Nº 9 - Dez. 2007 Publicação Acadêmica de Estudos sobre o Jornalismo e Comunicação ANO V
 
 

Expediente

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 
 

 

 


 

 

 

 

 

 


DEPOIMENTO - PARTE 2

Boris Schnaiderman 90 anos
Bakhtin:
Uma vida nas sombras

Por Valéria Guimarães*

Nesta segunda parte da Homenagem a Boris Schnaiderman o professor nos revela suas lembranças da emocionante visita a Bakhtin, na aldeia russa de Pierediélkino, no início da década de 70. Bakhtin esteve nas sombras por quase todo o século XX, pelo menos para o Ocidente, onde se fez conhecido apenas após os anos 60, época do degelo.

Reprodução

Filho de bancário, de família nobre decadente, nasceu em 1895. Fez o curso superior na então São Petersburgo. Tornou-se professor em Vitebsk, onde participou de uma efervescente cena cultural ao lado de artistas e intelectuais como o pintor Marc Chagall, o crítico literário Pavel Medvedev, o lingüista Nicolas Volochinov, o poeta Nicolas Kliouïev entre outros.

Esteve em meio aos formalistas e viu seus amigos sucumbirem ao terror dos anos 30. Em 1929, seu livro Problemas da Poética de Dostoiéviski foi publicado na Rússia mas ele continuou desconhecido fora de seu círculo até sua reedição em 1963. Nele, o conceito de polifonia foi desenvolvido revelando uma nova abordagem da obra do grande romancista.

Sofreu sucessivos exílios, foi vítima de uma osteomielite que lhe legou a amputação de uma perna e alguns de seus biógrafos, não sem controvérsias, apontam sua ligação com a Igreja Ortodoxa, suposto motivo da perseguição comunista. A trágica história da recusa de sua tese de doutorado, A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento – o contexto de François Rabelais, a qual o professor Boris se refere, o colocou fora da cultura oficial do regime, acarretando o tardio conhecimento de sua ampla e complexa obra.

Escrita em 1940 e defendida cerca de dez anos depois (há divergências sobre a data), seu enfoque da cultura popular ia contra os padrões eruditos tradicionais, causando escândalo. Embora parte do júri quisesse lhe conferir o título de doutor, ele conseguiu apenas o muito mais modesto título de “candidato às ciências”.

Vista pelo jugo dos intelectuais, a cultura popular era entendida como superstição e ignorância. O vocabulário presente na obra de Rabelais, por exemplo, era relegado à idéia de obscenidade e foi alvo da ação higienizadora dos folcloristas que adaptavam as traduções para versões mais palatáveis ao gosto burguês.

Foi justamente neste vocabulário que Bakhtin viu a chave para entender o funcionamento próprio da cultura popular, categorias que nomeou de universo sério-cômico, inversões, realismo grotesco, carnavalização, vocabulário da praça pública, ambivalência, rebaixamento, destronamento e tantas outras expressões hoje presentes nas mais eruditas análises que vão dos estudos lingüísticos aos culturais, da literatura à comunicação.

Como diz o historiador Peter Burke acerca dos conceitos bakhtinianos, “hoje é difícil lembrar como conseguíamos trabalhar sem eles”.

Devido à perseguição que sofreu do governo soviético, algumas de suas obras eram assinadas com nomes de seus colegas como é o caso de Marxismo e filosofia da linguagem e Freudismo, ambas atribuídas a Volochinov mas que suscitam até hoje suspeitas de serem de Bakhtin – o que nem todos concordam.

E outras como O método formal no estudo literário: uma introdução crítica à poética sociológica, oficialmente de P. N. Medvedev mas também identificada com o universo conceitual de Bakhtin que, “descoberto” tardiamente, pouco pode ajudar na elucidação de tais polêmicas, visto seu precário estado de saúde.

E ainda podemos destacar entre as traduções brasileiras os ensaios reunidos em Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Também é preciso lembrar que ele esteve na gênese do importante grupo de semioticistas reunidos em torno da chamada Escola de Tártu-Moscou, surgida na década de 50, muito embora seja considerado “independente”.

Na década de 70, em pleno linguistic turn, Bakhtin assiste ao aumento do interesse pelo seu trabalho o que fez multiplicar as traduções de seus livros e artigos. Neste momento conturbado, de uma URSS sob embargo ocidental e em plena Guerra Fria, o professor Boris, de forma pioneira, esteve com Bakhtin às vésperas de sua morte, que ocorreria em 1975.

Podemos ver aqui um relato que nos conduz para as duras condições materiais e ideológicas a que a produção intelectual estava submetida e somos levados a presenciar o triste fim de Bakhtin, cujas palavras de mágoa fizeram Boris calar.

*Valéria Guimarães é pós-doutoranda no CEO-COS-PUCSP/FAPESP.

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