Nº 9 - Dez. 2007 Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO V
 
 

Expediente

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 
 

 

 


 

 

 

 

 

 


MONOGRAFIAS
 

A narrativa de não-ficção
na revista Piauí


Por
Rodolfo Tiengo Fernandes*

RESUMO

O texto pretende discutir conceitos do Jornalismo Literário e colocá-los em evidência por meio da análise de trechos de reportagens da revista Piauí. O objetivo é oferecer novas discussões sobre o tema, bem como ampliar o espaço de debate, sobretudo a respeito das implicações éticas e estilísticas do uso de recursos da ficção nos relatos de não-ficção.

Reprodução

Capa da edição de estréia da revista Piauí, em outubro de 2006.

PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo Impresso / New Journalism / Linguagem

 Introdução

Desde os primórdios da imprensa, as diferentes tentativas de manifestação do pensamento sempre guardaram em si uma angústia produtiva que impulsionou escritores a propagarem idéias, a fazer crítica e a descrever os fatos observados. Por mais que o objeto a ser descrito seja quase sempre o mesmo, e o local onde acontecem os fatos não mude, o modo de retratar os conhecimentos diferencia os produtos da imprensa.

Neste cenário, a revista Piauí destaca-se por ser um projeto editorial que pretende imprimir um padrão literário em seus textos e enfoques diferentes na agenda jornalística. Surgida em outubro de 2006, por iniciativa do cineasta João Moreira Salles, preza pela densidade textual e insere nas reportagens características extraídas da literatura. A publicação questiona os paradigmas referentes à objetividade jornalística, evidenciando o papel do repórter, e sua subjetividade, como peça fundamental no processo de produção das matérias.

1. O que é jornalismo literário

O jornalismo literário é uma modalidade jornalística que se desenvolve pela utilização de técnicas da narrativa literária e se propõe a possibilitar angulações diferentes da realidade. É um subgênero que se vale da transferência dos recursos lingüísticos da ficção para a não-ficção. Segundo Vilas Boas (1996: p.60), “significa, grosso modo, narrar com efeito, com beleza e imaginação”, “sem perder de vista os fatos”. Segundo Pena (2006: p.13):

Significa potencializar os recursos do Jornalismo, ultrapassar os limites dos acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da realidade, exercer plenamente a cidadania, romper as correntes burocráticas do lead, evitar os definidores primários e, principalmente, garantir perenidade e profundidade aos relatos.

O portal Texto Vivo destaca algumas habilidades do repórter a serem colocadas em evidência no que tange ao estilo. Tendo como sinônimos mais comuns os termos “literatura de realidade”, “literatura de não-ficção” e “literatura criativa de não-ficção”, Jornalismo Literário é uma:

Modalidade de prática da reportagem de profundidade e do ensaio jornalístico utilizando recursos de observação e redação originários da (ou inspirados pela) literatura. Traços básicos: imersão do repórter na realidade, voz autoral, estilo, precisão de dados e informações, uso de símbolos (inclusive metáforas), digressão e humanização. Modalidade conhecida também como Jornalismo Narrativo [1].

O principal gênero a impulsionar o Jornalismo Literário, tanto no final do século 19, quanto na atualidade, é a reportagem. Ferrari e Sodré (1986: p.11) afirmam que a reportagem, “a forma-narrativa do veículo impresso”, é resultante de um aprofundamento da notícia, tanto no que diz respeito à apuração de dados quanto à maneira como se conduz a narrativa dos fatos.

O desdobramento das clássicas perguntas a que a notícia pretende responder (quem, o quê, como, quando, onde, por quê) constituirá de pleno direito uma narrativa, não mais regida pelo imaginário, como na literatura de ficção, mas pela realidade factual do dia-a-dia, pelos pontos rítmicos do cotidiano que, discursivamente trabalhados, tornam-se reportagem (Cf. FERRARI e SODRÉ, 1986: p.11).

Por conta dessas qualidades, a reportagem se destaca como o principal canal do Jornalismo Literário. O jornalista e escritor argentino Tomás Eloy Martinez, contudo, ressalva: “Uma boa reportagem tampouco é um setor da literatura, ainda que devesse ter a mesma intensidade de linguagem e a mesma capacidade de sedução dos grandes textos literários“.
Segundo Lage (1999: p.47), a reportagem apresenta maior espaço para o desenvolvimento da criatividade.

O estilo da reportagem é menos rígido do que o da notícia: varia com o veículo, o público, o assunto. Podem-se dispor as informações por ordem decrescente de importância, mas também narrar a história, como um conto ou fragmento de romance (...); em certos casos, admite-se que o repórter conte o que viu na primeira pessoa. A linguagem também é mais livre: os novos jornalistas americanos (Breslin, Mailer, Capote) chegam a adotar técnicas literárias para abordagem mais humana e reveladora da realidade.

Segundo Lima (2004: p.99), o gênero em questão é o caminho ideal para que o jornalismo promova ao seu público uma leitura mais abrangente da realidade, permitindo a ele vislumbrar a complexidade do real. É um projeto inovador em que se deve “abrir os olhos para a visão mais completa da realidade e propor ao leitor (...) uma leitura abrangente dos acontecimentos, das situações e dos personagens, imersos num universo complexo onde o real concreto e o imaginário (...) combinam-se”.
Para Edvaldo Pereira Lima, o Jornalismo Literário deve avançar ao patamar do aprofundamento e da compreensão da atualidade. Esta tarefa, segundo ele, pode ser cumprida com mais nitidez na modalidade livro-reportagem [2].

Resta acrescentar que o principal legado do new journalism — a de que a melhor reportagem, no sentido de captação de campo e fidelidade para com o real, pode combinar-se muito bem com a melhor técnica literária — encontrou sua mais refinada expressão no livro-reportagem (Cf. LIMA, 1995: p.159).

Esta fuga da cobertura tradicional da imprensa, que busca novas formas de linguagem pela reportagem, prevê um profundo entendimento daquilo que o ser humano representa na atualidade, nas esferas comuns muitas vezes excluídas da cobertura da mídia. “De certa forma a ação coletiva da grande reportagem ganha uma sedução quando quem a protagoniza são pessoas comuns que vivem a luta do cotidiano” (Cf. MEDINA, 2003: p.52).

Para que esse trabalho seja cumprido, não basta retratar os acontecimentos por intermédio de uma visão cientificista, em que a objetividade está em primeiro plano. É necessário considerar válidas as manifestações individuais do pensamento influenciadas pela emoção, ligadas ao conjunto de crenças do ser humano, os quais formam a sua realidade simbólica, ou seja, aquilo em que ele acredita. Medina afirma que “a arte, a religiosidade, o mito, ao contrário de representarem a negação do real concreto, expressam uma comunhão profunda e universalizante com a realidade simbólica do humano” (2003: p.77).

O jornalista que se engaje numa senda destinada à humanização deve considerar relevantes outros símbolos de expressão da personalidade, explica Medina (2003: p.59):

A literatura e a oratura, sem hierarquias de valor, manifestam o sentir olfativo, o toque quente do corpo e o paladar que desse decorre. Há, na narrativa do cotidiano e no resgate que dele faz a arte e outras linguagens não-científicas, cheiros, gostos e gestos que ampliam a palavra conceitual e bem governada de um discurso científico.

Todo esse processo de valorização das diferentes vozes na contemporaneidade não é vão. A tarefa de se instituir uma cobertura jornalística que respeite e considere as divergentes opiniões, oriundas desde dirigentes e chefes de Estado a cidadãos comuns, é essencial para a construção de uma sociedade mais democrática, lembra Medina (2003: p.48):

A contemporaneidade, tal qual as percepções traduzem em narrativas, oferece inúmeros desafios não só ao cidadão nela situado com relativo conforto, como ao que carrega o fardo da marginalização de qualquer origem — social, étnica, cultural ou religiosa. Enunciar um texto que espelhe o dramático presente da história é, a princípio, um exercício doloroso de inserção no tempo da cidadania e da construção de oportunidades democráticas.

1.1. As quatro características do New Journalism

Sempre houve manifestações dentro da imprensa tentando apontar outros caminhos para a narrativa jornalística. Sem dúvida, um dos movimentos que mais sinalizaram essa busca por uma linguagem renovada, que valoriza o conteúdo e a estética do texto, foi o New Journalism. Surgidonos EUA, ficou conhecido a partir da década de 1960, quando muitos escritores começaram a publicar matérias carregadasde estilo autoral, principalmente na revista New Yorker.

Fase histórica e efervescente de renovação do JL nas décadas de 1960 e 1970 nos Estados Unidos, caracterizada pela introdução de novas técnicas narrativas (fluxo de consciência e ponto de vista autobiográfico), grande exposição pública e popularidade, reivindicação de qualidade equivalente à literatura. Abundantemente praticada em revistas de reportagem especializadas em JL, publicações alternativas, livros-reportagem e até mesmo em veículos da grande imprensa (...). [3].

Mediante a ascensão desse subgênero do jornalismo, o escritor e PHD em literatura, Tom Wolfe, formulou as principais características que se observavam naquele momento — construção cena a cena, descrição de status de vida, diálogos e ponto de vista da terceira pessoa — e que serviram de referência para o que seria produzido posteriormente. Sua obra tornou-se base para o entendimento do Novo Jornalismo, repercutido sobremaneira no Jornalismo Literário brasileiro.

Segundo Wolfe, as estruturas textuais, que criam maior tensão e apreensão para o leitor, foram herdadas do realismo social, praticado por romancistas europeus do século 19, tais como Fielding, Smollett, Balzac, Dickens e Gogol (2005: p.53).

O básico era a construção cena a cena, contar a história passando de cena para cena e recorrendo o mínimo possível à mera narrativa histórica. Daí os feitos da reportagem às vezes extraordinários que os novos jornalistas empreendiam: para poder testemunhar de fato as cenas da vida das outras pessoas no momento em que ocorriam — registrando o diálogo completo, o que constituía o recurso número dois.

Além da construção integral das cenas e da reconstituição de diálogos, Wolfe enxergava duas outras ferramentas de transformação estética do texto jornalístico. “O terceiro recurso era o chamado ‘ponto de vista da terceira pessoa’, a técnica de apresentar cada cena ao leitor por intermédio dos olhos de um personagem particular, dando ao leitor a sensação de estar dentro da cabeça do personagem” (2005: p.54).

Ainda acerca desta característica, Tom Wolfe afirma que ele, assim como outros autores, reproduzia vários pontos de vista dentro da mesma cena — inclusive o próprio — e se valia de uma liberdade incomum na imprensa da época, utilizando o “fluxo de consciência”, técnica narrativa que permite descrever os pensamentos de outras pessoas. Wolfe (2005: p.57) afirma:

Neste novo Jornalismo não há regras sacerdotais em nenhum caso... Se o jornalista quer mudar o ponto de vista da terceira pessoa para o ponto de vista da primeira pessoa na mesma cena, ou entrar e sair dos pontos de vista de diferentes personagens, ou até da voz onisciente do narrador para o fluxo de consciência de alguma outra pessoa — como ocorre n’O teste do ácido do refresco elétrico [reportagem escrita por Wolfe] —, ele simplesmente faz isso.

Tais estratégias, para o autor de Radical chique e o novo jornalismo, resultaram na valorização da figura do repórter como um elemento ativo no texto. Até então, o narrador, no modelo convencional de reportagem, mantinha-se o máximo possível oculto em uma trama monótona.

A voz do narrador, na verdade, era um dos maiores problemas na escritura de não-ficção. A maioria dos autores de não-ficção escrevia, sem saber, dentro da tradição britânica centenária, na qual fica entendido que o narrador tem de assumir uma voz calma, cultivada e, de fato, polida. (...) O negócio era o ‘understatement’ (discrição) (WOLFE, 2005: p.54).

A última característica, tão importante quanto as outras, está relacionada à descrição do ambiente em que as personagens reais se inserem, seus objetos pessoais, trejeitos e roupas, elementos que ajudam o leitor a compreender com mais profundidade a personagem.

O quarto recurso sempre foi o menos entendido. Trata-se do registro dos gestos, hábitos, maneiras, costumes, estilos de mobília, roupas, decoração, maneiras de viajar, comer, manter a casa, modo de se comportar com os filhos, com os criados, com os superiores, com os inferiores, com os pares, além dos vários ares, olhares, poses, estilos de andar e outros detalhes simbólicos do dia-a-dia que possam existir dentro de uma cena (Cf. WOLFE, 2005: p.55).

1.2. Contribuições teóricas de Edvaldo Pereira Lima

Por conta da repercussão que o New Journalism alcançou, as quatro técnicas tornaram-se basais para a continuidade dos estudos na área. O professor Edvaldo Pereira Lima atualizou os conceitos de Tom Wolfe e deu-lhes um direcionamento diferenciado. Lima em muito contribuiu para uma aprofundada terminologia da literatura de não-ficção, dando um caráter multidisciplinar às suas pesquisas, ao relacionar estruturas de linguagem e conceitos de outras áreas do conhecimento. Desenvolveu diversas propostas visando equilibrar questões lingüísticas, históricas e funcionais das narrativas de não-ficção.

O autor reestrutura as características básicas do New Journalism, de acordo com o que ele observa na aplicabilidade atual do gênero, e faz observações importantes. A narrativa no Jornalismo Literário, segundo Lima (1995: p.157), utiliza “um leque considerável de técnicas mais sofisticadas”. São seis as premissas propostas por Edvaldo Pereira Lima (1995: p.158):

I) Sumário ou exposição: “(...) consiste numa síntese de uma ação secundária. Desse modo, passa-se rapidamente por ela e ao mesmo tempo traz-se contexto à ação principal”.

II) Cena presentificada da ação: “(...) consiste no relato detalhado do acontecimento à medida que se desenvolve, desdobrando-o, como numa projeção cinematográfica, para o leitor, não necessariamente empregando o tempo verbal no presente”.

III) Ponto de vista: “O ponto de vista - isto é, a perspectiva sob a qual o leitor verá o acontecimento - pode ser a do repórter, a do protagonista dos acontecimentos ou a de uma terceira pessoa. A narrativa pode também se dar em primeira pessoa”.

IV) Met áfora e figuras de retórica: “São aceitas quando se necessita explicar um tópico complexo”.

V) Cita ções diretas: “São usadas moderadamente”.

VI) Fontes, dados e documenta ção: “As fontes são identificadas claramente, a verificação dos dados tem de ser criteriosa e a documentação deve ser sólida”.

Lima (1995, p.158) observa que o Jornalismo Literário praticado nos anos seguintes à década de 1970 guarda muitas características do New Journalism, mas foi modificado. “É possível verificar que o atual jornalismo literário transmutou o legado do new journalism e o aproveita, parcialmente”. Isto aconteceu enquanto as idéias de ruptura do Novo Jornalismo, principalmente concernentes à objetividade, dialogaram com opiniões mais conservadoras dos acadêmicos.

O ideal mesmo, viu-se, era adotar a resposta autodeterminativa, aproveitar o que fosse possível da experiência. É por isso que o sacrossanto mito da objetividade tacitamente ferido pelo novo jornalismo, hoje, é encarado tranqüilamente pelo mundo acadêmico, com outros olhos (Cf. LIMA, 1995: p.159).

2. Ética no Jornalismo Literário

Existem alguns casos que se tornaram representativos para a discussão da ética no Jornalismo Literário. Um deles, da década de 1980, foi responsável por uma crise de credibilidade que afetou um dos jornais mais prestigiados do mundo, o Washington Post. A repórter Janet Cooke, fazendo uso de técnicas do Novo Jornalismo, publicou uma reportagem sobre um menino de apenas oito anos que era viciado em heroína.

A história de Jimmy repercutiu amplamente nos Estados Unidos. Quando foi publicada, em 1981, muitas pessoas ficaram chocadas e emocionadas com o relato. Autoridades públicas queriam saber onde estava o garoto, mas a jornalista sempre encontrava uma maneira de se esquivar, baseando-se no direito de preservar a identidade da fonte.

Janet Cooke, 26 anos, foi a vencedora do Prêmio Pulitzer [4] naquele ano. Tudo seria glorioso, não fosse um detalhe: Cooke tinha inventado a personagem. Jimmy não existia. Como o jornalismo tem como premissa retratar a realidade, Cooke, que confessou a fraude, teve de devolver a honraria, além de ter sido despedida do Washington Post e estigmatizada profissionalmente.

Não tendo escapatória, e para evitar uma investigação policial, a repórter confessa aos editores do jornal que o relato de ‘Jimmy’, nome fictício do garoto, havia sido construído por ela a partir de depoimentos coletados com assistentes sociais que testemunharam essa realidade. Conseqüência: o jornal publicou uma justificativa de cinco páginas sobre o caso, tendo sua reputação abalada, e a repórter foi obrigada a devolver o prêmio (Cf. VICCHIATI, 2005: p.70).

O episódio, sempre citado quando se fala em ética no Jornalismo, tornou-se emblemático para a discussão dos princípios que norteiam a profissão. Do mesmo modo, transformou-se em exemplo negativo, que levou descrédito ao New Journalism, embora tenha sido um caso isolado entre poucos. Goodwin (1993: p.203) afirma: “Talvez injustificadamente, o que veio a ser conhecido como o Novo Jornalismo recebeu um bom bocado da culpa produzida pelas ficções explosivas de Janet Cooke, Michael Daly, Gloria Ohland e Christopher Jones”.

Outro caso bastante interessante foi uma década antes, também nos EUA. A jornalista Gail Sheehy escreveu, em julho e agosto de 1971, dois artigos na revista New York retratando as vidas de uma prostituta chamada Redpants e de um gigolô chamado Sugarman. Sheehy foi severamente criticada por ter inventado as personagens com base no recurso literário da composição; ou seja, construiu Redpants e Sugarman estes não existiam de fato — baseando-se em hábitos e situações cotidianas de gigolôs e prostitutas de Nova York

Os artigos detalhavam as vidas e a sorte de uma prostituta chamada ‘Redpants’ e de seu gigolô, ‘Sugarman’. Estes nomes não eram apenas pseudônimos, um recurso que os jornalistas às vezes usam para proteger uma fonte ou um sujeito. Eram nomes que Sheehy criou para duas figuras ‘compostas’, a partir do conhecimento direto de várias prostitutas e gigolôs, entrevistados por ela. Em vez de relatar o que cada uma das suas fontes disse ou fez, ela expressou suas palavras e ações através de ‘Redpants’ e ‘Sugarman’ (Cf. GOODWIN, 1993: p.203).

Diante de situações como essas, os questionamentos sobre os princípios que norteiam o Jornalismo Literário são inevitáveis. As críticas apontam para o excesso de pretensão dos repórteres em sua capacidade de narrar. Goodwin (1993: p.205) cita a crítica que o jornalista norte-americano Haynes Johnson fez ao New Journalism:

Haynes Johnson, repórter e colunista do Washington Post, não liga muito para o dizem ser o Novo Jornalismo. ‘Quando Tom Wolfe e as pessoas que se intitulam a elas próprias de Novos Jornalistas inventam as personagens e nos dizem o que as pessoas pensam porque falaram com muitas delas, bem, eles estão fazendo o papel de Deus’ — diz Johnson. ‘Eu acho isso muita pretensão’. Johnson acredita que existe uma necessidade de polir o texto em jornalismo. ‘Mas ninguém pode inventar citações e personagens e dizer que isso é jornalismo. É uma coisa diferente e devia ser catalogada diferentemente’.

Vicchiati (2005: p.90-91), ao comentar os abusos cometidos pelos jornalistas nos últimos anos, observa os cuidados que estes devem tomar, principalmente quando tentam escrever textos com características literárias.

O jornalista não inventa diálogos, não cria o que é denominado personagem complexo (tirado de várias pessoas), não penetra no pensamento das pessoas (a não ser que esses pensamentos sejam revelados em entrevistas), não reconstitui sentimento de mortos (jamais serão reais, no sentido mais amplo da palavra). Se o fizer, o jornalista e o trabalho por ele produzido perdem a credibilidade.

No jornalismo, a verdade é princípio indiscutível. O jornalista não pode abrir mão dessa premissa ao produzir uma reportagem, tanto na imprensa convencional quanto em suas formas experimentais.

O jornalista e professor da Universidade Federal de Santa Catarina, Francisco José Karam,

acredita que os abusos cometidos por alguns repórteres colocam em xeque a atividade jornalística como um todo: “Isso é deplorável para o jornalismo, porque faz perder a credibilidade na história. Existem muitas histórias reais nas quais dá para se inspirar e fazer um bom jornalismo”. [5]

Karam afirma que é possível fazer Jornalismo Literário com ética, bastando que sejam seguidos, com persistência, os mesmos princípios básicos que devem ser aplicados ao jornalismo cotidiano, como apuração, precisão e compromisso com a realidade dos fatos.

As informações devem ser verossímeis, as fontes têm de ser reais, você tem de fazer uma descrição tão precisa quanto possível da realidade, mas criar elementos que possam envolver o leitor (...). Então, do meu ponto de vista, os critérios são muito similares; isto é, deve-se apurar bem, investigar e manter, ao mesmo tempo que um envolvimento, certo distanciamento. Fazer uma narrativa com vocabulário, com elementos da literatura que encantem mais o leitor, que façam com que renda mais a informação (...). É uma reconstituição, quase como um conto, mas real do mundo. Tem de ter precisão, integridade e credibilidade [6].

3. O surgimento da revista Piauí

A revista Piauí foi pela primeira vez às bancas em outubro de 2006, sob a direção de João Moreira Salles [7], dono da Vídeofilmes, e Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras. A equipe é formada por Mario Sergio Conti (diretor de Redação), Enio Vergueiro (diretor comercial), Marcos Sá Corrêa e Dorrit Harazim — como editores —, Xico Vargas (secretário de redação), Raul Loureiro e Claudia Warrak (arte), Nildon Rerreira (revisor), além dos repórteres Cassiano Elek Machado, Consuelo Dieguez, Cristina Taráguila, Daniela Pinheiro, Luiz Maklouf Carvalho, Raquel Zangrandi e Roberto Kaz.

Seu lançamento foi resultado de uma articulação entre grupos de destaque na comunicação brasileira, tendo pré-lançamento em um dos principais eventos literários do país, a Festa Literária de Parati, no Rio de Janeiro, em agosto de 2006. Em setembro, João Moreira Salles assinou um contrato de distribuição e impressão da revista com a Editora Abril. A revista começou a circular em 9 de outubro em São Paulo e dias depois no Rio de Janeiro e restante do país. A repercussão na mídia foi grande, já havendo a comparação da Piauí com veículos associados ao Jornalismo Literário. Na matéria “Jornalismo literário e ficção marcam estréia da revista Piauí”, publicada pela jornalista Sylvia Colombo na Folha de S.Paulo, isso fica evidente.

Uma nova revista chega às bancas nesta semana. Com um nome que nem seus criadores sabem explicar direito, Piauí tem espírito híbrido. Será uma mistura de reportagens ao estilo "new journalism" (ou jornalismo literário) com crônicas, perfis e diários - de temas preferencialmente nacionais -; além de textos ficcionais [8].

De periodicidade mensal, a revista é distribuída em todo território nacional. Chama atenção dos leitores por uma série de características, como interatividade, linguagem descontraída e ao mesmo tempo rica, valorização de ilustrações, tipologia e fotos, além de se diferenciar pelo tamanho e tipo de papel.

A revista é impressa em um papel pólen soft, com gramatura 70 nas páginas internas e 90 na capa. Sua dimensão é de 26,5 x 35 cm. O logo Piauí é impresso com a fonte Trade gothic bold. Já nos textos usa-se a tipologia Electra old style, em corpo 10. A fonte utilizada nos títulos é Trade gothic condensed bold, em corpo 20.

Tantas curiosidades, a começar pelo nome, escolhido pela equipe por ser sonoro e conter muitas vogais. Em entrevista concedida para este trabalho, o editor João Moreira Salles explica que o nome surgiu “de uma idiossincrasia. Gosto de palavras com muitas vogais, e Piauí tem várias. O som é bonito. Parece banal, e talvez seja mesmo, mas a razão é essa. Vogais amolecem as palavras. Elas ficam mais simpáticas. Piauí é uma palavra simpática” [9].

As capas da revista, um conteúdo à parte de Piauí, se destacam pela criatividade das ilustrações. Salles comenta:

A capa é considerada conteúdo editorial. Ou seja, é a primeira informação que o leitor encontra sobre o espírito da revista. Nem sempre (ou quase nunca) tem relação com as matérias que estão lá dentro. A arte propõe alternativas, todo mundo opina e o diretor de redação tem a palavra final.

Piauí, afora tantas peculiaridades, destaca-se principalmente por sua linha editorial. É uma revista que tem a pretensão de falar sobre diferentes temas, sob um enfoque diferenciado, privilegiando a voz autoral e a reportagem. Questionado sobre os valores que norteiam o trabalho jornalístico da revista, João Moreira Salles responde:

Nada de tão sisudo assim. Não sei se temos ‘propostas, conceitos e valores’. É um pouco mais simples. Queremos fazer uma revista boa de ler, divertida, que dê tempo aos repórteres para apurar e escrever. Dizer mais do que isso vira teoria, e não somos bons disso.

Quando do lançamento da revista, no ano passado, muito se falou em uma reedição de revistas consagradas como Realidade, Senhor e New Yorker, que revolucionaram o jornalismo na década de 1960, por imprimir a linguagem do New Journalism a grandes reportagens. O editor de Piauí faz questão de tentar apagar essa imagem criada e nega a intenção de se produzir Jornalismo Literário. “Acho que existem textos bem ou mal escritos, e só”.

A revista produzida pela Editora Alvinegra e distribuída pela Abril tem como regra básica o apreço pelo bom texto. Isso se dá tanto no processo de redação, quanto no de apuração, e se inicia ainda na elaboração das pautas. Fugindo da cobertura do noticiário comum, Piauí inova a agenda jornalística, oferecendo novos ângulos da realidade. Questionado sobre esse aspecto, Salles explica:

Porque os temas do noticiário já estão sendo tratados pelo noticiário. Não haveria sentido em criar mais uma revista para cobrir as mesmíssimas histórias. Isso não significa que estejamos despregados do país. Cobrimos assuntos que interessam – mas sem pressa, publicando meses depois, ou de forma diferente. Exemplos: perfil do Luiz César Fernandes, esquina do Roberto Jefferson, matéria da moda, e assim por diante [10].

O editor da revista comenta que o processo de levantamento de pautas se dá “anarquicamente”. Não há pressa para a publicação de determinados assuntos, tampouco restrições ideológicas:

Cabe tudo, de arqueologia a odontologia. Nenhuma obrigação, nenhuma pauta imprescindível. Não precisamos falar do Renan Calheiros, por exemplo, mas também não temos por que não falar dele. O que importa é que a história seja bem escrita e que o conjunto seja interessante: temas mais sérios ao lado de histórias em quadrinhos, brincadeiras tolas com matérias apuradas ao longo de meses, textos breves ao lado de textos longos. O segredo está nessa combinação de assuntos e tons.

O cotidiano da redação de Piauí é determinado pela ida e vinda de colaboradores para concluírem seus textos. A rotina é diferente daquela verificada nos grandes jornais e revistas.

Não existe reunião de pauta, as matérias vão surgindo informalmente, da conversa entre os repórteres e o diretor de redação. Somos muito poucos; dez passos e se chega a qualquer mesa. Nosso processo não tem nenhuma liturgia, nenhuma formalização. Também não temos editorias, o que nos desobriga a ter assuntos obrigatórios – política, esporte, economia, etc. No início do mês a redação fica relativamente vazia, e à medida que o mês avança, as pessoas vão ocupando as suas mesas para escrever as matérias.

O cineasta afirma que o mercado publicitário ainda está “cauteloso”. Ele acredita que isso acontece porque Piauí não possui um segmento específico de leitores.

Não somos uma revista de nicho, ou seja, não falamos com um público específico – adolescentes, fumadores de cachimbo, amantes do cinema asiático. O anunciante tem dificuldade em identificar o leitor da Piauí. Na verdade, nós também temos. Ele está espalhado por todas as faixas etárias e de renda. Com o tempo, esperamos que o mercado publicitário decida que é bacana anunciar na Piauí porque a revista reúne uma fatia da população que lhe interessa. Isso leva tempo para acontecer.

Piauí valoriza a densidade do texto, trazendo em suas páginas reportagens mais extensas do que as convencionais. João Moreira Salles nega que esse aspecto direcione a revista para um público mais intelectualizado.

Acho que essa é uma percepção errada do conteúdo da revista. É claro que apostamos na inteligência do leitor, mas isso não é privilégio nosso – toda revista que se preza não pode menosprezar quem a lê. O erro é supor que todos os textos exigem atenção redobrada, como se publicássemos ensaios de filosofia alemã. Alguns textos são mais longos, é verdade, mas muitos não passam de uma página, às vezes de meia-página, às vezes, como no caso das esquinas, não passam de uma coluna. A regra da Piauí é: os textos terão sempre o espaço que precisam ter. Histórias que precisam ser contadas em seis páginas não serão contadas em cinco. E histórias que podem ser contadas em três colunas não serão contadas em uma página [11].

Quanto ao retorno que Piauí encontra junto ao público, Salles é otimista. Para ele, a revista tem agradado a seus leitores, por levar um conteúdo descontraído e ao mesmo tempo enriquecedor. “(...) As pessoas gostam da novidade, se divertem com uma revista que não se leva tão a sério assim”. Por outro lado, considera como ponto negativo, ironicamente, a falta de identificação, de utilidade da revista para o leitor. “Adianto logo: não adianta para muita coisa não. Assim como um filme não adianta para nada, uma escultura não adianta para nada, um jogo de futebol não adianta para nada”.

3.1 As seções da revista

Piauí é uma publicação mensal com média de 72 páginas por edição. Sua circulação é de 70 mil exemplares. Conta com uma sólida carteira de anunciantes, entre instituições financeiras (Itaú e Banco Real), universidades (Univer Cidade), indústrias (Aracruz), empresa de telefonia celular (Oi), canais de TV paga (Sportv, Canal Brasil e Telecine) e ainda inserções de eventos e casas de arte e cultura, além de editoras e revistas (Companhia das Letras, Caros Amigos e Cult). A publicidade em média ocupa 25 páginas por edição. Até agosto de 2007 a revista possuía 16.200 assinantes e cerca de 20 mil exemplares vendidos avulsos por mês, em bancas, revistarias e livrarias.

A divisão da revista em seções demonstra o interesse de seus editores em inovar nas pautas.

Há poucas seções fixas. Como a própria linha editorial define, não há um tamanho específico para os textos. Isso faz com que Piauí seja viva, dinâmica. A cada novo número, o leitor se surpreende com um título diferente, um assunto curioso. São sugeridas novas abordagens conforme diferentes visões da realidade sobre as quais os colaboradores se debruçam.

Piauí diferencia-se por não possuir editorial, nem colunistas fixos. Os redatores têm mais tempo para concluir seus trabalhos. Como as matérias não são factuais, há um tempo maior de elaboração até seu fechamento. As seções mais comuns, que estão presentes desde o primeiro número são: Poesia, Chegada, Esquina, Horóscopo, Despedida e Diário. Também são freqüentes Portfolio, Ficção, Perfil, Vidas Literárias e Concurso Literário, explicados adiante:

Poesia: Seção itinerante. Sua inserção ocorre sempre dentro de outra, com vários estilos de texto.

Chegada: Seção de abertura da revista, traz sempre uma novidade: o lançamento de algum evento, uma descoberta científica e até o nascimento de uma criança.

Esquina: Uma das seções mais comentadas da revista, traz textos não assinados que são editados por João Moreira Salles. São matérias que falam sobre assuntos, lugares e eventos pitorescos — como um “Vale-tudo Gay” em Belém/PA ou o hábito do poeta Ferreira Gullar de copiar quadros famosos.

Horóscopo: Não tem nada de semelhante ao que se publica em outros veículos, com exceção da divisão zodiacal dos signos. No restante, o colunista Chantecler faz comentários pessoais e provoca os leitores com pensamentos inusitados, curiosos e engraçados.

Despedida: É uma espécie de obituário, mas bem diferente do convencional. São matérias sobre personalidades, mais conhecidas ou não, que morreram recentemente. Pode ser um político ou até o criador do macarrão lámen, por exemplo, que muita gente não conhecia, apesar de consumir o produto.

Diário: Parte interessante da revista em que pessoas falam sobre seu cotidiano no ambiente de trabalho, em casa etc. Faz-se um relato dia a dia. Apesar de não estar em análise, se enquadra perfeitamente no chamado Jornalismo Literário. Os relatos são sempre na primeira pessoa do singular. Pode ser um ascensorista, uma costureira, uma atriz.

Portfolio: Geralmente é a exposição de trabalhos de artistas, fotógrafos, pintores, colecionadores — uma forma de divulgação de produtos diferenciados e curiosos como uma coleção de livros antigos cujos temas e títulos são engraçados ou então a coleção de capas de revista, para diferentes segmentos, em que figure o mesmo personagem.

Ficção: Geralmente é um espaço para a inserção de pequenos contos. Raro na imprensa brasileira contemporânea, muito comum nos jornais do século 19.

Perfil: Uma das seções em que o conceito de Jornalismo Literário mais está presente. Apresenta detalhes da vida de pessoas conhecidas, cuja notoriedade social muitas vezes oculta características interessantes.  Entretanto, há espaço também para pessoas de outros círculos sociais. Pode ser Lilly Marinho ou a funcionária de um trio elétrico em Salvador.

Vidas literárias: É inserida, assim como Poesia, no meio de outras seções em formato de história em quadrinhos. Tenta mostrar aspectos obscuros da vida de diferentes escritores e pensadores exaltados por sua produção intelectual. Tenta desconstruir a imagem absoluta e perfeita erguida ao longo dos anos. Humaniza os mitos. Conta a história, por exemplo, de Marcel Proust, que montou um bordel para espiar os fregueses e Tolstoi Eduard Sorel, que fica depressivo ao desconfiar que estava milionário.

Concurso Literário: Uma das seções mais pitorescas da revista, Concurso Literário permite que escritores encaixem frases aparentemente sem sentido em curtas narrativas de ficção. Exemplo: “O gongo bateu na lateral da locomotiva e nenhum passageiro arriscou um pio”.

Os outros títulos que aparecem na revista não podem ser caracterizados como seções por não serem fixos. De qualquer modo, demonstram o caráter multifacetado da cobertura jornalística da Piauí. Representam a possibilidade de se criar abordagens diferentes para aspectos da realidade antes enquadrados em editorias convencionais como Cidades, Política, Geral, Economia, Cultura.

4. Evidências do Jornalismo Literário nas reportagens da Piauí

Nos textos da revista Piauí é possível encontrar alguns traços característicos do jornalismo literário. Ao mesmo tempo em que são conduzidos de uma maneira mais descontraída, em alguns casos, conseguem adentrar a vida das personagens e contar histórias de vida, trazendo ângulos diferentes da realidade.

4.1. “O cheiro de cimento me inebria”

A reportagem “O cheiro de cimento me inebria”, de Danuza Leão (edição nº 1, out. 2006), retrata a vida de Guilherme Guimarães, um estilista que desde a infância é apaixonado pelo mundo da moda. O texto tem vários recursos do Jornalismo Literário. A humanização do relato — dentre um dos aspectos — é notada na valorização que se dá a tudo que Guilherme diz a respeito de sua vida. Faz-se isso por meio de citações diretas. As falas de Guimarães, em diálogo com as de Danuza Leão, constroem a trama e revelam até mesmo preconceitos do perfilado.

Um segundo ponto importante é a imersão da repórter Danuza Leão na realidade que quer retratar, visitando diferentes cômodos da casa do estilista e de seu mundo pessoal. Outra característica notada é a intervenção constante que a jornalista faz durante o texto, valorizando o seu próprio ponto de vista na narração.

A naturalidade da escrita e a recusa à técnica do lead favorecem a construção de uma história real que tem qualidade estética e se aproxima da literatura, dando vida e perenidade à reportagem. É um texto que poderá ser lido daqui a muitos anos, sem que perca a capacidade de impressionar e seduzir o leitor. No primeiro parágrafo, Danuza Leão faz uma apresentação do perfilado, seguida de uma citação direta que deixa transparecer preconceitos e gostos pessoais do personagem.

Poderia também ter sido um decorador de sucesso extraordinário. Por que não foi? “Porque não agüentaria que um casal viesse me dizer que queria uma sala com hometheatre para ver novela com as crianças”, responde, na lata. “Gente assim, só matando”.

Nota-se o uso de uma metáfora para descrever com exatidão o que Guilherme queria fazer com sua piscina, comparando-a com um cinzeiro. Com isso a repórter quer demonstrar a disposição de Guilherme em alterar sua casa, com independência e ousadia.  

Um dia, ele juntou uma turma de pedreiros para mudar a posição da piscina. Apenas uma virada, como se faz com um cinzeiro. “Sou louco por uma obra, o cheiro do cimento me inebria”, ele diz. Nas suas infindáveis reformas, jamais recorre a arquitetos e decoradores. Faz tudo sozinho.

4.2. “A São Silvestre do Ziriguidum”

O texto de Vanessa Bárbara, “A São Silvestre do Ziriguidum” (edição nº 4, jan. 2007), reporta tudo o que acontece na I Maratona de Samba da cidade de São Paulo, ocorrida no final de 2006.

É um evento em que os participantes fazem um verdadeiro teste de resistência, dançando por várias horas consecutivas. Pode ser enquadrado perfeitamente no estilo Jornalismo Literário, se aproximando muito das características do conto descritas por Ferrari e Sodré (1986). Tem “força” e “tensão” para manter o leitor interessado na narrativa até a sua conclusão, sem deixar de ter “clareza”, tratando com objetividade e detalhadamente o evento. Além disso, retrata o acontecimento por meio de uma abordagem original.

A reportagem apresenta, no começo, uma das características do Jornalismo Literário apontadas por Edvaldo Pereira Lima (1995/2004): o “sumário” ou “exposição”, em que se transfere o foco das atenções rapidamente para uma situação secundária, para em seguida voltar ao objeto central da reportagem. No caso desta matéria, em que se descreve uma competição de dança — e de resistência para tanto —, a autora primeiro especula de um modo bastante liberto como estavam as condições do tempo, se acontecia algo de anormal do lado de fora, se era feriado ou não. Em seguida, retorna ao objeto central — a competição de dança.

Com isso, conseguiu demonstrar a idéia de que não importava o que estava do lado de fora, enfatizando a importância do evento e o grande envolvimento de seus integrantes. É um modo também de criar certa expectativa no leitor, que vai se interessar por aquele ambiente e saber o que se passa nele.

Não se sabe se, lá fora, chovia ou ventava, se era dia ou noite, Páscoa ou Carnaval, se os Quatro Cavaleiros tinham descido à Terra para trazer a peste ou a fome. Lá dentro, no salão de dança, a única certeza compartilhada por treze casais era a de que quando acabasse a 30ª música – e, com fé, isso iria acontecer – viria outra, e depois do pé esquerdo o direito, e depois do direito mais um rodopio e um passo para trás.

Em alguns parágrafos a autora empenha-se em criar expectativas. Descrevendo cena a cena os preparativos finais antes do início do campeonato — com os verbos sempre no presente do indicativo —, fixa o interesse do leitor pela história.

Às 14h05, os treze casais são reunidos pelo organizador do concurso, Clovis Pereira Jurado, que (até pelo sobrenome) fará parte do júri. Jurado é diretor da Cia. La Luna, uma das escolas responsáveis pela maratona, em parceria com a rival Algazarra’s e com a Consulado Music. A despeito de ser organizada por academias locais, a prova consta no calendário oficial de eventos da Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e Recreação. Clovis anuncia as regras: os casais devem dançar, ininterruptamente, até a meia-noite, com pausas de cinco minutos a cada duas horas para ir ao banheiro, e uma parada de quinze minutos na quinta hora para uma refeição. Não serão permitidas trocas de roupas ou de calçados. As duplas podem se servir à vontade das frutas e biscoitos dispostos nas mesas, contanto que não parem de dançar. A partir das 23 h, a equipe de jurados avaliará a técnica, a simpatia e a harmonia dos sobreviventes, a fim de eleger um vencedor. Na última hora, houve competidor que reclamou: “Ih, só agora eu lembrei que precisava ir ao banheiro”.

4.3. “Como se jogar na balada”

A reportagem “Como se jogar na balada”, de Daniela Pinheiro (edição nº 7, abr. 2007), descreve duas festas noturnas em São Paulo, um mundo onde prevalecem o uso liberado de drogas, a ostentação de luxo e riqueza e a institucionalização de uma hierarquia social paralela - onde os “VIPs” possuem certos privilégios que outras pessoas não têm.

Daniela Pinheiro consegue traçar este cenário de modo bastante descontraído e ao mesmo tempo irônico, quando, por exemplo, traz para seu vocabulário gírias e expressões usadas pelos freqüentadores das baladas. São expressões que denotam certos preconceitos em relação às classes menos favorecidas, como a restrição à cerveja, por ser um produto popular.

No segundo parágrafo, Daniela descreve o cenário que encontra nos arredores da boate Pacha, na Vila Leopoldina. Ela quer deixar clara a ostentação de bens materiais nesse ambiente, como forma de descrever com mais clareza os personagens nele inseridos. Dá ênfase, por exemplo, à quantidade de carros importados, bem como à sua limpeza. A repórter também lembra que a entrada na casa noturna é bastante disputada.

À meia-noite e meia de uma sexta-feira recente, uma área baldia da Vila Leopoldina estava apinhada de carros importados. Havia sete Audi, três Porsche, cinco BMW, dois Jaguar, dezenas de Toyota e de utilitários importados. Todos pretos e recém-lavados. Umas 200 pessoas se acotovelavam ao longo de duas grades e esperavam, em vão, para entrar na boate Pacha (pronuncia-se Pachá), uma das mais concorridas da noite paulistana.

4.4. “O bagulho é doido, ta ligado?”

O texto “O bagulho é doido, tá ligado?”, de Luiz Maklouf Carvalho (edição nº 10, jul. 2007), é uma reportagem completa; predomina a variedade de fontes consultadas, o aprofundamento e a preocupação em descobrir como um fenômeno cultural — o rap — repercute no organismo social. Ao mesmo tempo, o repórter transforma seu trabalho num espaço para a experimentação de recursos da literatura, intensificando a narrativa no tempo presente em alguns trechos, além de adotar uma postura narrativa ousada, com uso de gírias e ricas descrições de lugares, roupas e pessoas.

Após passar informações relevantes sobre a carreira do grupo Facção Central, Maklouf entrevista Taddeo no tempo presente. Aproveita para expor mais um trecho de música. É o ritmo, o tom da narração, que situa o leitor.

Enquanto aguarda a chegada da cunhada, que cuidará das filhas durante o fim de semana de show em Dourados, Eduardo Taddeo explica que o “circo dos horrores”, do título do álbum, é a situação produzida pela miséria brasileira. Suas letras, diz ele, descrevem e apontam responsáveis pela exploração social. É o caso do trecho que lamenta:

Que pena que nessa churrasqueira também não virem cinzas vereadores, deputados, senadores, ministros e presidente.

Considerações finais

As evidências levam ao entendimento de que inserir recursos da literatura no jornalismo pode contribuir para a sobrevivência da mídia impressa. Diante da profusão de novas mídias digitais, que tornam a notícia cada vez mais ágil, os veículos impressos terão de repensar sua função informativa. Essa tarefa se dará possivelmente pela implementação das narrativas de não-ficção, com aprofundamento e contextualização dos fatos.

Observa-se com este trabalho que o Jornalismo Literário, muito mais do que uma proposta estética, tem um papel ideológico e social relevante. Calcadas em premissas do jornalismo (ética, verdade, fidelidade das fontes) e influenciadas por recursos da literatura (figuras de linguagem, valorização de relatos, cenas), as novas narrativas de não-ficção podem ajudar a identificar o modo como as pessoas se vêem no cenário globalizado.

No ambiente acadêmico, a temática também ganha vulto. Os editores do portal Texto Vivo Edvaldo Pereira Lima, Sergio Vilas Boas, Celso Falaschi e Rodrigo Stucchi — também são fundadores da Academia Brasileira de Jornalismo Literário. Os jornalistas-professores da ABJL ministram, por meio de parcerias com instituições de Ensino Superior, o primeiro curso de pós-graduação na área.

Recentemente foi realizado, também pela ABJL/Texto Vivo, o 1º Seminário Brasileiro de Jornalismo Literário, entre os dias 22 e 23 de outubro de 2007, em São Paulo, com a participação de destacados estudiosos da Comunicação. Durante o evento foi lançado o livro Jornalistas Literários: Narrativas da Vida Real por Novos Autores Brasileiros, pela editora Summus. A coletânea foi organizada por Sergio Vilas Boas, que compilou 16 textos produzidos por alunos pós-graduados do curso da ABJL, em 2005 e 2006.

Tantas contribuições constroem uma problemática. Para reforçar as discussões sobre o tema, em novembro, aconteceu o 1º Salão Nacional do Jornalista Escritor, no Memorial da América Latina, em São Paulo, com jornalistas que se consagraram também no espaço da literatura.

Diante destes apontamentos, vê-se que é necessária ao Jornalismo uma motivação especial para que se converta, de fato, em instrumento da democracia, em campo que sirva à existência humana como palco de suas incertezas e conflitos, e, acima de tudo, de sua formação e emancipação.

É preciso renovar uma prática a cada dia mais abandonada pelos jornalistas: a de sair às ruas, a de sentir o “cheiro” dos acontecimentos, ou, como diria Humberto Werneck sobre Gay Talese, de “sujar os sapatos”.

Como já se discutiu neste trabalho, a emoção é peça fundamental na construção do texto jornalístico. O jornalista Ricardo Kotscho afirma que um bom repórter sempre deve voltar à redação com uma boa história para contar, não importa o assunto. Afinal, contar histórias é uma necessidade inerente ao ser humano, desde sempre. A diferença é que agora podemos guardá-las por mais tempo. Mas a essência não mudou.

A tecnologia, felizmente, não conseguiu fazer com que deixássemos de sentir dor e prazer, não nos tirou o gosto de chorar ou rir, de pensar de modo liberto, de imaginar. O ser humano ainda não foi transformado em máquina. Por que o jornalismo seria?

NOTAS

[1] “Conceitos”. S/r, s/d. Disponível em http://www.textovivo.com.br. Acesso em: 11 mar. 2007.

[2] Conceito: “Veículo jornalístico impresso não-periódico contendo matéria produzida em formato de reportagem, grande-reportagem ou ensaio. Caracteriza-se pela autoria e pela liberdade de pauta, captação, texto e edição com que os autores podem trabalhar. Entre os tipos de livros-reportagem mais comuns estão a reportagem biográfica, o livro-reportagem-denúncia e o livro-reportagem-história”. S/r, s/d. Disponível em: http://www.textovivo.com.br. Acesso em: 09 mai. 2007.

[3] “Conceitos”. S/r, s/d. Disponível em: http://www.textovivo.com.br. Acesso em: 11 mar. 2007.

[4] “Concedido pela Universidade Columbia, de Nova York, o Pulitzer é o mais importante e respeitado prêmio do jornalismo dos Estados Unidos. Foi criado em 1917, seis anos após a morte de Joseph Pulitzer, húngaro naturalizado americano, então dono do St. Louis Dispatch e New York World. Ele manifestou em vida a vontade de criar um prêmio que estimulasse o jornalismo e as artes”. S/r, s/d. Disponível em: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/netbanca/arquivo/ed241_250.htm. Acesso em: 24 jul. 2007.

[5] Entrevista concedida às autoras em 1º jun. 2007.

[6] Entrevista concedida às autoras em 1º jun. 2007.

[7] João Moreira Salles é um documentarista que ficou conhecido principalmente no final da década de 1990, com Notícias de uma guerra particular (1999), documentário que trata sobre a guerra da polícia com o tráfico no Rio de Janeiro, co-dirigido com Kátia Lund. Com o irmão Walter Salles, fundou a produtora VideoFilmes em 1987, que a princípio trabalhava com a realização de documentários para a televisão. Disponível em: http://www.filmeb.com.br/quemequem/html/QEQ_profissional.php?get_cd_profissional=PE245. Acesso em: 27 ago. 2007.

[8] Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u64970.shtml. Acesso em: 07 ago. 2007.

[9] Entrevista concedida às autoras, por e-mail, em: 25 jun. 2007.

[10] Entrevista concedida às autoras, por e-mail, em: 25 jun. 2007.

[11] Entrevista concedida às autoras, por e-mail, em: 25 jun. 2007.

ENTREVISTAS

Entrevista com Francisco José Karam, concedida em 1º jun. 2007.

Entrevista com João Moreira Salles, concedida por e-mail em 25 jun. 2007.

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*Rodolfo Tiengo Fernandes é formando pelo Centro Universitário das Faculdades Associadas de Ensino (Unifae), de São João da Boa Vista/SP, e repórter do jornal Democrata, de São José do Rio Pardo/SP.

 


Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]