Nº 9 - Dez. 2007 Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO V
 
 

Expediente

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 
 

 

 


 

 

 

 

 

 


MONOGRAFIAS
  O riso e o siso do Programa do Jô:
A televisão como canal de informação e entretenimento


Por
Cláudio Cardoso de Paiva*


RESUMO

Colocamos em perspectiva o Programa do Jô, um talk show em que se fundem a entrevista, a música e o humor. Este programa se encontra disponibilizado em vídeo pela Internet, no site da Rede Globo e no website anárquico-minimalista You Tube. Logo consiste num dispositivo hipermidiático, em que a informação e o entretenimento se conjugam, dando visibilidade a uma nova dimensão do espaço público.

Reprodução

Miramos o período da crise política do Governo Lula (2005/2006), culminada no “escândalo dos mensalões”, quando o programa simulou uma CPI eletrônica, formada por um time de mulheres jornalistas e analistas políticas, as “Meninas do Jô” [1]. Numa estratégia inteligente, colocou em ação a competência feminina para decifrar as tramas políticas do Congresso Nacional e através da sátira se empenhou no tratamento de um tema difícil, como a corrupção; fazendo humor, a mídia desencadeou novos estilos de informação e entretenimento.

PALAVRAS-CHAVE: Telejornalismo / Política / Entretenimento

1. Abertura

O papel do Programa do Jô, assim como foi o do Jô onze e meia, é fundamental em meio a tantas parafernálias jornalísticas. As máscaras despencam diante do bom astral do humorista, reduzindo o espaço que a demagogia costuma ter na frente das câmeras. A condução do apresentador tira o caráter teórico que por muitos é utilizado como camuflagem. Bom humor em função da cidadania. A CPI que utiliza uma perigosíssima arma para os que devem: a espontaneidade (Cf. BARBIERI, 2005).

O Programa do Jô consiste numa espécie de ícone da cultura midiática, graças a sua longa permanência no ar (desde 2000), sua exibição diária, de segunda à sexta feira, depois das 23h, pela Rede Globo e a cifra extraordinária de milhares de entrevistas realizadas com gente de expressão no cenário nacional e internacional, além de uma multidão de anônimos que, exibindo proezas inusitadas, encarnam a imagem especular dos homens e mulheres comuns com os quais os espectadores se identificam.

É, sobretudo, um programa voltado para a diversão e o entretenimento, e tendo à frente Jô Soares, um artista esclarecido, poliglota, diretor de arte, com experiência em teatro, cinema, televisão, literatura, cuja carreira se consolidou a partir das suas habilidades de comediante, o programa possui a característica de tratar dos temas sérios com descontração. E é pelo prisma do humor que - estrategicamente - o apresentador consegue atingir as nervuras tensas da realidade política nacional.

Contemplamos o Programa do Jô, delimitando uma duração referente ao período em que se inscreve a crise política do governo Lula, culminada com o chamado “escândalo dos mensalões”. Durante esse intervalo de tempo, o programa entrevistou os personagens do mundo político, criando assim um fórum privilegiado de exposição (e discussão) da crise política. Oportunamente, a produção do programacriou um quadro intitulado As Meninas do Jô, composto por mulheres, jornalistas e analistas políticas, cuja competência comunicativa lhes permitiu atuar ativamente, criando um espaço crítico na mídia, acompanhando a agenda nacional e focalizando a atuação das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), [2] no Congresso Nacional.

Neste contexto, os discursos das Meninas do Jô sobre o escândalo do “mensalão”, a crise política e as Comissões Parlamentares de Inquérito (e os outros escândalos), têm uma repercussão marcante na esfera pública. Num país machista, com baixa consciência política, o fato de mulheres se empenharem com êxito e brilhantemente, num debate que ajuda a esclarecer a complexidade dos fatos políticos, causa admiração e efetivamente assegura uma audiência importante.

O debate realizado no quadro as Meninas do Jô, consiste na publicização de um conjunto de fatos, que, divulgados na rotina do telejornal, adquirem um sentido mais mecânico e talvez pouco digestivo. Através dos “jogos de linguagem”, que se alternam entre o riso e siso, as mesas redondas realizadas no Programa do Jô, em meio à sátira, ao chiste e à piada, vão decifrando as tramas do cotidiano nacional e debatendo as falcatruas dos políticos profissionais. A parte maldita da “espetacularização da política” é o risco permanente de despolitização dos telespectadores, que podem passar a desacreditar na práxis política como uma estratégia de democratização, formação da cidadania e transformação social.

A parte interessante reside na criação de um novo estilo de debate e uma zona de visibilidade, um “espaço público virtual”, que traz conseqüentemente novas luzes para uma discussão dos temas importantes da vida pública, como a ética e a argumentação política, mesmo por um viés pouco convencional; por isso mesmo, trata-se de uma experiência cultural que merece um olhar mais detido por parte dos pesquisadores em comunicação.

2. Atualização da esfera pública e a praça eletrônica da televisão

Cumpre enfatizar a importância da informação como requisito básico das sociedades democráticas. E, um filósofo prestigiado no campo da comunicação, como Habermas (1984), mostra que é preciso ir além da noção de “opinião pública” e explorar um conceito mais orgânico de “esfera pública”. Entendemos que para o pensador, a acepção da palavra “público” deve ser avaliada menos como um efeito midiático-publicitário e mais como resultado da competência comunicativa dos atores sociais, cujas ações afirmativas propiciam a formação de um espaço crítico para o exercício dos discursos e das intersubjetividades, com base no princípio da ética e da responsabilidade.

E já aqui gostaríamos de defender a idéia de que nos espaços da mídia, dos programas de televisão - como, por exemplo, Roda Viva, Observatório da Imprensa, Altas Horas e Programa do Jô, entre outros - existe a possibilidade de reencontrarmos uma “esfera pública”, como lugar propício para o exercício da crítica inteligente, da argumentação e do debate político vigoroso.

No século XX emergiu uma nova ambiência técnico-social em que a esfera pública tradicional cedeu terreno a outros espaços de representação social, ganhando novos contornos em termos de “espaço público eletrônico”, em que a televisão está no centro do acontecimento. Modifica-se assim o estatuto do cidadão-eleitor, transformado em cidadão virtual, como telespectador, eleitor e usuário da informação midiática.

Neste contexto, defendemos a idéia de que surgiu um novo espaço público, que se impõe pelo poder da evidência, pelo poder de dar voz e de conceder visibilidade aos agentes e fatos políticos e sociais. Diversos autores - cada um à sua maneira - têm buscado interpretar o sentido das relações entre indivíduo, televisão e política a partir de prismas distintos, dentre os quais, Fausto Neto (2001), Muniz Sodré (1984), Gomes (2004), entre outros; estas contribuições podem ser valiosas para uma apreciação da complexidade do novo espaço público no contexto da sociedade midiatizada.

A exibição da realidade política pelo viés da programação televisiva forja novos modos de representação, através dos quais os cidadãos-telespectadores experimentam noções de identidade e sociabilidade; tem-se por essa via a formação de laços sociais (Cf. WOLTON, 2006) no âmbito do que se tem chamado de “democracia virtual” (Cf. SCHÉRER, 1994).

Analisando o Programa do Jô, verificamos que este se configura como uma modalidade de ação comunicativa que congrega os diferentes gêneros de discursos, atuando em sintonia com as instâncias da arte, informação, política e entretenimento. É a partir dessa teia discursiva que o programa humorístico vai definir um olhar sobre a experiência política nacional; é por essa via que vai estabelecer um campo de discussão e debate sobre a crise política, falando uma linguagem acessível aos telespectadores.

3. A estratégia do humor e a construção do espaço crítico

Cumpre entender o papel da televisão na formação dos novos espaços de debate e discussão, mesmo quando se voltam para o divertimento. Podemos compreender a função da sátira, da paródia, da ironia, como uma modalidade da razão crítica instalada no próprio âmbito dos meios de comunicação. E é por aí que podemos decifrar o sentido do Programa do Jô, avaliando o desempenho do apresentador, como alguém que detém uma imagem carismática e goza de prestígio e credibilidade junto à opinião pública, justamente pela tematização das questões sociais e políticas, fazendo humor.

O seu percurso na história da cultura midiática se iniciou com o programa Faça Humor não Faça a Guerra (1970), Satiricon (1973), O planeta dos Homens (1976), Viva o Gordo (1981) e se estabeleceu definitivamente como protagonista de um talk show, cujo fio condutor é o humor. Os seus programas satirizam as instituições sociais, a política, os costumes, mas também abrem o campo para uma crítica da ambiência midiática (o que - no fim das contas - implica numa postura de autocrítica).

Neste sentido, o Programa do Jô realiza uma desmontagem das tramas políticas, focando as gafes, falhas e derrapagens dos parlamentares, exibidos nos canais de TV institucionais, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. O seu método consiste em desterritorializar os personagens e situações do seu contexto original, no âmbito da representação político-partidária e reterritorializá-los no cenário midiático, através de desconstruções e remontagens que conferem um outro significado à experiência política, principalmente dando espaço para os discursos competentes.

O Programa do Jô deve ser levado a sério devido à publicização e crítica das tramas políticas, discutidas a partir de um “princípio dialógico” (Cf. TODOROV, 1981). É preciso considerar que este tipo de programa constitui um estilo de representação das culturas populares, massivas, urbanas e principalmente pela formulação de um espírito crítico que se constrói através do humor, da ironia e da caricatura. Nesse caminho, encontramos as leituras estimulantes de Verón (1980), Bakhtin (2002), Jeudy (2001), Machado (2000), Novaes (2005), Martín-Barbero & Rey (2001), Wolton (2006), entre outros, cuja contribuição é fundamental para o entendimento da complexidade da televisão.

4. O poder da sátira, exaltação e crítica do sistema das celebridades.

Para entender os programas cômicos, convém reconhecer que há uma dimensão de subversividade no humor que pode nos levar a enxergar as tramas políticas da história oficial. Desde a idade antiga, com Aristófanes, ridicularizando os poderes arbitrários, as instituições oficiais, em obras como As vespas, As nuvens, As rãs, passando por Satiricon (PETRÔNIO) e por Decamerão (BOCCACIO), o mundo virado de cabeça para baixo, na idade média e na renascença (Cf. BAKHTIN, 1996), até a modernidade do cinema com Charles Chaplin, o riso se inscreve na história da cultura pela sua potência transgressiva, com o poder de revelar as dimensões ocultadas pelas tramas sociais e políticas.

O riso dá medo porque gera instabilidade e desmoronamento das estruturas rígidas, mecânicas, inflexíveis, como indica Bergson, na obra clássica O riso (1900). No caso do Programa do Jô, o riso televisivo acolhe as sensações de revolta e os sentimentos de indignação dos telespectadores diante de um acontecimento ultrajante como o “escândalo dos mensalões”.

Para explorar a forma e o sentido do Programa do Jô, buscamos contextualizá-lo no âmbito do que Huizinga (1993) e Callois (1990) descrevem como uma experiência fundamental do espírito lúdico, cômico, brincalhão, como algo que passa pelo fio de uma “ironia da comunicação” (Cf. JEUDY, 2001). É contra este pano de fundo que situamos o nosso enfoque e o nosso lugar de fala, mirando um programa essencialmente voltado para a diversão e o entretenimento, que não deixa de gerar informação e instigar ao conhecimento, mas que se constrói pela estratégia permanente de subversão e carnavalização do sentido.

5. O debate e a espetacularização da política

Pensar em termos dialógicos quer dizer enfrentar a coincidência dos contrários e implica na retomada da crítica (e autocrítica) permanente. E pelo prisma que reconhece a complexidade sociocultural, política e comunicacional (Cf. MORIN, 2003), convém fazer uma metacrítica das teorias críticas, tanto de Adorno (2002), assombrado com os espectros da “indústria cultural”, quanto de Guy Debord, assustado com a ubiqüidade da “sociedade do espetáculo” (1997).

E, partindo sempre de uma perspectiva dialógica, para compreendermos os programas de informação e entretenimento e as suas conseqüências no imaginário social, convém retomar as leituras, as críticas, respeitando a dimensão mitológica das sociedades e mídias contemporâneas, passando pelas “mitologias” de Roland Barthes (2003), os “olimpianos” de Edgar Morin (1970, 1989), até as “mitoironias” de Baudrillard (1997).

Para um “conhecimento aproximado” da cultura das mídias, dos programas de entretenimento, cumpre reconhecer os paradoxos e complexidades que habitam este contexto. Nessa direção, apostamos num aporte teórico-metodológico apoiado nos critérios de uma “vigilância intelectual”, empregando os termos de Bachelard (1997), empenhado numa “psicanálise do conhecimento”, e por essa via, reconhecemos a positividade do sistema de produção midiática, o poder dos meios, e ao mesmo tempo, o outro lado do processo comunicacional, o poder de recepção, mediação, articulação e negociação dos telespectadores, eleitores, cidadãos.

Nessa perspectiva, encontramos um filão de autores e textos instigantes que se inscrevem nos domínios dos estudos culturais, articulados (diretamente ou indiretamente) com a pesquisa em comunicação, em conexão com os domínios da filosofia, estética, semiótica, antropologia, psicologia, sociologia e história. Assim, os trabalhos de Martín-Barbero (1997) nos estimulam a explorar a sátira, o riso, o humor, como uma mediação realizada pelos telespectadores e atores sociais. Por sua vez, Canclini (1997), sinaliza os caminhos para se entrar e sair dessa espécie de “bolha midiática”, [3] reconhecendo as identificações dos telespectadores, rindo das inversões políticas, no contexto das culturas híbridas, em que se fundem o popular e o massivo.

De sua parte, Verón (1980) e Fausto Neto (2001a, 2001b) nos alertam para compreender as modalidades de produção e negociação de sentidos presentes nos acontecimentos midiáticos, e isto, a nosso ver, serve também para entender como o riso popular revela uma atitude - ao mesmo tempo - cúmplice e crítica das representações televisivas acerca do poder. Dominique Wolton (2006), por sua vez, nos conduz a reconhecer a força identitária dos indivíduos e grupos com as imagens e discursos da tevê e faz um “elogio do grande público”, também pela formação das redes sociais consolidadas na relação com as mídias. Ou seja, por meio de diversas chaves epistemológicas, vários pesquisadores contribuem para a consolidação das bases para uma metodologia da pesquisa em comunicação, por um viés compreensivo, dialógico, aberto às diferentes interpretações dos processos midiáticos.

Assistindo ao Programa do Jô, algumas questões se apresentam nos instigando a refletir sobre a significação das entrevistas, discussões, debates sobre os assuntos polêmicos, como a crise política nacional e o que se convencionou chamar de “CPI eletrônica”. Quais as conseqüências do fato de o Programa do Jô inserir em sua agenda a crítica das imagens e discursos que compõem a programação dos canais institucionais da Câmara Federal e do Congresso Nacional? Qual o sentido de convocar mulheres jornalistas para debater as questões referentes à crise política brasileira instalada na gestão do Presidente Lula, a partir de 2005? Como poderíamos, nesse contexto híbrido, distinguir as modalidades de crítica, informação e entretenimento? E também, como poderíamos discernir, nesse contexto híbrido de diversão e informação, as formas de exclusão e de inclusão social por meio dos sistemas simbólicos?

6. A bolha midiática: a multiplicação do acontecimento político

O palco eletrônico do Programa do Jô já fora transformado em CPI eletrônica, durante o processo de cassação do Presidente Collor (em 1991) e quando eclodiu a crise política na gestão do Presidente Lula (em 2005), o programa retomou a estratégia de entrevistar os políticos, mas dessa vez fez diferente: arregimentou um time de mulheres expertises no campo do jornalismo e análise política, e assim definiu um novo matiz de informação e entretenimento.

A gente viu, pelos jornais, quais eram as mulheres top de linha no assunto [crise]. Algumas que chamamos, não toparam. Depois, fizemos um esquema de rodízio para não jogar com um time só e respeitar os compromissos de cada uma. Tinha que haver uma certa química para ver que time combinava mais. Hoje, são sete mulheres [4]. Essa mesa nasceu da intuição. Foi idéia da Anne Porlan e do Hilton Marques. Em análise política, geralmente, o homem fica formal e excessivamente sério. Já a mulher se solta e deixa o clima mais ameno. Existem coisas que na boca de um homem soariam como uma barbaridade (Jô Soares, 2006).

Delimitamos um olhar circunscrevendo os 403 dias de escândalo do mensalão. Isto é, desde o dia 14.05.2005, quando um funcionário dos Correios apareceu no Jornal Nacional embolsando uma propina de 3000 reais até o dia da divulgação dos resultados da CPI do Mensalão.

A revista Veja chega às bancas de jornal. Traz a reportagem “O homem-chave do PTB”. Transcreve trechos de uma fita de 114 minutos de duração, filmada e gravada por dois homens. O interlocutor deles, Maurício Marinho, chefe do Departamento de Contratação e Administração de materiais da ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos), não sabe que uma câmara oculta registrava todas as suas palavras (Cf. PATARRA, 2005).

A grande imprensa, os telejornais, os programas de rádio, os sites e blogs da internet redimensionaram o acontecimento em escala global. A imagem da mão do funcionário dos Correios, embolsando uma propina de três mil reais, ficou no imaginário popular como uma encarnação midiática do próprio ato de corrupção política, em seguida, este funcionário veio a denunciar o deputado Roberto Jefferson como responsável pelo esquema de propina nos Correios.

No segundo ato, o deputado-cantor Roberto Jefferson (PP-RJ), insatisfeito pelo não recebimento de sua parte do dinheiro, revelou à imprensa a existência de um esquema de propina, em que os parlamentares teriam sido pagos para votar favoravelmente as propostas do governo.

Entrevista-bomba de Roberto Jefferson. O deputado denuncia para a Folha de S.Paulo, pela primeira vez, a história do mensalão. O Brasil não será mais o mesmo. “PT dava mesada de R$ 30 mil a parlamentares”, diz Jefferson, é a manchete de primeira página. A entrevista, concedida à jornalista Renata Lo Prete, põe Brasília em polvorosa (Cf. PATARRA, 2005).

A partir daí, durante todos os dias passamos a assistir diariamente na televisão a exibição de uma grande “novela” com episódios absurdos, surpreendentes, estarrecedores, que foram revelando as falcatruas do mundo da política. Tudo isso foi tematizado nas mesas redondas, do programa de Jô Soares, formada pelas “Meninas do Jô”, com ampla repercussão nacional.

Como começou a crise? Qual a transgressão primordial que consegue manter escandalizada uma nação inteira há quase cinco meses? Foram os três mil reais embolsados por Maurício Marinho, ex-diretor dos Correios, ou as licitações fraudulentas, as comissões abiscoitadas pelos aliados do governo, o mensalão, o valerioduto, o delúbioduto, as cuecas dolarizadas e o mensalinho? A perversão primal radiografada no vídeo da propina exibido em maio tem nome e sobrenome: degradação partidária. Antes mesmo de constituídas as CPIs, à medida que cascateavam as revelações, consolidou-se uma certeza federal – a depravação começa e acaba nos estatutos partidários e eleitorais. O arremedo de democracia representativa que rege o país é o responsável pelo deprimente espetáculo que transformou a política neste show de imoralidade (Cf. DINES, 2005).

7. As “Meninas do Jô”: riso, descontração e competência comunicativa

Você e as Meninas do Jô representam um momento de autêntica tribuna livre neste país, uma das raras tribunas fazendo uma crítica pertinente, sem sectarismo, da maior vergonha política que eu já conheci como homem brasileiro, que foi a história do mensalão, do dinheiro na cueca e deste projeto de poder e autoritarismo que tentou e tenta se instalar neste país (Cf. VEREZA, 2006).

Os episódios da crise política configuram uma história desgraçada (uma história sem graça), sem glamour e sem dignidade. Descrevem uma traição: o PT fora historicamente o sonho de realização dos trabalhadores, dos pobres, dos excluídos, mas o partido caiu na lama. O envolvimento do poderoso ministro José Dirceu, de José Genoíno, um militante histórico do PT, do Ministro Palocci, do tesoureiro do partido Delúbio Soares, dos publicitários Marcos Valério e Duda Mendonça, do Presidente da Câmara dos Deputados, entre muitos outros, acusados de participar da trama política conhecida como “escândalo do mensalão” foi um duro golpe naqueles que apostaram as suas fichas num futuro melhor quando um partido popular ascendeu ao poder.

Tráfico de influência, desvio de verbas, delação premiada, suborno, renúncia do mandato, pancadaria, olho roxo, dólares na cueca e dança da pizza são incongruências presentes na configuração política do país. Tudo isso foi um acontecimento trágico e se tornou tragicômico quando tematizado no universo debochado do Programa do Jô. Os telespectadores-eleitores puderam rir dos corruptos flagrados pelas câmeras de TV.

O riso e o siso das meninas do Jô revelaram uma dimensão da trama política, até então pouco compreensível para a grande massa de telespectadores. E, se não podemos dizer que esgotaram uma interpretação do acontecimento, o ato de rir das notícias se mostrou importante porque contribuiu para desmontar as “certezas”, a arrogância e vontade de verdade tanto das mídias quanto dos políticos; relembramos que as mesas redondas compostas pelas “meninas do Jô” se tornaram possíveis também pelas informações advindas dos diversos dispositivos midiáticos.

Convém perceber nesse contexto a distinção entre o acontecimento político “real” e a sua multiplicação pelas cadeias de informação, constituindo uma espécie de bolha midiática. Desde as mídias impressas, incluindo os grandes jornais, como a Folha de S.Paulo, o Estadão, o JB, O Globo, as revistas de grande tiragem (Veja, Época, Isto é, Isto É Dinheiro), passando pelos programas de televisão como Roda Viva (TV Cultura), Opinião Nacional (TV Cultura), Observatório da Imprensa, até a hipermídia, incluindo os blogs de jornalistas, como Ricardo Noblat e Luis Nassif, os comentários de Arnaldo Jabor (no Jornal da Globo) e o sarcasmo de Diogo Mainardi (Veja), as informações midiáticas interpretadas com humor pelas Meninas do Jô concederam uma certa transparência às verdades e mentiras do acontecimento político.

Fora da televisão, podemos reencontrar o Programa do Jô, no website da Rede Globo, que tem disponibilizado, em vídeo, alguns programas referentes ao período da crise política, podendo ser capturados pelos internautas, pesquisadores, interessados no tema, que doravante têm em mãos novos dados empíricos que podem otimizar os seus recursos investigativos.

De maneira similar, ainda no contexto da hipermídia, podemos “encontrar” fragmentos do Programa do Jô, através da experiência inovadora e anárquico-minimalista do You Tube, um dispositivo telemático que permite o acesso livre dos usuários e pesquisadores às imagens, podendo também registrar os dados, reeditá-los e partilhá-los conforme as nossas intenções lúdicas, cognitivas, políticas.

Quando assistimos na Rede Globo a um quadro como as Meninas do Jô, temos um exercício da razão crítica que se apresenta pela via de uma razão lúdica, gerando uma razão comunicativa. As meninas... agilizam uma competência argumentativa e inteligente, sabendo dialogar com a “geração hipermídia” (ligada no computador). A sua eficácia principal consiste em transpor as fronteiras entre o chic e o brega, o fashion e o demodê, o trash e o light, o lixo e o luxo: este é um exemplo do que poderíamos entender em termos de novo “espaço público”, na sociedade do pós-espetáculo (Cf. NOVAES, 2005), no contexto das culturas híbridas latino-americanas, antenadas, midiatizadas.

As Meninas do Jô aliam competência, humor, vigilância e entretenimento, transformando “o circo eletrônico” da televisão em canal eficiente de debate, informação e conhecimento; elas conseguiram transformar a diversão midiática num vetor de inteligência e sensibilidade.

8. Para concluir

Em linhas gerais fica difícil concluir uma apreciação sobre a participação das Meninas do Jô, no Programa do Jô Soares, discutindo a crise política do Brasil, a corrupção, o escândalo dos mensalões e a(s) CPI(s), posto que essa parece ser uma história sem fim; talvez possamos aqui fazer uma pausa até o próximo escândalo.

Entre “a sociedade do espetáculo”, como designa Debord (1997) e “muito além do espetáculo”, como grifa provocantemente Novaes (2005), novos acontecimentos e simulações sociais e políticas vão se inscrevendo na órbita dos espaços (hiper)midiáticos, desafiando as competências comunicativas e instigando a imaginação dos eleitores-telespectadores-usuários.

Em meio ao circo eletrônico do Programa do Jô, assistimos cenas memoráveis em que as “meninas do Jô”, trouxeram vida inteligente ao mundo do entretenimento televisivo. Algumas foram mais objetivas, acadêmicas, sistemáticas, outras mais criteriosas, efusivas, minuciosas. Lúcidas, sensuais, pragmáticas, elas deram o seu veredicto: para elas, a crise política teve resultados positivos, já que caíram ministros poderosos, assim como caíram as máscaras de políticos supostamente incorruptíveis, e principalmente, porque os meios de comunicação conseguiram abrir as brechas num sistema político ainda pouco aberto ao diálogo democrático.

Entre a espetacularização da notícia e a perspicácia de profissionais que entenderam estar fazendo parte de um show midiático, as “meninas do Jô” conseguiram também driblar - algumas vezes - um certo “monopólio da fala” do apresentador, hábil na condução do debate televisivo e deixaram no ar a dica de que é possível no contexto midiático a disseminação da informação de qualidade, mesmo no contexto de um programa voltado para o entretenimento.

NOTAS

[1] As chamadas “Meninas do Jô” consistem nas integrantes de um quadro inserido no Programa do Jô, sob a forma de mesa redonda, em que se revezaram as jornalistas e ativistas políticas Cristiana Lobo (Globo News), Tereza Cruvinel (O Globo), Bárbara Gancia (Folha de S.Paulo), Maria Lídia (TV Gazeta / Rádio Bandeirantes), Ana Maria Tahan (JB), Florência Costa (Isto É), Lillian Witte Fibe (UOL news), Maria Aparecida de Aquino (USP), Zileide Silva (Globo), Sonia Racy (O Estado de S.Paulo); o quadro foi ao ar pela primeira vez em 28 jun. 2005 e pela última vez em 31 out. 2006.

[2] PI ou CPMI: Comissão Parlamentar (Mista) de Inquérito. CPI dos Correios, CPI dos Mensalões, CPI das Sanguessungas.

[3] Expressão do autor.

[4] Zileide Silva, Lilliam Witte Fibe, Ana Maria Tahan, Sonia Racy, Cristiana Lôbo, Lucia Hippólito, Maria Aparecida de Aquino.

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*Cláudio Cardoso de Paiva é doutor em ciências sociais pela Université René Descartes, Paris V, Sorbonne, e professor do Departamento de Comunicação da UFPB.


Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]