A
autoconstrução do repórter
como investigador policial:
Uma análise das matérias vencedoras
do Prêmio Esso
Por Márcio
de Souza Castilho*
Introdução
A
história da censura à imprensa
escrita no Brasil durante os anos de Ditadura
Militar teve como marco o Ato Institucional
nº 5, editado em 13 de dezembro de
1968. Até a extinção
da censura prévia, em 8 de junho
de 1978, nos veículos de divulgação
sobre os quais ela ainda atuava, os militares
se valeram de uma extensa rede de informações
e de um arsenal de leis e decretos numa
tentativa de manter os órgãos
de comunicação sob vigilância,
restringindo liberdades e determinando o
que podia ou não ser publicado para
preservar seus interesses.
Aquino
(1999) divide este período de dez
anos de maior repressão aos conteúdos
informativos em três fases:
- de
1968 a 1972, período de estruturação
da censura, cuja atuação
se restringia a telefonemas e bilhetes
enviados às redações,
atingindo indistintamente todos os periódicos;
-
de 1972 a 1975, fase de institucionalização
da censura prévia aos órgãos
de divulgação que ofereciam
resistência, tendo como base o decreto-lei
1077, de 26 de janeiro de 1970. A lei
proibia a divulgação de
qualquer material que se enquadrasse como
um "plano subversivo" que colocasse
em risco a segurança nacional;
- de
1975 a 1978, quando se observa um caráter
mais seletivo por parte da censura, incidindo,
sobretudo, sobre os veículos da
chamada imprensa alternativa (Movimento
e São Paulo) ou com tiragens
menores, sem grande representatividade
nacional (Tribuna da Imprensa).
O governo revoga o AI-5, símbolo
da repressão, em dezembro de 1975.
Segundo
a autora, as diferentes fases da censura
relacionam-se com a conjuntura de forças
daquele momento histórico. Nessa
perspectiva, Aquino conclui que a atuação
da censura não se deu de forma homogênea,
oscilou períodos de maior ou menor
intensidade e variou seu modo de atuação
de acordo com os interesses e a imagem que
se queria preservar do regime. "A censura
esteve atenta à diversidade da produção
de diversos órgãos de divulgação
(...), raramente agindo de modo aleatório
ao sabor das influências de caráter
esporádico e individual. Sofreu a
ação do tempo e reagiu às
flutuações internas do Estado"
(Cf. Aquino, 1999:249).
A
imprensa começa a sentir os efeitos
do processo de distensão política
em 1975, no governo do general Ernesto Geisel,
quando os censores se retiram, em janeiro
daquele ano, da redação de
O Estado de S.Paulo. Em março
de 1975, o governo decide acabar com a censura
prévia na redação de
O Pasquim. O mesmo aconteceria com a
revista Veja, em junho de 1976.
O
movimento dos militares no caminho da abertura
"lenta, gradual e segura" marcaria
o fim de uma fase marcada pelo esvaziamento
do debate político na imprensa e
o começo de outra, com a valorização
do papel do repórter como investigador,
empregando em seus métodos de apuração
técnicas de investigação
policial.
Pretendemos
verificar a nova configuração
que assume a imprensa no período
de abertura política do governo Geisel.
Partimos do pressuposto que a distensão
política estabelece um marco divisório
para um gênero da reportagem até
então dependente do aparelho policial
e identificado com o jornalismo popular
e sensacionalista: a reportagem policial.
Vamos procurar demonstrar como, a partir
de meados dos anos 1970, ganha força
nas redações o repórter
que não apenas relata o fato, mas
principalmente desvela o oculto para o público,
atuando na fronteira entre dois territórios
- o jornalismo e o policial.
É
nesta fase que o jornalismo investigativo
tem a sua fase áurea e vai se manifestar
na cobertura policial, embora com desdobramentos
nitidamente políticos, como tentaremos
demonstrar adiante. O repórter investigativo
ganha reconhecimento e credibilidade por
parte da comunidade jornalística,
pois estaria investido de uma missão:
descobrir o crime que o aparelho policial
de Estado tenta ocultar por interesses políticos
e ideológicos.
Acreditamos
que o Prêmio Esso de Jornalismo
oferece um campo de exploração
amplo para entendermos o novo papel assumido
pelos produtores de notícias num
período de transição
política, marcado por cisões
internas dos militares que tinham diferentes
visões quanto ao encaminhamento histórico
do projeto político iniciado com
o movimento de 1964.
De um lado, o grupo que defendia uma transição
democrática - lenta, gradual e segura
- do qual fazia parte o general Ernesto
Geisel. Do outro, o grupo com uma concepção
distinta no que se referia à devolução
do poder aos civis. Identificados como militares
da "linha-dura" do regime, buscavam
retomar o projeto de recrudescimento da
repressão política no país,
que teve seu ápice no governo do
general Emílio Garrastazu Médici,
antecessor de Geisel.
No
meio deste embate político e com
o rompimento do pacto de censura institucionalizada
nas redações, uma lacuna identitária
se apresentava como herança dos anos
de repressão à imprensa. O
fortalecimento da reportagem investigativa
parece fazer parte desse contexto histórico
e reposiciona o papel social dos produtores
de notícias.
Percebemos
o Prêmio Esso de Jornalismo
exatamente como um lugar de consagração
deste modelo investigativo, no qual o repórter
não deve apenas "reproduzir"
o que vê, mas assumir tarefas que
seriam de outros sujeitos em defesa da coletividade
e do bem comum.
A
partir da análise das matérias
vencedoras do Prêmio Esso nos
anos de 1976, 1977, 1979 e 1981 - período
de abertura política do país
- buscaremos recompor o cenário do
jornalismo investigativo, verificar os métodos
de apuração, algumas estratégias
narrativas e observar como as marcas do
discurso de valorização do
repórter como investigador policial
permanecem até hoje e contribuem
para a formação da identidade
profissional do jornalista. Tais considerações
podem indicar pistas essenciais sobre a
forma como tais estratégias fornecem
um lugar simbólico para os jornalistas.
A
censura e a construção do
"admirável mundo novo"
Antes
de discutirmos a influência do contexto
de distensão política no jornalismo
brasileiro, inaugurando, ao nosso ver, uma
nova prática de se fazer reportagem
e uma nova maneira de se sentir jornalista,
é preciso recuar no tempo para compreender
melhor o ambiente histórico que orientava
o comportamento da imprensa no período
de maior repressão aos conteúdos
informativos no país (1968-1975).
Para
a criação do "admirável
mundo novo" que os governos militares
queriam impor no início dos anos
1970 havia que existir em paralelo a ação
da censura, o apagamento da política
como debate de idéias e a construção
de consenso, através de alianças
que se firmaram entre o poder e algumas
empresas jornalísticas.
Construir
um modelo de distanciamento da opinião
se transformava muitas vezes na única
possibilidade de sobrevivência para
muitos veículos. Recusar os vínculos
com a política nesse momento era
também essencial para os que se aliaram
aos governos militares.
Uma
breve incursão nas matérias
vencedoras do Prêmio Esso de Jornalismo
no período que se estende da decretação
do Ato Institucional nº 5, em 1968,
até o início do processo de
flexibilização da censura,
em 1975, mostra que os jornais de grande
circulação produziam matérias
sobre os mais variados temas, porém
sem vínculos explícitos com
assuntos políticos.
Na
impossibilidade de denunciar a violação
de direitos humanos ou criticar o modelo
econômico dos militares, produziam-se
grandes reportagens sobre futebol até
assuntos sobre psicanálise, agressão
ao meio ambiente e drogas.
Em
uma pesquisa inicial, vemos que os prêmios
são outorgados para profissionais
que construíram matérias com
este viés: "Juiz, ladrão
e herói" (O Estado de S.Paulo,
1968); "Psicanálise: remédio
ou vício?" (Última
Hora, 1969); "113 dias de angústia
- impedimento e morte de um presidente"
(O Globo, 1970); "Receita para
São Paulo" (Jornal da Tarde,
1971); "Edição especial
sobre a Amazônia" (Realidade,
1972); "Expedição de
contactação dos índios
Kranhacarore" (O Estado de S.Paulo,
1973); "Volta ao ponto de partida"
(Jornal do Brasil, 1974); e "As
drogas" (Jornal do Brasil, 1975).
Este
panorama de esvaziamento do debate político
na imprensa começa a se modificar
com o início do processo de abertura
política no Brasil e o fim da censura
prévia aos veículos da chamada
grande imprensa (O Estado de S.Paulo
e Veja), a partir de 1975.
O
jornalismo watchdog role
A
reportagem "Assim vivem nossos superfuncionários"
conquistou o Prêmio Esso de Jornalismo
em 1976. Tida até hoje como um momento
fundador para o fortalecimento da investigação
jornalística no Brasil (Sequeira,
2005), a matéria tornou conhecida
do grande público a expressão
"mordomia", numa alusão
aos privilégios e vantagens dos ocupantes
de cargos públicos durante o regime
militar.
O
trabalho, conduzido pelo jornalista Ricardo
Kotscho, aponta para a influência
do jornalismo investigativo americano, que
tem como princípio básico
exercer vigilância sobre a ação
do Estado (Silva, 1991). Esse modelo, conhecido
como watchdog role, foi consagrado com a
publicação, em 18 de junho
de 1972, de uma denúncia que redefiniria
os padrões do fazer jornalístico:
a reportagem de dois jornalistas do Washington
Post, Carl Bernstein e Bob Woodward,
que culminaria com a renúncia do
então presidente Richard Nixon. O
episódio ficou conhecido como Caso
Watergate.
Em
"Dez reportagens que abalaram a ditadura"
(Molica, 2005), Ricardo Kotscho relata que
a pauta de O Estado de S.Paulo surgiu
de uma reportagem da revista New Yorker
sobre os privilégios dos altos
funcionários na então União
Soviética. O jornalista preparou
um roteiro de reportagem, acionou a rede
de sucursais e correspondentes do jornal
e vasculhou arquivos para verificar, ao
longo de dois meses, se as mesmas regalias
eram praticadas no país dos militares.
Apesar
da impossibilidade de acesso a documentos
oficiais, o jornal mostrou, com a publicação
de nomes e cifras, como viviam, de onde
vieram e o que pensavam os "superfuncionários"
governamentais. A reportagem ilustra todo
o aparato de privilégios e vantagens
à disposição dos servidores
públicos. A reportagem de O Estado
de S.Paulo tem como marca distintiva
a adoção de um discurso denunciador,
diferenciando-se das demais narrativas vencedoras
do Prêmio Esso nos anos anteriores.
Os
carros oficiais servem para levar os filhos
dos superfuncionários ao colégio,
as madames às butiques e cabeleireiros,
os empregados e os funcionários
propriamente ditos aos restaurantes. Os
automóveis de chapa-amarela que
não são particulares podem
ser vistos às centenas circulando
em Brasília ou nas capitais estaduais.
Servem, à custa das empresas, a
executivos estatais e suas famílias.
Recentemente, um banco oficial renovou
sua frota, adquirindo possantes Alfa-Romeo,
embora os Dodge Dart de luxo ainda
sejam os preferidos ("Os carros rodam",
O Estado de S.Paulo, 01/08/1976).
A
novidade não estava na prática
comum da política brasileira de utilização
de recursos públicos para fins particulares,
mas na possibilidade de reportar este fato
e levá-lo para o conhecimento do
grande público. Assim, O Estado
de S.Paulo abriu caminho para um novo
modo de atuação da imprensa,
que viria a se acentuar no período
de redemocratização do país,
a partir de 1985.
A investigação jornalística
no campo político, com o desvelamento
das mais variadas formas de corrupção,
tráfico de influência e abuso
de poder, ganharia cada vez mais espaço
na pauta dos jornais. A imprensa consolidaria
a função de agente fiscalizador
da ação do Estado, atuando,
como vimos, dentro do modelo watchdog
role dos jornalistas americanos.
Silva
(1991) observa, no entanto, que o conceito
de poder vigilante da imprensa encontra
limites ao ser incorporado no Brasil. O
país apresenta uma configuração
política, histórica e cultural
específica, que impõe particularidades
ao processo de produção de
notícias. A série de matérias
"Assim vivem os nossos superfuncionários"
já fazia ressalvas quanto à
imprecisão de alguns dados em razão
da falta de acesso a documentos oficiais.
Não
há uma regulamentação
própria para as mordomias - regalia
a que, até meados da última
década, só o presidente
da República tinha direito. Ninguém
sabe, no governo, afirmar com certeza
o que regula a concessão da mordomia,
quem tem direito a ela, se há limite
para os gastos, como ela deve ser utilizada
- e, nem mesmo, o que vem a ser exatamente
mordomia ("E o descanso?", O
Estado de S.Paulo, 01/08/1976).
Silva
aponta outro dado que se reflete de maneira
especial sobre o fazer jornalístico
no país: a cultura da impunidade,
mesmo com o acompanhamento das repercussões
por parte da imprensa após o material
publicado. Esse fator histórico é
determinante, segundo o autor, para a diferenciação
da lógica dos padrões culturais
do jornalismo brasileiro em relação
ao norte-americano. "O mau funcionamento
das instituições públicas
faz com que eventuais trabalhos de investigação
jornalística no Brasil acabem caindo
no vazio, não resultando em nada,
ao contrário do que ocorre nos EUA"
(Cf. Silva, 1991:100).
O
jornalista e o investigador policial
Se
a série de reportagens de O Estado
de S.Paulo é emblemática
por marcar uma nova fase da imprensa a partir
da denúncia dos abusos de poder e
corrupção nas esferas públicas,
nos anos que se seguiram a reportagem investigativa
no Brasil ver surgir na cobertura policial
um espaço privilegiado de atuação.
É
interessante analisar o Prêmio
Esso de Jornalismo, cujas matérias
vencedoras são vistas como modelo
a ser seguido na profissão. Nos anos
de 1977, 1979 e 1981, percebemos a valorização
de reportagens baseadas na autoconstrução
do repórter como investigador policial.
Antes de analisarmos os textos jornalísticos,
gostaríamos de situá-los,
ainda que brevemente, no contexto histórico
do qual eles emergiram.
Como
herança do vazio jornalístico
produzido pela censura política dos
militares, a reportagem policial se caracteriza
nos anos 1960 e início dos anos 1970
pela produção de um noticiário
alienante e sensacionalista. Mais do que
isso, alguns repórteres mantinham
uma relação de cumplicidade
com agentes do aparelho policial. Nos confrontos
armados entre militantes de esquerda e os
órgãos de repressão
prevalecia a versão oficial no noticiário.
Com
a imprensa sob vigilância cerrada,
as notas enviadas pelos órgãos
de segurança eram publicadas praticamente
na íntegra, sem edição,
por alguns jornais.
O
episódio envolvendo o jornalista
Wladimir Herzog, encontrado morto nas dependências
do Departamento de Operações
Internas (DOI), em 25 de outubro de 1975,
fortaleceu os movimentos que lutavam pela
redemocratização do país
[1]. Em dezembro do mesmo ano, ainda sob
o impacto da repercussão negativa
da morte do diretor do Departamento de Jornalismo
da TV Cultura, o governo militar
decreta o fim do Ato Institucional Nº
5.
A
reportagem de polícia ganha um novo
impulso, passa a ser mais investigativa
e menos submissa às versões
oficiais dos militares. O profissional,
por sua vez, tenta se desvencilhar da imagem
de intimidade e até promiscuidade
com o aparelho policial. Sem exercer o papel
de colaborador do Estado, sente-se livre
para buscar o outro lado da história
para além dos boletins de ocorrência,
revelando contradições contidas
nos trabalhos de investigação
dos órgãos oficiais de segurança.
Nesse
sentido, a reportagem de Veja sobre
o caso Cláudia Lessin Rodrigues,
vencedora do Prêmio Esso de Jornalismo
em 1977, é exemplar. A matéria
alterou os rumos da investigação
sobre a morte da jovem de classe média
alta do Rio de Janeiro, cujo corpo foi encontrado
nos penhascos da Avenida Niemeyer, em 25
de julho daquele ano.
Até
a publicação da reportagem,
a polícia caminhava para o arquivamento
do inquérito, desqualificando a vítima
e concluindo que Cláudia Rodrigues
havia morrido pelo uso simultâneo
de cocaína, álcool e remédios.
Os repórteres de Veja Luiz
Valério Meniel e Amicucci Gallo revelaram,
no entanto, que a vítima fora assassinada
no apartamento do milionário Michel
Frank, filho do industrial Egor Frank, "ao
fim de uma orgia de drogas e sexo".
O
crime também envolvia o cabeleireiro
George Khour.
O
editorial desta edição de
Veja já procurava diferenciar,
naquele contexto, a reportagem que conduzira
sobre o caso Cláudia Lessin Rodrigues
das demais notícias produzidas na
rotina da cobertura policial na imprensa
brasileira.
O
objetivo era reunir informações
seguras e consistentes sobre a morte da
jovem Cláudia Rodrigues - um crime
que, cometido no final de julho em meio
ao afluente universo carioca da cocaína,
já começava a mostrar os
sintomas clássicos dos casos policiais
em que os envolvidos não são
marginais comuns, mas pessoas de boa família
e bom dinheiro. Que sintomas? A relutância
em investigar com seriedade os suspeitos
(...) e a mal-disfarçada insistência
em fazer carga contra a vítima.
(...) Trata-se de um excelente caminho,
já muito bem testado, para se obter
a impunidade - e a crônica policial
brasileira dos últimos anos é
rica em exemplos desse tipo (Veja,
07/09/1977, grifo nosso).
O
mesmo artigo aponta para a valorização
do trabalho de "investigação"
do repórter, visando criar um novo
ideário sobre o fazer jornalístico.
Nesse sentido, a busca de uma identidade
investigativa aparece como sinônimo
de "verdadeiro jornalismo", capaz
de reconfigurar a prática da reportagem
policial, deixando no passado a superficialidade
da cobertura e as estreitas relações
com o aparelho policial, que teriam contribuído
para a cultura da impunidade envolvendo
"criminosos escudados em sua posição
social", como salienta o editorial
da revista. "No episódio de
Cláudia Rodrigues, talvez não
seja assim. Através do exercício
normal da investigação jornalística,
Veja teve acesso a informações
bem mais precisas que as obtidas até
agora pela polícia carioca"
(Veja, 07/09/1977).
As
revelações sobre o assassinato
partiram de uma fonte localizada por Veja
depois de três semanas de apuração:
o doutor em patologia e professor da Universidade
Federal do Rio de Janeiro Domingos de Paola.
Seu depoimento - obtido com "exclusividade",
como destaca a edição de Veja
de 07/09/1977 - contradisse todas as declarações
feitas anteriormente pelo jovem milionário.
Após a publicação da
edição, Michel Frank e George
Khour tiveram a prisão decretada
pela Justiça.
A
reportagem de 10 páginas traz na
capa o título "Crime e drogas"
e a chamada com o destaque: "Exclusivo:
Cláudia foi morta na casa de Michel
Frank". A matéria de Veja
recupera uma categoria essencial para a
construção do simbolismo da
profissão de repórter, quando
do seu aparecimento no início do
Século XX: o "furo" ou
a exclusividade das matérias.
Se
quando da constituição da
profissão de repórter, a importância
da notícia inédita era vinculada
ao gosto do público "sempre
sequioso por novidades" (Cf. Barbosa,
1996:187), agora se construía uma
nova categoria de jornalista - o investigativo
- que trazia para o campo outra característica:
era capaz de configurar - e a ele era dada
esta outorga - a própria notícia,
a partir de seu "faro" investigativo.
Com isso, ampliava sua ação
frente a outras esferas sociais.
Acreditamos
que o fato de dominar um conhecimento inédito
evoca um lugar de poder, o que justifica
a permanente preocupação do
repórter policial em se autoconstruir
como investigador. Reivindicar para si o
papel de investigador e dominar um conhecimento
inédito conferem ao jornalista investigativo
maior poder simbólico. Ao nosso ver,
a defesa do "furo" jornalístico
contribuiu para a formação
da identidade profissional do jornalista
no contexto de distensão política.
Com
a consolidação do processo
de abertura política no fim dos anos
1970 - incluindo o fim da censura prévia,
em 8 de junho de 1978, nos três últimos
órgãos de divulgação
(Tribuna da Imprensa, Realidade e
O São Paulo) sobre os quais os
censores ainda exerciam seu poder - assuntos
policiais se tornaram cada vez mais presentes
na rotina da cobertura dos principais jornais.
Importa afirmar que a cobertura não
se restringia a assuntos propriamente policiais.
Nas
matérias "O seqüestro dos
uruguaios" (Veja), "Bombas
no Rio Centro" (Jornal do Brasil)
e "O caso Baumgarten" (Veja),
vencedoras do Prêmio Esso de Jornalismo,
respectivamente, em 1979, 1981 e 1983, embora
as pautas fossem da área policial,
a investigação jornalística
tinha contornos nitidamente políticos.
Através da cobertura aprofundada
de assuntos policiais com desdobramentos
políticos, os jornalistas testavam,
em última instância, os próprios
limites da revogação do AI-5
e da censura prévia.
Neste
período de distensão do regime,
um outro dado confere especificidade ao
modo de atuação dos produtores
de notícias. A partir de 1979, com
a matéria "O seqüestro
dos uruguaios", o jornalismo viria
colocar o repórter investigativo
na cena do acontecimento. Ser jornalista
não era apenas reportar um fato com
um olhar onisciente, com o uso de uma narrativa
em terceira pessoa. Grandes reportagens
dos principais jornais do país no
período projetavam o repórter
como principal personagem da narrativa.
A
reportagem de Veja revelou a ativa
participação de brasileiros
na operação Condor, uma ação
clandestina de perseguição
e captura dos dissidentes dos regimes militares
implantados nos países do chamado
Cone Sul. Os repórteres Luiz Cláudio
Cunha e J. B. Scalco foram personagens centrais
do evento e revelaram os detalhes do seqüestro
dos uruguaios Universindo Rodriguez, Lilian
Celiberti e seus filhos Camilo e Francesca,
ocorrido em novembro de 1978 em Porto Alegre
(RS).
Esta
teria sido a primeira vez que a imprensa
confirmara a existência de uma ação
praticada pela Operação Condor
no Cone Sul. No episódio, os dois
jornalistas atuaram como testemunhas involuntárias
do seqüestro.
A
apuração começou a
partir de um telefonema anônimo à
sucursal da Veja, em 17 de novembro
daquele ano, informando sobre o desaparecimento
dos uruguaios:
Às
16 horas, em companhia do fotógrafo
JB Scalco, saí para checar a informação
dada em castelhano. (...) Batemos à
porta do apartamento 110, que foi aberta
apenas alguns centímetros.
Surgiu, então, o rosto assustado
de uma moça morena, de cabelos
escorridos e enormes olhos negros, com
quem comecei a falar em espanhol. (...)
Era possível perceber a existência
de mais gente no interior do apartamento.
Perguntei se ela era Lilian e, diante
da resposta afirmativa, disse-lhe que
havia recebido um telefonema de São
Paulo e queria saber se estava tudo bem.
Antes que pudesse responder, Lilian saiu
de cena e a porta foi escancarada para
que duas pistolas fossem apontadas para
nossas cabeças, bem entre os
olhos ("Mais perto da verdade",
Veja, 20/12/19878, grifos nossos).
Está
claro que o repórter explora recursos
narrativos que buscam criar vínculo
com os leitores. A matéria recorre
às sensações do público,
através do discurso em primeira pessoa,
o apelo ao valor emocional e a particularização
dos detalhes. Tais estratégias conferem
autenticidade ao texto, pois criam no imaginário
do público um efeito de real. A notícia
oferece mais do que um relato dado como
objetivo e factual. Importa aproximar o
mundo narrado da realidade do público
ou, em outras palavras, transportar o leitor
para a cena do acontecimento numa linguagem
que lhe seja familiar. A trama, em forma
de texto narrativo, aproxima o jornalismo
da ficcionalidade.
A
sala era pequena, escurecida pelas persianas
abaixadas. Fomos revistados, e o sujeito
de bigode, que me apontara uma pistola
grande, prateada, aparentemente calibre
45, pareceu surpreso ao me ver falar em
português ("Mais perto da verdade".
Veja, 20/12/1978).
A
reportagem apresenta características
textuais trazidas do melodrama, com a montagem
do enredo, o crescimento/declínio
da ação e a unidade dramática
com começo, meio e fim. O tempo da
narrativa será definido pelo jornalista
da Veja. A cena prossegue até
atingir o seu clímax, com a liberação
dos jornalistas pelos seqüestradores:
Depois
da bateria de perguntas e uma certa hesitação,
o presumível chefe do grupo saiu
do apartamento, pela porta principal,
por uns cinco minutos. Quando voltou,
estava transformado: amável, com
um ar tranqüilizador, tratou de distender
o ambiente. "Tudo bem com vocês,
podem baixar as mãos", disse-nos
("Mais perto da verdade", Veja,
20/12/1978).
Os
jornalistas foram autorizados, 20 minutos
depois, a deixar o apartamento com a orientação
de manter discrição sobre
o episódio. Aos repórteres,
os homens que mantinham os uruguaios sob
a sua vigilância disseram que se tratava
de uma operação rotineira
da polícia contra clandestinos no
país. A explicação
não convenceu os jornalistas, mas
durante a apuração esbarraram
no silêncio dos órgãos
de polícia, que alegavam desconhecer
o fato.
Se
havia, como vimos, uma relação
de cumplicidade entre jornalistas e policiais
até meados dos anos 1970, a situação
se modificara significativamente na cobertura
policial de assuntos políticos no
contexto de distensão do regime.
O jornalista Luiz Cláudio Cunha comenta
que "ao longo desse tempo, houve uma
inversão de papéis: os repórteres
investigavam e os policiais e militares,
no Brasil e no Uruguai, escreviam - sempre
notas mentirosas, tentando abafar o caso"
(Cf. Molica, 2005:201).
Se
o contexto político e o envolvimento
do Estado em ações criminosas
dificultavam o dia-a-dia dos repórteres
em seu trabalho de apuração,
ao mesmo tempo favoreciam a autoconstrução
do jornalista como investigador policial,
conferindo-lhe autoridade. O jornalista
legitimava seu papel social agindo em defesa
do interesse coletivo e do bem comum. Campbell
(1991) observa que os repórteres
assumem a função de mediador
entre os acontecimentos e o público,
legitimando a imprensa como instituição
de poder no campo social.
Esse
processo de autoconstrução
dos profissionais como enunciadores privilegiados
da verdade do mundo se relaciona com a formação
da autoridade cultural dos jornalistas.
Para Zelizer (1992), os jornalistas atuam
como porta-vozes legitimados e confiáveis
da verdade do mundo, uma "verdade"
que não poderia ser ofertada ao público
não fosse a atuação
da imprensa [2].
Em
busca da "verdade", Cunha e Scalco
ocultam sua própria identidade, fornecem
depoimentos à polícia e participam
de acareações como participantes
ativos na construção das notícias.
Mais do que isso, tornam-se protagonistas
do acontecimento:
Finalmente,
na manhã de terça-feira
da semana passada, encontraram-se frente
a frente no gabinete do coordenador regional
da Polícia Federal no Rio Grande
do Sul, em Porto Alegre, três personagens
que já deveriam ter sido reunidas
em uma sala há pelo menos três
semanas: o delegado Edgar Fuques, coordenador
da Polícia Federal, o investigador
do Dops gaúcho Orandir Portassi
Lucas e o jornalista Luiz Cláudio
Cunha, chefe da sucursal da Veja em Porto
Alegre ("Uma dúvida a
menos", Veja, 17/01/1979,
grifo nosso).
O
mesmo procedimento no qual o jornalista
assume outras funções, além
daquela de reportar um acontecimento, tornando-se
elemento chave do evento noticiado pode
ser verificado na reportagem "Bombas
no Riocentro", do Jornal do Brasil,
vencedora do Prêmio Esso de Jornalismo
em 1981.
Neste
caso, o repórter Fritz Utzeri atuou
como um verdadeiro perito para revelar a
existência do "terrorismo oficial"
praticado por um grupo de militares que
desejava se manter no poder.
A
série de matérias desmontou
a versão oficial sobre o suposto
atentado contra dois militares, que teriam
sido vítimas de uma explosão
durante um show em comemoração
ao dia 1º de maio, Dia do Trabalho,
no Riocentro. O capitão Wilson Machado
e o sargento Guilherme Pereira do Rosário
estavam dentro de um carro Puma no momento
da explosão. No interior do veículo,
duas bombas, sendo que apenas uma foi acionada.
O
Inquérito Policial Militar (IPM)
atribuía o atentado à ação
de grupos clandestinos, como a Vanguarda
Popular Revolucionária. A versão
oficial mostrava que o artefato fora encontrado
pelo sargento ao entrar no carro.
A
bomba estaria encaixada entre a porta do
Puma e o banco do carona.
Convictos
da farsa montada pelos militares no IPM,
os jornalistas conseguiram localizar o automóvel
semidestruído no pátio na
19ª Delegacia Policial da Barra da
Tijuca. O fotógrafo do JB tirou então
uma seqüência de fotos em diferentes
ângulos do Puma e, com base neste
material, o repórter Fritz Utzeri
examinou minuciosamente, como um perito,
o automóvel.
As
fotos - "uma verdadeira perícia
fotográfica", como relata Fritz
Utzeri (Molica, 2005) - foram publicadas
no dia seguinte, revelando que a bomba explodira
no colo do sargento Guilherme Pereira do
Rosário. O laudo do Instituto Médico
Legal (IML) contribuiu para confirmar esta
hipótese, desmontando a versão
de atentado. Resultou dessa "perícia
jornalística" uma narrativa
técnica, em tom descritivo, ao contrário
das outras matérias analisadas:
A
onda de choque com a explosão da
bomba teve propagação transversal
ao carro, com sentido ascendente na direção
do capitão (motorista) e descendente
para o sargento (banco do carona). (...)
O banco do motorista está praticamente
intacto, enquanto o do sargento foi arrebentado
até a espuma central, na sua parte
inferior ("Um carro, dois homens
e duas bombas", JB, 02/05/1981).
Acreditamos
que o discurso do jornal não se legitima
apenas por apresentar uma realidade próxima
ao leitor, construindo, como vimos, linhas
de estória pelo uso do suspense e
conflito. A objetividade também funciona
como uma eficiente estratégia de
reafirmação da autoridade
jornalística. Os repórteres,
baseados em técnicas que garantem
o seu distanciamento em relação
aos fatos, enquadram ocorrências e
produzem sentidos, fazendo do jornalismo
um campo especializado para a produção
de verdades [3].
O
repórter investigativo prossegue
na reconstituição dos fatos,
tendo como base a divulgação
do inquérito apresentado pelos militares:
A
versão oficial apurada pelo IPM
do I Exército e divulgada anteontem
pelo seu encarregado, coronel Job Lorena
de Sant'Anna, afirma que a bomba que explodiu
no Puma, na noite de 30 de abril, estava
numa bolsa, comprimida entre a porta e
o banco do automóvel. Sua explosão
deu-se quando o sargento Guilherme Pereira
do Rosário teria, inadvertidamente,
tocado a bolsa ("Teste mostra que
seria difícil não ver a
bomba no Puma". JB, 02/07/1981).
Fritz
Utzeri monta então um simulacro da
bomba, idêntico ao mostrado pelo laudo
do IPM, e utiliza um carro do mesmo modelo
para comprovar que o explosivo não
cabia no local indicado pela polícia,
entre a porta e o banco do carona. Seguindo
uma visão idealizada sobre a reportagem
investigativa, o jornalista que assumiria
a função de perito na investigação
relata que o jornal não cumpriu apenas
o seu dever de informar. "Não
havia mais o que provar, e o JB fez
jornalismo e história" (Cf.
Molica, 2005:276).
Repórter
de O Estado de S.Paulo, Antero Luiz
também participou ativamente da cobertura
do Riocentro e recebeu, no mesmo ano, o
Prêmio Esso de Reportagem, o segundo
mais importante pelos critérios de
premiação. Ele relembra: "Sabíamos
que eram inconfiáveis as informações
oficiais das autoridades militares. Minha
primeira matéria na cobertura do
caso teve, por isso, mais de policial do
que de jornalista" (Cf. Molica, 2005:288).
De fato, o jornalista havia recolhido a
porta do Puma explodido, arremessada com
a explosão para um local não
vistoriado pela PM. O exame pericial da
porta foi feito pelo Instituto de Criminalística
do Rio, afastando a hipótese de que
a bomba teria explodido externamente.
Tal
idealização do jornalista
fazia parte do discurso valorativo da profissão
nos anos 1970. Esse aspecto é valorizado
no jornalismo, pois assim a profissão
se transforma em algo simbolicamente maior:
não é apenas relato dos fatos,
mas vivência cotidiana das transgressões,
descobertas, desvelamento. Mais importante
do que informar é descobrir.
Considerações
finais
Os
textos jornalísticos analisados aqui
mostram, ainda que pontualmente, como a
imprensa contribuiu para o processo de redemocratização
do país. Até hoje, exerce
um papel de vigilância para o funcionamento
da máquina pública em bases
éticas. Mas não podemos deixar
de visualizar que o jornalismo também
adota estratégias para reforçar
o seu papel social, a exemplo dos demais
campos da vida social. A defesa em torno
da reportagem investigativa teve (e tem
ainda) papel fundamental na constituição
da identidade profissional do jornalista,
num claro processo de idealização
da profissão.
Convém
salientar que - embora o momento histórico
de abertura política, revogação
do AI-5 e fim da censura prévia nos
jornais tenha favorecido cenário
ideal para o fortalecimento da investigação
jornalística no país - este
tipo de reportagem não se generalizou
como prática entre os profissionais
de imprensa.
Por
esse motivo, queremos sublinhar que estas
considerações devem ser vistas
menos como um quadro geral da imprensa no
contexto do regime militar e mais como uma
nuance, um outro ângulo na discussão
sobre as relações entre a
censura e a produção jornalística
nos anos 1970. Há uma multiplicidade
de papéis exercidos por jornalistas
neste período e não podemos
ignorar o enfrentamento de posições
entre a imprensa e a sua relação
com o Estado.
O
que podemos perceber é que o gênero
da reportagem investigativa sugere, sobretudo,
uma aproximação dos ditames
profissionais da própria polícia.
Investigativo confunde-se assim com investigador
policial. Com a distensão política,
este profissional não mais exerce
uma função explícita
junto ao Estado, rompendo com as relações
de cumplicidade com o poder instituído.
Até
os dias atuais, vemos que a naturalização
da prática do repórter como
investigador policial torna-se um capital
simbólico de grande valor, pois confere
credibilidade ao jornal e oferece as condições
de aceitabilidade do seu discurso. Citamos
um dos exemplos mais recentes de profissionais
ligados a esse ideário romântico
da profissão: o jornalista Tim Lopes.
Sua
atuação se identificava com
a prática do "verdadeiro jornalismo",
responsável por investigar desde
a corrupção nas esferas públicas
até o crime organizado nas favelas.
Agia como "herdeiro" de uma tradição
de repórteres, infiltrando-se em
locais onde nem a polícia tem acesso,
trazendo para as redações
o "furo". Também neste
caso não há como dissociar
o processo de autoconstrução
do repórter como investigador com
a questão da autoridade jornalística.
O
desfecho do caso Tim Lopes, no entanto,
mostra os riscos na cobertura de assuntos
em que a captação de informações
se confunde com as técnicas de polícia.
Se nos fim dos anos 1970, como vimos, os
produtores de notícias se viam diante
da perseguição política,
maior obstáculo para a livre circulação
de informações, nos anos pós-redemocratização
o risco para a reportagem investigativa
vai decorrer da violência urbana nos
grandes centros.
Notas
[1]
O jornalista Wladimir Herzog, então
com 38 anos, teria se enforcado, segundo
a versão oficial. A morte por suicídio
foi desmentida por testemunhas presas na
mesma época. Seu nome consta na lista
do Movimento Tortura Nunca Mais como
vítima da Ditadura Militar no Brasil.
[2]
Os estudos culturais americanos apresentam
o jornalismo como um sistema de produção
de verdades. Ambos os autores seguem a abordagem
culturalista da escola britânica.
[3]
Vários autores (Campbell, Schudson,
Carey) da linha dos estudos culturais americanos
discutem a fronteira entre informação
e narrativa e as exigências da objetividade
e narratividade na prática jornalística.
Os dois discursos são considerados,
nestas análises, constitutivos da
identidade profissional dos jornalistas.
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narrative, collective memory and journalistic
authority". p. 01-13.
*Marcio
Castilho é mestre em Comunicação,
Imagem e Informação pela Universidade
Federal Fluminense (UFF) e doutorando em
Comunicação e Cultura pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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