Nº 8 - Julho 2007 Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO V
 
 

Expediente

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 

 

 


 

 

 

 

 

 


MONOGRAFIAS
   

Jornalismo como construção:
Uma leitura das estratégias na
cobertura da Copa do Mundo 2006

Por Michele Castilhos Gomes Amaral e Viviane Borelli*

Resumo
O objetivo do artigo é mostrar como o jornalismo se constitui num lugar privilegiado de construção da realidade social por meio de análise da cobertura da Copa do Mundo 2006 pelo Jornal Nacional.

Essa leitura foi feita através de algumas técnicas da Análise de Discursos e, para tal, foram criadas categorias a partir de construção teórica e observação da agenda do JN. O trabalho mostra que o telejornal mostra sua competência em suas enunciações através da constante auto-referencialidade durante a realização do mundial. O que se mostra é que a mídia é uma protagonista singular que constrói a própria noção de realidade social.

Palavras-chave
[Jornalismo / Jornal Nacional / Copa do Mundo]


Introdução

Um acontecimento esportivo como a Copa do Mundo mobiliza uma série de estratégias e ações distintas por parte das mídias que procuram dar conta de cobri-la sob diferentes aspectos. Durante o mundial, os brasileiros vivem intensamente seu lado torcedor e patriota via processos de midiatização e, especificamente, através de construções jornalísticas.

Em 2006, a Copa do Mundo ocorreu na Alemanha, de 9 de junho a 9 de julho, no mesmo país no qual o Brasil venceu a final do mundial anterior, tornando-se a única seleção pentacampeã. Em função disso e pela tradição que o país tem no futebol, houve uma grande expectativa em torno do desempenho dos jogadores brasileiros para que a seleção fosse hexacampeã.

Para dar conta de mostrar esses vários aspectos que dizem respeito ao esporte em si, como o desempenho, a preparação para os jogos, as táticas, as jogadas, a técnica, e também a outros fatores, como os bastidores, a paixão, as relações entre os jogadores e familiares, o contexto e historicidade dos locais dos jogos, a expectativa de torcedores, entre outros temas, as equipes jornalísticas preparam-se durante muito tempo para conseguir realizar o que idealizam como a 'melhor cobertura'.

Como a Rede Globo de Televisão tinha os direitos exclusivos de transmissão dos jogos, montou uma ampla estrutura para alimentar os seus telejornais, especialmente o Jornal Nacional (JN), o de maior audiência no Brasil. Em 2006, o JN mobilizou seus principais repórteres para cobrir a Copa do Mundo, enviando para a Alemanha, inclusive, um de seus âncoras, Fátima Bernardes.

É por meio de mediações específicas, a tecno-interação (Sodré, 2002), que as mídias realizam o seu trabalho de dar visibilidade, legitimidade (Rodrigues, 2000) e promover diálogos entre os campos sociais (Esteves, 1998). O esporte [1] alimentou durante um mês a agenda do JN que tematizou a Copa do Mundo através de distintas estratégias discursivas.

Para dar conta de compreender como o telejornal construiu sentidos acerca desse tema, utilizou-se algumas técnicas da Análise de Discursos (AD), que visa observar sua enunciação em um certo contexto, para empreender uma leitura sobre as chamadas e escaladas [2] do JN no período de 9 de junho a 9 de julho de 2006.

Jornalismo como construção

Diferentemente do que pressupunham algumas teorias da comunicação, como do espelho e da informação, o processo comunicativo é muito mais que uma mera reprodução e transmissão da realidade. Nesse sentido, a atividade jornalística é complexa e de produção de sentidos, pois as ações são realizadas por sujeitos e processos que fazem com que o campo midiático não seja um lugar de passagem, mas de operação de sentidos, que se institui por transações entre os campos sociais e seus atores.

Esse trabalho de produção de sentidos é orquestrado pelo estatuto da linguagem, em que a atividade jornalística só existe na medida em que é nomeada e perpassada pela língua e códigos lingüísticos, que, por si só, não pode reproduzir a realidade, mas construí-la.

Ao ganharem existência pública e visibilidade social, os fatos eleitos para serem cobertos são transformados em acontecimentos construídos no interior do campo jornalístico, que é marcado por tensões, negociações e trocas simbólicas (Bourdieu, 1997), complexificando as relações entre os campos.

O campo midiático e, especificamente o que se refere ao jornalismo, ocupa um lugar central [3] na mediação da realidade, onde temas dos campos sociais passam pelo processo de midiatização (Verón, 1997), havendo cruzamentos de interesses e negociações.

O Jornal Nacional agenda o que está sendo discutido sobre os temas da atualidade a partir de construções próprias, em que a centralidade que o campo midiático ocupa na sociedade faz com que os temas da atualidade passem, necessariamente, pela sua agenda.

Além de se constituir num dos principais dispositivos de mediação, garantindo visibilidade dos demais campos sociais, o campo midiático é um dos principais dispositivos instituidores do espaço público, na medida em que a realidade não só passa pelo campo midiático, como também é construída nele.

É nesse sentido que os acontecimentos só ganham existência pública a partir da ação dos dispositivos de mediação específica, que os constroem via processos de enunciação. "Os acontecimentos sociais não são objetos que se encontram já feitos em alguma parte da realidade e só existem na medida em que esses meios os elaboram", define Verón (1987:X).

Nessa perspectiva, cada mídia produz o seu próprio acontecimento, engendrando uma noção particular de realidade, pois o jornalismo se constitui num sistema de codificação e produção da realidade, de acordo com regras, rotinas próprias e códigos inerentes ao seu campo, que é um operador de práticas, falas e sentidos que provêm dos outros campos.

A especificidade das mídias é que, segundo Fausto Neto (1999), estruturam e estruturam-se no espaço público, atuam no espaço público através de competências próprias, em que o processo de visibilidade proporcionado às diferentes falas passa por um conjunto de "leis" e condições de produção.

Além disso, para o autor, os diferentes campos sociais não dependem do midiático para sua existência, mas encontram nele visibilidade e uma instância de legitimação, pois é um articulador entre os campos sociais.

Esse trabalho de construção se faz sob determinadas condições estabelecidas pelo campo midiático, reunindo uma série de aspectos por meio de 'contratos de leitura' (Verón, 2003), que são proposições entre a mídia e seus leitores, representando a forma como seus modos de dizer são enunciados, regulando e conduzindo os sentidos. A partir dessa proposição, as construções midiáticas resultam numa hierarquização dos sentidos, pois são determinados os modos de construção, os lugares, a ordem e o tempo em que os temas são publicados.

O jornalismo é um dos lugares privilegiados, como assinala Alsina (1989), para construção da realidade, pois é o espaço onde se produzem sentidos a partir dos fatos ocorridos. Segundo conceito do autor, o jornalista age sobre a realidade social, na medida em que elabora e determina o que merece ou não um status noticioso. A notícia é "uma representação social da realidade cotidiana produzida institucionalmente que se manifesta na construção de um mundo possível" (p. 18).

O trabalho jornalístico se caracteriza como um articulador, engendrador de uma realidade, enfim, num produtor de sentidos. Cada mídia produz o seu acontecimento singular com base em metodologias próprias, nas "pressões", nos discursos de suas fontes, nos constrangimentos organizacionais, da constituição e projeção de seu público leitor, além da cultura profissional de sua comunidade jornalística (Traquina, 2005).

O processo produtivo empreendido pelo jornalismo é composto por etapas que vão desde a produção nos bastidores - relacionadas às técnicas, processos e decisões do campo midiático e suas organizações - passando por outras ações, como a oferta enunciativa do produto midiático (enunciado), o discurso (enunciação), a busca pelo reconhecimento junto ao receptor, até chegar à recepção e aos efeitos de sentidos.

A partir disso, pelo imediatismo e factualidade que orienta a construção do jornalismo, a Copa do Mundo é publicizada de forma intensa durante seu período de realização. Mas também se sabe que a ocorrência de alguns acontecimentos noticiados neste período são regidos por outros critérios de noticiabilidade.

A seleção do que será noticiado se faz através dos critérios de noticiabilidade e os valores-notícia que a comunidade jornalística partilha, de acordo com Traquina (2005:63) são "o conjunto de critérios e operações que fornecem a aptidão de merecer um tratamento jornalístico, isto é, possuir valor como notícia". Os critérios noticiosos são os valores, as características que os acontecimentos possuem para que sejam avaliados e transformados em notícias.

Além da Copa do Mundo, o telejornal publiciza, a partir de construções próprias, outros temas. Essas construções se fazem através da competência discursiva que se realiza através da enunciação jornalística que se vale também da interdiscursividade. Para Maingueneau (2000:28), "enunciar no interior de uma formação discursiva é, também, saber como se posicionar com relação às formações discursivas concorrentes". Como marca presente durante o mundial, a competência discursiva torna-se uma constante nas construções.

Em relação à especificidade do telejornal, ressalta-se que ele é construído a partir de várias vozes que, de acordo com Fausto Neto (2002:503), são "'vozes de dentro', 'vozes de fora', 'vozes transversais', o telejornal se fia em enquadramentos e em regimes de discursos, não importa o tema de referenciação". Essas vozes fazem com que o telespectador construa várias formas de reconhecimento, por isso há uma busca do telejornal em representar o maior número de vozes possíveis para uma identificação genérica.

Como o telejornal busca alcançar o maior número de telespectadores, necessita de um "reconhecimento universal", segundo expressão de Fausto Neto (2002), para ter uma aceitação de um público que é variado, independente de suas experiências e opiniões. A enunciação do telejornal é feita a partir de construções próprias, por uma lógica midiática que orienta a sua organização de acordo com os valores-notícia que determinam a noticiabilidade, como a universalidade e a relevância para que haja uma identificação por parte da diversidade de telespectadores.

Na seqüência, analisa-se de que forma o Jornal Nacional se 'universaliza' durante a Copa do Mundo através de sua competência discursiva, característica primordial no jornalismo, mas também na sua competência como telejornal, através de seu aparato técnico-significante.

Os números da Copa do Mundo no Jornal Nacional

A tematização dos assuntos a serem abordados num telejornal é um dos processos pelos quais o campo midiático constrói a própria realidade social. Durante a Copa do Mundo, o agendamento do que seria debatido seguiu, especialmente, os critérios da atualidade e do imediatismo, tão freqüentes no jornalismo. Porém, os números analisados mostram que houve uma supervalorização do mundial em detrimento de temas também importantes para o país. [4]

O interesse dos brasileiros pelo futebol é evidenciado diariamente nas páginas dos jornais, revistas especializadas e programas de televisão. Porém, em época de Copa do Mundo, esse sentimento se potencializa e, sobre essa questão, Gastaldo (2002) diz que o interesse do brasileiro pelo futebol é pré-existente à competição, mas a 'demanda social' durante sua realização cresce e, vinculados ao caráter midiatizado do evento, a produção e o consumo de 'produtos' veiculados pela mídia também aumentam.

A mídia seleciona os assuntos que considera mais importantes para serem publicizados. Mesmo com outros temas disputantes durante a realização do mundial, constata-se, através de um levantamento quantitativo, que a Copa do Mundo acabou tendo uma tematização ampla, chegando a atingir 90% do conteúdo do telejornal. Para justificar esses números, se observa que pelo seu valor-notícia principal, o imediatismo, a Copa do Mundo foi destaque durante todo o mês de sua realização.

Além desse critério, existem outros elementos que fazem com que o mundial seja noticiado, um deles é o fato do jornalismo fazer sua oferta pensando no seu receptor 'ideal', neste caso um público apaixonado pelo futebol.

A partir da análise das escaladas, as chamadas para as reportagens mais importantes da edição e das cabeças das matérias, que são as chamadas para as reportagens que vêm na seqüência, observou-se que 62% das matérias das escaladas se referiam ao mundial. Do dia 09/06 até o dia 01/07, 70% das chamadas das escaladas, em média, foram sobre o mundial.

Após a derrota e saída da seleção brasileira na Copa do Mundo, do dia 03/07 até dia 08/7, esse número cai para 50%. A partir do dia 03/07, o Jornal Nacional deixa de ser apresentado no eixo Brasil-Alemanha e volta a ser mostrado somente no Brasil.

Em uma média de 22 cabeças de matéria por dia, 11 são sobre Copa do Mundo, ou seja, 50% das chamadas. Na maioria das edições, a soma das matérias de outras editorias não alcança as do mundial. Até o dia 01/07, 65% das cabeças de matérias eram sobre o mundial. A partir do dia 03/07, com o formato modificado, esta porcentagem cai para 40%.

Esses números dão uma idéia da relevância dada ao futebol no Jornal Nacional durante a Copa do Mundo e remetem a um receptor apaixonado pelo futebol. Percebe-se que por ser um país conhecido mundialmente por esse esporte e pela Rede Globo ter exclusividade na transmissão dos jogos do mundial, o telejornal prioriza com ênfase esse tema.

Segundo Rodrigues (1998), a noticiabilidade é uma característica fundamental que garante aos acontecimentos uma configuração narrativa para ser relatado no telejornal. É por isso que a Copa do Mundo foi amplamente mostrada, devido a sua visibilidade e também à disponibilidade da Rede Globo de mostrar o evento, já que estava com uma ampla equipe no local e transmitia os jogos com exclusividade no Brasil. Durante um mês, houve uma intensa divulgação do evento, sendo que a maioria das matérias estava relacionada à seleção brasileira.

Além da noticiabilidade e do imediatismo da Copa do Mundo, outro critério noticioso usado para a tematização das notícias é a notoriedade, pois tanto os jogadores quanto os próprios repórteres da emissora tornam-se atores do evento. A importância dos jogos fica evidente nas estratégias discursivas que o Jornal Nacional utiliza durante o mundial, que foram estudadas a partir de algumas técnicas da AD e serão descritas a seguir.

Enunciação: a competência discursiva do JN

A partir do corpus, criaram-se algumas categorias que foram nomeadas através da recorrência e incidência de características utilizadas pelo telejornal durante a cobertura do mundial. O campo midiático tem a legitimidade de enunciar as vozes dos outros campos, proporcionando um estabelecimento de uma ordem social, imposta pelos demais. A competência discursiva é uma capacidade legitimada do campo midiático, que tem autoridade para falar dos temas dos outros campos sociais (Esteves, 1998; Rodrigues, 2000).

A competência discursiva (ou comunicativa), segundo Maingueneau (2000), é a aptidão que o enunciador tem para produzir enunciados que dependem de uma formação discursiva determinada. Neste caso, o JN, que representa parte do campo midiático, por suas características e regras de funcionamento dá visibilidade aos demais campos, legitimando seus discursos. Pela sua centralidade, nos termos de Verón (1997), o campo midiático tem competência para falar de temas relativos ao campo esportivo, especificamente, da Copa do Mundo.

O que se observa é que o Jornal Nacional não só possui competência discursiva, mas também mostra através de seus processos de enunciação que tem capacidade única de cobrir esse grande evento. Além da publicização de matérias referentes aos jogos e ao evento em si, também foram produzidas reportagens que exploravam temas paralelos ao acontecimento, como informações de familiares dos jogadores, curiosidades sobre cidades da Alemanha, diversidade de idiomas, a movimentação dos torcedores, peculiaridades dos moradores do local, entre outros aspectos.

Na seqüência, detalha-se a análise dessas diferentes estratégias.

Bastidores: o mundial fora de campo

Nesta categoria, evidencia-se a estratégia de criar outros fatos para serem publicizados além dos acontecimentos diretamente ligados à competição em si. A tematização desses temas paralelos denota que além de mostrar fatos referentes à Copa, o Jornal Nacional também cria fatos não relacionados diretamente à competição.

Durante a cobertura, a equipe do telejornal esteve na Alemanha nos lugares os quais as partidas do mundial foram realizadas e onde estavam as principais seleções do mundial. O que se percebe é que o JN, pela exclusividade de transmissão dos jogos no Brasil, possui certa familiaridade com a seleção brasileira, hospedando-se, muitas vezes, nos mesmos lugares onde a seleção está. "Hoje, fui conversar com os jogadores para saber quem sofre mais: eles ou nós, torcedores?" (09/06/06 - JN).

O telejornal passa para seus telespectadores que tem intimidade com os jogadores da seleção brasileira, pois "conversa" com os jogadores.
Além dessa familiaridade, o telejornal enfatiza que está em "todos" os lugares em que a seleção se encontra: "Vamos ver como o Capitão Cafu reagiu lá da Alemanha (...). O repórter Mauro Naves acompanhou a visita da nossa equipe ao Estádio Olímpico." (12/06/06 - JN); "O repórter Marcos Uchôa foi conferir o treino da Croácia, os adversários do Brasil na estréia de terça-feira" (10/06/06 - JN).

A visibilidade dada ao mundial pelo JN mostra os cruzamentos de interesse e as negociações dos campos sociais, pois não só publiciza temas relativos aos jogos, como também aos atores de forma familiar: "Mas nossos atletas, de tão concentrados, nem tiveram chance de preparar uma surpresa para as mulheres ou namoradas. Então decidi dar uma ajudazinha" (12/06/06 - JN). Nota-se que há uma relação de troca, pois enquanto o telejornal realiza entrevistas exclusivas, os jogadores mandam recados para seus familiares, evidenciando as negociações entre os agentes dos campos.

O que se observa é que para corresponder ao interesse dos brasileiros pela Copa do Mundo, o telejornal cria matérias em torno de tudo o que ocorre durante a realização do mundial, numa espécie de preenchimento de espaço do telejornal, destacando a competição de várias formas e sob distintos ângulos e abordagens.

Fica evidente que a competência discursiva do telejornal anda junto à capacidade técnica, pois o aparato técnico significante do JN está em todos os lugares e tem exclusividade de imagens: "de um jeito que você ainda viu [...] captadas por câmeras exclusivas em ângulos inéditos. Um show de imagens apresentado por Pedro Bial". Reconhece-se no JN a competência de estar ao vivo no local do acontecimento, com exclusividade e ineditismo, mostrando que os jornalistas buscam o "furo" de reportagem, matérias com algum enquadramento inédito.

O "furo" é o que o JN tanto remete durante a Copa, o estar presente, o ao vivo, e ter capacidade de mostrar imagens inéditas e exclusivas para confirmar essa competência de que faz "o melhor" para seus telespectadores.

Quando diz que está presente no local, que os repórteres conseguem imagens inéditas e entrevistas exclusivas, o JN está se auto-referindo e dizendo que é capaz de fazer a melhor cobertura para que o público saiba através da emissora o que acontece no local e também nos seus entornos.

Jogo: uma partida dentro da tela

Para evidenciar que o Jornal Nacional está presente na cobertura dos jogos, algumas estratégias remetem à exclusividade, competência e onipresença que a emissora e seus telejornais possuem em muitas matérias, fazendo uma auto-referência a repórteres e ao próprio trabalho do Jornal Nacional.

Essa categoria se refere aos temas ligados diretamente aos jogos do mundial e é através de uma série de estratégias que a equipe do telejornal mostra que está em todos os jogos, mostrando tudo o que acontece na competição: "Nossos repórteres mostram tudo sobre o jogo em Berlim" (13/06/06 - JN); "E é ao vivo, da Alemanha, que Fátima Bernardes traz todas as informações" (09/06/06 - JN). A impressão que se tem é que os telespectadores só saberão o que acontece na Copa do Mundo se assistirem ao telejornal, já que os repórteres levam todas as informações, muitas vezes, ao vivo e exclusivamente para quem assiste, "E você vai ver também, imagens inéditas da vitória do Brasil" (14/06/06 - JN).

Essa onipresença do telejornal e sua equipe no mundial evidencia que cada mídia produz seu próprio acontecimento sob sua ótica e suas próprias angulações, com uma visão particular da realidade: "Mas o repórter Pedro Bial identificou, hoje, um lance fundamental no jogo, e não foi nem uma defesa, nem um gol" (13/06/06 - JN). O enunciado denota essa construção da realidade já que o repórter é um especialista capaz de mostrar ao telespectador um fato importante do acontecimento.

Outra forma de demonstrar a competência do telejornal é auto-referir-se: "Nós já mostramos, aqui no Jornal Nacional" (20/06/06 - JN), afirmando que algum fato já foi tematizado e está sendo retomado. Durante o mundial, o JN faz uma auto-referência constante, seja a seus repórteres ou a sua presença na Alemanha, em que esta auto-referencialidade é também uma estratégia para criar vínculos com os telespectadores.

O JN se auto-refere a partir de marcas que remetem a sua presença no local do acontecimento. Essa constante fala de si mesmo evidencia não só a capacidade técnica e discursiva de sua equipe no evento, mas também a necessidade de mostrar ao telespectador que está apto para conseguir todas as informações.

A constante enunciação da onipresença do telejornal mostra que "nada escapa" dos repórteres e câmeras e denota que eles são capazes de estar em todos os lugares do acontecimento.

Retomando um conceito explicitado, de que os campos sociais não dependem do campo midiático para existir, mas encontram nele a visibilidade necessária para legitimar-se, durante a Copa do Mundo o que se percebe é que a competição se tornou um acontecimento para ser midiatizado. A presença da mídia garante um outro status à Copa, que precisa dos processos midiáticos não apenas para ter visibilidade junto aos amantes do futebol, mas também como garantia de existência e de legitimidade social.

Contexto: localizando o telespectador

Outra estratégia utilizada pelo Jornal Nacional durante a Copa do Mundo foi a de "localizar" os telespectadores na Alemanha através da referência a elementos mais contextuais. Essa é uma forma de evidenciar que o telejornal está presente no local do acontecimento e também que está lá no lugar dos telespectadores que não puderam ir para acompanhar o mundial.

Muitas vezes, descreve-se com detalhes os locais para confirmar a presença dos repórteres no mundial (e sua competência) como uma espécie de "viagem ao país sede da Copa do Mundo", onde o JN situa os telespectadores, informando sobre a temperatura, horário e cidades do país. Referente a esse aspecto de localização, foi inclusive criado um jargão que remete à âncora do telejornal: "Onde está você, Fátima?". O jargão foi criado na Copa de 2002 e, em 2006, foi ainda mais popularizado.

Uma estratégia importante que demonstra credibilidade ao telespectador é a proximidade que os repórteres demonstram com a seleção brasileira, estando, algumas vezes, nos mesmos locais de hospedagem: "Boa noite, eu queria saber o seguinte, você ontem disse que ia viajar hoje para Munique.

Mas, Munique é uma cidade grande. Onde está você? (William Bonner).

"No hotel em que a seleção brasileira está hospedada, fica há uns 3 a 4 quilômetros do Centro Histórico da Cidade" (Fátima Bernardes, 16/06/06 - JN).

Além da proximidade com a seleção brasileira, também há uma "visita" aos principais pontos turísticos da Alemanha, "Hoje, estou no marco histórico e lindíssimo da reunificação das Alemanhas, o Portão de Brandemburgo, em Berlim. Deste lado, era a parte Oriental e atrás do Portão ficava a parte Ocidental do país" (13/06/06 - JN). Há um detalhamento sobre os marcos históricos do país, de seu povo, evidenciando os desdobramentos que o telejornal faz para preencher sua agenda e mostrar os vários assuntos criados junto ao mundial.

Como membros participantes do evento, os jornalistas acabam, muitas vezes, tornando-se "atores-testemunhas-protagonistas", segundo expressão de Fausto Neto (2006), uma vez que são referências e, por meio de construções próprias, mostram o que é realizado durante a cobertura de um acontecimento. Os repórteres são parte do evento, integrando-o; eles dão visibilidade e tornam público o que acontece, sendo protagonistas.

As múltiplas vozes do telejornal

O telejornal é plural, pois expressa várias vozes através de um discurso próprio. Às vezes, evidencia quem fala e, em outras, fala em nome dos outros campos: "Mas, ainda assim, milhões de torcedores têm certeza de que, de alguma forma, eles também podem influenciar o resultado de amanhã" (12/06/06 - JN); "Para o técnico Parreira, a vitória de hoje foi um ótimo resultado, mas a seleção ainda vai crescer ao longo da Copa" (13/06/06 - JN). Seja pelos torcedores, ou pelo técnico da seleção brasileira, o discurso do JN é construído através de vozes dos outros campos, mas a partir de suas próprias regras e seus posicionamentos ('a seleção ainda vai crescer').

A diversidade e a universalidade são mostradas nesta categoria, já que as várias vozes dos campos sociais são representadas através do campo midiático. Em alguns casos, o JN faz uma referência a outras mídias, "a alegria enorme da imprensa internacional" (14/06/06 - JN) e "jornalistas do mundo todo fizeram a mesma pergunta" (15/06/06 - JN).

O telejornal é um observador atento que publiciza o que os outros campos enunciam, o que as outras mídias falam a respeito da Copa do Mundo e das seleções, principalmente, a brasileira. Essa forma de enunciar mostra que o telejornal, além de suas próprias construções, manifesta a opinião das outras mídias, evidenciando, novamente, sua competência para mostrar não só o que ocorre no país do mundial, mas também a repercussão em todo o mundo.

Considerações finais

Através da leitura de algumas estratégias discursivas, se observa que o Jornal Nacional cria o 'seu acontecimento', mostrando através de seu olhar e, portanto, construções próprias a Copa do Mundo. Isso inclui não só os participantes diretos do evento, como jogadores, técnicos ou torcida, mas também os próprios repórteres do telejornal, que fazem parte do acontecimento e são também protagonistas do mundial.

O campo midiático é um produtor de sentidos e, como tal, a partir de regras próprias constrói os temas da atualidade, como a Copa do Mundo.

Na medida em que agenda assuntos para serem postos em discussão na agenda pública, a mídia não só ele age sobre a realidade social como também constrói a própria noção de realidade.

O que se observa é que dois campos sociais diferentes que operam a partir de lógicas distintas, o midiático e o esportivo, negociaram trocas.

Da mesma forma que a mídia se 'alimentou' dos temas da Copa e de seus atores, proporcionou visibilidade e legitimou o mundial enquanto acontecimento. Essas negociações mostram que a mídia constrói sua realidade através de informações que negocia com os mais diversos campos sociais.

Como evento importante para os brasileiros, a Copa do Mundo mobiliza um país de forma significativa e a mídia, especificamente o Jornal Nacional, publiciza intensamente o tema durante sua realização. Idealizando o receptor "ideal", o telejornal desdobra o evento, mostrando e criando vários temas, quando, muitas vezes, torna-se o ator principal do acontecimento, já que, segundo o próprio telejornal, o JN mostrou "tudo" sobre a Copa.

Analisando as estratégias discursivas do Jornal Nacional durante o mundial, observa-se que em vários momentos, o telejornal anuncia através de auto-referencialidades que é competente e onipresente. A análise mostra que a mídia é não só um observador privilegiado do acontecimento, como também um ator que o constitui.

Notas

[1] Sobre a especificidade das relações entre mídia e esporte, desenvolveu-se o estudo: BORELLI, Viviane. "A midiatização do esporte: leitura das estratégias discursivas da cobertura jornalística da Olimpíada de Sydney (2000)". Dissertação de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Ciência do Movimento Humano, Área de Concentração em Comunicação e Mídia, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS), 2002.

[2] Veiculadas no início do telejornal, as escaladas são as frases de impacto ou manchetes.

[3] A partir do esquema da semiose da midiatização, desenvolvido por Verón (1997), concebe-se que no processo de produção do acontecimento deve-se levar em conta a relação das mídias com os campos, as instituições da sociedade; a relação das mídias com os atores individuais; a relação das instituições com os atores e a maneira com que as mídias afetam a relação entre as instituições e os atores.

[4] Essa problemática foi desenvolvida em profundidade no Trabalho Final de Graduação (TFG), intitulado "Eleições Presidenciais e Copa do Mundo 2006: uma análise das estratégias discursivas do Jornal Nacional", que foi desenvolvido em 2006, como requisito para conclusão do curso de Comunicação Social - Jornalismo da Unifra.

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*Michele Castilhos Gomes Amaral é graduada em Comunicação Social - Jornalismo e Especializanda em Projetos de Mídia pelo Centro Universitário Franciscano (Unifra). Viviane Borelli é doutora em Ciências da Comunicação pela Unisinos e professora do curso de Comunicação Social - Jornalismo do Centro Universitário Franciscano (Unifra).

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®Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]