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Resenhas
A saga dos escritores jornalistas
Por Camila Vanzella*


A palavra, matéria-prima comum entre Jornalismo e Literatura, é apenas a primeira aproximação destas duas áreas que traçaram caminhos algumas vezes convergentes durante sua história. Para abordar a relação entre o trabalho no jornal e a produção literária, que pode ser conflituosa, Cristiane Costa resgata em seu Pena de Aluguel as vozes das personagens principais dessa história: os escritores jornalistas.

A obra, lançada pela Companhia das Letras em 2005, tem como ponto de partida uma enquete feita por Paulo Barreto, o João do Rio, em 1904, na qual perguntava aos principais intelectuais da época: "o jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?".


COSTA, Cristiane. Pena de Aluguel: escritores jornalistas no Brasil 1904-2004. SP: Companhia das Letras, 2005.

A partir das opiniões dos que se dispuseram a responder - foram 36 respostas recebidas das mais de cem pessoas questionadas, publicadas no livro O Momento Literário (1994), a autora traça, por meio da trajetória dos vários escritores jornalistas brasileiros, um panorama da aproximação entre jornalismo e literatura no país.

Os posicionamentos encontrados por João do Rio mostram que o trabalho como jornalista feito pelo escritor passa pela idéia de prostituição à de salvação da arte literária. Entre os que são contra o jornalismo está Luis Edmundo, que o vê como uma profissão na qual "o desgraçado mata sua arte por 300 mil réis por mês" (p. 20).

Do lado oposto, Medeiros e Albuquerque defende o ofício afirmando que este seria uma solução para a baixa produtividade do artista, esta que é, segundo ele, uma espécie de "prisão de ventre intelectual" (p. 21).

Entre algumas idéias ambíguas, há os que acham o jornal nocivo, porém inevitável. Frente a opiniões tão contrastantes, Costa propõe-se a abarcar a questão via experiência de escritores jornalistas de vários períodos, incluindo os fatores que envolvem a passagem pela imprensa, como a questão financeira - importante o suficiente para ser destacada pela autora no título do livro - e os possíveis intercâmbios entre técnicas e linguagem de um e outro campo, o que sinaliza uma influência mútua.

Abrangendo o período de 1904 a 2004, Pena de Aluguel é dividido em duas partes que retratam os momentos jornalísticos e literários no período. A primeira, que tem início com a enquete de João do Rio, traz como primeiros personagens José de Alencar, Machado de Assis, Olavo Bilac, Coelho Neto, Lima Barreto, além do autor da pesquisa.

Destaca-se aqui a questão da visibilidade adquirida pelo escritor que trabalha na imprensa, como acontece com Machado de Assis que alça sua carreira literária entrando pela "porta de serviço da literatura: o jornalismo" (p. 28). E ainda a remuneração garantida pelo jornal, que afasta o triste retrato do escritor morrendo de fome em nome da arte.

Entre os anos de 1920 e 1940, a modernização da indústria editorial abre espaço para a literatura de mercado de autores como Monteiro Lobato e Jorge Amado, enquanto os jornais especializam as atividades jornalísticas e empregam escritores como Graciliano Ramos, que assume a função de copidesque no Correio da Manhã em 1947, período que marca o início do afastamento do beletrismo dos jornais.

Alimentando uma relação simbiótica entre jornalismo e literatura, Oswald de Andrade utiliza a credibilidade conquistada de repórter talentoso para publicar artigos modernistas na imprensa e Carlos Drummond de Andrade defende o jornalismo como "escola de formação e aperfeiçoamento para o escritor" (p. 107).

Seria impossível que autores tão identificados com uma nova linguagem literária como Drummond, Oswald e Graciliano não tivessem levado a marca inconfundível de seu estilo para as redações dos jornais, revolucionando os gostos pelas exclamações, reticências, adjetivos, superlativos. Afinal, jornalistas e escritores estavam sendo influenciados pelas mesmas forças culturais de seu tempo. (p. 119)

São as influências do contexto político que moldam a nova face da relação entre jornalismo e literatura, caracterizada por uma inversão de papéis. As décadas de 50 e 60 marcam o aumento do número de jornalistas que fazem ficção no Brasil: com a censura nos jornais, a literatura se torna espaço privilegiado de denúncia.

O jornalista passa, então, de observador para protagonista do momento pelo qual passava o país e se transforma em personagem recorrente da literatura aparecendo em inúmeras obras ao lado de outros combatentes do regime, como os padres e os guerrilheiros, que viviam a experiência da tortura, marginalidade e engajamento.

Quase toda ficção no período foi escrita por escritores que trabalhavam nas redações, como Antonio Callado, Antonio Torres, Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro, Inácio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo, J.J. Veiga, Luiz Vilela, Paulo Francis e Roberto Drummond, para citar alguns.

Para tratar do momento jornalístico e literário a partir do ano de 2000 - a segunda parte do livro, Costa retoma a pergunta de João do Rio e, desdobrando a questão central em outras treze, entrevista escritores jornalistas da atualidade.

Na pesquisa, realizada entre os anos de 2001 e 2004, a autora teve o cuidado de considerar como escritores jornalistas os que exerceram funções efetivamente jornalísticas dentro das redações como repórteres, editores e pauteiros, excluindo, portanto, os colaboradores e/ou cronistas e desconsiderou os autores de livros de não-ficção. Foram 32 entrevistados que passaram a se destacar nos anos 90.

Perceptível diferença entre a primeira enquete, a de João do Rio, e a nova retomada da questão é a mudança do tipo de experiência que os escritores têm na imprensa: é clara a migração destes profissionais das editorias de hard news para as de cultura e os suplementos literários.

Entre as novas questões por eles enfrentadas estão, por exemplo, as dificuldades de afastamento do rótulo de jornalista no momento em que lançam livros, o que demonstraria um preconceito da crítica contra quem trabalha em jornal.

o entanto, as diferenças mais significativas entre este e um primeiro momento jornalístico e literário estão na própria imprensa com a qual se deparam os escritores, que assistem à informatização e ao encolhimento das redações, percebem a instabilidade do emprego, além das transformações no trabalho do repórter: "o corpo-a-corpo com a realidade estaria sendo substituído por uma relação puramente instrumental com a informação" (p. 188).

São problemas típicos de uma era de globalização e do que alguns teóricos chamam de pós-modernidade que envolveria, entre outros fatores, o desencantamento político, a desterritorialização, o individualismo.

A nova experiência não impede, contudo, que cada escritor estabeleça uma relação peculiar com o trabalho na imprensa e a influência deste em sua escrita. As opiniões encontradas por Costa vão desde a possibilidade de boas experiências, como acredita Bernardo Carvalho, para quem uma das vantagens do duplo ofício é que "o jornalismo permite entrar em contato com pessoas e situações sobre as quais você não faria a menor idéia se não fosse pelo pretexto da reportagem" (p. 180).

E passa por opiniões como a de Sérgio Alcides que vê na atividade jornalística um fator de prejuízo à produção literária. "Primeiro, porque é uma profissão hoje muito especializada, que requer uma grande dedicação" (p. 188).

Além da análise dessas opiniões contida na obra, o leitor tem à disposição a íntegra das entrevistas no site <www.penadealuguel.com.br>, que traz ainda informações sobre a autora, o livro, as críticas publicadas sobre ele na imprensa, links que podem ser de interesse ao leitor e textos que trazem informações extras sobre alguns escritores jornalistas. O site é parte importante de complementação da obra de Costa, estando unido ao livro inclusive pela mesma identidade visual.

Pena de Aluguel é composto do relato de inúmeras experiências que marcaram o duplo ofício do jornalista escritor. Desse modo, faz entrever preciosas cenas, muitas vezes díspares, como a de Graciliano Ramos na mesa de revisor cortando os rebuscamentos de linguagem dos textos jornalísticos e Nelson Rodrigues bradando contra os "idiotas da objetividade" ao ver o modelo do jornalismo norte-americano ser implantado no Brasil na década de 50 com a adoção do lide e da pirâmide invertida.

Se por meio dos retratos apresentados das relações possíveis entre jornalismo e literatura não é possível afirmar, afinal, se o jornalismo atrapalha ou ajuda a arte literária, é certo que a passagem dos escritores pelas redações trouxe mudanças significativas tanto a uma área quanto a outra, que é o que há de mais significativo neste debate.


*Camila Vanzella é jornalista e mestre em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina (PR).

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