RESENHAS
- EVENTOS
Especialistas
afirmam que não há mais lugar para a reflexão
Os
rumos do jornalismo cultural no Brasil
Por Marcelo
Januário*
Realizado
no Auditório da Fundação Bienal nos
dias 30 de novembro e 1º de dezembro de 2004, com
promoção da Fundação Bienal
de São Paulo, da ABECOM (Associação
de Escolas Brasileiras de Comunicação Social)
e da ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes/Universidade
de São Paulo), o "Seminário Jornalismo
Cultural" reuniu profis-sionais que tiveram atuação
direta nas transformações ocorridas na imprensa
nas duas últimas décadas.
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Reprodução
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Já
na abertura do seminário, o escritor e jornalista Luís
Antônio Giron, especializado em jornalismo cultural e
ex-crítico de artes da Folha de S.Paulo (figura constante
nos documentos da época), expõe à nudez
a situação que aflige sua área de atuação.
Note-se
como chegam a ser irônicos a franqueza e o ímpeto
com que o crítico hoje, à sombra apaziguadora
do tempo, pede o fim de um modelo que se mostra nulo, mas que
inegavelmente é o fruto das sementes que plantara com
a sua geração. É uma luta, e como tal,
conflituosa. Eis o chamamento amargo que sucede a queda:
"Percebi
que crítica não é uma profissão.
Eu não posso me chamar de crítico. Isso seria
até ridículo, 'eu sou um crítico!' Não,
eu faço crítica e tento, [na] minha ambição
de jornalista, lutar para que o exercício da crítica
apareça. Eu vejo a crítica como uma luta, um
exercício de resistência, e não exatamente
como aquilo que deveria ser, que abrange a função
da Crítica: 'Vamos ler a cultura e vamos ajudar as
pessoas'. É uma ilusão pensar que a crítica
hoje tal como está colocada no Brasil forme alguém.
Ela é incapaz de formar alguém, ela é
incapaz de lidar com muitas das tendências da cultura,
da cultura de rua, da alta cultura, ela não tem instrumental.
Seria preciso parar total. Pára. Vamos todos, quem
faz crítica hoje, vamos conversar, vamos ver o que
é a crítica, para que a gente está fazendo
isso?" [1]
E,
de forma dramática, mais à frente, ouvimos o jornalista
se perguntar: "O que eu fiz essa vida toda? Eu servi a
quê patrão? Eu servi à verdade, eu servi
à liberdade, ou fui manipulado por tudo isso?" [2]
Ilustrativo de certa animosidade explícita, e é
difícil saber se o caso é isolado, existe o fato
de que nenhum texto integral de Giron -"um dos expoentes
na Folha de S.Paulo na época [1990], praticando um jornalismo
crítico e afeito ao confronto e à polêmica"
[3] - conste no livro-compilação "Em
Branco e Preto"; e não foi por ter sido preterido,
julgado pouco representativo, uma vez que quatro críticas
da sua lavra recebem referências no catatau.
Advertências
como o autor "infelizmente não autorizou sua reedição",
"não foi possível conseguir autorização
para a reedição desse texto", "o autor
não autorizou a participação de textos
seus neste livro" e crítica "excluída
desta seleção por discordância do autor"
[4] sugerem veementemente a desarmonia atual de interesses,
sejam quais forem, entre o jornalista e a empresa (ou parte
dela). Mas também existe a possibilidade lógica
de que o jornalista hoje não concorde mais com algumas
opiniões que tinha na época, e prefere que permaneçam
fossilizadas nos arquivos da Ilustrada.
Porém,
o confronto de fontes não indica para este lado. De fato,
ressabiado com o fato de se sentir manipulado e em defesa heróica
da arte crítica, Giron aponta para as dificuldades do
atual estágio e inventaria os motivos que o tornaram
efetivo e disseminado na imprensa. A crítica é
colocada sob suspeita por alguém de dentro.
Também
para Giron, a principal constatação de crise está,
já o sabemos, na redução do espaço
da crítica no jornal e dos críticos no jornalismo
cultural. Resultado de diversos fatores, de um momento para
o outro se deu a redução, em uma quase extinção.
O
verídico e exemplar depoimento de outro crítico,
Clóvis Garcia, esclarece como ocorreu na prática
tal processo de corte e redução do espaço
destinado à crítica nos jornais. Corte que, no
seu caso, o afastou definitivamente da atividade, pois no início
tinha "oitenta linhas; um dia me telefonaram e disseram
que havia baixado para sessenta linhas; ligaram outro dia e
disseram quarenta linhas; ligaram outro dia e disseram 25 linhas.
Aí eu pedi demissão e deixei de fazer crítica".
[5]
Sinal
mais evidente de transformação, a redução
do espaço não é o único aspecto
da situação. Para Giron, em paralelo e precedendo
este fenômeno estão a ausência da iluminação
crítica das novas gerações (controversa
e insolúvel questão de genialidade e estultice
geracional), a inutilidade e inconsistência da atual cobertura
e, ainda em pleno desenvolvimento, o processo inesgotável
de mercantilização da arte, da notícia,
da crítica, do pensamento, da cultura, da vida...
"A
crítica tem de ser colocada sob suspeita. Não
tem uma função muito clara, não há
da parte dos jornalistas nem mesmo uma consciência geral
do papel da arte. Estou fazendo [crítica] no momento...
às vezes [essa atitude] é uma maneira de se
promover... É necessário refletir sobre o papel
da arte cada vez mais, porque não é só
a crítica que está sendo levada pela mercantilização,
a arte [também] e não adianta ser idealista
nesse ponto: tudo virou produto hoje. Mesmo a crítica
acaba sendo colocada como derivado justamente do oposto do
que é a arte." [6]
Neste
ponto, torna-se muito claro que as acusações de
crise de identidade se acumulam sobre a crítica e o jornalismo
cultural, mas não surgem muitas opções
para se reverter o quadro. Começa a pairar a perguntar
inevitável: quem faz afinal o jornalismo cultural ser
como ele é?
Todos
concordam com a tese de insuficiência, até mesmo
uma autocrítica retroativa é ensaiada, mas poucos
arriscam qualquer sugestão, pois aparentemente a correção
de rumo é algo fora do alcance das iniciativas individuais
ou mesmo institucionais. O jornalista cultural há de
se acostumar a uma terrível luta contra o embargo e a
submissão. Continua Giron:
"Não
sei se é questão de a gente lamentar, acho que
é uma questão de a gente constatar isso e entender
que fazer crítica hoje, como a gente tenta fazer, é
uma luta; é uma luta contra um espaço cada vez
menor, é uma luta contra os embargos que acontecem
dentro das empresas jornalísticas. Hoje não
se chama mais censura, hoje se chama embargo. Não vamos
ser ingênuos e pensar que a liberdade de expressão
é plena nos jornais. É claro que não
é. (...) O jornalismo viveu os últimos tempos
uma crise muito forte, as pessoas foram demitidas, os jornais
enxugaram o seu pessoal, terceirizou; aquilo que era fazer
crítica há vinte anos, quando eu comecei, era
uma coisa, hoje é outra, hoje é terceirizado;
e aí como é terceirizado usa-se ou não
a crítica; ah, eu quero usar esse [crítico]
aqui, porque eu sei que ele vai falar isso... eu como editor
uso este ou uso aquele. Tem essa coisa terrível."
[7]
Considerando-se
o ambiente democrático, é de se lamentar realmente.
A existência de um serviço terceirizado de crítica
se torna obviamente um problema quando significa que o jornal
encomenda uma avaliação que já possui sobre
qualquer assunto. Anula a existência do mesmo. A escolha
da pauta é que já determina o valor.
No
universo infindável e difuso de mercadorias de arte,
aparentemente não poderia ser mesmo diferente. O pensamento
crítico independente não sobrevive em um ambiente
saturado de produtos a se promover.
Foi
afastado por estar em descompasso com as novas necessidades
do jornalismo e do jornal-empresa. Mas para que isso acontecesse,
o posto de cerceador do jornalista precisou passar da censura
política autoritária para o embargo editorial
com implicações econômicas.
Indicado
o caminho, outros aspectos vêm então à tona.
Para a pesquisadora Maria Cecília Garcia, o problema
do jornalismo cultural contemporâneo, um consenso entre
os debatedores, pode ser compreendido por três prismas
distintos: pela importância do jornalismo cultural "em
um país dependente e recolonizado como o nosso; o papel
da crítica de arte e seu desaparecimento progressivo,
como um processo de enquadramento do jornalismo e da cultura
em determinados modelos (que não podem ser questionados,
ou não querem ser questionados, ou não desejam
ser questionados); e a crítica como texto monológico
ou dialógico". [8]
Atualizando
as idéias de Carlos Peixoto, a autora sugere que o início
de qualquer mudança positiva no quadro atual está,
em parte, na superação do "conceito usual
do jornalismo como uma atividade burocrática, de captação
e transmissão de informação". A mecanização
do texto, com fórmulas que padronizam e despersonalizam
a escrita, é unanimemente apontada como característica
negativa do modelo atual.
A
constatação, para esta corrente, é de que
o jornalismo precisa "intelectualizar-se, não no
sentido de intelectualização [erudita], da acumulação
individual de saberes, de conhecimentos, mas como prática
de busca e propagação coletiva de conhecimento".
Os práticos diriam que se trata de um sentimento digno
e justo, há muitíssimo cultivado, mas um tanto
quanto idealista e socialmente estéril.
Para
provar, os materialistas acentuariam que não deixa de
ecoar um certo tom holístico da definição
de conhecimento apresentada como a "apreensão intelectual
da realidade, a percepção dos fatos e das coisas,
a compreensão da existência, própria e alheia,
enfim, a descoberta do ser que está no mundo". Pensar
assim, entretanto, não é (ainda) nenhum crime.
Para
equilibrar o eixo propositivo, Garcia cita a idéia de
Lorenzo Gomiz sobre a redução da incerteza diante
da vida como ulterior tarefa do jornalismo, um enfoque talvez
bem mais viável e palpável para levar às
transformações que tanto são clamadas.
Em síntese, para Garcia presenciamos um duplo crime contra
a consciência. Explorando
o obscurecimento e a insegurança, o criminoso modelo
de consumo que se impõe ao jornalismo cultural extermina
com a crítica de arte, transforma a cultura em um reles
produto e cria "zonas de silêncio" sobre a produção.
"O
progressivo desaparecimento da crítica de arte das
páginas dos jornais, colabora para o aumento da incerteza.
(...) Colabora para aumentar as nossas dúvidas, (...)
as zonas de silêncio que existem, e que o jornalismo
deixa de lançar luz. Em um país dependente e
recolonizado como o nosso, (...) a tendência é
verdadeiramente criminosa. (...) Porque a crítica é
[feita], antes de mais nada, de cenas de vidas, deixar tudo
suspenso, mostrar que tudo está em suspenso, que não
existe nada consagrado, que tudo é passível
de questionamento, de transformação, ou seja,
algo muito bom. (...) Portanto (...) deve ser visto como um
processo de empobrecimento mesmo da nossa participação
nas coisas do mundo, nas coisas que a gente deve e necessita
[fazer] acontecer, e também de enquadramento do jornalismo
e da cultura (...) é o tipo de cultura feita para o
mercado, para ser comercializada, consumida, e não
pensada, instruída, questionada etc. É uma visão
da cultura como produto e não como processo."
[9]
As
implicações na soberania nacional estariam no
bloqueio dos fluxos vitais da nossa experiência simbólica,
na paralisação da cultura, da criação
e da crítica. Assim também a reificação
do consagrado atende a interesses comerciais evidentes, impedindo
que o novo surja espontaneamente e que a reflexão coordene
as escolhas processuais. O jornalismo se enquadra nesta estrutura
como chave intermediária de persuasão, sedução,
imposição, esquecimento.
Em
relação à acusação de discurso
autoritário, freqüentemente levantada contra a crítica,
e que interessa de forma oblíqua aos nossos propósitos,
Garcia recorre a ferramentas da lingüística como
a heterogeneidade do discurso para refutá-la categoricamente:
"Não existem discursos totalmente puros, totalmente
primordiais, totalmente originais, matrizes.
Os
discursos são formações, que incorporam,
renovam, transformam partes de outros discursos. (...) Isso
porque a faculdade crítica é aquela que inventa
novas formas". [10] Por ser o resultado de "atos
intelectuais profundamente engajados na existência histórica
e subjetiva", Garcia acredita na função didática
da crítica, mesmo (talvez principalmente) a jornalística.
Pela
acentuada exposição permitida pelos jornais de
circulação nacional, a formação
do público é uma tarefa que pode e deve ser feita
pelo jornalista cultural, pois é ele quem faz a ponte
entre artista, obra e público. Não como um intérprete
ou o dono do saber, mas como um companheiro de viagem. As pessoas
precisam ser educadas para arte e o crítico, como auxiliar
da formação de público, como um falador
de um diálogo entre ele, o artista e o público,
torna-se imprescíndivel. O elo de um triálogo,
uma confraria onde o público participa discutindo a arte
"junto com o artista e o crítico". [11]
Ao
avaliar a relação entre as instituições
e os jornais, Fábio Cypriano, professor de jornalismo
da PUC/SP e repórter-crítico (como se define)
da Folha de S.Paulo, afirma que a discussão crítica
não representa, de fato, uma preocupação
muito séria para os editores, assim como também
não o é para eventos como a Bienal, todos desejosos
em tão somente aparecer na mídia.
Mesmo
insistindo na distinção entre as informações
claras e precisas, a realidade, e o juízo de valor, a
crítica, Cypriano acentua que é muito restrito
o espaço da "crítica no jornal"; e,
para exemplificar, revela uma passagem da cobertura da Bienal
de 2004 na qual seu editor solicitou-lhe que, ao invés
de elaborar um texto crítico, ele escrevesse um "roteiro
para os visitantes da Bienal, de quais as obras que eles deveriam
observar".
"(...)
a Bienal tem seu chamariz e ao mesmo tempo os jornais têm
a sua boa imagem. Então, a valorização
não ocorre apenas do ponto de vista dos jornais, mas
também ocorre por parte dos agentes. Que acabam se
adequando a esse tipo de jornalismo, a esse cancro jornalístico,
pela necessidade de estar aparecendo no jornal, ou de se popularizar."
[12]
Da
mesma forma, acrescenta, a idéia subjacente neste comportamento
-o "cancro jornalístico"- é a "de
atingir o grande público, ou seja, na questão
de mercado, de consumo, de fazer um roteiro que possibilitasse
que o maior número de visitantes olhasse aquilo que vale
a pena na Bienal".
Apesar
das ressalvas -"em alguns jornais, a crítica até
tem uma certa tradição sem suspeitas, como é
o caso do teatro, [que] tem tanto no Estado quanto na Folha
críticas permanentes e críticos definidos. Em
artes plásticas não. No Estado não tem
crítico e a Folha tem um crítico que escreve com
uma variação (de tempo) irregular"-, Cypriano
considera que não há o desaparecimento da crítica.
Ou seja, que é possível fazer crítica,
"só que de forma diferente".
Para
ele, acuados entre a falta de espaço para a crítica
e a demanda crescente por textos mais interpretativos, os jornalistas
culturais têm de buscar opções de abordagem
que reúnam elementos de reportagem e de opinião.
Em resumo, a reportagem com intuito crítico. De olho
nesta equação, Cypriano explica sua estratégia
de cobertura, uma tática para a construção
de um olhar diferenciado daquilo que em geral se faz:
"Eu
procuro informar o leitor sobre a exposição,
quantos artistas, quem é o curador, quantas pessoas
já visitaram. Mas ao mesmo tempo já dar pistas
das várias possibilidades de leitura daquele evento.
Então, no caso da Bienal de São Paulo, por exemplo,
o que eu fiz? Nós convidamos dois críticos para
visitar a Bienal na antevéspera da abertura e no dia
da abertura, depois eu publiquei uma entrevista longa com
esses dois curadores que vieram à Bienal e que fizeram
a crítica já antes da abertura da Bienal. Então
com isso, e aí não estou usando a minha palavra,
eu usei a palavra dos próprios críticos, mas
incorporando-os dentro do texto jornalístico, a gente
faz com que aja um espaço para a crítica dentro
daquilo que em geral não se teria permitido."
[13]
O
repórter fornece outros exemplos deste procedimento híbrido
de reportagem-crítica que permite extrapolar os bloqueios
e limitações editoriais. Como ocorreu na cobertura
da exposição "Emoção Artificial"
[Itaú Cultural, São Paulo, 2004], que era voltada
para "a tecnologia e onde metade dos computadores não
funcionava". O dado objetivo, metade dos computadores "não
funcionava", foi inserido pelo repórter no debate
sobre a tecnologia, resultando em uma "uma leitura crítica
da exposição dentro de um texto de reportagem,
e não uma crítica propriamente dita".
Ou
mesmo na matéria (de certa repercussão, diga-se
de passagem) sobre a exposição "O Corpo entre
o Público e o Privado" [Paço das Artes, São
Paulo, 2004], que exibiria diversos vídeos, só
que "os horários e as durações dos
vídeos não eram explicitados".
O
repórter visitou a exposição e percebeu
que algumas pessoas estavam "dormindo assistindo o vídeo",
o que o estimulou a redigir um texto "priorizando essa
situação, ou seja, as pessoas sequer têm
a informação de quanto tempo vai ter a obra, no
fim das contas acabam dormindo em frente a obra". Para
uma melhor compreensão, atentemos para as primeiras linhas
desta matéria:
"Zzzzzzzz.
Sentada num pufe branco, Rita de Cássia Alecrim, estudante
do curso de multimeios da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, dormia diante da projeção
de 'Desenho Corpo', de Lia Chaia, um dos 14 trabalhos da mostra
'O Corpo entre o Público e o Privado', no Paço
das Artes (...). Das 14 obras, todas em vídeo, dez
delas são projetadas em 'looping' numa mesma tela,
levando o visitante a uma maratona de quase duas horas, se
quiser conhecer todos os trabalhos da mostra, e a disputar
um dos pufes disponíveis para maior conforto."
[14]
Por
detrás da sua descrição irônica,
porém real, subjaz uma avaliação, no caso
negativa, dos elementos da mostra. É essa ironia crítica,
diga-se, que confere sabor ao texto. A objetividade está
na detecção das falhas expositivas, reais e perceptíveis,
e no seu apontamento público.
Mas,
no mundinho das artes plásticas este texto serviu para
provar como nos nossos dias o jornalismo cultural está
viciado em falar mal sobre qualquer tema e assunto. Para Cypriano,
entretanto, o caso ilustra a possibilidade do repórter
levar tanto a informação objetiva quanto a crítica,
em um hibridismo -"algo muito contemporâneo"-
que, ademais, já está enraizado nas artes atuais.
Neste
sentido, afirma, são galeristas que não são
apenas galeristas, mas também curadores de exposição
de instituição pública; artistas que não
são apenas artistas, mas também críticos;
ou diretores de instituto, que cuidam do dinheiro e depois vão
ser curadores de exposição: "São várias
situações que [fazem] esse hibridismo. E aí
que entra a questão ética, ou seja, quais são
os limites, quais são os debates".
Para
Lázaro de Oliveira, chefe de reportagem e pauta do programa
Metrópolis da TV Cultura, os limites e debates partem
da constatação de que o jornalismo cultural hoje
está num impasse complicadíssimo por não
ter "olhos para os novos artistas e expressões".
Para
ele, são os aspectos econômicos que delineiam a
questão, pois a arte pura não existe mais (ou
nunca existiu), e todo artista precisa vender bem. A arte é
uma mercadoria e quem "investiu em determinado artista,
seja ele qual for, tem de ter esse retorno, ter esse lucro.
E aí fica a grande dúvida: o que é arte
e o que é mercadoria?" [15]
Como
a arte é mercadoria, a pressão é muito
grande para que ela "se realize nos jornais, nas TVs, nas
rádios, para que a sua mercadoria seja valorizada".
O contraponto estaria na falta de sensibilidade para entender
o que está acontecendo hoje.
Entre
a valorização do mercado e a incompreensão
da arte resulta a inevitável percepção
residual de que "tem muito mais coisas interessantes acontecendo
do que aparece nos jornais". Frente a esta tensão
entre arte e mercadoria, é imprescindível que
o jornalista cultural tenha em mente que não é
um divulgador, mas um contador de histórias que ele acha
que é do interesse da sociedade.
Por
isso, de acordo com Lázaro de Oliveira, o jornalismo
deve favorecer as artes. Seu trabalho deve explicar e sinalizar
o que são e como se dão as manifestações
artísticas, com o máximo de veracidade e universalidade
possíveis. A criação se beneficia da atuação
jornalística quando esta cumpre o valioso papel de termômetro
das expressões artísticas: a "democratização
do fazer arte existe enquanto você estiver fazendo arte;
compete ao jornalismo dar visibilidade a isso. Nós temos
de ficar cavando, liderando, para tentar ver o que tem de manifestação
artística".
Em
última instância, o jornalismo cultural traduz
em termos simbólicos a experiência artístico-cultural
coletiva, enquanto constrói o referencial histórico
que balizará as futuras gerações. O jornalismo
cultural, de acordo com Lázaro de Oliveira, tem um papel
fundamental de sinalizar o que está acontecendo, apontar
para o futuro, quando houver outro entendimento daquele período
que se passou muito tempo atrás, "quando é
mais fácil, com os elementos na mão, você
ter noção do que aconteceu". [16]
Segundo
o articulista da Folha de S.Paulo Adriano Schwartz, que foi
editor do caderno Mais! por cinco anos, o jornalismo cultural
brasileiro contemporâneo sobrevive a uma iniludível
combinação de "pouco espaço, pouco
papel e pouco dinheiro".
A
"corrida pelo furo bobo" também figura entre
as características do modelo, considerado como um anseio
míope pelo exclusivo, ademais um termo sem definição
muito clara nas redações: "O jornal considera
excelente fazer uma reportagem sobre determinado livro que vai
ser lançado um dia antes que o seu concorrente, como
se isso fosse muito importante", afirma. Como relata Jotabê
Medeiros, os jornalistas não têm mais a noção
do que é informação exclusiva e a buscam
até mesmo no aberrante release exclusivo.
Outro
ponto importante, como alude Schwartz, diz respeito à
eleição afetiva e aos preconceitos que existem
dentro do jornal e entre jornalistas, "às vezes
com o que é feito aqui, às vezes com o que é
feito fora do Brasil, às vezes contra quem [tem] vários
tipos de produção artística". Nos
cadernos de cultura este fato fica encoberto, de tal modo que
o jornalista cultural deveria esquecer que tem amigos no exercício
da profissão, assim como nunca "se propor a escrever
sobre amigos, que é uma coisa que infelizmente acontece
com freqüência".
Preconceito
e favorecimento parecem ser as tônicas da atuação
do jornalista como intermediário cultural. Entretanto,
sobre a idéia de que o jornalista cultural, imbuído
de uma certa "propensão a querer destruir carreiras",
invariavelmente manipula a informação, o doutor
em teoria literária a refuta com veemência, uma
vez que ele, o jornalista, não tem tempo para pensar
no que está fazendo, quanto mais de manipular o que ele
está fazendo.
Aprofundando
este aspecto, sobre a correlação de forças
entre o jornalismo cultural e o mercado Schwartz não
vê muita opção para o primeiro. Para exemplificar,
narra o episódio em que resenhou com franqueza crítica
um best seller internacional que considerou horrível
e que, a despeito da opinião negativa veiculada por dias
nas páginas do jornal tanto em versão impressa
como digital, imediatamente entrou para a lista dos mais vendidos.
Os limites da opinião do crítico e do jornal são
muito claros:
"(...)
seja lá qual fosse a atitude que um jornalista tomasse,
o resultado ia ser o mesmo. Se o livro tivesse sido doado
ele entraria na lista dos mais vendidos. Se o livro foi comprado
para eles fazerem uma campanha para dizer que o livro é
de fato lido, e publicasse uma seqüência de reportagens
e matérias sobre o livro, ele entraria na lista dos
mais vendidos, porque iam estar curiosas para saber porque
ele é tão ruim. Aquele livro entrou na lista
dos mais vendidos e o jornal não teve poder nenhum.
Apesar de uma resenha, que eu julgo muito clara, muito explícita,
de porquê o livro não era bom ter sido publicada."
[17]
A
importância do jornalismo cultural para o desenvolvimento
da própria linguagem jornalística foi outro ponto
destacado por Schwartz.
Considerando
que "historicamente, os cadernos de cultura nos jornais
sempre foram tidos como os laboratórios de texto nas
redações", um lugar de experiências
por excelência, onde se encontram saídas criativas,
se torna muito preocupante a redução constante
das páginas dos cadernos, "a absoluta falta de espaço"
para que tal laboratório se desenvolva.
Suas
prédicas finais abrangem dois aspectos: a descoberta
da televisão pelo jornalismo cultural, que deve ser discutida
de "modo mais sério, que não seja simplesmente
a reprodução infinita das fofocas das celebridades"
-e aponta como exemplo o recente lançamento do volume
sobre as artes brasileiras na Folha "Em Branco e Preto",
uma "antologia dos suplementos culturais da Folha"
no qual a "televisão não foi considerada
um assunto que merecesse entrar no livro"-; e a separação
entre reportagem e opinião, visando desfazer uma confusão
predominante (e que, pelo enfoque deste trabalho, se justifica),
mas também para prover a carência de bons repórteres
no segmento.
De
fato, apesar de não estar diretamente no foco de nossa
investigação, em relação ao último
ponto a leitura das fontes evidenciou que a reportagem é
um recurso extremamente eficaz para a construção
de reveladoras abordagens informativas. Portanto:
"Nem
todo jornalista cultural precisa ser um crítico cultural.
A área de jornalismo cultural precisa urgentemente
de bons repórteres. É muito comum, depois de
pouco tempo no jornal, os jornalistas, ainda muito novinhos,
começarem a fazer crítica de alguma área
que eles acompanham. Quando a formação para
isso deveria ser diferente (...). Não é uma
questão de valor, uma função não
é mais importante que a outra, só acho as funções
diferentes que no jornal hoje estão muito confundidas."
[18]
Voz
ligeiramente discordante, no que se refere ao modo como avalia
a área, o ex-editor de cultura da revista Veja Carlos
Graieb acredita que a produção de qualidade sempre
termina por se impor, sugerindo que o jornalismo cultural funciona
como filtro eficaz no cenário contemporâneo quando
se "está falando de transmitir informação,
de registrar a produção cultural de um país".
Seu
otimismo, no entanto, não é incondicional, pois
vê alguns perigos no trabalho de difusão da informação
a respeito da cultura. O primeiro deles é a cooptação
do jornalismo "pelo serviço de marketing, divulgação
das grandes firmas de indústria cultural, as gravadoras,
pelas grandes editoras, as televisões".
Em
vista da imensa quantidade de material de divulgação
que o jornalista cultural recebe -releases, CDs, livros etc.-
deve selecionar, pois o espaço não é infinito.
Nesse jogo seletivo, sempre alguém prevalece sobre a
qualidade em si. Para Graieb, parece óbvio que aqueles
que forem mais eficientes na informação de suas
novidades acabem prevalecendo. O
jornalista precisa estar atento à pressão exercida
pela indústria cultural, à pressão que
provém de empresas com "departamento de imprensa
especializado, departamento de marketing especializado".
[19]
O
segundo perigo na visão de Graieb está no bom-mocismo
em defesa da cultura popular, que é como chama o clichê
de "achar que a cultura popular é sempre mais importante
do que esse lixo que a indústria cultural nos impinge".
Considerando que "existe boa cultura popular e existe cultura
popular ruim", Carlos Graieb reafirma que "a boa cultura
popular acaba achando o seu lugar".
O
jornalismo pode, inclusive, estimular o contato com a (ou consumo
da) cultura. É então que, mais uma vez, as novas
gerações herdam o ônus de uma educação
pública falida e de uma educação privada
mercenária, uma vez que no Brasil existe um jornalismo
cultural sedutor, bem escrito e inteligente, mas não
está na linguagem que os nascidos, digamos, depois de
1980 empregam em seu ofício.
"Será
que o jornalismo é capaz de fomentar, de difundir esse
contato com as coisas da cultura? Acho a coisa um pouco mais
complicada. Não sei se crise é exatamente a
palavra. O jornalismo sabe fazer isso, sabe difundir o gosto
pela cultura. Ele sabe fazer isso quando ele é sedutor,
quando é bem escrito. (...) Ele tem de [usar] as armas
que são próprias do jornalismo, vamos dizer
assim: a boa armação, a linguagem inteligente
(...) nem sempre isso acontece. As redações
hoje em dia estão cheias de gente nova que chegou com
pouca bagagem, às vezes a linguagem (...) é
pasteurizada." [20]
Se
quiser difundir cultura e não apenas informação
sobre cultura, o jornalista deve buscar alguns efeitos. Uma
primeira solução para o impasse estaria na sedução
pela polêmica, ou seja, na construção de
um texto que "tira a pessoa da cadeira dela e [a faz falar]
'pô, concordo com isso', falar 'não, discordo disso',
'esse bicho é imbecil', 'não, esse bicho é
um gênio'".
Mesmo
com o talento e com todas as armas e ferramentas, o jornalista
cultural ainda precisa conviver com as pessoas que vivem a cultura
hoje em dia. Pessoas que "têm uma visão bem
instrumental da cultura", que utilizam a "cultura
para suprir alguma deficiência da vida deles". Mas
"não a deficiência existencial", pois
"as pessoas não têm uma visão humanista
da cultura".
Em
um detalhe sobre a recepção que pode fazer toda
a diferença no debate, Graieb afirma que esta visão
instrumental da cultura, que se tornou manifesta e coletiva,
coloca o jornalista com pendores humanistas em conflito com
os interesses de seu interlocutor, o leitor. Assim, as grandes
questões filosóficas não causam mais interesse.
"Como
morrer, como viver. Grandes questões da tradição
filosófica. Estas questões não são
mais procuradas, as pessoas não procuram mais respostas
para este tipo de pergunta. (...) Elas querem cultura para
ser promovidas no emprego, para ter uma boa conversa com os
amigos, para se divertir um pouco. Não acho que tenham
uma visão grandiosa da cultura, não acho que
elas tenham uma visão humanista. Alguém que
mexe com cultura nos meios de comunicação tem
essa preocupação, de a arte como algo maior
do que isso, e vive na eterna angústia, porque a sua
visão da cultura não bate com a visão
de cultura que a média das pessoas para quem escreve
tem." [21]
As
pessoas querem cultura para o dia-a-dia. Ponto. Mesmo padecendo
desta angústia de pregar no deserto, para "não
abrir mão do seu ideal" e superar a instrumentalização
da cultura o jornalista cultural precisa "aprender a lidar
um pouco melhor com as ansiedades das pessoas com quem estão
falando", encontrar um meio termo entre "essa visão
grandiosa de jornalista de cultura e essa visão instrumental
que as pessoas têm". É preciso, pois, passar
um pouquinho a mais do que isso.
Por
ter sido repórter de cultura tanto na Folha de S.Paulo
como n'O Estado de S.Paulo, o jornalista Jotabê Medeiros
é testemunha ocular da condição de patinho
feio que a editoria de cultura ocupa no jornalismo diário.
Segundo Medeiros, "conta-se nos dedos o número de
jornalistas que trabalham no setor", que cada vez mais
assume caráter empresarial.
Para
os poucos que permanecem, o que se deve evitar é o excesso,
talvez evitar ser mais realista que o rei na lógica industrial.
E novamente aparece a questão ética. "Se
o jornal paga uma pessoa para definir critérios de valor",
afirma Medeiros, "é uma prerrogativa do jornal,
o jornal é uma empresa, assim como a televisão
é uma empresa.
A discussão de onde vão os limites éticos
no exercício da profissão, acho que cabe a gente
discutir". [22]
O
argumento de Medeiros é que se a "principal moeda
de um meio de comunicação é a sua credibilidade",
o jornal não pode colocá-la em cheque ao, por
exemplo, legitimar a exposição de um "artista
medíocre".
O
jornal é julgado pelo público leitor continuamente,
que muitas vezes não tem capacidade para isso, mas que
está na base da tão propalada credibilidade do
meio. Não pode haver equívocos, sob pena de descrédito
profissional. A conseqüência mais natural deste raciocínio
seria, no nosso entender, a passiva aposta no consagrado.
"Se
a credibilidade é o maior patrimônio de um meio
de comunicação, o exercício permanente
da crítica é um dos elementos que mais lhe emprestam
lastro. Não a crítica como sinônimo de
opinião, apenas, mas enquanto postura. O olhar crítico
e ponderado do meio de comunicação sobre cada
fato ou idéia relevante estabelece uma relação
de confiança entre ele e seus 'clientes' (leitores,
ouvintes, espectadores)." [23]
Em
relação à cobertura de política
cultural, que poderia legitimamente se constituir em uma subárea
do jornalismo cultural, Jotabê Medeiros aponta para a
postura relapsa dos profissionais e dos jornais nos tempos mais
recentes: "O jornalismo não acompanha de perto a
engrenagem [cultural]. Isso é uma falha gritante e recente
da cobertura cultural".
Neste
aspecto, falha-se no próprio caráter de serviço
público do jornalismo, de orientação não
para o consumo, mas para a cidadania, algo idealmente muito
além dos gêneros, formatos e estilos. O papel do
jornalista na prática da profissão inclui fiscalizar
se o investimento público na produção artística
não está "sendo lesivo aos cofres públicos,
se isso funciona de forma honesta, se isso traz benefícios".
[24]
Mas,
como sabemos, nem sempre é assim que acontece. O jornalista
enfrenta in aeternum um problema ético e de consciência.
Se ontem era a ditadura militar que o coibia, hoje é
a indústria e o desemprego que lhe põem à
prova.
O
jornalista que se submete cegamente a esse estado de coisas,
propõe Medeiros, pratica um tipo de corrupção,
de colaboracionismo. Semelhante ao nefasto período da
ditadura militar, havia também jornalistas que praticavam
um jornalismo acrítico, subordinado aos interesses do
governo, acovardado. [25]
Indutivo,
o professor e jornalista Oscar D'Ambrosio apresentou uma esquematização
dos pontos que considera problemáticos em relação
ao jornalismo cultural:
I.
Especialização: a compartimentação
do saber impede a compreensão global dos processos;
II.
Uso da Informação: a "geração
internet" não consegue relacionar a profusão
de informações;
III.
Novas Tecnologias: a falta de conhecimento das máquinas
dificulta o trabalho;
IV.
Meritocracia: reconhecimento do ensino como princípio
de capacitação;
V.
Avaliação Quantitativa: o volume de produção
e vendas condiciona a análise;
VI.
Ética: competição profissional nas redações;
VII.
Linguagem: pseudo-sabedoria rebuscada e que ninguém entende;
VIII.
Escolha Profissional: pressão social na juventude;
IX.
Resistência a Mudanças: professor, artista e jornalista
são conservadores;
X.
Objetivos: formação profissional irregular.
Troquemos
em miúdos. Aspectos estruturais definem uma formação
profissional insegura, incompleta e compartimentada, um saber
isolado, baseado no jargão pretensioso e em eterna adaptação
aos novos meios, uma força de trabalho ameaçada
pelo nepotismo e pelo compadrio e concorrendo ferozmente na
categoria, até se apaziguar de forma mais ou menos rápida
em algum posto mais ou menos compensador.
Convenhamos,
uma visão nada idílica. D'Ambrósio alega,
porém, que ainda assim a linguagem rebuscada é
um dos pontos mais sensíveis do problema, pois invadiu
abertamente a academia e também as redações
dos jornais. A idéia é que a escrita difícil
serve para impressionar e até enganar os incautos, pois
onde não há argumentos para se rebater, tudo acaba
ficando por isso mesmo.
Para tanto, bastaria se construir um texto "bem complexo
e cheio de termos que poucas pessoas no Brasil sabem entender",
e então receber as palmas ou o silêncio, sempre
consciente de que no geral o público "abaixa a cabeça
e bate palma".
"Resenha
de livro, matéria de exposição de arte,
estão impregnadas dessas palavras, que metade dos leitores
não vai entender, onde o escritor, o autor, se esconde
atrás de uma pseudo-sabedoria. Quem escreveu finge
que fez um grande texto e quem leu finge que entendeu, porque
fica mal com os seus pares dizer: 'eu não entendi o
que este artigo diz'. Ou o que é pior, você lê
o texto e não sabe se o autor gostou ou não
do livro. (...) Você chega ao final e vai perguntar
'mas o cara gostou do filme ou não?'" [26]
Concordemos
em parte com os argumentos, pois o contrário disso não
é pegar o leitor pela mão e guiá-lo como
a um cego -o auge do serviço dirigido- mas quiçá
tão apenas sugerir-lhe aspectos possíveis que
lhe escapavam na obra. Em contrapartida aos pontos problemáticos,
Oscar D'Ambrosio enumera as características que, para
ele, auxiliam na superação dos desmandos na missão
jornalística sobre a cultura.
Inclui
a exatidão, cuidado extremo com datas, nomes e pesquisas;
a rapidez, princípio de enciclopédia; a leveza,
condição de ser agradável sem ser excludente;
a visibilidade, que enfatiza o diálogo entre imagem e
texto; a multiplicidade, domínio de várias áreas,
interdisciplinaridade; a consistência, compromisso ético
de oferecer um produto bem acabado.
São
pontos indiscutíveis até para o jornalismo como
um todo, mas que também aqui podem gerar ambigüidades
ao não diferir substancialmente do modelo já empregado.
Entendemos
que talvez não baste o texto ser leve, rápido
e visível (como tende a ser por natureza no jornalismo
diário), ou mesmo exato e bem acabado (o que já
é bem mais difícil), para portar algo mais que
a informação e o traço opinioso de seus
juízos. Não basta estar grafado em letras de forma
sobre o papel-jornal, como pensam tantos. Algo parece fazer
a diferença. É neste diferencial que se recolhe
o nosso Santo Graal.
Continuemos,
pois, a busca de suas marcas imateriais.
O
jornalista Israel do Vale, ex-editor-adjunto da Ilustrada, chega
a se irritar ao questionar até mesmo a nomenclatura dos
atuais cadernos, que vendem consumo por cultura. Todos, sem
exceção, "viraram indicações
de consumo" redundantes e preconceituosas e, embora cumpram
certo papel, não deveriam ser o tom predominante.
"Já
está bem na hora de começar a questionar o termo
'caderno de cultura'. Não é de hoje, mas a cada
dia é mais irritante o fato que os cadernos de cultura,
que já foram chamados também de Artes &
Espetáculos, hoje são só guias de entretenimento
de consumo. (...) O jornalismo de cultura que se faz hoje
é um jornalismo redundante, reafirmativo, preconceituoso;
é hora de os próprios jornalistas começarem
a se incomodar. O que me incomoda nesse contexto é
que isso seja tratado com naturalidade, (...) como se as coisas
fossem: 'ah, é assim mesmo, a gente está aqui
é para vender jornal'." [27]
O
papel social do jornalista é novamente invocado para
fazer frente ao inescapável desempenho de títere
da indústria de consumo. Contrapor o ambiente "mediado
por subterfúgios" em que apenas os grandes e consagrados
assuntos têm a prioridade, ambiente no qual o jornalista
"perdeu o compromisso com o desejo de revelar coisas",
é o grande desafio. Como o jornal e a revista são
produtos feitos por empresas que visam lucros, o papel do jornalista
é fazer um produto "que seja vendável, mas
(sem) perder os parâmetros do que seja o nosso papel enquanto
jornalista". [28]
Sob
outro ângulo, Israel do Vale avalia que a "internet
virou do avesso a lógica da circulação
de informação e os jornais ainda não souberam
se adaptar a isso". Os novos meios eletrônicos mudaram
a forma de apuração da notícia, de contato
do jornalista com a notícia, tanto pelas facilidades
quanto pelas dificuldades.
As
dificuldades econômicas surgem quando a equipe cada vez
menor (devido às demissões) impede que o jornalista,
com menos tempo, possa sair para a rua, viver mais a realidade.
A consequência natural é que, se ele passa mais
tempo dentro das redações, tem menos tempo de
exposição com o assunto sobre o qual ele trata.
Ao
lado do citado isolacionismo, há de se enfrentar também
a suposta crise de identidade a que se submete o caderno de
cultura, conceitualmente indeciso entre o suplemento de análise
acadêmica e o guia de serviço.
"Tem
um outro problema que interfere na configuração
do que são os cadernos de cultura que é uma
certa crise de identidade, na medida em que, dos anos 80,
principalmente, para cá, foram criados cadernos de
idéias, ou de livros, que são os cadernos que
normalmente concentram a 'reflexão'; isso de um lado,
de outro lado foram criados guias de consumo mais explícitos,
são os guias de programação de eventos
dos finais de semana, e o caderno de cultura ficou no meio
desse tiroteio sem saber muito para onde correr."
[29]
Por
falta de parâmetros de julgamento, as novidades continuam
a ser negligenciadas pelo jornalista cultural, que Israel do
Vale chama enfaticamente de jornalista de redação.
O volume e a rapidez do fluxo informativo, além da redução
extrema do espaço, forçam o uso de filtros que
são legítimos, mas que "vão cada vez
se afunilando mais", forçando a se descartar "muita
coisa automaticamente por impossibilidade de julgar".
Mas
também "ainda não há essa inquietação
do jornalista em puxar coisa que talvez ninguém saiba
que existam e que podem ser da maior relevância do ponto
de vista artístico".
Talvez
os meios digitais possam trazer as respostas. Segundo Vale,
o "processo de transformação dos parâmetros
de consumo de cultura está apenas no início"
e poderá inevitavelmente levar à migração
do conteúdo cultural para o celular - que cada vez mais
comporta rádio, televisão, filme etc. Isso para
não se falar dos computadores pessoais. Assim, a grande
questão que se coloca sob este aspecto é qual
a capacidade do jornalismo cultural de viver essa efervescência
digital?
O
jornalismo de redação nos jornais capitalistas
discursa sobre produtos e bens de troca, que tendem a desaparecer
no seu atual formato. Já hoje as pessoas não mais
precisam comprar ou pegar com a mão certas produções,
como a música, situação que a faz perder
valor na hierarquia e na escala de definição de
temas.
Portanto,
os parâmetros de julgamento na eleição de
assuntos precisam ser reavaliados urgentemente pelo jornalismo
cultural impresso, uma tarefa que decisivamente já está
sendo feita pela internet. Entusiasta da tecnologia, Israel
do Vale confia "nas possibilidades que a internet abre
para o jornalismo", mesmo que isso signifique que os impressos
fiquem mais uma vez para trás, pois "o digital vai
ser mais uma fonte de informação cultural que
não vai ser retratada pelos cadernos de cultura".
Incapazes
de acompanhar o ciclo histórico, que fiquem então
na deles, e assumam definitivamente que o que cobrem é
entretenimento, show business e não cultura. Os cadernos,
sugere Vale, deviam deixar claro que "o papel deles é
cobrir um certo nicho da produção cultural, dos
grandes números e ponto. Isso ia ser saudável
em todos os aspectos. Faça isso abertamente, sem essa
coisa velada que se faz". [30]
O
professor Marco Gianotti indica três diferentes enfoques
para a questão: centrado no jornalista, nas instituições
e no público. Mais uma vez a culpa do jornalista reside
na situação de desigualdade intelectual, na qual
"um jovem jornalista que acaba de se formar, no máximo
tem um treinamento paralelo de trainee, mas que muitas vezes
se vê obrigado a cobrir, ou a ser um interlocutor do artista".
Dada
a velocidade da informação e a obsessão
pelo furo, o jovem jornalista é forçado a simplificar
suas idéias e, devido à sua pouca formação,
o que ele tem de acesso à informação é
"mediado por essa cultura do press release, [sendo] obrigado
a pegar essa informação já [processada]
por uma estratégia de propaganda".
As
assessorias de imprensa, um fenômeno típico do
capitalismo, não são necessariamente perniciosas,
desde que se saiba trabalhar com elas. Como afirma Jotabê
Medeiros:
"As
assessorias representam um interesse. Nem sempre esse interesse
é espúrio. Há fatos noticiosos que passam
pelas mãos dos assessores. Depender únicamente
desses fatos, ou tornar assessores fontes permanentes de informação,
isso é uma deformação profissional. Rejeitar
ideologicamente as assessorias (que são um fenômeno
típico do capitalismo) é besteira. Elas existem,
estão aí. Cumpre saber lidar com elas sem se
vender." [31]
Em
seus aspectos negativos, portanto, a relação assessoria-jornalismo
comporta a sujeição da opinião aos interesses
de marketing. Como ressalta o professor e artista plástico
Antonio F. Costella, "a apreciação crítica
envolve muitas nuanças, é uma coisa que exige
muito mais sutileza. A hora que você joga para o particular
isso para ser pronto, que eu vou ao [mundo] exterior fazer isso,
de um certo modo você fica na mão desse mundo exterior.
É
lógico que uma editora vai querer mandar um texto que
diga que o livro é bom. Todo release sempre vai exaltar
as virtudes daquilo que você está querendo vender".
[32]
No
entanto, a inevitabilidade das assessorias de imprensa é
hoje quase um consenso, seja como resposta ao crescimento constante
da produção e oferta artísticas seja pela
importância econômica do assessor na circulação
de informações. Como qualquer outra área
profissional, a assessoria pode agir mal, ao tenta derrubar
matérias, por exemplo, mas também pode auxiliar
o trabalho do jornalista.
Por
isso, a permeabilidade técnica com o jornalismo diário
aumenta em muito a responsabilidade do assessor, que não
precisa necessariamente produzir releases ruins. Com a migração
de jornalistas, entre outros fatores, as assessorias tendem
a crescer em qualidade, podendo fornecer informações
confiáveis e, às vezes, bem escritas, que possam
até mesmo ser, como já são, publicados
por jornais de lugares distantes, na íntegra.
A
questão é que do jeito que as coisas estão
"tem muito release hoje que é melhor que muita crítica
de arte". [33]
Por
outro lado, mesmo que produzam muito e com qualidade de realização
superior, os artistas que não contam com uma assessoria
profissional de imprensa acabam ignorados pelos meios de comunicação,
que em outros tempos, não tão longínquos
assim, promovia o tête-à-tête com os criadores
e se refestelava na simulação de centro irradiador
de cultura e sofisticação: "de repente, você
olhava para trás e estava entrando uma companhia teatral
inteira! Inclusive com o figurino da peça; iam lá
[e] a gente 'ah, puxa a cadeira', sentava todo mundo e ficava
conversando com os artistas e essa integração
[é] muito boa".
Era
um tempo em que os artistas íam aos jornais e até
escreviam críticas, em um total hibridismo do mercado
cultural com o jornalismo, com os repórteres da redação.
Entretanto, ressalta Giron, o volume atual de lançamentos
culturais é tão grande que o serviço de
assessoria se torna "absolutamente útil". [34]
Mas
os clamores apontam para outro cenário. Intimidado pela
experiência e cooptado pela máquina, o jornalista
é apenas um -talvez o mais fraco- vértice da equação,
que tem na corrosão das (tão parca e penosamente
criadas) instituições o seu lado mais sombrio,
por serem tão livres dos comedimentos éticos que
marcam o jornalismo quanto são amalgamadas com o marketing
e com a especulação da arte.
A
opinião que prevalece é que enquanto a classe
jornalística é cada vez mais manipulada pela linha
de montagem de redação, "que permite a substituição
de qualquer de suas 'peças' sem maiores traumas",
os verdadeiros emissores, a indústria e as instituições,
fornecem press releases mal escritos e adotam estratégias
de vendas "apelativas"; os intermediários,
os jornalistas e os jornais, diluem a informação
ao ponto palatável que não implique em qualquer
expressão jornalística.
"O
problema está na raiz, no sentido que você tem
uma deterioração, uma espécie de perda
de qualidade da informação que vem do próprio
divulgador cultural. Pense: o que é o MASP ter de apelar
para uma modelo fantasiada de dançarina do Taiti para
poder divulgar um Velásquez, um Monet ou um Picasso.
Essa informação já vem digerida, passa
por um press release que muitas vezes entende menos ainda
o que é arte, e vai, seguindo a estratégia do
marketing cultural, tornar essa informação a
mais palatável possível. Essa informação
já chega para o próprio jornalista jovem, que
é obviamente ocupa o papel de um profissional que depois
de vinte anos foi demitido -porque o salário dele torna-o
quase incompatível com a novas regras do mercado- e
esse jovem jornalista é obrigado mais uma vez a encarar
um processo de informação no qual a qualidade
só tende a cair." [35]
Para
enfim criar cultura, o jornalismo cultural precisa fornecer
"à informação um peso, um estatuto
reflexivo que hoje é muito raro no jornalismo contemporâneo".
Mas, se é tão raro, porque exigi-lo logo do jornalista
cultural? Como construir um "compromisso com a própria
criação enquanto informação"
se todos os compromissos estão rompidos e todos os sonhos
sepultados? Mas eis que nosso objeto ressurge e se afirma como
dínamo da história.
Na
década de 80, como relembra Gianotti, a Ilustrada tinha
um papel também de formação de opinião:
"As pessoas liam a Ilustrada porque de certa forma [nela]
era mapeada não apenas a informação de
como ir ao cinema, mas também de que disco ser ouvido,
em que lugar ela deveria se dirigir". Era um caderno que
implicava quase uma política de vida, um veículo
que formava uma geração. "Isso infelizmente
é algo que se perdeu", admite. [36]
O
fato é que a Ilustrada criava a moda. E como vimos, mesmo
sendo talvez cedo para se avaliar, seu modelo tornou-se inviável
e desgastado. As próprias testemunhas reconhecem a ansiedade
com que tal foi estabelecido, erigido sobre bases movediças
que se mostraram traiçoeiras, e sempre a anos-luz de
qualquer objeção ao processo de exclusão
e degradação que assola impiedosamente o país.
Culturalmente, inclusive.
O
esquema de Gianotti se completa com o terceiro aspecto, o do
público. A culpa do público, aparentemente, é
ter perdido as mínimas condições de educação
com as seguidas reformas de ensino aplicadas no país,
pois Gianotti afirma que nos "anos 80 havia o papel cultural
e educativo que o jornal criava no seu público",
uma consideração até plausível,
e que "hoje, ao contrário, o jornalismo cultural
fica refém de um público cada vez mais sem informação".
Logo,
o novo público como que paralisa o jornal, que se esfacela
sem referências do receptor. Se para muitos a internet
pode ser um alento para a reflexão, para observadores
como Gianetti ela se reveste de um pedantismo pernóstico
ímpar, como ocorre quando "jornalistas criam uma
espécie de blog pessoal, uma espécie de coluna,
em que eles começam simplesmente a vomitar impressões
gerais sobre o que eles estão fazendo ali". Aqui,
temos o exemplo de péssimo jornalismo, a avalanche de
achismos e palpites. "Não há mais, justamente,
o lugar da reflexão", [37] conclui Gianetti.
E
nós, por força das evidências, somos impelidos
a concordar com ele.
Notas
[1]
GIRON, Luís Antônio. Jornalismo Especializado e
Crítica de Arte. Seminário Jornalismo Cultural,
São Paulo, 01 dez. 2004, Bienal/ABECOM/ECA. [Transcrição].
[2]
Idem.
[3]
NESTROVSKI, Arthur. (Org.). Em Branco e Preto: Artes Brasileiras
na Folha (1990-2003). São Paulo: Editora Publifolha,
2004. p. 494.
[4]
Idem. As passagens estão, respectivamente, nas páginas
121, 452, 494 e 499.
[5]
GARCIA, Clóvis. A crítica é uma criação
artística. In: GARCIA, Maria Cecília. Reflexões
sobre a Critica Teatral nos Jornais: Décio de Almeida
Prado e o Problema da Apreciação da Obra Artística
no Jornalismo Cultural. São Paulo: Ed. Mackenzie,
2004. p. 299-303. Entrevista concedida a Maria Cecília
Garcia.
[6]
GIRON, Luís Antônio. Jornalismo Especializado e
Crítica de Arte. Seminário Jornalismo Cultural.
Op. Cit.
[7]
Idem.
[8]
GARCIA, Maria Cecília. Jornalismo Especializado e Crítica
de Arte. Seminário Jornalismo Cultural. Op. Cit.
[9]
Idem.
[10]
Ibidem.
[11]
Ibidem.
[12]
CYPRIANO, Fábio. Jornalismo Especializado e Crítica
de Arte. Seminário Jornalismo Cultural. Op. Cit.
[13]
Idem.
[14]
Cf. CYPRIANO, Fábio. Mostra de vídeos no Paço
faz público dormir. Folha de S.Paulo, São Paulo,
11 abr. 2004. Ilustrada.
[15]
OLIVEIRA, Lázaro de. Jornalismo e Difusão Cultural.
Seminário Jornalismo Cultural, São Paulo, 01 dez.
2004, Bienal/ABECOM/ECA. [Transcrição].
[16]
Idem.
[17]
SCHWARTZ, Adriano. Jornalismo e Difusão Cultural. Seminário
Jornalismo Cultural. Op. Cit.
[18]
Idem.
[19]
GRAIEB, Carlos. Jornalismo e Difusão Cultural. Seminário
Jornalismo Cultural. Op. Cit.
[20]
Idem.
[21]
Ibidem.
[22]
Cf. MEDEIROS, Jotabê. Jornalismo Especializado e Crítica
de Arte. Seminário Jornalismo Cultural. Op. Cit.
[23]
Cf. VALE, Israel do. Jornalismo Cultural e Uniformização
do Gosto. Op. Cit.
[24]
MEDEIROS, Jotabê. Entrevista concedida a Marcelo Januário,
São Paulo, 14 dez. 2004.
[25]
Idem.
[26]
D'AMBROSIO, Oscar. Jornalismo e Política Cultural. Seminário
Jornalismo Cultural, São Paulo, 01 dez. 2004, Bienal/ABECOM/ECA.
[Transcrição].
[27]
VALE, Israel do. Jornalismo e Política Cultural. Op.
Cit.
[28]
Idem.
[29]
Ibidem.
[30]
Ibidem.
[31]
MEDEIROS, Jotabê. Entrevista concedida a Marcelo Januário.
Op. Cit.
[32]
COSTELLA, Antonio F. Entrevista concedida a Marcelo Januário.
Campos do Jordão, 11 dez. 2004.
[33]
GIRON, Luís Antônio. Jornalismo Especializado e
Crítica de Arte. Seminário Jornalismo Cultural.
Op. Cit.
[34]
Idem.
[35]
Ibidem.
[36]
GIANOTTI, Marco. Tendências do Jornalismo Cultural. Seminário
Jornalismo Cultural, São Paulo, 01 dez. 2004, Bienal/ABECOM/ECA.
[Transcrição].
[37]
Idem.
*Marcelo
Januário é jornalista e professor.
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