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Opiniões - Comentários


Uma genealogia da falsidade

Por Gildo Magalhães*

Prefácio de A falácia genética – a ideologia do DNA na imprensa, de Claudio Julio Tognolli, 340 pp., Editora Escrituras, São Paulo, 2004, <www.escrituras.com.br>; R$ 14,50.

A ciência, assim como a arte, permite ao ser humano abrir as janelas de sua mente para a realidade do infinito. Na história, em especial desde o Renascimento, os cientistas acabaram criando uma forma de trabalho que aos poucos foi-se impondo com regras próprias. Mas ao contrário do que pensam muitos, a regra principal não diz respeito a questões de verificação, ou do seu contrário, de falsificação. É claro que tudo isto pode descrever o método e faz parte importante das tarefas científicas, porém nada equivale em importância à formação de hipóteses, que por sua vez geram teorias a serem testadas e experiências a serem levadas a cabo. Nesse sentido, a hipótese que se faz de uma hipótese representa ó ápice desta expressão de nossa capacidade intelectual, e isto foi corretamente expresso por Platão e seus seguidores. A filosofia da ciência nada alcança de fundamental para explicar se esquece deste ponto de partida e a história da ciência pouco nos instrui sobre os processos das descobertas caso se torne apenas um repositório de fatos, sem a iluminação representada pelo surgimento das hipóteses, ainda quando falhas ou superadas. A formação de hipóteses é a essência da epistemologia, ou de como se adquire conhecimento –por este motivo, a epistemologia deveria ser sempre objeto de nossas pedagogias.

Por outro lado as ideologias científicas não são quimeras, elas existem, e o curioso é que se pode dar ao termo "ideologia" muitas acepções, desde o extremo pejorativo de falsa consciência da realidade até o mais ameno de uma visão de mundo, sem que esta afirmação perca o sentido. Entender como vicejam as ideologias no âmbito da ciência é uma tarefa dupla da sua história e filosofia, que vêm construindo com sucesso uma tradição de problematizar a construção das teorias. A já aludida formação de hipóteses desempenha também nisto um papel fundamental, uma vez que em geral os cientistas não têm consciência dos determinantes sociais, econômicos e culturais que estão entranhados em suas teorias e, não obstante, é aí que os pesquisadores do tema podem investigar com maiores benefícios o que subjaz às idéias científicas.

É claro que admitir essa abordagem da ciência implica em não se aceitar como "verdades" as conclusões dos cientistas, por mais espetaculares que sejam, ao menos não como verdades absolutas, e sim como contingentes para uma dada realidade correspondente a um determinado estágio de conhecimentos e investigando os contextos sócio-econômicos pertinentes, Isto não deve entretanto levar ao ceticismo e às atitudes decorrentes do que se tem chamado de "pós-modernismo", em que a tônica recai sobre a irracionalidade do conhecimento científico, uma verdadeira contradição. O cientista corretamente acredita naquilo que usa, só que o cientista mais aberto, e freqüentemente mais criativo, o faz com uma espécie de "dedos cruzados" ou "de pé atrás". Não é esta doutrina que se aprende nas universidades, fruto de anos de tradição da visão positivista das ciências. O que nelas se ensina é a adoção de paradigmas, que se por um lado têm a vantagem de levar por uma trilha segura e conhecida, acabam por outro freando a atividade epistemológica da criação de novas hipóteses.

Um bom exemplo da ideologia científica dominante é o darwinismo, certamente a mais conhecida das teorias evolutivas da vida. Nascida no seio do liberalismo econômico e na linhagem do empiricismo britânico, a teoria darwinista é hoje amplamente ensinada como um paradigma, após as adaptações advindas dos crescentes conhecimentos da genética. Uma das aplicações atuais mais notórias dela é a sociobiologia, que mais recentemente vem cumprindo o papel antes desempenhado pelo darwinismo social. Os comportamentos explicados dessa forma tendem a ser considerados como provenientes basicamente de uma carga genética herdade pelos indivíduos e populações, embora se reserve algum papel ao meio ambiente, mas isto não alivia o peso da informação da base genética para essa teoria biológica, que tem se espraiado também pela economia política, antropologia e tantos outros ramos do conhecimento.

Com as investigações da estrutura e constituição do ácido desóxi-ribonucléico, o DNA, cada vez mais o paradigma da biologia se deslocou para a busca da explicação das doenças e daí para a dos comportamentos, na decifração das seqüências de pares de base do chamado "código genético". Houve muito conhecimento assim adquirido, com aplicações importantes para a saúde, a criminologia ou a agricultura, por exemplo, mas instalou-se com isto uma ideologia científica que acredita ser possível a decifração do que é o complexo mental e social do homem a partir da associação de pedaços do genoma humano e de sua contrapartida funcional, o proteoma, dado que o DNA tem o comando da formação de proteínas que representam as ações básicas da vida no nível molecular. A crença nessa ideologia tem parentesco com a dos que acreditam na possibilidade de se criar inteligência artificial a partir de máquinas tais como os computadores.

É neste entorno que se situa o trabalho de Claudio Tognolli, que em boa hora vem a se tornar conhecido de um público mais amplo do que o acadêmico que o viu nascer. Um dos seus méritos , e não o menor, é mostrar que a comunidade científica não se apresenta de forma monolítica em relação à ideologia genômica. Comparando alguns dos principais pensadores da biologia por ele abordados, como Lewontin, Dawkins e Atlan, é fácil perceber que há choques ideológicos, pois alguns defendem ferozmente o paradigma dos gens determinantes, enquanto que outros dele duvidam com maior ou menor ênfase. Alguns filósofos da ciência mais conhecidos, como Kuhn e Feyerabend são também convocados, para chegar enfim à discussão mais importante para a sociedade, que é a dos valores. Surgem as questões de bioética e de moral, que estão na base tanto formação das hipóteses genômicas do DNA enquanto determinante comportamental, quanto nas conseqüências desse conhecimento para a população em geral.

Note-se porém que Claudio é também e essencialmente um jornalista, e seu trabalho vai por uma outra vertente das ideologias: como o jornalista apresenta esses temas de ciência para o grande público? O problema da divulgação científica se depara com o despreparo da grande parcela dos jornalistas, não tanto para com os conhecimentos específicos envolvidos, que não são sua obrigação, mas principalmente para com o desconhecimento do que é a natureza da atividade científica. É como se houvesse um solene desprezo para com a problematização inicialmente referida das teorias e respectivas hipóteses, e meios de comunicação resolvessem entronizar como verdades absolutas aquelas que são historicamente transitórias, fazendo dos cientistas a imagem positivista do herói. Neste sentido, algumas das pessoas dos meios de comunicação entrevistadas por Claudio dão depoimentos de suma importância, por mais patéticos e discrepantes que sejam com relação à verdadeira epistemologia. Há também a grata surpresa da antítese: jornalistas que não desconhecem a função ideológica da produção de notícias. No geral, vê-se que a atitude ideológica dos meios de comunicação em relação à ciência não é afinal muito diferente da sua atitude com relação aos outros temas jornalísticos, da política à economia e à cultura.

Por tudo isto, este trabalho é pioneiro e fundamental para desmistificar falácias, tanto as científicas quando as jornalísticas. Na trilha aberta por sua dissertação de mestrado, que lhe rendeu livro sobre os chavões do jornalismo, a tese de doutorado e Claudio na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo sobre a cobertura dos temas genéticos na imprensa tem condições de ajudar a desconstrução daquilo a que o público foi sujeito de forma velada.

Trata-se de, ironicamente, remontar a genealogia das falsidades que têm sido apresentadas como fatos científicos irretorquíveis, às sua origens –digamos- demasiadamente humanas. O ancestral mais remoto dessas ideologias é o "pai" Darwin, mas poderíamos ir mais atrás no estabelecimento dessa linhagem, passando por várias correntes anti-platônicas desde a Antiguidade, ou mais além.

Conhecemos Claudio Tognolli como jornalista investigativo, acostumado a lidar com a lógica do trabalho policial enquanto matéria de cobertura, e com a sensibilidade que o fez passar por episódios dos mais formadores para sua carreira, como ameaças à sua vida no Haiti e o enfrentamento das montagens pseudo-científicas da medicina legal que se destinavam a encobrir os assassinos dos sem-terras no Pará, numa chacina de repercussões internacionais.

Mas Claudio pôde unir a essa paixão profissional seu lado de professor universitário, de apaixonado pela filosofia e pela música, cujos ecos se fazem sentir no livro que agora o leitor tem em mãos. Pode parecer uma metáfora irônica, mas o que Claudio fez foi dar um passo importante para analisar o DNA da cobertura jornalística.

*Gildo Magalhães é professor de História da Ciência na USP.

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