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Resenhas
A ética contra o pensamento único
Por João Paulo Freitas*


Qual é o papel do jornalismo numa época em que a informação se tornou o principal produto do mercado financeiro? Há espaço para pluralidade sob a ditadura do discurso neoliberal?

Estas duas questões permeiam os dez artigos do livro Jornalismo na era virtual: ensaios sobre o colapso da razão ética, de Bernardo Kucinski, professor de jornalismo na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Lançado em janeiro deste ano, o livro abre com um artigo sobre a atual crise ética do jornalismo brasileiro, rendido pelas regras mercantilistas dos meios de comunicação.


KUCINSKI, Bernardo. Jornalismo na era virtual: ensaios sobre o colapso da razão ética. SP: Fundação Perseu Abramo/Unesp, 2005.

O fim da demarcação entre jornalismo e assessoria de imprensa, a fusão mercadológica de notícia, entretenimento e consumo, a concentração de propriedade na indústria de comunicação, a crescente manipulação por grupos de interesse e, principalmente, a mentalidade que celebra o individualismo e o sucesso pessoal são fatores que reforçaram a instauração do vazio ético.

O autor lembra que jornalismo existe para tornar públicas informações de interesse de todos, mas que os poderosos tentam manter privadas. Por isso, a prática do jornalismo implica na adesão a uma deontologia que tenha por fundamento a honestidade intelectual e a perícia. Não basta apenas "escrever bem". Frente ao vazio ético dos jovens jornalistas, surge o desafio de reconstruir a ética jornalística para torná-la compatível com os novos tempos.

Os valores que prevalecem hoje - tolerância, pluralismo, sucesso pessoal e liberdade individual -, "definem uma matriz ética perversa" (p. 24). Além disso, há também o predomínio de valores não-valores como o ceticismo, cinismo, a negação da utopia e da justiça social. A partir desse panorama traçado, Kucinski supõe como poderia ser a ética jornalística de acordo com o novo ambiente ético.

Para isso, é preciso rearticular os valores dominantes de modo que eles percam sua perversidade. O sucesso pessoal, "um dos valores centrais da ética do neoliberalismo" (p. 25), pode levantar questionamentos sobre como fazer sucesso na profissão. Um bom jornalista é aquele que possui boas fontes e sabe o que outros não sabem. Ele deve desenvolver um saber e uma competência jornalística, para tornar-se um sujeito do conhecimento e um ser epistêmico.

Na busca por uma ética contemporânea, Kucinski propõe que a qualidade do jornalismo e da informação seja cobrada como um dos direitos do consumidor. Outra abordagem é a denúncia da supressão da liberdade no local de trabalho com um ato de assédio moral. Por fim, o autor afirma que a maior dimensão do problema ético é a dimensão política. "A supressão da ética jornalística clássica existe como instrumental no uso dos meios de comunicação de massa pelos grupos dominantes para a manutenção de seus interesses" (p. 27). Isso significa que a luta por uma nova ética no jornalismo deve estar balizada por interesses sociais concretos.

No segundo artigo do livro, Kucinski demonstra como a cobertura jornalística da saúde reflete, mais do que outras, o caráter comercial da notícia, já que nela os processos sociais de produção de doenças e das neuroses não são questionados. Os movimentos populares de saúde, um dos principais atores sociais na luta pelo direito à saúde no Brasil, tem com principal fraqueza a falta de informação especializada, que os põe em desvantagem no confronto com o Estado e as empresas. Uma boa cobertura jornalística de saúde é fundamental para esses movimentos, mas a mídia os ignora e assume o discurso das fontes oficiais.

O livro continua com um artigo sobre jornalismo e corrupção, no qual Kucinski escreve que "a corrupção é uma prática sedutora na indústria da comunicação pelo fato de nela se combinar o poder de influenciar politicamente a opinião pública com o poder econômico" (p. 48).

A corrupção incide principalmente no jornalismo econômico. Como exemplo, temos o colapso da Enron e outras grandes empresas norte-americanas, quando se descobriu que essas empresas pagavam jornalistas de prestígio pela elaboração de discursos ou relatórios. Hoje, no Brasil, a corrupção de jornalistas assumiu principalmente a forma de merchandising, ou propaganda camuflada em programa de entrete-nimento, voltada principalmente para as disputas eleitorais. Kucinski detalha também uma modalidade de denúncia de corrupção: a publicação de dossiês. Nesse tipo de jornalismo, a investigação não é feita pelo jornalista, nem segundo critérios jornalísticos.

Após as duras e pertinentes críticas do autor ao jornalismo atual, a esperança retorna no artigo "A revolução intiindustrial da internet", onde ele afirma que a internet é imune à censura e se constitui como um ambiente subversivo e lúdico de transmissão. É desde local de emerge o que ele chama de "cidadão digital": um ser engajado, seja ele de esquerda ou direita. Porém, este novo ambiente também apresenta dilemas éticos.

O primeiro deles é a chamada exclusão social. Para Kucinski, este conceito tem pouca capacidade explicativa e esconde que a exclusão é constitutiva do capitalismo. A nova mídia ainda apresenta outros aspectos problemáticos, como a ruptura da demarcação entre espaço público e privado, a dissolução dos direitos autorais e a facilitação da fraude intelectual e, por último, a disseminação de boatos e fofocas. Apesar dos impasses, Kucinski permanece otimista. "No balando de ganhos e perdas, é difícil concluir que a tecnologia exclui mais do que inclui" (p. 83).

Na seqüência, é a vez do "jornalismo on line" e da "economia virtual" passarem pela análise do autor. Para ele, "economia virtual" é a nomeação de dois fenômenos diferentes: a automação, que torna menos necessário o trabalho do homem, e a velocidade de movimento dos capitais financeiros. Após o fim do padrão-ouro e o surgimento de agências de informações econômicas, "a velocidade do processo de tomada de decisão baseado na informação passou a ter valor monetário" (p.94). Foi desde modo que informação e mercado começaram a se fundir, transformando os meios de informação no próprio mercado.

O autor também questiona o que há de novo no jornalismo on line se desde o surgimento do telégrafo as notícias são despachadas instantaneamente. Kucinski disseca o conceito e evidencia suas características: 1) o jornalismo on line tem como principal público especuladores e instituições financeiras; 2) estabelece o predomínio da velocidade, em detrimento da contextualização, precisão e interpretação e 3) é usado como pauta para o resto da cobertura. A conclusão é que o jornalismo on line reflete o triunfo do capital financeiro sobre os processos de produção da notícia; é um jornalismo dirigido àqueles que atribuem um valor monetário imediato à notícia.

Ao comentar o declínio e a morte do jornalismo como vocação, Kucinski, entre várias características que diferenciam o velho jornalismo do atual, destaca que antes havia "ambição narrativa", o que tornava os textos jornalísticos perenes. Hoje, a regra é a banalidade na escrita. Outro fenômeno que prejudica a vocação do jornalista é a competição pelo emprego, que de tão intensa cria um individualismo extremado. Nesse ambiente, o jornalista luta pelo emprego, não pela verdade. Ele não pode se deixar marcar como radical. Com tudo isso, nas empresas jornalísticas o fazer tornou-se mais importante que o saber fazer.

Após comentar a morte do jornalismo como vocação, Kucinski elenca dez paradoxos do jornalismo neoliberal. O primeiro é a atual falta de pluralismo na mídia brasileira. "Os jornais de referência nacional se tornaram tão parecidos que é comum confundir um com outro nas bancas de revisas. Trazem as mesmas manchetes, as mesmas fotos, dispostas da mesma forma, e os mesmos nomes de colunistas" (p. 114). O segundo paradoxo é que temos menos pluralismo na democracia do que havia na ditadura, época em que existiram diversos jornais alternativos. O quarto paradoxo é a uniformidade conservadora da mídia numa sociedade claramente polarizada e com profundas diferenças sociais.

O quinto paradoxo questiona a identificação do jornalista jovem com o neoliberalismo, já que ele é um dos profissionais que mais sofre pelos processos de alienação no ambiente de trabalho. O Sexto paradoxo é a atual concentração monopolista da mídia, que viola uma idéia insistente da cartilha neoliberal: a competição. O jornalismo neoliberal fala em nome do interesse público, mas serve ao interesse privado - este é o sétimo paradoxo.

As empresas de comunicação prosperam quando a renda da população aumenta. Entram em crise quando a miséria cresce. Desta constatação, Kucinski retira o oitavo paradoxo: como as empresas de comunicação podem apoiar um modelo que tem como pressuposto a exclusão social? O nono paradoxo é que as empresas brasileiras de comunicação planejam sua própria absorção pelos grandes grupos globais de comunicação. O último paradoxo é que a pluralidade e a convivência de contrários é um conceito amplamente difundido pelo neoliberalismo. Porém, eles não se aplicam à economia, onde propostas alternativas sequer são ouvidas.

As falácias do jornalismo econômico na era neoliberal são o objeto do artigo seguinte. Como exemplo do predomínio de uma cobertura adequada aos interesses do capital financeiro - e não da sociedade -, Kucinski demonstra como o déficit público foi criado apenas como mecanismo ideológico de persuasão da opinião pública, na intenção de promover um aperto de cintos e forçar o governo a economizar para pagar os juros exorbitantes de sua dívida. Kucinski cita o lingüista norte-americano Noam Chomsky para melhor explicar a prevalência do discurso do mercado.

Para Chomsky, a informação na imprensa americana é enviesada, principalmente, por aquilo que ele denominou como "ideologia guerra fria", a saber, o condicionamento do noticiário por uma luta maior entre o bem e o mal. As notícias que favorecem o "mal", previamente definido, são suprimidas. Cria-se desde modo um jornalismo onde as pautas não visam esclarecer, mas convencer. Esta questão é um dos pontos importantes do artigo que encerra o livro: "O lugar da mentira no relato jornalístico". Nele, Kucinski dá exemplo de como é natural que os jornalistas montem matérias segundo esquemas que se encontram em suas cabeças, perdendo a oportunidade de expor a complexidade que os fatos apresentam.

Em um momento em que o atual modelo econômico é quase geralmente visto como algo inevitável, o livro Jornalismo na era virtual assume o importante papel de lembrar aos jornalistas que a economia é um aspecto real da vida material do homem e que, por isso, é reflexo de variados e complexos fatores sociais.


*João Paulo Freitas é graduado em jornalismo pela UEL/PR.

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