O tema da morte – e o que acontece depois dela – é recorrente na arte medieval europeia. O teatro português do período, tendo encontrado seu apogeu em Gil Vicente, encontra também no mestre uma discussão sobre diferentes tipos de almas, de mortes e de destinos. Poucas décadas depois, do outro lado do Oceano Atlântico, a colônia portuguesa na América viu o padre jesuíta José de Anchieta encenar, com a ajuda de outros padres e também de nativos, peças que também discutiam o tema. Este artigo lança o olhar sobre as consequências eternas do martírio religioso. Morrer pela fé católica parece garantir não só a entrada no Paraíso, como também um certo prestígio diante de representantes divinos. Pretendemos analisar de duas peças: o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, em que quatro Cavaleiros de Cristo são recebidos com honrarias pelo Anjo barqueiro, e o Diálogo de Pero Dias Mártir, de José de Anchieta, em que um jesuíta martirizado em alto-mar conversa com o próprio Cristo. O que propomos é perceber as relações dialógicas entre os textos: a inserção em uma mesma tradição teatral e o estabelecimento de uma mesma moral cristã católica quinhentista.
Partindo da face monstruosa da morte, representada miticamente pela máscara de Gorgó (Vernant, 1998; 2001), pretendemos articular os conceitos de “teatro da morte” de Kantor (1998), “teatro da crueldade” de Artaud (2006) e a tese acerca de metateatralidade de Abel (1968) para compreendermos como o teatro, obra de arte social, permite-nos experimentar a morte. Para tanto, Valsa n°6 (1951), único monólogo de Nelson Rodrigues, abre a possibilidade de vermos essa monstruosa face, construída pelo evocamento do nome, Derrida (1995a), de Sônia que através da metateatralidade constitui o desagradável rodriguiano. Ainda, a peça traz marcas evidentes de autotextualidade, principalmente com Vestido de noiva (1943) e intertextualidade com o monólogo de Pedro Bloch, As mãos de Eurídice (1950) que faz referência ao mito de Orfeu e Eurídice na visão órfica (Brandão, 1987). A monstruosidade, segundo Jeha (2007), é uma das metáforas do mal e como maldita, a morte é negada, segundo Becker (1973), e temida. Desse medo da morte e do morrer baseia-se nossa existência e é diante dela, da morte, que segundo Heidegger (2005), atingimos nossa plenitude, logo essas duas forças: negar e aceitar, assemelham-se ao antagônico dionisíaco e apolíneo, segundo Nietzsche (2013), que convivem nesse espaço de tensão que é o teatro. Adotando o conceito de espaço de tensão de Féral (2015) em que o teatro ocidental tem uma forte ligação com a morte, no sentido do vazio primeiro, elencamos Sônia, essa estrangeira de si mesma (Kristeva, 1994) para experimentarmos a face monstruosa e desagradável da morte.