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20/03/2004
Nova versão das relações
entre jornalistas e a censura
Pesquisadora
denuncia o apoio à repressão durante a ditadura
Por Paula Barcellos
Quando defendeu sua tese de doutorado em História, na
Unicamp, em 2001, a atual coordenadora da rede municipal de
teatros do Rio, Beatriz Kushnir, despertou a curiosidade, a
fúria e os aplausos de muitos jornalistas que estavam
em plena atividade durante o regime militar. Com o título
Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à
Constituição de 1988 - agora publicado pela Boitempo
(408 páginas, sem preço definido) -, Beatriz trouxe
à tona uma face do jornalismo, que na maioria das vezes
costuma ser mascarada: sua colaboração com o Estado
nos anos de repressão. Para chegar a essa constatação,
a historiadora inverteu a estratégia do jogo: em vez
de partir dos jornalistas para chegar aos censores, foi aos
censores para chegar aos jornalistas. Daí, surgiu uma
surpresa: os primeiros 10 censores do Departamento de Censura
de Diversões Públicas, no período estudado
por Beatriz, eram jornalistas.
-
O objetivo é iluminar um território sombrio e
desconfortável: a existência de jornalistas que,
ainda nas redações, foram censores federais e
policiais - conta.
Um
dos entrevistados para a pesquisa foi o jornalista Antônio
Aggio Jr., que, no período da censura, trabalhava na
Folha da Tarde. Apesar de, a princípio, Aggio ajudar
Beatriz em sua tese, ele não poupou críticas ao
ler o trabalho pronto: ''Para alicerçar sua tese na parte
relativa à Folha da Tarde, Beatriz vale-se de um argumento
mentiroso e calunioso. Estou providenciando sua responsabilização
perante a justiça'', disparou em seu artigo publicado
no site do Observatório da Imprensa. Polêmicas
a parte, a historiadora Beatriz Kushnir, com sua ousada publicação,
está contribuindo para uma releitura crítica dos
40 anos do golpe militar.
PB - Ao contrário da maioria dos estudos sobre a imprensa
durante a ditadura militar, em que o enfoque é a forma
pela qual os jornalistas reagiram à censura, na sua tese
você faz o caminho inverso: parte dos censores para chegar
aos jornalistas. O que levou a essa opção?
BK
- Ao iniciar minhas pesquisas de doutoramento em História,
na Unicamp, financiada pela Fapesp, fiquei surpresa ao constatar
que os primeiros 10 censores do Departamento de Censura de Diversões
Públicas (DCDP), quando da transferência da capital
federal para Brasília, eram jornalistas. E todo pesquisador
sabe que um ''achado'' ocorre quando uma constatação
foge às regras que havíamos apreendido como ''conhecidas''.
Mas tal ''descoberta'', como outras que o livro aponta, não
são facilmente assimiláveis por uma memória
política que estabeleceu para o país um outro
patamar, muitas vezes distante do percorrido pelo regime civil-militar
do pós-1964, por exemplo.
Tentando
compreender esse achado, verifiquei que os editais dos concursos
públicos para censor federal, quando traçavam
o perfil do candidato, admitiam uma única atividade concomitante:
ser jornalista. Esse fato aguçou ainda mais a minha curiosidade.
Até porque, creio ser importante, em um trabalho na área
das Ciências Sociais, podermos remar contra a maré
e trazermos à tona ponderações e perspectivas
inovadoras, olhares que revelem, desvendem. Esses nos obrigam
a rearrumar o tabuleiro do jogo. E isso, para mim, é
fundamental.
PB
- Como você explica o fato de alguns profissionais da
imprensa colaborarem com a repressão?
BK
- É preciso compreender, por um lado, a instabilidade
profissional dos homens e mulheres de jornal e a necessidade
que tinham de outros empregos, muitas vezes públicos,
que garantir a sobrevivência. Estar no aparelho de Estado
ou ser empregado num jornal, uma empresa, confere regras, e
isso é uma constatação que não pode
ser desprezada. A República brasileira é também
um período de longas intervenções ditatoriais.
Temos
mais momentos de exceção do que de democracia.
A censura aos jornais, portanto, não se iniciou no pós-1964,
ou no pós-1968. Ela esteve presente na República
Velha, no Estado Novo e também em períodos tidos
como democráticos. Gosto muito de uma frase do Millôr,
no famoso número 300 do Pasquim, quando os censores deixam
a redação. Ele diz: ''Sem censura não quer
dizer com liberdade''. Quantos de nós fomos educados
para viver ''com liberdade''?
PB
- Como tal colaboração com a ditadura refletiu
na sociedade?
BK
- O ato de colaborar com a ditadura nos impõe refletir,
criticamente, a idéia da sociedade brasileira como ''democrática
por natureza'', e para tal são muito oportunas as ponderações
feitas por Daniel Aarão Reis Filho acerca do processo
de anistia e de oposição ao regime civil-militar.
Durante esse período, meio ''fim de festa'', parcelas
da sociedade brasileira buscaram se divorciar da ditadura, optando
por manifestações tidas como de esquerda. Desejavam
demarcar as ''fundas e autênticas raízes históricas''
do país.
Para
eles, a ditadura era um passado e um pesadelo momentâneo,
que precisava ser exorcizado. Como demônios e fenômenos
externos, a idéia era que a sociedade não tinha,
e nunca teve, nada a ver com a ditadura. Ficam, então,
questões difíceis de responder: por que a ditadura
durou tanto tempo e não foi simplesmente repudiada? E
por que foi aprovada uma anistia recíproca?
PB
- Você se decepcionou com a imprensa?
BK
- Não sei se decepção é o termo
mais correto. Creio que hoje compreendo que a imprensa é
uma empresa de cunho privado que vende um serviço de
utilidade pública. Mas, como destacou Cláudio
Abramo, o jornal tem um dono e nele só sai o que o patrão
quer. Tendo isso em mente, passa-se a ler, de forma mais realista,
o que está impresso. Sabendo sempre que, no dia seguinte,
o papel do jornal vai embrulhar peixe nas feiras. Mas o que
nele está impresso pode ter mudado vidas de modo radical.
Algo
é fundamental não se perder: quem o compra deposita
neste ato um pacto de confiabilidade no que está escrito.
Quebrar esse acordo gera uma ambigüidade na apreensão
do real que permite um sem-número de considerações.
Assim, muitos pagaram pelo papel-jornal para saberem o que se
passava nos seus mundos. Outros sofreram com o que estava impresso
nessas páginas.
PB
- Dessa forma, o jornalismo acaba sendo fonte da história.
Então, como se dá a relação entre
imprensa e história, jornalista e historiador?
BK
- Os historiadores que vêm trabalhando com o contemporâneo
fazem o que se denominou ''história do tempo presente''.
No encontro de jornalistas e outros intelectuais para uma atuação
política, abriu-se um espaço que flexibilizou
lugares e atuações profissionais. Não se
contentando em registrar apenas os ecos da atualidade, os jornalistas
buscaram um olhar crítico sobre o material produzido,
exercitando-se em uma história do imediato. Esse encontro,
esperamos, deve se dar para além das disputas, respeitando
as especificidades de cada oficio.
Assim,
não devemos cair na armadilha que amarra o historiador
às considerações para a posteridade, enquanto
o jornalista buscaria vencer a angústia do esquecimento
a cada jornal que no dia seguinte está no lixo. O grande
encontro possível desses sujeitos das letras permite
que o tempo presente seja uma não-história do
instante. E nada mais importante do que a narrativa jornalística
e a reflexão histórica sobre um período,
por diversos ângulos, para que isto possa acontecer.
PB
- Logo após a defesa da sua tese, em 2001, parte da imprensa
reagiu muito mal, inclusive jornalistas que você entrevistou
para o trabalho. Antônio Aggio Jr. chegou a afirmar que
sua tese seria mentirosa e sensacionalista. Como justifica essa
reação?
BK
- Durante as reflexões sobre os 30 anos do AI-5, em 1998,
o jornalista Jânio de Freitas fez uma análise,
em meu juízo, extremamente reveladora, comentando que
muitos dos jornalistas que estavam nas redações
em 1968 ainda lá permaneciam em 1998. Assim, como o panorama
mudou, discursos sobre trajetórias também querem
se adaptar a esses ''novos momentos''. Isto porque muitos servidores
foram aposentados, outros construíram para si uma imagem
positiva e até mesmo heróica, distanciando-se
do que haviam feito. Outros tantos se readaptaram e estão
na mídia como sempre. Um retrato que exponha e desfoque
esse esforço de adaptação nunca poderá
ser bem aceito.
PB
- De certa maneira, reações como a de Aggio não
seriam também uma forma de censura?
BK
- Sinceramente, prefiro não polemizar. Meu trabalho se
pretende muito mais amplo do que se debruçar apenas sobre
trajetórias individuais. Não quero que um esforço
de cinco anos e meio, extremamente rico para mim, seja perdido
e apague o empenho de repensar as outras possibilidades de apreender
a relação imprensa/Estado.
PB
- Passados 40 anos do golpe militar, como você analisa
a imprensa hoje? Ainda persiste algum tipo de censura?
BK
- A censura, travestida de defesa da moral e dos bons costumes,
é para mim sempre política, e se calca, para efetivar
suas ações, em pressões econômicas.
Por ser uma empresa privada que visa o lucro, o órgão
de imprensa tende a perder suas funções básicas:
fiscalizar o poder, buscar a verdade dos fatos e fomentar o
espírito crítico. Atualmente, temos acesso a muita
informação, às vezes em excesso e sem proveito,
mas adquirir conhecimento é parte de outro procedimento.
Talvez a censura contemporânea seja essa enxurrada de
dados e a ausência de conteúdo.
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