Nº 8 - Julho 2007 Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO V
 
 

Expediente

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 

 

 


 

 

 

 

 

 


MONOGRAFIAS
   

Quando o crime é notícia:
O papel da imprensa na construção do espaço urbano do século XIX

Por Sônia Maria de Meneses Silva*

Resumo
Este artigo pretende discutir o papel da imprensa no século XIX na província cearense, refletindo como ela se apresentará como defensora e ícone da modernidade e da civilização no espaço de vilas e cidades. Nossa reflexão recairá sobre as notícias acerca de crimes, procurando compreender como a imprensa elaborará representações específicas sobre estas práticas vislumbrando em que medida ela desencadeará novas sociabilidades e condutas nesses espaços.

Palavras-chave
[Imprensa / Crime / Cidade]


Em 13 de agosto de 1876, o jornal A Constituição apresentava aos seus leitores uma matéria intitulada "A Publicidade do Crime". Nela, o jornal procurava demonstrar a importância que a impressa cearense assumia na divulgação das ocorrências criminais, tornando-as objeto de discussão pública, principalmente, a partir da década de 1850, desde quando o jornal supõe existir, entre os cearenses, "tanta facilidade de comunicação, tanta instrução, tanto melhoramento moral e material", que seria imprescindível a existência de um mecanismo que se prestasse a discutir a questão criminal.

O jornal avalia que essa publicidade do crime funcionava como um aliado poderoso contra a impunidade, já que antes "nem a terça parte dos crimes chegava ao conhecimento das autoridades superiores e do público". Naquele momento, contudo, com a atuação da imprensa, o jornal assegurava:

"Dê-se o mais insignificante crime na província, se por ventura a polícia não o denuncia, imediatamente fá-lo a imprensa com toda a publicidade, por forma que se pode assegurar que nenhum delito fica por muito tempo desconhecido do público". [1]

Essa matéria demonstra-nos, muito bem, como a imprensa atuará na construção de uma nova perspectiva moral sobre o crime. Uma questão central apresentada pelo jornal é que era fundamental trazer ao conhecimento do público os crimes que aconteciam na província com um claro objetivo de inibição das ocorrências criminais. Ao estabelecer uma execração pública do crime, o jornal contribuía para que se desenvolvesse entre a população um sentimento de indignação sobre as condutas criminais.

A reflexão sobre a atuação dos meios de comunicação nas sociedades contemporâneas constitui um campo bastante novo de exploração para a história, uma vez que quase sempre as mais diversas formas de mídia foram tomadas pelos historiadores enquanto fonte para a analise de outros objetos de temáticas. Contudo, os meios de comunicação, bem como suas formas de estruturação nos espaços urbanos contemporâneos representam um elemento fundamental na compreensão destas sociedades, isso porque tais mecanismos irão servir poderosamente para a transformação de hábitos e condutas, e para a elaboração de novas formas de sociabilidade.

A importância assumida por tais mecanismos nestas sociedades parece ser um dos elementos centrais na compreensão de como progressivamente os bens simbólicos passaram a ser difundidos e distribuídos, modificando drasticamente as relações sociais na construção do próprio paradigma da modernidade.

Contudo, dificilmente poderemos compreender esse movimento sem colocá-lo no quadro de sua própria construção histórica. Apesar de as manifestações midiáticas se apresentarem como próprias de nosso tempo, no qual se manifestam como uma atividade dotada de um irremediável presentismo, o desenvolvimento das várias formas de mídia se estruturara ao lado de uma diversificada rede de novas necessidades que envolvia essas sociedades. A implantação de formas de comunicação e o aprimoramento dos meios de transporte e locomoção ajudaram a elaborar as configurações das relações sociais modernas.

É importante destacar que estes elementos modificaram não somente comportamentos sociais particulares, a partir da coletivização de informações. As próprias noções de espaço e tempo foram alteradas concomitantemente à entrada da mídia no espaço complexo das relações sociais, culturais, políticas e econômicas.

Acontecimentos que antes eram vislumbrados por um número restrito de pessoas passam a ser do conhecimento de grupos cada vez maiores e mais distantes. Nesse contexto, a própria noção de acontecimento foi alterada. Houve transformações nos recursos de comunicação, que envolvem desde mudanças técnicas até aquelas de caráter educacionais, como a maior difusão de uma cultura letrada, mesmo entre aqueles não-letrados, uma vez que a divulgação de acontecimentos influenciava no cotidiano destes.

Conseqüentemente, emerge um discurso sobre a percepção de uma opinião pública que as classes dominantes passam, cada vez mais, a querer informar e, principalmente, formar.

"Nas nossas sociedades contemporâneas é por intermédio deles (mass media) e somente por eles que o acontecimento marca sua presença e não nos pode evitar. (…) Imprensa, rádio, imagens não agem apenas como meios através dos quais os acontecimentos seriam relativamente independentes, mas como a própria condição de sua existência. A publicidade dá forma à sua produção". [2]

Desde o século XV, ou mesmo desde um pouco antes, emergiram formas diversas de comunicação que serviam para difundir e divulgar idéias sobre os mais variados temas. Inicialmente, tais recursos foram bastante utilizados na difusão de debates religiosos travados, ainda no século XV e XVI, entre católicos e protestantes. A distribuição de panfletos informativos servia como poderoso meio para o embate de idéias. Entretanto, é somente no século XVIII que se desenvolve com mais clareza o conceito de uma opinião pública.

"O conceito de ´opinião pública´ apareceu no final do século XVIII, e a preocupação com as ´massas´ tornou-se visível a partir do século XIX, na época em que os jornais, como diz Benedict Anderson (…), ajudaram a moldar uma consciência nacional, levando as pessoas a ficarem atentas aos outros leitores". [3]

Particularmente, deter-nos-emos em discutir aqui a atuação da imprensa nesse processo. Para isso, iremos tomar como ponto de partida a abordagem da imprensa sobre o crime e a violência no século XIX. Esse período é bastante significativo dentro de nossa reflexão, pois, nesse momento, não só na província cearense, mas em todo o Brasil, a imprensa assumiu um papel bastante relevante na vida das pequenas vilas e cidades em formação. Este instrumento é representativo do ideal de modernidade e civilização pretendido pelos grupos dominantes locais.

Ao lado de uma grande variedade de signos e referenciais que as cidades construíam para se apresentar como o espaço do progresso, da ordenação e do disciplinamento, através das páginas impressas, sua voz era organizada e divulgada. Nas páginas dos jornais, cotidianamente, desfilam os ideais de uma urbanidade que se construía de forma progressiva, tanto a partir da edificação de prédios, como a partir de palavras. A divulgação de eventos particulares e a transformação diária de tais eventos em acontecimentos coletivos marcam uma ampliação espetacular dos bens simbólicos.

Apesar de muitos autores se referirem a esse momento como o de ocorrência de um processo de massificação destes recursos, é importante chamar atenção para a idéia de massificação da qual nos utilizamos aqui, que vai além da abordagem limitada que enganosamente pode sugerir que estes bens atingiam uniformemente a todos os grupos e classe sociais nesses espaços. Na verdade, esse é o grande desafio que se coloca hoje a qualquer análise que se pretende realizar sobre os meios de comunicação: a observação das várias formas de apropriação e adequação dessas informações em espaços complexos e variados que se apresentavam.

O jornal aparecia como uma prática social representativa do ideal de sociedade moderna elaborado no século XIX. Era a possibilidade de que os interesses das classes urbanas dominantes se disseminassem elaborando modelos de conduta no cotidiano dos habitantes desses espaços. Mesmo em locais ainda não marcados por signos de urbanidade tão evidentes, a imprensa marcava um dos primeiros elementos dos ideais de progresso e de civilidade. Além de construir referenciais de conduta e comportamento, a imprensa se autopromovia como a própria porta-voz dessa sociedade: "A imprensa (…) é a ultima faísca da civilização que se extingue luctando com as trevas da barbárie". [4]

No século XIX, os jornais assumem um espaço bastante importante na província cearense. Somente em Fortaleza, dezenas de jornais circularam tratando sobre os mais variados assuntos e, embora exercessem uma imprensa fortemente marcada pelas facções políticas, traziam à tona uma série de acontecimentos do dia-a-dia da cidade.

As primeiras manifestações jornalísticas cearenses ocorrem na década de 1820 com a publicação da Gazeta do Ceará, um jornal oficial que servia para prestação de contas do governo. Contudo, é bem provável que, mesmo antes disso, folhetos ou pequenos informativos tenham sido editados e tido uma circulação razoável na província, pois há referências em jornais posteriores a coletâneas de leis e ofícios publicados nesses informativos.

No entanto, é somente na segunda metade do século XIX que a imprensa cearense consegue se estabelecer efetivamente com a atuação de dezenas de jornais literários e com a força de jornais de características políticas como Pedro II, do partido conservador, O Cearense, do partido liberal, e A Constituição.

Segundo o historiador Geraldo Nobre (1974), no final da primeira metade do século XIX, funcionavam na província cearense no mínimo cinco tipografias, das quais saíam desde folhetos oficiais do governo até jornais artístico-literários. As primeiras tipografias foram montadas com a participação de tipógrafos de outras províncias que eram contratados para realizar esta atividade no Ceará. Alguns deles desenvolviam outras atividades, principalmente as de livreiro e colecionador de documentos, o que nos demonstra que a organização jornalística proporcionou o estabelecimento de outras atividades de caráter intelectual.

A produção jornalística cearense do século XIX servia como meio de divulgação de idéias quase sempre das classes dominantes e constantemente propunha debates públicos acerca de questões político-partidárias. No entanto, um olhar mais profundo sobre essa produção jornalística descortina um mundo complexo no qual se torna evidente a construção de uma moralidade própria do espaço urbano. Mais do que uma rivalidade pontual entre grupos políticos, são colocados em cena elementos de uma sociedade marcada por uma rede de conflitos, resistências e concessões manifestados como mecanismos de organização de um momento bastante delicado.

O poder de alcance desse veículo era muito maior do que o dos discursos elaborados nos centros intelectuais. Apesar de tais discursos forneceram a base de constituição para a elaboração das idéias divulgadas pelos jornais, o debate desencadeado nas páginas destes se dava em um ambiente muito mais abrangente, penetrava nos casarões e casas de fazenda espalhadas pela província, ampliando significativamente o poder e a influência das notícias neles impressas.

Além disso, o jornal proporcionava um espaço para os leitores apresentarem suas opiniões. Tal espaço, apesar de controlado e determinado pelos interesses que o dominavam, constitui a oportunidade para vislumbrarmos os usos diferenciados que os leitores faziam sobre as idéias que lhes eram apresentadas.

Particularmente, um objeto nos interessa dentre os vários temas abordados nesses impressos: a apresentação do crime, bem como a construção de representações específicas ensejadas sobre esse assunto. Pelo menos dois elementos são relevantes nessa escolha: o primeiro diz respeito à importância que essa questão assume entre as matérias abordadas nesses jornais. Podemos afirmar que depois da política partidária, esse é um dos assuntos mais recorrentes. É claro que isso não acontece por acaso e é o que pretendemos abordar posteriormente. O segundo elemento refere-se à própria importância do crime, ou ao que o controle dele representa para a sociedade moderna.

Atualmente, tornou-se lugar comum nos depararmos com crônicas diárias acerca de ocorrências criminais, seja na mídia impressa, seja na televisiva.

Tal percepção nos leva a refletir sobre como, historicamente, o crime passou a ser objeto de interesse nos meios de comunicação e, sobretudo, como esse interesse vai servir para construir olhares e posturas muito específicas acerca das condutas violentas desencadeadas no espaço urbano. Interessa-nos compreender em que medida o jornal é responsável por ajudar a construir um discurso moralizador ao mesmo tempo em que inaugura novas práticas criminais a partir das necessidades de uma sociedade de consumo que começa a despontar timidamente nesse período.

Sobre isso, é importante observarmos que, ao longo da segunda metade do século XIX, parece haver um aumento significativo no número de leitores dos jornais que circulavam pela província. É possível inferirmos tal fato a partir dos anúncios veiculados nos jornais, que passam a ter uma ou mais páginas disponíveis para esse fim. É também possível percebermos a partir do aumento desses anúncios a diversificação da economia local.

Inicialmente, os anúncios mais comuns diziam respeito à fuga de escravos, à venda de propriedades e à oferta de emprego para aprendizes de tipógrafo. Posteriormente, avolumaram-se anúncios de lojas de roupa, livrarias, retratistas, perfumarias, farmácias, até mesmo de prestação de serviços de advogados, enfim, de diversos novos estabelecimentos comerciais que ofereciam seus produtos e serviços ao público da província.

Isso nos leva a crer que o aumento do número de leitores ocorria no mesmo passo das novas necessidades desencadeadas pela própria publicidade jornalística.

Somente na década de 1860, segundo Geraldo Nobre, foram registradas em Fortaleza quase 120 publicações entre jornais literários, noticiosos e científicos. Geraldo Nobre relata, inclusive, que houve a edição de uma revista jurídica quinzenal para o acompanhamento de processos em andamento em Fortaleza e na província em geral.

A publicidade do crime será uma das principais invenções da sociedade moderna, pois será através dela que tais ocorrências deixarão de ser vislumbradas como eventos privados para se tornarem eventos públicos, e a própria imprensa assume o papel de arauto da sociedade. Vejamos um exemplo nessa matéria apresentada pelo jornal A Constituição:

"O Infeliz Joaquim fora cruelmente surrado com espadeiradas e palmatoadas, arroches na cabeça, apertos de troquez e compasso nas partes genitais, e debaixo desses desumanos martírios conduzidos em pleno dia acompanhado daquelas autoridades (que pareciam ter perdido a cabeça) e seguido do demais povo pela rua que ficou sendo chamada a rua da amargura! (…) A infeliz Francisca de tal fora cruelmente castigada com palmatoadas e o delegado Manoel Joaquim Cavalcante enfurecendo-se a tal ponto, depois de com suas próprias mãos em presença do juiz de direito Carvalho, dar-lhes muitas palmatoadas arremessava-a no chão. Debaixo de todo este cortejo infernal foram conduzidos estas duas vítimas pela rua da amargura e postos na cadeia onde ainda hoje jazem debaixo de algemas". [5]

Relatos como esse eram bastante comuns nas páginas dos principais jornais da província cearense. O jornal faz questão de apresentar aos seus leitores uma violência sem máscaras. Os textos nos revelam um universo tenso, no qual as práticas violentas parecem emergir como elementos muito presentes no dia-a-dia e nas relações sociais dos habitantes da cidade. A tortura imposta aos considerados criminosos em plena rua da cidade é observada por toda a população que, perplexa, contém-se a acompanhar "o cortejo infernal" até a cadeia da cidade.

A abordagem sobre o crime sempre suscitou interesse nos meios de comunicação, fosse para apresentá-lo de forma jocosa, fosse de forma sensacionalista. Este tema era bastante recorrente em textos populares, histórias e canções que circulavam até os mais distantes pontos da província. No entanto, esta não era uma característica somente do interior cearense do século XIX: na Europa do século XVI, estas narrativas faziam sucesso entre leitores:

"Os panfletos e as páginas duplas que contavam histórias de criminosos (novo gênero do século XVI que parece ter sido feito para um novo grupo de leitores) eram apresentados de forma semelhante, enfatizando a punição e, se possível, o 'enorme arrependimento' do crimino. No entanto, esse moralismo foi abafado pela retórica do sensacionalismo, com títulos, como dos de hoje, referindo-se a eventos 'terríveis', 'maravilhosos', ou 'medonhos', atrocidades 'sangrentas' assassinatos estranhos e inumanos, e assim por diante". [6]

A princípio, o jornal era lido por uma parcela de pessoas um tanto restrita, uma vez que a população era, em sua maioria, analfabeta. Contudo, o poder de alcance dos jornais era bastante relevante, porque quase sempre eram motivo de debate pelas ruas da cidade em virtude dos artigos provocativos e das denúncias neles publicadas, bem como da troca de acusações que constantemente desencadeavam entre si. Muitas vezes eram lidos em voz alta em praças das cidades ou mesmo em casas, como atestam referências nos próprios jornais e na literatura da época.

Isso tudo servia para torná-los cada vez mais parte integrante do cotidiano da cidade. Este elemento vem nos demonstrar como os meios de comunicação passam a fazer parte do cotidiano dessas cidades, compondo uma nova rotina na qual se produziam diariamente fatos mais do que meramente informativos que passavam mensagens por vezes moralistas, políticas, dentre outras.

Os discursos construídos nas páginas dos jornais serviam como poderosas práticas de poder que incutiam na população valores através da divulgação de uma nova legalidade. A lei deveria estar acima de tudo, porque somente ela asseguraria a ordem, como nos declara esse artigo do jornal O Cearense:

"É sempre com pesar que vemos a transgressão de um preceito legal, seja por este ou aquele indivíduo, por isso chamamos atenção das duas primeiras autoridades da província para providenciarem de um modo eficaz, no sentido de que a lei seja observada". [7]

Os jornais procuravam se apresentar como os defensores de uma ordem que ia muito além daquela estabelecida moralmente sobre as condutas da população, colocavam-se como a própria palavra da verdade que visava a estabelecer uma realidade inquestionável:

"A humanidade caminha de progresso em progresso; a civilização, tomando-a pela mão, guia seus passos através das trevas (…) caminha agora como para uma nova redenção (…) encena-lhe o futuro desejado que a aguarda. Sinais precursores de um grande e próximo futuro depontão por todo o urbe civilizado (…)". [8]

O "grande e próximo futuro" parece se apresentar como a própria construção de uma organização social respaldada pela bandeira da civilização. A ênfase no refinamento dos hábitos e em novos códigos de conduta era acompanhada por uma forte campanha que visava ao estabelecimento de instituições legais e normativas eficientes, à construção de cadeias e penitenciárias e à elaboração de um código penal rígido, que pudesse estabelecer novos parâmetros de conduta moral para as pequenas cidades.

O papel da imprensa era, acima de tudo, "pugnar para que a segurança individual e de propriedade fosse por toda a parte mantida pelos meios que a lei consagra". [9] Deveria estar sempre vigilante e atenta à defesa da liberdade individual, o que, segundo O Cearense, era um "nobre empenho" que deveria ser colocado acima de todas as "sugestões políticas" e do espírito partidário. [10]

Ao se apresentar como divulgadora de opinião sobre os mais diversos assuntos, a imprensa local fazia emergir, na população que tinha acesso aos jornais, uma rede de ligação entre as relações sociais e as condutas preconizadas para aquele espaço social. Entretanto, mais do que isso, os jornais pretendiam construir uma rejeição e uma repulsa cada vez maiores sobre toda e qualquer atitude de tensão ou conflito que envolvia os habitantes da cidade e que não estivesse amparada pela lei, fazendo com que "os sentimentos exaltados" encontrassem "corretivo na energia e vigilância da autoridade".

Somente se a "população estivesse habituada a ver impressa a lei", a estatística criminal deixaria de tomar "proporções espantosas nos representando fora do país como feras indomáveis". [11]

O jornal citado acima é muito claro quando fala de sentimentos exaltados.

Isso nos demonstra que a mudança de condutas passava por uma transformação nas necessidades e sentimentos da população; exigia-lhe a subordinação a códigos sociais e institucionais que visavam a modificá-la em suas atitudes mais corriqueiras, desde seu modo de vestir até a contenção de seus sentimentos mais violentos.

O discurso civilizador apresentado objetivava uma mudança progressiva em direção ao estabelecimento de comportamentos que somente pode ser compreendida como parte do próprio desenvolvimento histórico e social daquela sociedade, de um momento historicamente construído, cuja característica principal foi a busca de um modelo de sociedade amparado pelo ideal de modernidade. Além do caráter econômico, esse processo coloca em evidência uma competição entre novos e antigos símbolos culturais.

Ao classificarem de bárbaros ou civilizados os comportamentos na cidade, os jornais demonstravam a tentativa de um caráter racionalizado no estabelecimento de novas condutas. Para que se afirmassem como modelos civilizados os hábitos propostos pelas classes dominantes, era necessário se construir também o padrão de "incivilizado" e, para isso, nada se apresentaria como melhor exemplo do que a caracterização dos criminosos através das páginas dos jornais e a associação destes aos conflitos e embates físicos desencadeados no espaço das cidades. O monopólio racionalizado sobre as ações "incivilizadas" era um ponto comum de todas as partes do império. Não é à toa que ocorrem a formação da guarda nacional e o aumento do aparato policial em todo o país.

No entanto, como o discurso jornalístico agirá na abordagem do crime? Uma possível resposta para essa pergunta é: pela elaboração de um discurso sobre tais ocorrências concomitantemente à sua divulgação. Muitas delas eram narradas com exagerado realismo para tentativa de levar aos leitores a violência do exato momento do acontecimento, fazendo-os espectadores de uma cena repulsiva e bárbara que deveria chocar e indignar a todos que dela tomassem conhecimento. É a própria metamorfose de um evento particular em um acontecimento social que a notícia enseja. Tomemos como exemplo o relato de uma tentativa de assassinato ocorrida em uma das ruas centrais de Fortaleza, na qual foi vítima o Padre Francisco Cerbelon Verdeixa: [12]

"A noite estava clara como o luar; quando um cabra, ou um negro subindo a rua aproximou-se a calçada e com uma audácia incrível desfecha com toda a força um tijolo no rosto do Padre Verdeixa. (…) O tijolo esmigalhou-se e abriu uma ferida profunda com mais de uma polegada de extensão que ofendeu até o osso". [13]

A atmosfera de tensão e suspense impressa no texto sem dúvida queria causar nos seus leitores um profundo sentimento de repulsa à atitude narrada. O detalhe do ferimento exposto e a violência do ato são propositadamente apresentados com o intuito de indignar os leitores e alertá-los para os perigos que podem representar atos como esse para a sociedade, pois:

"Quando o assassinato e o roubo deixam de ser crimes numa sociedade, ou deixam de ser punidos (…) por certo que a justiça tem desaparecido desta sociedade e esta apenas existe como uma recordação". [14]

O jornal procura fazer deste atentado um fato público que deverá ser conhecido por todos, e isso acentua cada vez mais o papel da impressa como divulgadora de uma postura moral sobre a violência. Mesmo se não tivesse sido publicado, é possível que muitos viessem a saber do acontecimento, porque Fortaleza era uma cidade de proporção territorial ainda pequena. Sem a interferência da imprensa, entretanto, dificilmente este fato seria visto a partir do caráter moral que o discurso do jornal traz à tona.

O importante a ser observado sobre o papel que a impressa exerce nessas notícias é que ela não somente "apresenta" acontecimentos, mas, sobretudo, os elabora a partir de um discurso moralizador, o que será decisivo para influenciar as relações sociais na construção dos signos de urbanidade na província cearense. Mais do que a exposição de eventos, constrói-se um dado conhecimento sobre a ocorrência, mas que é apresentado ou representado para o leitor sob a insígnia de fato jornalístico objetivo. Tal recurso é característico do próprio pensamento epistemológico moderno, no qual defende-se a objetividade dos fatos independente do sujeito:

"A noção de 'fato' tem sido um dos pilares mais sólidos onde se assenta toda a discussão do fazer jornalístico. Sobre a hipótese de que há um dado objeto, fatos reais a se conhecer e de que existem modos rigorosos de apreensão destes fatos edifica-se e sustenta-se, por exemplo, o conceito de objetividade jornalística. De certo modo, o jornalismo pode ser visto como uma produção de um dado conhecimento, objetivo ou não, sobre fatos reais do mundo". [15]

A imprensa jornalística foi a primeira mídia a informar diretamente sobre a organização das cidades modernas, ajudando a formar esfera pública e, como afirma Cancline, "embora a maioria dos jornais tenha uma relação preferencial com a cidade em que são produzidos, o conjunto de suas informações mostra uma articulação complexa entre o local, o nacional e o internacional" [16] contribuindo para criação de imagens que misturam espaços, eventos, temporalidade em uma narrativa dinâmica centrada no evento facilmente assimilado por aqueles que os lêem, "prolongando estereótipos formados historicamente.

Os relatos diários mudam, mas permanece uma estrutura discursiva" (Id. 45). Os jornais ensejam uma narrativa própria para o mundo urbano contemporâneo, reconstruindo-o a partir da definição de novos signos e significados. A imprensa desenha com todas as cores acontecimentos, sensações e temporalidades.

Nesse sentido, ao falarem sobre o crime, tais jornais pretendiam a construção de um 'consensus' sobre o sentido do mundo social, além disso, procuravam estabelecer também a reprodução de uma dada ordem orientada a partir de interesses sociais. Segundo Bourdieu, as classes sociais estão constantemente envolvidas em lutas simbólicas, em lutas concorrenciais, que variam de acordo com as disposições sociais dos indivíduos dentro dos diversos campos sociais; em uma constante disputa pelo "monopólio da violência simbólica legítima".

A compreensão sobre tais elementos nos direcionou para dois caminhos distintos em nossa reflexão, porém interligados: o primeiro deles foi a tentativa de desvendarmos as representações e os discursos construídos pela imprensa com fins de disseminar práticas e comportamentos sociais específicos; e o segundo de vislumbrarmos a recepção desses elementos pelas pessoas que tinham acesso aos jornais.

Nosso artigo enfatizou principalmente a formas da construção desses discursos, contudo, ao fazermos isso, percebemos como o próprio jornal pode nos denunciar os as representações que uma sociedade constrói para si. Ao abordar crime e a criminalidade, em seus jornais, essa sociedade elaborava para si padrões de sociabilidade no mesmo sentido em que negava outros em um processo de construção e reconstrução cotidiana de signos e referenciais no qual a imprensa assumiu um papel central.

Notas

[1] A CONSTITUIÇÃO. "A Publicidade do Crime". 13ago1873. p. 02.

[2] NORA, P. "O Retorno do fato". In: NORA; LE GOFF. Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. p. 113.

[3] BURKE, P.; Briggs, A. Uma história social da mídia - de Gutenberg à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. p. 13.

[4] O CEARENSE. 01out1850, "Mais 4 assassinatos". p. 03.

[5] A CONSTITUIÇÃO. "Correspondência da Constituição". 08out1865. p. 04

[6] BURKE, P.; Briggs, A. Op. Cit. p. 75.

[7] O CEARENSE. 18jan1871. p. 04

[8] O CEARENSE. "A Queda de Rosas". 23abr1852. p. 02-03.

[9] O CEARENSE. Editorial. 05jun1857, p. 01.

[10] Idem.

[11] O CEARENSE. 14jul1874. p. 01.

[12] Padre Verdeixa foi um dos mais importantes editores da imprensa liberal cearense durante a segunda metade do século XIX, sendo o redator responsável pelo jornal O Juiz Do Povo, que se notabilizou pelo caráter provocativos de suas notícias.

[13] O CEARENSE. "Um attentado cobarde e infame". 15abr1851. p. 01.

[14] O CEARENSE. "Mais 4 assassinatos". 01out1850. p. 03.

[15] MASSAGI JÚNIOR. "Fato vs. Texto". Florianópolis, Anais do II Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho, 15-17abr2004. Disponível em: <http://www.jornalismo.ufsc.br/redealcar/cd/index.htm>. Acesso em: 28ago2004.

[16] CANCLINE, N. G. "Cidades e cidadãos imaginados pelos meios de comunicação". Campinas, Revista Opinião Pública, Vol. VIII, nº 1, 2002. p. 40-53.

[17] BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

Referências bibliográficas

BARBOSA, F. C. J. A Força do hábito: condutas transgressoras na Fortaleza remodelada 1900-1930. Dissertação de mestrado, Fortaleza: UFC, 1997.

BARTHES, R. A Aventura semiológica. Lisboa: Edições 70, 1987.

BRETAS, M. L. Ordem na cidade - o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro 1907 -1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

__________. O crime na historiografia brasileira - uma revisão na pesquisa recente. BIB, Rio de Janeiro, No 32, 1991, p. 46-61.

___________. "A polícia carioca no Império". Estudos Históricos, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, Vol. 12, nº 22, 1998. p. 219-234.

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989.

CAMINHA, A. A normalista. Fortaleza: Editora Verdes Mares, 1997.

__________ Tentação. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1979.

CARVALHO, J. M. A formação das almas - o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

__________. A construção da ordem. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Relume-Dumara, 1996. 2ª ed. Revisada.

CERTEAU, M. A Invenção do cotidiano - artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 1998. 3ª ed.

CHARTIER, R. A História cultural - entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. Coleção Memória e Sociedade.

__________. Práticas de leitura. Brasília: Estação Liberdade, 1996.

___________. A ordem dos livros, leitores, autores e bibliotecas nas Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora UNB, 1994.

ELIAS, N. O processo civilizador - uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. Vol. I.

__________. O processo civilizador - formação do estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. Vol. I.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986. 6ª ed.

_______________. Vigiar e punir - história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987. 5ª ed.

__________. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996. 3ª ed.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1978.

GIRÃO, R. Geografia estética de Fortaleza. Fortaleza: UFC, 1959.

LEMENHE, M. A. As razões de uma cidade. Fortaleza: Ed. Stilus Comunicação, 1991.

MARTINS, J. S. O cativeiro da terra. São Paulo: Hucitec, 1994. 6a ed.

MASSAGI JÚNIOR, M. "Fato vs. texto". II Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho, Florianópolis, 15-17abr2004.

PERROT, M. Os excluídos da história - operários, mulheres, prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. .

PONTES, S. R. Fortaleza Belle Époque - reformas urbanas e controle social - 1860-1930. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha/Multigraf Editora, 1993.

SANTOS, A. C. M. "Memória Cidadã: História e Patrimônio Cultural". Anais do Museu Histórico Nacional, Vol. 29, Rio de Janeiro, 1997.

_____________. A cidade do Rio de Janeiro: de laboratório da civilização a cidade símbolo da nacionalidade. Mímeo, S/d, S/r.

SEVCENKO, N. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983. 3ª ed.

SILVA, G. N. Introdução à história do jornalismo cearense. Fortaleza: Gráfica Editorial, 1974.

TEÓFILO, R. A fome. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1979.

__________. Violação. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1979.

__________. Varíola e vacinação no Ceará. Ed. Fac-similar da edição publicada em 1904. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997.

*Sônia Meneses é historiadora, mestre em História Social pela UFRJ, doutoranda em História pela UFF e professora de teoria da história na Universidade Regional do Cariri (URCA).

Voltar.


®Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]