Quando
o crime é notícia:
O papel da imprensa na construção
do espaço urbano do século
XIX
Por
Sônia Maria de Meneses Silva*
Resumo
Este
artigo pretende discutir o papel da imprensa
no século XIX na província
cearense, refletindo como ela se apresentará
como defensora e ícone da modernidade
e da civilização no espaço
de vilas e cidades. Nossa reflexão
recairá sobre as notícias
acerca de crimes, procurando compreender
como a imprensa elaborará representações
específicas sobre estas práticas
vislumbrando em que medida ela desencadeará
novas sociabilidades e condutas nesses espaços.
Palavras-chave
[Imprensa
/ Crime / Cidade]
Em
13 de agosto de 1876, o jornal A Constituição
apresentava aos seus leitores uma matéria
intitulada "A Publicidade do Crime".
Nela, o jornal procurava demonstrar a importância
que a impressa cearense assumia na divulgação
das ocorrências criminais, tornando-as
objeto de discussão pública,
principalmente, a partir da década
de 1850, desde quando o jornal supõe
existir, entre os cearenses, "tanta
facilidade de comunicação,
tanta instrução, tanto melhoramento
moral e material", que seria imprescindível
a existência de um mecanismo que se
prestasse a discutir a questão criminal.
O
jornal avalia que essa publicidade do crime
funcionava como um aliado poderoso contra
a impunidade, já que antes "nem
a terça parte dos crimes chegava
ao conhecimento das autoridades superiores
e do público". Naquele momento,
contudo, com a atuação da
imprensa, o jornal assegurava:
"Dê-se
o mais insignificante crime na província,
se por ventura a polícia não
o denuncia, imediatamente fá-lo a
imprensa com toda a publicidade, por forma
que se pode assegurar que nenhum delito
fica por muito tempo desconhecido do público".
[1]
Essa
matéria demonstra-nos, muito bem,
como a imprensa atuará na construção
de uma nova perspectiva moral sobre o crime.
Uma questão central apresentada pelo
jornal é que era fundamental trazer
ao conhecimento do público os crimes
que aconteciam na província com um
claro objetivo de inibição
das ocorrências criminais. Ao estabelecer
uma execração pública
do crime, o jornal contribuía para
que se desenvolvesse entre a população
um sentimento de indignação
sobre as condutas criminais.
A
reflexão sobre a atuação
dos meios de comunicação nas
sociedades contemporâneas constitui
um campo bastante novo de exploração
para a história, uma vez que quase
sempre as mais diversas formas de mídia
foram tomadas pelos historiadores enquanto
fonte para a analise de outros objetos de
temáticas. Contudo, os meios de comunicação,
bem como suas formas de estruturação
nos espaços urbanos contemporâneos
representam um elemento fundamental na compreensão
destas sociedades, isso porque tais mecanismos
irão servir poderosamente para a
transformação de hábitos
e condutas, e para a elaboração
de novas formas de sociabilidade.
A
importância assumida por tais mecanismos
nestas sociedades parece ser um dos elementos
centrais na compreensão de como progressivamente
os bens simbólicos passaram a ser
difundidos e distribuídos, modificando
drasticamente as relações
sociais na construção do próprio
paradigma da modernidade.
Contudo,
dificilmente poderemos compreender esse
movimento sem colocá-lo no quadro
de sua própria construção
histórica. Apesar de as manifestações
midiáticas se apresentarem como próprias
de nosso tempo, no qual se manifestam como
uma atividade dotada de um irremediável
presentismo, o desenvolvimento das várias
formas de mídia se estruturara ao
lado de uma diversificada rede de novas
necessidades que envolvia essas sociedades.
A implantação de formas de
comunicação e o aprimoramento
dos meios de transporte e locomoção
ajudaram a elaborar as configurações
das relações sociais modernas.
É
importante destacar que estes elementos
modificaram não somente comportamentos
sociais particulares, a partir da coletivização
de informações. As próprias
noções de espaço e
tempo foram alteradas concomitantemente
à entrada da mídia no espaço
complexo das relações sociais,
culturais, políticas e econômicas.
Acontecimentos
que antes eram vislumbrados por um número
restrito de pessoas passam a ser do conhecimento
de grupos cada vez maiores e mais distantes.
Nesse contexto, a própria noção
de acontecimento foi alterada. Houve transformações
nos recursos de comunicação,
que envolvem desde mudanças técnicas
até aquelas de caráter educacionais,
como a maior difusão de uma cultura
letrada, mesmo entre aqueles não-letrados,
uma vez que a divulgação de
acontecimentos influenciava no cotidiano
destes.
Conseqüentemente,
emerge um discurso sobre a percepção
de uma opinião pública que
as classes dominantes passam, cada vez mais,
a querer informar e, principalmente, formar.
"Nas
nossas sociedades contemporâneas é
por intermédio deles (mass media)
e somente por eles que o acontecimento marca
sua presença e não nos pode
evitar. (…) Imprensa, rádio, imagens
não agem apenas como meios através
dos quais os acontecimentos seriam relativamente
independentes, mas como a própria
condição de sua existência.
A publicidade dá forma à sua
produção". [2]
Desde
o século XV, ou mesmo desde um pouco
antes, emergiram formas diversas de comunicação
que serviam para difundir e divulgar idéias
sobre os mais variados temas. Inicialmente,
tais recursos foram bastante utilizados
na difusão de debates religiosos
travados, ainda no século XV e XVI,
entre católicos e protestantes. A
distribuição de panfletos
informativos servia como poderoso meio para
o embate de idéias. Entretanto, é
somente no século XVIII que se desenvolve
com mais clareza o conceito de uma opinião
pública.
"O
conceito de ´opinião pública´
apareceu no final do século XVIII,
e a preocupação com as ´massas´
tornou-se visível a partir do século
XIX, na época em que os jornais,
como diz Benedict Anderson (…), ajudaram
a moldar uma consciência nacional,
levando as pessoas a ficarem atentas aos
outros leitores". [3]
Particularmente,
deter-nos-emos em discutir aqui a atuação
da imprensa nesse processo. Para isso, iremos
tomar como ponto de partida a abordagem
da imprensa sobre o crime e a violência
no século XIX. Esse período
é bastante significativo dentro de
nossa reflexão, pois, nesse momento,
não só na província
cearense, mas em todo o Brasil, a imprensa
assumiu um papel bastante relevante na vida
das pequenas vilas e cidades em formação.
Este instrumento é representativo
do ideal de modernidade e civilização
pretendido pelos grupos dominantes locais.
Ao
lado de uma grande variedade de signos e
referenciais que as cidades construíam
para se apresentar como o espaço
do progresso, da ordenação
e do disciplinamento, através das
páginas impressas, sua voz era organizada
e divulgada. Nas páginas dos jornais,
cotidianamente, desfilam os ideais de uma
urbanidade que se construía de forma
progressiva, tanto a partir da edificação
de prédios, como a partir de palavras.
A divulgação de eventos particulares
e a transformação diária
de tais eventos em acontecimentos coletivos
marcam uma ampliação espetacular
dos bens simbólicos.
Apesar
de muitos autores se referirem a esse momento
como o de ocorrência de um processo
de massificação destes recursos,
é importante chamar atenção
para a idéia de massificação
da qual nos utilizamos aqui, que vai além
da abordagem limitada que enganosamente
pode sugerir que estes bens atingiam uniformemente
a todos os grupos e classe sociais nesses
espaços. Na verdade, esse é
o grande desafio que se coloca hoje a qualquer
análise que se pretende realizar
sobre os meios de comunicação:
a observação das várias
formas de apropriação e adequação
dessas informações em espaços
complexos e variados que se apresentavam.
O
jornal aparecia como uma prática
social representativa do ideal de sociedade
moderna elaborado no século XIX.
Era a possibilidade de que os interesses
das classes urbanas dominantes se disseminassem
elaborando modelos de conduta no cotidiano
dos habitantes desses espaços. Mesmo
em locais ainda não marcados por
signos de urbanidade tão evidentes,
a imprensa marcava um dos primeiros elementos
dos ideais de progresso e de civilidade.
Além de construir referenciais de
conduta e comportamento, a imprensa se autopromovia
como a própria porta-voz dessa sociedade:
"A imprensa (…) é a ultima faísca
da civilização que se extingue
luctando com as trevas da barbárie".
[4]
No
século XIX, os jornais assumem um
espaço bastante importante na província
cearense. Somente em Fortaleza, dezenas
de jornais circularam tratando sobre os
mais variados assuntos e, embora exercessem
uma imprensa fortemente marcada pelas facções
políticas, traziam à tona
uma série de acontecimentos do dia-a-dia
da cidade.
As
primeiras manifestações jornalísticas
cearenses ocorrem na década de 1820
com a publicação da Gazeta
do Ceará, um jornal oficial que servia
para prestação de contas do
governo. Contudo, é bem provável
que, mesmo antes disso, folhetos ou pequenos
informativos tenham sido editados e tido
uma circulação razoável
na província, pois há referências
em jornais posteriores a coletâneas
de leis e ofícios publicados nesses
informativos.
No
entanto, é somente na segunda metade
do século XIX que a imprensa cearense
consegue se estabelecer efetivamente com
a atuação de dezenas de jornais
literários e com a força de
jornais de características políticas
como Pedro II, do partido conservador, O
Cearense, do partido liberal, e A Constituição.
Segundo
o historiador Geraldo Nobre (1974), no final
da primeira metade do século XIX,
funcionavam na província cearense
no mínimo cinco tipografias, das
quais saíam desde folhetos oficiais
do governo até jornais artístico-literários.
As primeiras tipografias foram montadas
com a participação de tipógrafos
de outras províncias que eram contratados
para realizar esta atividade no Ceará.
Alguns deles desenvolviam outras atividades,
principalmente as de livreiro e colecionador
de documentos, o que nos demonstra que a
organização jornalística
proporcionou o estabelecimento de outras
atividades de caráter intelectual.
A
produção jornalística
cearense do século XIX servia como
meio de divulgação de idéias
quase sempre das classes dominantes e constantemente
propunha debates públicos acerca
de questões político-partidárias.
No entanto, um olhar mais profundo sobre
essa produção jornalística
descortina um mundo complexo no qual se
torna evidente a construção
de uma moralidade própria do espaço
urbano. Mais do que uma rivalidade pontual
entre grupos políticos, são
colocados em cena elementos de uma sociedade
marcada por uma rede de conflitos, resistências
e concessões manifestados como mecanismos
de organização de um momento
bastante delicado.
O
poder de alcance desse veículo era
muito maior do que o dos discursos elaborados
nos centros intelectuais. Apesar de tais
discursos forneceram a base de constituição
para a elaboração das idéias
divulgadas pelos jornais, o debate desencadeado
nas páginas destes se dava em um
ambiente muito mais abrangente, penetrava
nos casarões e casas de fazenda espalhadas
pela província, ampliando significativamente
o poder e a influência das notícias
neles impressas.
Além
disso, o jornal proporcionava um espaço
para os leitores apresentarem suas opiniões.
Tal espaço, apesar de controlado
e determinado pelos interesses que o dominavam,
constitui a oportunidade para vislumbrarmos
os usos diferenciados que os leitores faziam
sobre as idéias que lhes eram apresentadas.
Particularmente,
um objeto nos interessa dentre os vários
temas abordados nesses impressos: a apresentação
do crime, bem como a construção
de representações específicas
ensejadas sobre esse assunto. Pelo menos
dois elementos são relevantes nessa
escolha: o primeiro diz respeito à
importância que essa questão
assume entre as matérias abordadas
nesses jornais. Podemos afirmar que depois
da política partidária, esse
é um dos assuntos mais recorrentes.
É claro que isso não acontece
por acaso e é o que pretendemos abordar
posteriormente. O segundo elemento refere-se
à própria importância
do crime, ou ao que o controle dele representa
para a sociedade moderna.
Atualmente,
tornou-se lugar comum nos depararmos com
crônicas diárias acerca de
ocorrências criminais, seja na mídia
impressa, seja na televisiva.
Tal
percepção nos leva a refletir
sobre como, historicamente, o crime passou
a ser objeto de interesse nos meios de comunicação
e, sobretudo, como esse interesse vai servir
para construir olhares e posturas muito
específicas acerca das condutas violentas
desencadeadas no espaço urbano. Interessa-nos
compreender em que medida o jornal é
responsável por ajudar a construir
um discurso moralizador ao mesmo tempo em
que inaugura novas práticas criminais
a partir das necessidades de uma sociedade
de consumo que começa a despontar
timidamente nesse período.
Sobre
isso, é importante observarmos que,
ao longo da segunda metade do século
XIX, parece haver um aumento significativo
no número de leitores dos jornais
que circulavam pela província. É
possível inferirmos tal fato a partir
dos anúncios veiculados nos jornais,
que passam a ter uma ou mais páginas
disponíveis para esse fim. É
também possível percebermos
a partir do aumento desses anúncios
a diversificação da economia
local.
Inicialmente,
os anúncios mais comuns diziam respeito
à fuga de escravos, à venda
de propriedades e à oferta de emprego
para aprendizes de tipógrafo. Posteriormente,
avolumaram-se anúncios de lojas de
roupa, livrarias, retratistas, perfumarias,
farmácias, até mesmo de prestação
de serviços de advogados, enfim,
de diversos novos estabelecimentos comerciais
que ofereciam seus produtos e serviços
ao público da província.
Isso
nos leva a crer que o aumento do número
de leitores ocorria no mesmo passo das novas
necessidades desencadeadas pela própria
publicidade jornalística.
Somente
na década de 1860, segundo Geraldo
Nobre, foram registradas em Fortaleza quase
120 publicações entre jornais
literários, noticiosos e científicos.
Geraldo Nobre relata, inclusive, que houve
a edição de uma revista jurídica
quinzenal para o acompanhamento de processos
em andamento em Fortaleza e na província
em geral.
A
publicidade do crime será uma das
principais invenções da sociedade
moderna, pois será através
dela que tais ocorrências deixarão
de ser vislumbradas como eventos privados
para se tornarem eventos públicos,
e a própria imprensa assume o papel
de arauto da sociedade. Vejamos um exemplo
nessa matéria apresentada pelo jornal
A Constituição:
"O
Infeliz Joaquim fora cruelmente surrado
com espadeiradas e palmatoadas, arroches
na cabeça, apertos de troquez e compasso
nas partes genitais, e debaixo desses desumanos
martírios conduzidos em pleno dia
acompanhado daquelas autoridades (que pareciam
ter perdido a cabeça) e seguido do
demais povo pela rua que ficou sendo chamada
a rua da amargura! (…) A infeliz Francisca
de tal fora cruelmente castigada com palmatoadas
e o delegado Manoel Joaquim Cavalcante enfurecendo-se
a tal ponto, depois de com suas próprias
mãos em presença do juiz de
direito Carvalho, dar-lhes muitas palmatoadas
arremessava-a no chão. Debaixo de
todo este cortejo infernal foram conduzidos
estas duas vítimas pela rua da amargura
e postos na cadeia onde ainda hoje jazem
debaixo de algemas". [5]
Relatos
como esse eram bastante comuns nas páginas
dos principais jornais da província
cearense. O jornal faz questão de
apresentar aos seus leitores uma violência
sem máscaras. Os textos nos revelam
um universo tenso, no qual as práticas
violentas parecem emergir como elementos
muito presentes no dia-a-dia e nas relações
sociais dos habitantes da cidade. A tortura
imposta aos considerados criminosos em plena
rua da cidade é observada por toda
a população que, perplexa,
contém-se a acompanhar "o cortejo
infernal" até a cadeia da cidade.
A
abordagem sobre o crime sempre suscitou
interesse nos meios de comunicação,
fosse para apresentá-lo de forma
jocosa, fosse de forma sensacionalista.
Este tema era bastante recorrente em textos
populares, histórias e canções
que circulavam até os mais distantes
pontos da província. No entanto,
esta não era uma característica
somente do interior cearense do século
XIX: na Europa do século XVI, estas
narrativas faziam sucesso entre leitores:
"Os
panfletos e as páginas duplas que
contavam histórias de criminosos
(novo gênero do século XVI
que parece ter sido feito para um novo grupo
de leitores) eram apresentados de forma
semelhante, enfatizando a punição
e, se possível, o 'enorme arrependimento'
do crimino. No entanto, esse moralismo foi
abafado pela retórica do sensacionalismo,
com títulos, como dos de hoje, referindo-se
a eventos 'terríveis', 'maravilhosos',
ou 'medonhos', atrocidades 'sangrentas'
assassinatos estranhos e inumanos, e assim
por diante". [6]
A
princípio, o jornal era lido por
uma parcela de pessoas um tanto restrita,
uma vez que a população era,
em sua maioria, analfabeta. Contudo, o poder
de alcance dos jornais era bastante relevante,
porque quase sempre eram motivo de debate
pelas ruas da cidade em virtude dos artigos
provocativos e das denúncias neles
publicadas, bem como da troca de acusações
que constantemente desencadeavam entre si.
Muitas vezes eram lidos em voz alta em praças
das cidades ou mesmo em casas, como atestam
referências nos próprios jornais
e na literatura da época.
Isso tudo servia para torná-los cada
vez mais parte integrante do cotidiano da
cidade. Este elemento vem nos demonstrar
como os meios de comunicação
passam a fazer parte do cotidiano dessas
cidades, compondo uma nova rotina na qual
se produziam diariamente fatos mais do que
meramente informativos que passavam mensagens
por vezes moralistas, políticas,
dentre outras.
Os
discursos construídos nas páginas
dos jornais serviam como poderosas práticas
de poder que incutiam na população
valores através da divulgação
de uma nova legalidade. A lei deveria estar
acima de tudo, porque somente ela asseguraria
a ordem, como nos declara esse artigo do
jornal O Cearense:
"É
sempre com pesar que vemos a transgressão
de um preceito legal, seja por este ou aquele
indivíduo, por isso chamamos atenção
das duas primeiras autoridades da província
para providenciarem de um modo eficaz, no
sentido de que a lei seja observada".
[7]
Os
jornais procuravam se apresentar como os
defensores de uma ordem que ia muito além
daquela estabelecida moralmente sobre as
condutas da população, colocavam-se
como a própria palavra da verdade
que visava a estabelecer uma realidade inquestionável:
"A
humanidade caminha de progresso em progresso;
a civilização, tomando-a pela
mão, guia seus passos através
das trevas (…) caminha agora como para uma
nova redenção (…) encena-lhe
o futuro desejado que a aguarda. Sinais
precursores de um grande e próximo
futuro depontão por todo o urbe civilizado
(…)". [8]
O
"grande e próximo futuro"
parece se apresentar como a própria
construção de uma organização
social respaldada pela bandeira da civilização.
A ênfase no refinamento dos hábitos
e em novos códigos de conduta era
acompanhada por uma forte campanha que visava
ao estabelecimento de instituições
legais e normativas eficientes, à
construção de cadeias e penitenciárias
e à elaboração de um
código penal rígido, que pudesse
estabelecer novos parâmetros de conduta
moral para as pequenas cidades.
O
papel da imprensa era, acima de tudo, "pugnar
para que a segurança individual e
de propriedade fosse por toda a parte mantida
pelos meios que a lei consagra". [9]
Deveria estar sempre vigilante e atenta
à defesa da liberdade individual,
o que, segundo O Cearense, era um
"nobre empenho" que deveria ser
colocado acima de todas as "sugestões
políticas" e do espírito
partidário. [10]
Ao
se apresentar como divulgadora de opinião
sobre os mais diversos assuntos, a imprensa
local fazia emergir, na população
que tinha acesso aos jornais, uma rede de
ligação entre as relações
sociais e as condutas preconizadas para
aquele espaço social. Entretanto,
mais do que isso, os jornais pretendiam
construir uma rejeição e uma
repulsa cada vez maiores sobre toda e qualquer
atitude de tensão ou conflito que
envolvia os habitantes da cidade e que não
estivesse amparada pela lei, fazendo com
que "os sentimentos exaltados"
encontrassem "corretivo na energia
e vigilância da autoridade".
Somente
se a "população estivesse
habituada a ver impressa a lei", a
estatística criminal deixaria de
tomar "proporções espantosas
nos representando fora do país como
feras indomáveis". [11]
O
jornal citado acima é muito claro
quando fala de sentimentos exaltados.
Isso
nos demonstra que a mudança de condutas
passava por uma transformação
nas necessidades e sentimentos da população;
exigia-lhe a subordinação
a códigos sociais e institucionais
que visavam a modificá-la em suas
atitudes mais corriqueiras, desde seu modo
de vestir até a contenção
de seus sentimentos mais violentos.
O
discurso civilizador apresentado objetivava
uma mudança progressiva em direção
ao estabelecimento de comportamentos que
somente pode ser compreendida como parte
do próprio desenvolvimento histórico
e social daquela sociedade, de um momento
historicamente construído, cuja característica
principal foi a busca de um modelo de sociedade
amparado pelo ideal de modernidade. Além
do caráter econômico, esse
processo coloca em evidência uma competição
entre novos e antigos símbolos culturais.
Ao
classificarem de bárbaros ou civilizados
os comportamentos na cidade, os jornais
demonstravam a tentativa de um caráter
racionalizado no estabelecimento de novas
condutas. Para que se afirmassem como modelos
civilizados os hábitos propostos
pelas classes dominantes, era necessário
se construir também o padrão
de "incivilizado" e, para isso,
nada se apresentaria como melhor exemplo
do que a caracterização dos
criminosos através das páginas
dos jornais e a associação
destes aos conflitos e embates físicos
desencadeados no espaço das cidades.
O monopólio racionalizado sobre as
ações "incivilizadas"
era um ponto comum de todas as partes do
império. Não é à
toa que ocorrem a formação
da guarda nacional e o aumento do aparato
policial em todo o país.
No
entanto, como o discurso jornalístico
agirá na abordagem do crime? Uma
possível resposta para essa pergunta
é: pela elaboração
de um discurso sobre tais ocorrências
concomitantemente à sua divulgação.
Muitas delas eram narradas com exagerado
realismo para tentativa de levar aos leitores
a violência do exato momento do acontecimento,
fazendo-os espectadores de uma cena repulsiva
e bárbara que deveria chocar e indignar
a todos que dela tomassem conhecimento.
É a própria metamorfose de
um evento particular em um acontecimento
social que a notícia enseja. Tomemos
como exemplo o relato de uma tentativa de
assassinato ocorrida em uma das ruas centrais
de Fortaleza, na qual foi vítima
o Padre Francisco Cerbelon Verdeixa: [12]
"A
noite estava clara como o luar; quando um
cabra, ou um negro subindo a rua aproximou-se
a calçada e com uma audácia
incrível desfecha com toda a força
um tijolo no rosto do Padre Verdeixa. (…)
O tijolo esmigalhou-se e abriu uma ferida
profunda com mais de uma polegada de extensão
que ofendeu até o osso". [13]
A
atmosfera de tensão e suspense impressa
no texto sem dúvida queria causar
nos seus leitores um profundo sentimento
de repulsa à atitude narrada. O detalhe
do ferimento exposto e a violência
do ato são propositadamente apresentados
com o intuito de indignar os leitores e
alertá-los para os perigos que podem
representar atos como esse para a sociedade,
pois:
"Quando
o assassinato e o roubo deixam de ser crimes
numa sociedade, ou deixam de ser punidos
(…) por certo que a justiça tem desaparecido
desta sociedade e esta apenas existe como
uma recordação". [14]
O
jornal procura fazer deste atentado um fato
público que deverá ser conhecido
por todos, e isso acentua cada vez mais
o papel da impressa como divulgadora de
uma postura moral sobre a violência.
Mesmo se não tivesse sido publicado,
é possível que muitos viessem
a saber do acontecimento, porque Fortaleza
era uma cidade de proporção
territorial ainda pequena. Sem a interferência
da imprensa, entretanto, dificilmente este
fato seria visto a partir do caráter
moral que o discurso do jornal traz à
tona.
O
importante a ser observado sobre o papel
que a impressa exerce nessas notícias
é que ela não somente "apresenta"
acontecimentos, mas, sobretudo, os elabora
a partir de um discurso moralizador, o que
será decisivo para influenciar as
relações sociais na construção
dos signos de urbanidade na província
cearense. Mais do que a exposição
de eventos, constrói-se um dado conhecimento
sobre a ocorrência, mas que é
apresentado ou representado para o leitor
sob a insígnia de fato jornalístico
objetivo. Tal recurso é característico
do próprio pensamento epistemológico
moderno, no qual defende-se a objetividade
dos fatos independente do sujeito:
"A
noção de 'fato' tem sido um
dos pilares mais sólidos onde se
assenta toda a discussão do fazer
jornalístico. Sobre a hipótese
de que há um dado objeto, fatos reais
a se conhecer e de que existem modos rigorosos
de apreensão destes fatos edifica-se
e sustenta-se, por exemplo, o conceito de
objetividade jornalística. De certo
modo, o jornalismo pode ser visto como uma
produção de um dado conhecimento,
objetivo ou não, sobre fatos reais
do mundo". [15]
A
imprensa jornalística foi a primeira
mídia a informar diretamente sobre
a organização das cidades
modernas, ajudando a formar esfera pública
e, como afirma Cancline, "embora a
maioria dos jornais tenha uma relação
preferencial com a cidade em que são
produzidos, o conjunto de suas informações
mostra uma articulação complexa
entre o local, o nacional e o internacional"
[16] contribuindo para criação
de imagens que misturam espaços,
eventos, temporalidade em uma narrativa
dinâmica centrada no evento facilmente
assimilado por aqueles que os lêem,
"prolongando estereótipos formados
historicamente.
Os
relatos diários mudam, mas permanece
uma estrutura discursiva" (Id. 45).
Os jornais ensejam uma narrativa própria
para o mundo urbano contemporâneo,
reconstruindo-o a partir da definição
de novos signos e significados. A imprensa
desenha com todas as cores acontecimentos,
sensações e temporalidades.
Nesse
sentido, ao falarem sobre o crime, tais
jornais pretendiam a construção
de um 'consensus' sobre o sentido do mundo
social, além disso, procuravam estabelecer
também a reprodução
de uma dada ordem orientada a partir de
interesses sociais. Segundo Bourdieu, as
classes sociais estão constantemente
envolvidas em lutas simbólicas, em
lutas concorrenciais, que variam de acordo
com as disposições sociais
dos indivíduos dentro dos diversos
campos sociais; em uma constante disputa
pelo "monopólio da violência
simbólica legítima".
A
compreensão sobre tais elementos
nos direcionou para dois caminhos distintos
em nossa reflexão, porém interligados:
o primeiro deles foi a tentativa de desvendarmos
as representações e os discursos
construídos pela imprensa com fins
de disseminar práticas e comportamentos
sociais específicos; e o segundo
de vislumbrarmos a recepção
desses elementos pelas pessoas que tinham
acesso aos jornais.
Nosso
artigo enfatizou principalmente a formas
da construção desses discursos,
contudo, ao fazermos isso, percebemos como
o próprio jornal pode nos denunciar
os as representações que uma
sociedade constrói para si. Ao abordar
crime e a criminalidade, em seus jornais,
essa sociedade elaborava para si padrões
de sociabilidade no mesmo sentido em que
negava outros em um processo de construção
e reconstrução cotidiana de
signos e referenciais no qual a imprensa
assumiu um papel central.
Notas
[1]
A CONSTITUIÇÃO. "A Publicidade
do Crime". 13ago1873. p. 02.
[2]
NORA, P. "O Retorno do fato".
In: NORA; LE GOFF. Novos Problemas. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1995. p. 113.
[3]
BURKE, P.; Briggs, A. Uma história
social da mídia - de Gutenberg à
Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2002. p. 13.
[4]
O CEARENSE. 01out1850, "Mais 4 assassinatos".
p. 03.
[5]
A CONSTITUIÇÃO. "Correspondência
da Constituição". 08out1865.
p. 04
[6]
BURKE, P.; Briggs, A. Op. Cit. p. 75.
[7]
O CEARENSE. 18jan1871. p. 04
[8]
O CEARENSE. "A Queda de Rosas".
23abr1852. p. 02-03.
[9]
O CEARENSE. Editorial. 05jun1857, p. 01.
[10]
Idem.
[11]
O CEARENSE. 14jul1874. p. 01.
[12]
Padre Verdeixa foi um dos mais importantes
editores da imprensa liberal cearense durante
a segunda metade do século XIX, sendo
o redator responsável pelo jornal
O Juiz Do Povo, que se notabilizou
pelo caráter provocativos de suas
notícias.
[13]
O CEARENSE. "Um attentado cobarde e
infame". 15abr1851. p. 01.
[14]
O CEARENSE. "Mais 4 assassinatos".
01out1850. p. 03.
[15]
MASSAGI JÚNIOR. "Fato vs. Texto".
Florianópolis, Anais do II Encontro
Nacional da Rede Alfredo de Carvalho, 15-17abr2004.
Disponível em: <http://www.jornalismo.ufsc.br/redealcar/cd/index.htm>.
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*Sônia
Meneses é historiadora, mestre em
História Social pela UFRJ, doutoranda
em História pela UFF e professora
de teoria da história na Universidade
Regional do Cariri (URCA).
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