Concordo) a 7 (Discordo).

No Quadro I, podemos confirmar que a comunidade de jornalistas com a percentagem mais reduzida de pessoas licenciadas (a Itália) é a comunidade jornalística que mais concorda com:

1) processar jornalistas;

2) a quebra de promessa de confidencialidade; e

3) facilitar casos de difamação.

Enquanto a comunidade jornalística com a maior percentagem de licenciadas é a comunidade que mais discorda com:

1) processar jornalistas;

2) facilitar casos de difamação; e

3) a quebra de promessa de confidencialidade (a comunidade jornalística da Suécia está no primeiro lugar neste variável).

Assim, enquanto a Licenciatura é importante, a Licenciatura em Jornalismo é vital para o desenvolvimento de um campo jornalístico que afirma o seu poder numa sociedade democrática. Porque os jornalistas têm poder.

Reconhecendo o poder dos conglomerados e dos poderosos, das fontes oficiais no processo de produção de notícias, e são consideráveis, e concordando com Herman e Chomsky quando denunciam que as fontes que contestam as perspectivas consideradas como consensuais são marginalizadas e que há, com certeza, campanhas de propaganda nas sociedades democráticas, exemplarmente demonstrada pela campanha da administração do ex-Presidente Bush em prol da invasão do Iraque em 2003, não é menos verdade que os jornalistas não são qualquer empregado.

As fontes não são da empresa, e quando o empregado (o jornalista) deixa a empresa, leva consigo as relações com a sua fonte: apesar da mitologia que envolva o jornalismo, um aspecto vital do trabalho jornalístico é o cultivo das relações com as fontes. A cultura da empresa é importante, mas, mais importante é a cultura profissional, ou seja, uma cultura transorganizacional.

As notícias são uma construção, o resultado de interações sociais entre jornalistas e as fontes, entre os jornalistas e outros jornalistas, dentro e fora da sua organização, e o jornalista e a sociedade. O mundo do jornalista está dividido em esferas de consenso, esfera do desvio e esfera da controvérsia legitimada (Hallin, 1986).

Como disse, há campanha de propaganda nas sociedades democráticas, como a campanha pró-invasão do Iraque em 2003, mas, meses depois, há notícias que só podem ser definidas como fazendo partes de campanhas anti-propaganda, como as notícias, iniciadas pelos jornalistas norte-americanos, sobre os atos de torturas de prisioneiros iraquianos cometidos por soldados norte-americanos em 2004.
 
Com o desenvolvimento tecnológico, cada indivíduo poderá ter acesso aos acontecimentos, ao “press release” da empresa, ao comunicado da organização não-oficial. Mas quem tem tempo?

Assim, na realidade, o primeiro poder dos jornalistas é o poder de seleção, a decisão de vida ou morte sobre o acontecimento será transformada em notícia e divulgado no espaço público.

Que versão do acontecimento? O segundo poder de construção. A seleção das fontes, a seleção do vocabulário, a seleção da perspectiva. A decisão final pertence aos jornalistas.

Que destaque será dado à notícia. Primeira página ou página interna, abertura do telejornal ou uma notícia de ligação no interior do noticiário. O terceiro poder dos jornalistas: o poder de saliência.

Através da reportagem, o quarto poder dos jornalistas é o poder de acesso direto ao campo jornalístico. Se ninguém fala de um assunto, o jornalista pode falar desse assunto através do seu acesso direto ao campo jornalístico, constituindo em reportagem um trabalho sobre esse assunto.

Sem dúvida haverá exemplos desse poder no Brasil. Mas vivo em Portugal, e, em Portugal, esta década ficou marcada pelo trabalho de jornalistas que lançaram no espaço público português a questão do abuso sexual das crianças.

A partir das primeiras reportagens, nunca mais deixou-se de falar sobre o assunto. E uma consequência foi que diversos atores sociais (nomeadamente, crianças) ganharam coragem para falar do assunto.

Os jornalistas têm poder. Assim, devido à importância da relativa autonomia dos jornalistas, o jornalismo é um Quarto Poder que poderá sustentar o “status quo”, mas periodicamente consegue realizar o seu potencial de contra-poder.

E é um Quarto Poder que ninguém controla, algo que torna cada vez mais verdadeiro com a evolução tecnológica, amplamente demonstrado recentemente com a revolta popular contra a ditadura do Egito.

Portanto, numa palavra – sim. Uma percentagem cada vez maior dos jornalistas irá ser pessoas Licenciadas em Jornalismo, para o bem da democracia, e para o bem duma opinião pública informada.

Com as novas tecnologias, o papel do jornalista é ainda mais vital, e o jornalismo pode ser reforçado com a possibilidade que os jornalistas irão ter cada vez mais acesso a dados empíricos e às fontes de informação, e, dessa forma, haverá uma reconfiguração do jornalismo e uma atualização do jornalismo, onde os jornalistas podem obter a ajuda do cidadão – a ajuda do cidadão mas não a sua substituição pelo cidadão.

E, com as novas tecnologias e o jornalismo online, o valor do tempo é ainda mais sublinhado, maximizado, escrito em letras "bold", ao ponto de tornar o resto um ornamento.

Assim, uma das vantagens da internet mais badaladas há quinze ou mais anos quando apareceu - o espaço infinito – é, na prática, no dia-a-dia, uma relíquia do pensamento do passado – ao qual os jornalistas devem resistir. Talvez, com organização, melhor "exploração" dos recursos, inteligência, seja possível sobreviver ao dilúvio do fator tempo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. PATTERSON, Thomas E.; DONSBACH, Wofgang 1998). Media and Democracy Project”, Cambridge, Ma.,: Shorenstein Center on the Press, Politics and Public Policy.

2. HALLIN, Daniel C. (1986). The ‘Uncensored War’: 1965-1967”. Berkeley: University of California Press.

*Valquíria Kneipp é professora Adjunta II da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Editora-Assistente da Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro.

 

 







Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro | ISSN 1806-2776 | Edição 14 | Novembro | 2011
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