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RESENHAS - EVENTOS
Especialistas afirmam que não há mais lugar para a reflexão
Os rumos do jornalismo cultural no Brasil
Por Marcelo Januário*


Realizado no Auditório da Fundação Bienal nos dias 30 de novembro e 1º de dezembro de 2004, com promoção da Fundação Bienal de São Paulo, da ABECOM (Associação de Escolas Brasileiras de Comunicação Social) e da ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes/Universidade de São Paulo), o "Seminário Jornalismo Cultural" reuniu profis-sionais que tiveram atuação direta nas transformações ocorridas na imprensa nas duas últimas décadas.

Reprodução

Já na abertura do seminário, o escritor e jornalista Luís Antônio Giron, especializado em jornalismo cultural e ex-crítico de artes da Folha de S.Paulo (figura constante nos documentos da época), expõe à nudez a situação que aflige sua área de atuação.

Note-se como chegam a ser irônicos a franqueza e o ímpeto com que o crítico hoje, à sombra apaziguadora do tempo, pede o fim de um modelo que se mostra nulo, mas que inegavelmente é o fruto das sementes que plantara com a sua geração. É uma luta, e como tal, conflituosa. Eis o chamamento amargo que sucede a queda:

"Percebi que crítica não é uma profissão. Eu não posso me chamar de crítico. Isso seria até ridículo, 'eu sou um crítico!' Não, eu faço crítica e tento, [na] minha ambição de jornalista, lutar para que o exercício da crítica apareça. Eu vejo a crítica como uma luta, um exercício de resistência, e não exatamente como aquilo que deveria ser, que abrange a função da Crítica: 'Vamos ler a cultura e vamos ajudar as pessoas'. É uma ilusão pensar que a crítica hoje tal como está colocada no Brasil forme alguém. Ela é incapaz de formar alguém, ela é incapaz de lidar com muitas das tendências da cultura, da cultura de rua, da alta cultura, ela não tem instrumental. Seria preciso parar total. Pára. Vamos todos, quem faz crítica hoje, vamos conversar, vamos ver o que é a crítica, para que a gente está fazendo isso?" [1]

E, de forma dramática, mais à frente, ouvimos o jornalista se perguntar: "O que eu fiz essa vida toda? Eu servi a quê patrão? Eu servi à verdade, eu servi à liberdade, ou fui manipulado por tudo isso?" [2]

Ilustrativo de certa animosidade explícita, e é difícil saber se o caso é isolado, existe o fato de que nenhum texto integral de Giron -"um dos expoentes na Folha de S.Paulo na época [1990], praticando um jornalismo crítico e afeito ao confronto e à polêmica" [3] - conste no livro-compilação "Em Branco e Preto"; e não foi por ter sido preterido, julgado pouco representativo, uma vez que quatro críticas da sua lavra recebem referências no catatau.

Advertências como o autor "infelizmente não autorizou sua reedição", "não foi possível conseguir autorização para a reedição desse texto", "o autor não autorizou a participação de textos seus neste livro" e crítica "excluída desta seleção por discordância do autor" [4] sugerem veementemente a desarmonia atual de interesses, sejam quais forem, entre o jornalista e a empresa (ou parte dela). Mas também existe a possibilidade lógica de que o jornalista hoje não concorde mais com algumas opiniões que tinha na época, e prefere que permaneçam fossilizadas nos arquivos da Ilustrada.

Porém, o confronto de fontes não indica para este lado. De fato, ressabiado com o fato de se sentir manipulado e em defesa heróica da arte crítica, Giron aponta para as dificuldades do atual estágio e inventaria os motivos que o tornaram efetivo e disseminado na imprensa. A crítica é colocada sob suspeita por alguém de dentro.

Também para Giron, a principal constatação de crise está, já o sabemos, na redução do espaço da crítica no jornal e dos críticos no jornalismo cultural. Resultado de diversos fatores, de um momento para o outro se deu a redução, em uma quase extinção.

O verídico e exemplar depoimento de outro crítico, Clóvis Garcia, esclarece como ocorreu na prática tal processo de corte e redução do espaço destinado à crítica nos jornais. Corte que, no seu caso, o afastou definitivamente da atividade, pois no início tinha "oitenta linhas; um dia me telefonaram e disseram que havia baixado para sessenta linhas; ligaram outro dia e disseram quarenta linhas; ligaram outro dia e disseram 25 linhas. Aí eu pedi demissão e deixei de fazer crítica". [5]

Sinal mais evidente de transformação, a redução do espaço não é o único aspecto da situação. Para Giron, em paralelo e precedendo este fenômeno estão a ausência da iluminação crítica das novas gerações (controversa e insolúvel questão de genialidade e estultice geracional), a inutilidade e inconsistência da atual cobertura e, ainda em pleno desenvolvimento, o processo inesgotável de mercantilização da arte, da notícia, da crítica, do pensamento, da cultura, da vida...

"A crítica tem de ser colocada sob suspeita. Não tem uma função muito clara, não há da parte dos jornalistas nem mesmo uma consciência geral do papel da arte. Estou fazendo [crítica] no momento... às vezes [essa atitude] é uma maneira de se promover... É necessário refletir sobre o papel da arte cada vez mais, porque não é só a crítica que está sendo levada pela mercantilização, a arte [também] e não adianta ser idealista nesse ponto: tudo virou produto hoje. Mesmo a crítica acaba sendo colocada como derivado justamente do oposto do que é a arte." [6]

Neste ponto, torna-se muito claro que as acusações de crise de identidade se acumulam sobre a crítica e o jornalismo cultural, mas não surgem muitas opções para se reverter o quadro. Começa a pairar a perguntar inevitável: quem faz afinal o jornalismo cultural ser como ele é?

Todos concordam com a tese de insuficiência, até mesmo uma autocrítica retroativa é ensaiada, mas poucos arriscam qualquer sugestão, pois aparentemente a correção de rumo é algo fora do alcance das iniciativas individuais ou mesmo institucionais. O jornalista cultural há de se acostumar a uma terrível luta contra o embargo e a submissão. Continua Giron:

"Não sei se é questão de a gente lamentar, acho que é uma questão de a gente constatar isso e entender que fazer crítica hoje, como a gente tenta fazer, é uma luta; é uma luta contra um espaço cada vez menor, é uma luta contra os embargos que acontecem dentro das empresas jornalísticas. Hoje não se chama mais censura, hoje se chama embargo. Não vamos ser ingênuos e pensar que a liberdade de expressão é plena nos jornais. É claro que não é. (...) O jornalismo viveu os últimos tempos uma crise muito forte, as pessoas foram demitidas, os jornais enxugaram o seu pessoal, terceirizou; aquilo que era fazer crítica há vinte anos, quando eu comecei, era uma coisa, hoje é outra, hoje é terceirizado; e aí como é terceirizado usa-se ou não a crítica; ah, eu quero usar esse [crítico] aqui, porque eu sei que ele vai falar isso... eu como editor uso este ou uso aquele. Tem essa coisa terrível." [7]

Considerando-se o ambiente democrático, é de se lamentar realmente. A existência de um serviço terceirizado de crítica se torna obviamente um problema quando significa que o jornal encomenda uma avaliação que já possui sobre qualquer assunto. Anula a existência do mesmo. A escolha da pauta é que já determina o valor.

No universo infindável e difuso de mercadorias de arte, aparentemente não poderia ser mesmo diferente. O pensamento crítico independente não sobrevive em um ambiente saturado de produtos a se promover.

Foi afastado por estar em descompasso com as novas necessidades do jornalismo e do jornal-empresa. Mas para que isso acontecesse, o posto de cerceador do jornalista precisou passar da censura política autoritária para o embargo editorial com implicações econômicas.

Indicado o caminho, outros aspectos vêm então à tona. Para a pesquisadora Maria Cecília Garcia, o problema do jornalismo cultural contemporâneo, um consenso entre os debatedores, pode ser compreendido por três prismas distintos: pela importância do jornalismo cultural "em um país dependente e recolonizado como o nosso; o papel da crítica de arte e seu desaparecimento progressivo, como um processo de enquadramento do jornalismo e da cultura em determinados modelos (que não podem ser questionados, ou não querem ser questionados, ou não desejam ser questionados); e a crítica como texto monológico ou dialógico". [8]

Atualizando as idéias de Carlos Peixoto, a autora sugere que o início de qualquer mudança positiva no quadro atual está, em parte, na superação do "conceito usual do jornalismo como uma atividade burocrática, de captação e transmissão de informação". A mecanização do texto, com fórmulas que padronizam e despersonalizam a escrita, é unanimemente apontada como característica negativa do modelo atual.

A constatação, para esta corrente, é de que o jornalismo precisa "intelectualizar-se, não no sentido de intelectualização [erudita], da acumulação individual de saberes, de conhecimentos, mas como prática de busca e propagação coletiva de conhecimento". Os práticos diriam que se trata de um sentimento digno e justo, há muitíssimo cultivado, mas um tanto quanto idealista e socialmente estéril.

Para provar, os materialistas acentuariam que não deixa de ecoar um certo tom holístico da definição de conhecimento apresentada como a "apreensão intelectual da realidade, a percepção dos fatos e das coisas, a compreensão da existência, própria e alheia, enfim, a descoberta do ser que está no mundo". Pensar assim, entretanto, não é (ainda) nenhum crime.

Para equilibrar o eixo propositivo, Garcia cita a idéia de Lorenzo Gomiz sobre a redução da incerteza diante da vida como ulterior tarefa do jornalismo, um enfoque talvez bem mais viável e palpável para levar às transformações que tanto são clamadas. Em síntese, para Garcia presenciamos um duplo crime contra a consciência. Explorando o obscurecimento e a insegurança, o criminoso modelo de consumo que se impõe ao jornalismo cultural extermina com a crítica de arte, transforma a cultura em um reles produto e cria "zonas de silêncio" sobre a produção.

"O progressivo desaparecimento da crítica de arte das páginas dos jornais, colabora para o aumento da incerteza. (...) Colabora para aumentar as nossas dúvidas, (...) as zonas de silêncio que existem, e que o jornalismo deixa de lançar luz. Em um país dependente e recolonizado como o nosso, (...) a tendência é verdadeiramente criminosa. (...) Porque a crítica é [feita], antes de mais nada, de cenas de vidas, deixar tudo suspenso, mostrar que tudo está em suspenso, que não existe nada consagrado, que tudo é passível de questionamento, de transformação, ou seja, algo muito bom. (...) Portanto (...) deve ser visto como um processo de empobrecimento mesmo da nossa participação nas coisas do mundo, nas coisas que a gente deve e necessita [fazer] acontecer, e também de enquadramento do jornalismo e da cultura (...) é o tipo de cultura feita para o mercado, para ser comercializada, consumida, e não pensada, instruída, questionada etc. É uma visão da cultura como produto e não como processo." [9]

As implicações na soberania nacional estariam no bloqueio dos fluxos vitais da nossa experiência simbólica, na paralisação da cultura, da criação e da crítica. Assim também a reificação do consagrado atende a interesses comerciais evidentes, impedindo que o novo surja espontaneamente e que a reflexão coordene as escolhas processuais. O jornalismo se enquadra nesta estrutura como chave intermediária de persuasão, sedução, imposição, esquecimento.

Em relação à acusação de discurso autoritário, freqüentemente levantada contra a crítica, e que interessa de forma oblíqua aos nossos propósitos, Garcia recorre a ferramentas da lingüística como a heterogeneidade do discurso para refutá-la categoricamente: "Não existem discursos totalmente puros, totalmente primordiais, totalmente originais, matrizes.

Os discursos são formações, que incorporam, renovam, transformam partes de outros discursos. (...) Isso porque a faculdade crítica é aquela que inventa novas formas". [10] Por ser o resultado de "atos intelectuais profundamente engajados na existência histórica e subjetiva", Garcia acredita na função didática da crítica, mesmo (talvez principalmente) a jornalística.

Pela acentuada exposição permitida pelos jornais de circulação nacional, a formação do público é uma tarefa que pode e deve ser feita pelo jornalista cultural, pois é ele quem faz a ponte entre artista, obra e público. Não como um intérprete ou o dono do saber, mas como um companheiro de viagem. As pessoas precisam ser educadas para arte e o crítico, como auxiliar da formação de público, como um falador de um diálogo entre ele, o artista e o público, torna-se imprescíndivel. O elo de um triálogo, uma confraria onde o público participa discutindo a arte "junto com o artista e o crítico". [11]

Ao avaliar a relação entre as instituições e os jornais, Fábio Cypriano, professor de jornalismo da PUC/SP e repórter-crítico (como se define) da Folha de S.Paulo, afirma que a discussão crítica não representa, de fato, uma preocupação muito séria para os editores, assim como também não o é para eventos como a Bienal, todos desejosos em tão somente aparecer na mídia.

Mesmo insistindo na distinção entre as informações claras e precisas, a realidade, e o juízo de valor, a crítica, Cypriano acentua que é muito restrito o espaço da "crítica no jornal"; e, para exemplificar, revela uma passagem da cobertura da Bienal de 2004 na qual seu editor solicitou-lhe que, ao invés de elaborar um texto crítico, ele escrevesse um "roteiro para os visitantes da Bienal, de quais as obras que eles deveriam observar".

"(...) a Bienal tem seu chamariz e ao mesmo tempo os jornais têm a sua boa imagem. Então, a valorização não ocorre apenas do ponto de vista dos jornais, mas também ocorre por parte dos agentes. Que acabam se adequando a esse tipo de jornalismo, a esse cancro jornalístico, pela necessidade de estar aparecendo no jornal, ou de se popularizar." [12]

Da mesma forma, acrescenta, a idéia subjacente neste comportamento -o "cancro jornalístico"- é a "de atingir o grande público, ou seja, na questão de mercado, de consumo, de fazer um roteiro que possibilitasse que o maior número de visitantes olhasse aquilo que vale a pena na Bienal".

Apesar das ressalvas -"em alguns jornais, a crítica até tem uma certa tradição sem suspeitas, como é o caso do teatro, [que] tem tanto no Estado quanto na Folha críticas permanentes e críticos definidos. Em artes plásticas não. No Estado não tem crítico e a Folha tem um crítico que escreve com uma variação (de tempo) irregular"-, Cypriano considera que não há o desaparecimento da crítica. Ou seja, que é possível fazer crítica, "só que de forma diferente".

Para ele, acuados entre a falta de espaço para a crítica e a demanda crescente por textos mais interpretativos, os jornalistas culturais têm de buscar opções de abordagem que reúnam elementos de reportagem e de opinião. Em resumo, a reportagem com intuito crítico. De olho nesta equação, Cypriano explica sua estratégia de cobertura, uma tática para a construção de um olhar diferenciado daquilo que em geral se faz:

"Eu procuro informar o leitor sobre a exposição, quantos artistas, quem é o curador, quantas pessoas já visitaram. Mas ao mesmo tempo já dar pistas das várias possibilidades de leitura daquele evento. Então, no caso da Bienal de São Paulo, por exemplo, o que eu fiz? Nós convidamos dois críticos para visitar a Bienal na antevéspera da abertura e no dia da abertura, depois eu publiquei uma entrevista longa com esses dois curadores que vieram à Bienal e que fizeram a crítica já antes da abertura da Bienal. Então com isso, e aí não estou usando a minha palavra, eu usei a palavra dos próprios críticos, mas incorporando-os dentro do texto jornalístico, a gente faz com que aja um espaço para a crítica dentro daquilo que em geral não se teria permitido." [13]

O repórter fornece outros exemplos deste procedimento híbrido de reportagem-crítica que permite extrapolar os bloqueios e limitações editoriais. Como ocorreu na cobertura da exposição "Emoção Artificial" [Itaú Cultural, São Paulo, 2004], que era voltada para "a tecnologia e onde metade dos computadores não funcionava". O dado objetivo, metade dos computadores "não funcionava", foi inserido pelo repórter no debate sobre a tecnologia, resultando em uma "uma leitura crítica da exposição dentro de um texto de reportagem, e não uma crítica propriamente dita".

Ou mesmo na matéria (de certa repercussão, diga-se de passagem) sobre a exposição "O Corpo entre o Público e o Privado" [Paço das Artes, São Paulo, 2004], que exibiria diversos vídeos, só que "os horários e as durações dos vídeos não eram explicitados".

O repórter visitou a exposição e percebeu que algumas pessoas estavam "dormindo assistindo o vídeo", o que o estimulou a redigir um texto "priorizando essa situação, ou seja, as pessoas sequer têm a informação de quanto tempo vai ter a obra, no fim das contas acabam dormindo em frente a obra". Para uma melhor compreensão, atentemos para as primeiras linhas desta matéria:

"Zzzzzzzz. Sentada num pufe branco, Rita de Cássia Alecrim, estudante do curso de multimeios da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, dormia diante da projeção de 'Desenho Corpo', de Lia Chaia, um dos 14 trabalhos da mostra 'O Corpo entre o Público e o Privado', no Paço das Artes (...). Das 14 obras, todas em vídeo, dez delas são projetadas em 'looping' numa mesma tela, levando o visitante a uma maratona de quase duas horas, se quiser conhecer todos os trabalhos da mostra, e a disputar um dos pufes disponíveis para maior conforto." [14]

Por detrás da sua descrição irônica, porém real, subjaz uma avaliação, no caso negativa, dos elementos da mostra. É essa ironia crítica, diga-se, que confere sabor ao texto. A objetividade está na detecção das falhas expositivas, reais e perceptíveis, e no seu apontamento público.

Mas, no mundinho das artes plásticas este texto serviu para provar como nos nossos dias o jornalismo cultural está viciado em falar mal sobre qualquer tema e assunto. Para Cypriano, entretanto, o caso ilustra a possibilidade do repórter levar tanto a informação objetiva quanto a crítica, em um hibridismo -"algo muito contemporâneo"- que, ademais, já está enraizado nas artes atuais.

Neste sentido, afirma, são galeristas que não são apenas galeristas, mas também curadores de exposição de instituição pública; artistas que não são apenas artistas, mas também críticos; ou diretores de instituto, que cuidam do dinheiro e depois vão ser curadores de exposição: "São várias situações que [fazem] esse hibridismo. E aí que entra a questão ética, ou seja, quais são os limites, quais são os debates".

Para Lázaro de Oliveira, chefe de reportagem e pauta do programa Metrópolis da TV Cultura, os limites e debates partem da constatação de que o jornalismo cultural hoje está num impasse complicadíssimo por não ter "olhos para os novos artistas e expressões".

Para ele, são os aspectos econômicos que delineiam a questão, pois a arte pura não existe mais (ou nunca existiu), e todo artista precisa vender bem. A arte é uma mercadoria e quem "investiu em determinado artista, seja ele qual for, tem de ter esse retorno, ter esse lucro. E aí fica a grande dúvida: o que é arte e o que é mercadoria?" [15]

Como a arte é mercadoria, a pressão é muito grande para que ela "se realize nos jornais, nas TVs, nas rádios, para que a sua mercadoria seja valorizada". O contraponto estaria na falta de sensibilidade para entender o que está acontecendo hoje.

Entre a valorização do mercado e a incompreensão da arte resulta a inevitável percepção residual de que "tem muito mais coisas interessantes acontecendo do que aparece nos jornais". Frente a esta tensão entre arte e mercadoria, é imprescindível que o jornalista cultural tenha em mente que não é um divulgador, mas um contador de histórias que ele acha que é do interesse da sociedade.

Por isso, de acordo com Lázaro de Oliveira, o jornalismo deve favorecer as artes. Seu trabalho deve explicar e sinalizar o que são e como se dão as manifestações artísticas, com o máximo de veracidade e universalidade possíveis. A criação se beneficia da atuação jornalística quando esta cumpre o valioso papel de termômetro das expressões artísticas: a "democratização do fazer arte existe enquanto você estiver fazendo arte; compete ao jornalismo dar visibilidade a isso. Nós temos de ficar cavando, liderando, para tentar ver o que tem de manifestação artística".

Em última instância, o jornalismo cultural traduz em termos simbólicos a experiência artístico-cultural coletiva, enquanto constrói o referencial histórico que balizará as futuras gerações. O jornalismo cultural, de acordo com Lázaro de Oliveira, tem um papel fundamental de sinalizar o que está acontecendo, apontar para o futuro, quando houver outro entendimento daquele período que se passou muito tempo atrás, "quando é mais fácil, com os elementos na mão, você ter noção do que aconteceu". [16]

Segundo o articulista da Folha de S.Paulo Adriano Schwartz, que foi editor do caderno Mais! por cinco anos, o jornalismo cultural brasileiro contemporâneo sobrevive a uma iniludível combinação de "pouco espaço, pouco papel e pouco dinheiro".

A "corrida pelo furo bobo" também figura entre as características do modelo, considerado como um anseio míope pelo exclusivo, ademais um termo sem definição muito clara nas redações: "O jornal considera excelente fazer uma reportagem sobre determinado livro que vai ser lançado um dia antes que o seu concorrente, como se isso fosse muito importante", afirma. Como relata Jotabê Medeiros, os jornalistas não têm mais a noção do que é informação exclusiva e a buscam até mesmo no aberrante release exclusivo.

Outro ponto importante, como alude Schwartz, diz respeito à eleição afetiva e aos preconceitos que existem dentro do jornal e entre jornalistas, "às vezes com o que é feito aqui, às vezes com o que é feito fora do Brasil, às vezes contra quem [tem] vários tipos de produção artística". Nos cadernos de cultura este fato fica encoberto, de tal modo que o jornalista cultural deveria esquecer que tem amigos no exercício da profissão, assim como nunca "se propor a escrever sobre amigos, que é uma coisa que infelizmente acontece com freqüência".

Preconceito e favorecimento parecem ser as tônicas da atuação do jornalista como intermediário cultural. Entretanto, sobre a idéia de que o jornalista cultural, imbuído de uma certa "propensão a querer destruir carreiras", invariavelmente manipula a informação, o doutor em teoria literária a refuta com veemência, uma vez que ele, o jornalista, não tem tempo para pensar no que está fazendo, quanto mais de manipular o que ele está fazendo.

Aprofundando este aspecto, sobre a correlação de forças entre o jornalismo cultural e o mercado Schwartz não vê muita opção para o primeiro. Para exemplificar, narra o episódio em que resenhou com franqueza crítica um best seller internacional que considerou horrível e que, a despeito da opinião negativa veiculada por dias nas páginas do jornal tanto em versão impressa como digital, imediatamente entrou para a lista dos mais vendidos. Os limites da opinião do crítico e do jornal são muito claros:

"(...) seja lá qual fosse a atitude que um jornalista tomasse, o resultado ia ser o mesmo. Se o livro tivesse sido doado ele entraria na lista dos mais vendidos. Se o livro foi comprado para eles fazerem uma campanha para dizer que o livro é de fato lido, e publicasse uma seqüência de reportagens e matérias sobre o livro, ele entraria na lista dos mais vendidos, porque iam estar curiosas para saber porque ele é tão ruim. Aquele livro entrou na lista dos mais vendidos e o jornal não teve poder nenhum. Apesar de uma resenha, que eu julgo muito clara, muito explícita, de porquê o livro não era bom ter sido publicada." [17]

A importância do jornalismo cultural para o desenvolvimento da própria linguagem jornalística foi outro ponto destacado por Schwartz.

Considerando que "historicamente, os cadernos de cultura nos jornais sempre foram tidos como os laboratórios de texto nas redações", um lugar de experiências por excelência, onde se encontram saídas criativas, se torna muito preocupante a redução constante das páginas dos cadernos, "a absoluta falta de espaço" para que tal laboratório se desenvolva.

Suas prédicas finais abrangem dois aspectos: a descoberta da televisão pelo jornalismo cultural, que deve ser discutida de "modo mais sério, que não seja simplesmente a reprodução infinita das fofocas das celebridades" -e aponta como exemplo o recente lançamento do volume sobre as artes brasileiras na Folha "Em Branco e Preto", uma "antologia dos suplementos culturais da Folha" no qual a "televisão não foi considerada um assunto que merecesse entrar no livro"-; e a separação entre reportagem e opinião, visando desfazer uma confusão predominante (e que, pelo enfoque deste trabalho, se justifica), mas também para prover a carência de bons repórteres no segmento.

De fato, apesar de não estar diretamente no foco de nossa investigação, em relação ao último ponto a leitura das fontes evidenciou que a reportagem é um recurso extremamente eficaz para a construção de reveladoras abordagens informativas. Portanto:

"Nem todo jornalista cultural precisa ser um crítico cultural. A área de jornalismo cultural precisa urgentemente de bons repórteres. É muito comum, depois de pouco tempo no jornal, os jornalistas, ainda muito novinhos, começarem a fazer crítica de alguma área que eles acompanham. Quando a formação para isso deveria ser diferente (...). Não é uma questão de valor, uma função não é mais importante que a outra, só acho as funções diferentes que no jornal hoje estão muito confundidas." [18]

Voz ligeiramente discordante, no que se refere ao modo como avalia a área, o ex-editor de cultura da revista Veja Carlos Graieb acredita que a produção de qualidade sempre termina por se impor, sugerindo que o jornalismo cultural funciona como filtro eficaz no cenário contemporâneo quando se "está falando de transmitir informação, de registrar a produção cultural de um país".

Seu otimismo, no entanto, não é incondicional, pois vê alguns perigos no trabalho de difusão da informação a respeito da cultura. O primeiro deles é a cooptação do jornalismo "pelo serviço de marketing, divulgação das grandes firmas de indústria cultural, as gravadoras, pelas grandes editoras, as televisões".

Em vista da imensa quantidade de material de divulgação que o jornalista cultural recebe -releases, CDs, livros etc.- deve selecionar, pois o espaço não é infinito. Nesse jogo seletivo, sempre alguém prevalece sobre a qualidade em si. Para Graieb, parece óbvio que aqueles que forem mais eficientes na informação de suas novidades acabem prevalecendo. O jornalista precisa estar atento à pressão exercida pela indústria cultural, à pressão que provém de empresas com "departamento de imprensa especializado, departamento de marketing especializado". [19]

O segundo perigo na visão de Graieb está no bom-mocismo em defesa da cultura popular, que é como chama o clichê de "achar que a cultura popular é sempre mais importante do que esse lixo que a indústria cultural nos impinge". Considerando que "existe boa cultura popular e existe cultura popular ruim", Carlos Graieb reafirma que "a boa cultura popular acaba achando o seu lugar".

O jornalismo pode, inclusive, estimular o contato com a (ou consumo da) cultura. É então que, mais uma vez, as novas gerações herdam o ônus de uma educação pública falida e de uma educação privada mercenária, uma vez que no Brasil existe um jornalismo cultural sedutor, bem escrito e inteligente, mas não está na linguagem que os nascidos, digamos, depois de 1980 empregam em seu ofício.

"Será que o jornalismo é capaz de fomentar, de difundir esse contato com as coisas da cultura? Acho a coisa um pouco mais complicada. Não sei se crise é exatamente a palavra. O jornalismo sabe fazer isso, sabe difundir o gosto pela cultura. Ele sabe fazer isso quando ele é sedutor, quando é bem escrito. (...) Ele tem de [usar] as armas que são próprias do jornalismo, vamos dizer assim: a boa armação, a linguagem inteligente (...) nem sempre isso acontece. As redações hoje em dia estão cheias de gente nova que chegou com pouca bagagem, às vezes a linguagem (...) é pasteurizada." [20]

Se quiser difundir cultura e não apenas informação sobre cultura, o jornalista deve buscar alguns efeitos. Uma primeira solução para o impasse estaria na sedução pela polêmica, ou seja, na construção de um texto que "tira a pessoa da cadeira dela e [a faz falar] 'pô, concordo com isso', falar 'não, discordo disso', 'esse bicho é imbecil', 'não, esse bicho é um gênio'".

Mesmo com o talento e com todas as armas e ferramentas, o jornalista cultural ainda precisa conviver com as pessoas que vivem a cultura hoje em dia. Pessoas que "têm uma visão bem instrumental da cultura", que utilizam a "cultura para suprir alguma deficiência da vida deles". Mas "não a deficiência existencial", pois "as pessoas não têm uma visão humanista da cultura".

Em um detalhe sobre a recepção que pode fazer toda a diferença no debate, Graieb afirma que esta visão instrumental da cultura, que se tornou manifesta e coletiva, coloca o jornalista com pendores humanistas em conflito com os interesses de seu interlocutor, o leitor. Assim, as grandes questões filosóficas não causam mais interesse.

"Como morrer, como viver. Grandes questões da tradição filosófica. Estas questões não são mais procuradas, as pessoas não procuram mais respostas para este tipo de pergunta. (...) Elas querem cultura para ser promovidas no emprego, para ter uma boa conversa com os amigos, para se divertir um pouco. Não acho que tenham uma visão grandiosa da cultura, não acho que elas tenham uma visão humanista. Alguém que mexe com cultura nos meios de comunicação tem essa preocupação, de a arte como algo maior do que isso, e vive na eterna angústia, porque a sua visão da cultura não bate com a visão de cultura que a média das pessoas para quem escreve tem." [21]

As pessoas querem cultura para o dia-a-dia. Ponto. Mesmo padecendo desta angústia de pregar no deserto, para "não abrir mão do seu ideal" e superar a instrumentalização da cultura o jornalista cultural precisa "aprender a lidar um pouco melhor com as ansiedades das pessoas com quem estão falando", encontrar um meio termo entre "essa visão grandiosa de jornalista de cultura e essa visão instrumental que as pessoas têm". É preciso, pois, passar um pouquinho a mais do que isso.

Por ter sido repórter de cultura tanto na Folha de S.Paulo como n'O Estado de S.Paulo, o jornalista Jotabê Medeiros é testemunha ocular da condição de patinho feio que a editoria de cultura ocupa no jornalismo diário. Segundo Medeiros, "conta-se nos dedos o número de jornalistas que trabalham no setor", que cada vez mais assume caráter empresarial.

Para os poucos que permanecem, o que se deve evitar é o excesso, talvez evitar ser mais realista que o rei na lógica industrial. E novamente aparece a questão ética. "Se o jornal paga uma pessoa para definir critérios de valor", afirma Medeiros, "é uma prerrogativa do jornal, o jornal é uma empresa, assim como a televisão é uma empresa. A discussão de onde vão os limites éticos no exercício da profissão, acho que cabe a gente discutir". [22]

O argumento de Medeiros é que se a "principal moeda de um meio de comunicação é a sua credibilidade", o jornal não pode colocá-la em cheque ao, por exemplo, legitimar a exposição de um "artista medíocre".

O jornal é julgado pelo público leitor continuamente, que muitas vezes não tem capacidade para isso, mas que está na base da tão propalada credibilidade do meio. Não pode haver equívocos, sob pena de descrédito profissional. A conseqüência mais natural deste raciocínio seria, no nosso entender, a passiva aposta no consagrado.

"Se a credibilidade é o maior patrimônio de um meio de comunicação, o exercício permanente da crítica é um dos elementos que mais lhe emprestam lastro. Não a crítica como sinônimo de opinião, apenas, mas enquanto postura. O olhar crítico e ponderado do meio de comunicação sobre cada fato ou idéia relevante estabelece uma relação de confiança entre ele e seus 'clientes' (leitores, ouvintes, espectadores)." [23]

Em relação à cobertura de política cultural, que poderia legitimamente se constituir em uma subárea do jornalismo cultural, Jotabê Medeiros aponta para a postura relapsa dos profissionais e dos jornais nos tempos mais recentes: "O jornalismo não acompanha de perto a engrenagem [cultural]. Isso é uma falha gritante e recente da cobertura cultural".

Neste aspecto, falha-se no próprio caráter de serviço público do jornalismo, de orientação não para o consumo, mas para a cidadania, algo idealmente muito além dos gêneros, formatos e estilos. O papel do jornalista na prática da profissão inclui fiscalizar se o investimento público na produção artística não está "sendo lesivo aos cofres públicos, se isso funciona de forma honesta, se isso traz benefícios". [24]

Mas, como sabemos, nem sempre é assim que acontece. O jornalista enfrenta in aeternum um problema ético e de consciência. Se ontem era a ditadura militar que o coibia, hoje é a indústria e o desemprego que lhe põem à prova.

O jornalista que se submete cegamente a esse estado de coisas, propõe Medeiros, pratica um tipo de corrupção, de colaboracionismo. Semelhante ao nefasto período da ditadura militar, havia também jornalistas que praticavam um jornalismo acrítico, subordinado aos interesses do governo, acovardado. [25]

Indutivo, o professor e jornalista Oscar D'Ambrosio apresentou uma esquematização dos pontos que considera problemáticos em relação ao jornalismo cultural:

I. Especialização: a compartimentação do saber impede a compreensão global dos processos;

II. Uso da Informação: a "geração internet" não consegue relacionar a profusão de informações;

III. Novas Tecnologias: a falta de conhecimento das máquinas dificulta o trabalho;

IV. Meritocracia: reconhecimento do ensino como princípio de capacitação;

V. Avaliação Quantitativa: o volume de produção e vendas condiciona a análise;

VI. Ética: competição profissional nas redações;

VII. Linguagem: pseudo-sabedoria rebuscada e que ninguém entende;

VIII. Escolha Profissional: pressão social na juventude;

IX. Resistência a Mudanças: professor, artista e jornalista são conservadores;

X. Objetivos: formação profissional irregular.

Troquemos em miúdos. Aspectos estruturais definem uma formação profissional insegura, incompleta e compartimentada, um saber isolado, baseado no jargão pretensioso e em eterna adaptação aos novos meios, uma força de trabalho ameaçada pelo nepotismo e pelo compadrio e concorrendo ferozmente na categoria, até se apaziguar de forma mais ou menos rápida em algum posto mais ou menos compensador.

Convenhamos, uma visão nada idílica. D'Ambrósio alega, porém, que ainda assim a linguagem rebuscada é um dos pontos mais sensíveis do problema, pois invadiu abertamente a academia e também as redações dos jornais. A idéia é que a escrita difícil serve para impressionar e até enganar os incautos, pois onde não há argumentos para se rebater, tudo acaba ficando por isso mesmo.

Para tanto, bastaria se construir um texto "bem complexo e cheio de termos que poucas pessoas no Brasil sabem entender", e então receber as palmas ou o silêncio, sempre consciente de que no geral o público "abaixa a cabeça e bate palma".

"Resenha de livro, matéria de exposição de arte, estão impregnadas dessas palavras, que metade dos leitores não vai entender, onde o escritor, o autor, se esconde atrás de uma pseudo-sabedoria. Quem escreveu finge que fez um grande texto e quem leu finge que entendeu, porque fica mal com os seus pares dizer: 'eu não entendi o que este artigo diz'. Ou o que é pior, você lê o texto e não sabe se o autor gostou ou não do livro. (...) Você chega ao final e vai perguntar 'mas o cara gostou do filme ou não?'" [26]

Concordemos em parte com os argumentos, pois o contrário disso não é pegar o leitor pela mão e guiá-lo como a um cego -o auge do serviço dirigido- mas quiçá tão apenas sugerir-lhe aspectos possíveis que lhe escapavam na obra. Em contrapartida aos pontos problemáticos, Oscar D'Ambrosio enumera as características que, para ele, auxiliam na superação dos desmandos na missão jornalística sobre a cultura.

Inclui a exatidão, cuidado extremo com datas, nomes e pesquisas; a rapidez, princípio de enciclopédia; a leveza, condição de ser agradável sem ser excludente; a visibilidade, que enfatiza o diálogo entre imagem e texto; a multiplicidade, domínio de várias áreas, interdisciplinaridade; a consistência, compromisso ético de oferecer um produto bem acabado.

São pontos indiscutíveis até para o jornalismo como um todo, mas que também aqui podem gerar ambigüidades ao não diferir substancialmente do modelo já empregado.

Entendemos que talvez não baste o texto ser leve, rápido e visível (como tende a ser por natureza no jornalismo diário), ou mesmo exato e bem acabado (o que já é bem mais difícil), para portar algo mais que a informação e o traço opinioso de seus juízos. Não basta estar grafado em letras de forma sobre o papel-jornal, como pensam tantos. Algo parece fazer a diferença. É neste diferencial que se recolhe o nosso Santo Graal.

Continuemos, pois, a busca de suas marcas imateriais.

O jornalista Israel do Vale, ex-editor-adjunto da Ilustrada, chega a se irritar ao questionar até mesmo a nomenclatura dos atuais cadernos, que vendem consumo por cultura. Todos, sem exceção, "viraram indicações de consumo" redundantes e preconceituosas e, embora cumpram certo papel, não deveriam ser o tom predominante.

"Já está bem na hora de começar a questionar o termo 'caderno de cultura'. Não é de hoje, mas a cada dia é mais irritante o fato que os cadernos de cultura, que já foram chamados também de Artes & Espetáculos, hoje são só guias de entretenimento de consumo. (...) O jornalismo de cultura que se faz hoje é um jornalismo redundante, reafirmativo, preconceituoso; é hora de os próprios jornalistas começarem a se incomodar. O que me incomoda nesse contexto é que isso seja tratado com naturalidade, (...) como se as coisas fossem: 'ah, é assim mesmo, a gente está aqui é para vender jornal'." [27]

O papel social do jornalista é novamente invocado para fazer frente ao inescapável desempenho de títere da indústria de consumo. Contrapor o ambiente "mediado por subterfúgios" em que apenas os grandes e consagrados assuntos têm a prioridade, ambiente no qual o jornalista "perdeu o compromisso com o desejo de revelar coisas", é o grande desafio. Como o jornal e a revista são produtos feitos por empresas que visam lucros, o papel do jornalista é fazer um produto "que seja vendável, mas (sem) perder os parâmetros do que seja o nosso papel enquanto jornalista". [28]

Sob outro ângulo, Israel do Vale avalia que a "internet virou do avesso a lógica da circulação de informação e os jornais ainda não souberam se adaptar a isso". Os novos meios eletrônicos mudaram a forma de apuração da notícia, de contato do jornalista com a notícia, tanto pelas facilidades quanto pelas dificuldades.

As dificuldades econômicas surgem quando a equipe cada vez menor (devido às demissões) impede que o jornalista, com menos tempo, possa sair para a rua, viver mais a realidade. A consequência natural é que, se ele passa mais tempo dentro das redações, tem menos tempo de exposição com o assunto sobre o qual ele trata.

Ao lado do citado isolacionismo, há de se enfrentar também a suposta crise de identidade a que se submete o caderno de cultura, conceitualmente indeciso entre o suplemento de análise acadêmica e o guia de serviço.

"Tem um outro problema que interfere na configuração do que são os cadernos de cultura que é uma certa crise de identidade, na medida em que, dos anos 80, principalmente, para cá, foram criados cadernos de idéias, ou de livros, que são os cadernos que normalmente concentram a 'reflexão'; isso de um lado, de outro lado foram criados guias de consumo mais explícitos, são os guias de programação de eventos dos finais de semana, e o caderno de cultura ficou no meio desse tiroteio sem saber muito para onde correr." [29]

Por falta de parâmetros de julgamento, as novidades continuam a ser negligenciadas pelo jornalista cultural, que Israel do Vale chama enfaticamente de jornalista de redação. O volume e a rapidez do fluxo informativo, além da redução extrema do espaço, forçam o uso de filtros que são legítimos, mas que "vão cada vez se afunilando mais", forçando a se descartar "muita coisa automaticamente por impossibilidade de julgar".

Mas também "ainda não há essa inquietação do jornalista em puxar coisa que talvez ninguém saiba que existam e que podem ser da maior relevância do ponto de vista artístico".

Talvez os meios digitais possam trazer as respostas. Segundo Vale, o "processo de transformação dos parâmetros de consumo de cultura está apenas no início" e poderá inevitavelmente levar à migração do conteúdo cultural para o celular - que cada vez mais comporta rádio, televisão, filme etc. Isso para não se falar dos computadores pessoais. Assim, a grande questão que se coloca sob este aspecto é qual a capacidade do jornalismo cultural de viver essa efervescência digital?

O jornalismo de redação nos jornais capitalistas discursa sobre produtos e bens de troca, que tendem a desaparecer no seu atual formato. Já hoje as pessoas não mais precisam comprar ou pegar com a mão certas produções, como a música, situação que a faz perder valor na hierarquia e na escala de definição de temas.

Portanto, os parâmetros de julgamento na eleição de assuntos precisam ser reavaliados urgentemente pelo jornalismo cultural impresso, uma tarefa que decisivamente já está sendo feita pela internet. Entusiasta da tecnologia, Israel do Vale confia "nas possibilidades que a internet abre para o jornalismo", mesmo que isso signifique que os impressos fiquem mais uma vez para trás, pois "o digital vai ser mais uma fonte de informação cultural que não vai ser retratada pelos cadernos de cultura".

Incapazes de acompanhar o ciclo histórico, que fiquem então na deles, e assumam definitivamente que o que cobrem é entretenimento, show business e não cultura. Os cadernos, sugere Vale, deviam deixar claro que "o papel deles é cobrir um certo nicho da produção cultural, dos grandes números e ponto. Isso ia ser saudável em todos os aspectos. Faça isso abertamente, sem essa coisa velada que se faz". [30]

O professor Marco Gianotti indica três diferentes enfoques para a questão: centrado no jornalista, nas instituições e no público. Mais uma vez a culpa do jornalista reside na situação de desigualdade intelectual, na qual "um jovem jornalista que acaba de se formar, no máximo tem um treinamento paralelo de trainee, mas que muitas vezes se vê obrigado a cobrir, ou a ser um interlocutor do artista".

Dada a velocidade da informação e a obsessão pelo furo, o jovem jornalista é forçado a simplificar suas idéias e, devido à sua pouca formação, o que ele tem de acesso à informação é "mediado por essa cultura do press release, [sendo] obrigado a pegar essa informação já [processada] por uma estratégia de propaganda".

As assessorias de imprensa, um fenômeno típico do capitalismo, não são necessariamente perniciosas, desde que se saiba trabalhar com elas. Como afirma Jotabê Medeiros:

"As assessorias representam um interesse. Nem sempre esse interesse é espúrio. Há fatos noticiosos que passam pelas mãos dos assessores. Depender únicamente desses fatos, ou tornar assessores fontes permanentes de informação, isso é uma deformação profissional. Rejeitar ideologicamente as assessorias (que são um fenômeno típico do capitalismo) é besteira. Elas existem, estão aí. Cumpre saber lidar com elas sem se vender." [31]

Em seus aspectos negativos, portanto, a relação assessoria-jornalismo comporta a sujeição da opinião aos interesses de marketing. Como ressalta o professor e artista plástico Antonio F. Costella, "a apreciação crítica envolve muitas nuanças, é uma coisa que exige muito mais sutileza. A hora que você joga para o particular isso para ser pronto, que eu vou ao [mundo] exterior fazer isso, de um certo modo você fica na mão desse mundo exterior.

É lógico que uma editora vai querer mandar um texto que diga que o livro é bom. Todo release sempre vai exaltar as virtudes daquilo que você está querendo vender". [32]

No entanto, a inevitabilidade das assessorias de imprensa é hoje quase um consenso, seja como resposta ao crescimento constante da produção e oferta artísticas seja pela importância econômica do assessor na circulação de informações. Como qualquer outra área profissional, a assessoria pode agir mal, ao tenta derrubar matérias, por exemplo, mas também pode auxiliar o trabalho do jornalista.

Por isso, a permeabilidade técnica com o jornalismo diário aumenta em muito a responsabilidade do assessor, que não precisa necessariamente produzir releases ruins. Com a migração de jornalistas, entre outros fatores, as assessorias tendem a crescer em qualidade, podendo fornecer informações confiáveis e, às vezes, bem escritas, que possam até mesmo ser, como já são, publicados por jornais de lugares distantes, na íntegra.

A questão é que do jeito que as coisas estão "tem muito release hoje que é melhor que muita crítica de arte". [33]

Por outro lado, mesmo que produzam muito e com qualidade de realização superior, os artistas que não contam com uma assessoria profissional de imprensa acabam ignorados pelos meios de comunicação, que em outros tempos, não tão longínquos assim, promovia o tête-à-tête com os criadores e se refestelava na simulação de centro irradiador de cultura e sofisticação: "de repente, você olhava para trás e estava entrando uma companhia teatral inteira! Inclusive com o figurino da peça; iam lá [e] a gente 'ah, puxa a cadeira', sentava todo mundo e ficava conversando com os artistas e essa integração [é] muito boa".

Era um tempo em que os artistas íam aos jornais e até escreviam críticas, em um total hibridismo do mercado cultural com o jornalismo, com os repórteres da redação. Entretanto, ressalta Giron, o volume atual de lançamentos culturais é tão grande que o serviço de assessoria se torna "absolutamente útil". [34]

Mas os clamores apontam para outro cenário. Intimidado pela experiência e cooptado pela máquina, o jornalista é apenas um -talvez o mais fraco- vértice da equação, que tem na corrosão das (tão parca e penosamente criadas) instituições o seu lado mais sombrio, por serem tão livres dos comedimentos éticos que marcam o jornalismo quanto são amalgamadas com o marketing e com a especulação da arte.

A opinião que prevalece é que enquanto a classe jornalística é cada vez mais manipulada pela linha de montagem de redação, "que permite a substituição de qualquer de suas 'peças' sem maiores traumas", os verdadeiros emissores, a indústria e as instituições, fornecem press releases mal escritos e adotam estratégias de vendas "apelativas"; os intermediários, os jornalistas e os jornais, diluem a informação ao ponto palatável que não implique em qualquer expressão jornalística.

"O problema está na raiz, no sentido que você tem uma deterioração, uma espécie de perda de qualidade da informação que vem do próprio divulgador cultural. Pense: o que é o MASP ter de apelar para uma modelo fantasiada de dançarina do Taiti para poder divulgar um Velásquez, um Monet ou um Picasso. Essa informação já vem digerida, passa por um press release que muitas vezes entende menos ainda o que é arte, e vai, seguindo a estratégia do marketing cultural, tornar essa informação a mais palatável possível. Essa informação já chega para o próprio jornalista jovem, que é obviamente ocupa o papel de um profissional que depois de vinte anos foi demitido -porque o salário dele torna-o quase incompatível com a novas regras do mercado- e esse jovem jornalista é obrigado mais uma vez a encarar um processo de informação no qual a qualidade só tende a cair." [35]

Para enfim criar cultura, o jornalismo cultural precisa fornecer "à informação um peso, um estatuto reflexivo que hoje é muito raro no jornalismo contemporâneo". Mas, se é tão raro, porque exigi-lo logo do jornalista cultural? Como construir um "compromisso com a própria criação enquanto informação" se todos os compromissos estão rompidos e todos os sonhos sepultados? Mas eis que nosso objeto ressurge e se afirma como dínamo da história.

Na década de 80, como relembra Gianotti, a Ilustrada tinha um papel também de formação de opinião: "As pessoas liam a Ilustrada porque de certa forma [nela] era mapeada não apenas a informação de como ir ao cinema, mas também de que disco ser ouvido, em que lugar ela deveria se dirigir". Era um caderno que implicava quase uma política de vida, um veículo que formava uma geração. "Isso infelizmente é algo que se perdeu", admite. [36]

O fato é que a Ilustrada criava a moda. E como vimos, mesmo sendo talvez cedo para se avaliar, seu modelo tornou-se inviável e desgastado. As próprias testemunhas reconhecem a ansiedade com que tal foi estabelecido, erigido sobre bases movediças que se mostraram traiçoeiras, e sempre a anos-luz de qualquer objeção ao processo de exclusão e degradação que assola impiedosamente o país. Culturalmente, inclusive.

O esquema de Gianotti se completa com o terceiro aspecto, o do público. A culpa do público, aparentemente, é ter perdido as mínimas condições de educação com as seguidas reformas de ensino aplicadas no país, pois Gianotti afirma que nos "anos 80 havia o papel cultural e educativo que o jornal criava no seu público", uma consideração até plausível, e que "hoje, ao contrário, o jornalismo cultural fica refém de um público cada vez mais sem informação".

Logo, o novo público como que paralisa o jornal, que se esfacela sem referências do receptor. Se para muitos a internet pode ser um alento para a reflexão, para observadores como Gianetti ela se reveste de um pedantismo pernóstico ímpar, como ocorre quando "jornalistas criam uma espécie de blog pessoal, uma espécie de coluna, em que eles começam simplesmente a vomitar impressões gerais sobre o que eles estão fazendo ali". Aqui, temos o exemplo de péssimo jornalismo, a avalanche de achismos e palpites. "Não há mais, justamente, o lugar da reflexão", [37] conclui Gianetti.

E nós, por força das evidências, somos impelidos a concordar com ele.

Notas

[1] GIRON, Luís Antônio. Jornalismo Especializado e Crítica de Arte. Seminário Jornalismo Cultural, São Paulo, 01 dez. 2004, Bienal/ABECOM/ECA. [Transcrição].

[2] Idem.

[3] NESTROVSKI, Arthur. (Org.). Em Branco e Preto: Artes Brasileiras na Folha (1990-2003). São Paulo: Editora Publifolha, 2004. p. 494.

[4] Idem. As passagens estão, respectivamente, nas páginas 121, 452, 494 e 499.

[5] GARCIA, Clóvis. A crítica é uma criação artística. In: GARCIA, Maria Cecília. Reflexões sobre a Critica Teatral nos Jornais: Décio de Almeida Prado e o Problema da Apreciação da Obra Artística no Jornalismo Cultural. São Paulo: Ed. Mackenzie, 2004. p. 299-303. Entrevista concedida a Maria Cecília Garcia.

[6] GIRON, Luís Antônio. Jornalismo Especializado e Crítica de Arte. Seminário Jornalismo Cultural. Op. Cit.

[7] Idem.

[8] GARCIA, Maria Cecília. Jornalismo Especializado e Crítica de Arte. Seminário Jornalismo Cultural. Op. Cit.

[9] Idem.

[10] Ibidem.

[11] Ibidem.

[12] CYPRIANO, Fábio. Jornalismo Especializado e Crítica de Arte. Seminário Jornalismo Cultural. Op. Cit.

[13] Idem.

[14] Cf. CYPRIANO, Fábio. Mostra de vídeos no Paço faz público dormir. Folha de S.Paulo, São Paulo, 11 abr. 2004. Ilustrada.

[15] OLIVEIRA, Lázaro de. Jornalismo e Difusão Cultural. Seminário Jornalismo Cultural, São Paulo, 01 dez. 2004, Bienal/ABECOM/ECA. [Transcrição].

[16] Idem.

[17] SCHWARTZ, Adriano. Jornalismo e Difusão Cultural. Seminário Jornalismo Cultural. Op. Cit.

[18] Idem.

[19] GRAIEB, Carlos. Jornalismo e Difusão Cultural. Seminário Jornalismo Cultural. Op. Cit.

[20] Idem.

[21] Ibidem.

[22] Cf. MEDEIROS, Jotabê. Jornalismo Especializado e Crítica de Arte. Seminário Jornalismo Cultural. Op. Cit.

[23] Cf. VALE, Israel do. Jornalismo Cultural e Uniformização do Gosto. Op. Cit.

[24] MEDEIROS, Jotabê. Entrevista concedida a Marcelo Januário, São Paulo, 14 dez. 2004.

[25] Idem.

[26] D'AMBROSIO, Oscar. Jornalismo e Política Cultural. Seminário Jornalismo Cultural, São Paulo, 01 dez. 2004, Bienal/ABECOM/ECA. [Transcrição].

[27] VALE, Israel do. Jornalismo e Política Cultural. Op. Cit.

[28] Idem.

[29] Ibidem.

[30] Ibidem.

[31] MEDEIROS, Jotabê. Entrevista concedida a Marcelo Januário. Op. Cit.

[32] COSTELLA, Antonio F. Entrevista concedida a Marcelo Januário. Campos do Jordão, 11 dez. 2004.

[33] GIRON, Luís Antônio. Jornalismo Especializado e Crítica de Arte. Seminário Jornalismo Cultural. Op. Cit.

[34] Idem.

[35] Ibidem.

[36] GIANOTTI, Marco. Tendências do Jornalismo Cultural. Seminário Jornalismo Cultural, São Paulo, 01 dez. 2004, Bienal/ABECOM/ECA. [Transcrição].

[37] Idem.


*Marcelo Januário é jornalista e professor.

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