Nº 8 - Julho 2007 Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO V
 
 

Expediente

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 

 

 


 

 

 

 

 

 


MONOGRAFIAS
   

Meio ambiente:
Discursos jornalísticos e representações da desordem global


Por
Leonel Azevedo de Aguiar*

Resumo
Este artigo realiza, a partir das primeiras páginas de dois jornais diários de circulação no Rio de Janeiro, um mapeamento das representações sociais sobre os problemas ambientais presentes na Atualidade. Constata que as notícias sobre as catástrofes ecológicas globais ocupam um espaço, na grande imprensa, cada vez maior e discute como esses discursos jornalísticos constroem uma representação da crise do meio ambiente que se vincula a uma heurística do medo, na qual o signo da negatividade esvazia a possibilidade da ação política. Conclui que as representações produzidas pelos jornais pesquisados acabam sendo reforçadas pelo contexto social de fruição das mensagens, pois o público-receptor encontra-se imerso em um modelo de sociedade marcada pelos riscos globais.

Palavras-chave
[Jornalismo ambiental / Discursos jornalísticos / Representações sociais / Riscos ecológicos]


Introdução

Ao realizarmos um levantamento das manchetes sobre os problemas ambientais em dois jornais do Rio de Janeiro, no período situado entre 1992 e 2001, podemos afirmar que o processo de globalização produziu um discurso jornalístico marcado pela representação de que os riscos ecológicos também se tornaram globais.

O período estudado está delimitado por dois eventos de caráter mundial: a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada por iniciativa da Organização das Nações Unidas, em 1992, no Rio de Janeiro, e o ano que antecede a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, ocorrida em 2002, em Johannesburgo, na África do Sul. O corpus de análise compõe-se de 1322 textos jornalísticos, manchetes que abordam assuntos sobre meio ambiente.

A escolha pelas manchetes justifica-se pela análise empreendida por Adriano Rodrigues em relação às figuras dos títulos jornalísticos, na qual aponta que, por causa do processo de figuração, as manchetes "se constituem em texto dentro do texto que fazem, ao mesmo tempo, ver e esconder o texto para que dirigem o olhar do leitor" (Cf. Rodrigues, 1990:108).

A seguir, apresentamos apenas alguns exemplos de manchetes, estampadas nas primeiras páginas dos jornais O Globo e Jornal do Brasil na época da Conferência "Rio-92" e nos dois anos anteriores a "Rio + 10", que selecionamos para evidenciar as premissas apontadas nesse trabalho:

  • "ONU aponta destruição ambiental sem precedentes". [1]
  • "Civilização desaparecerá em 20 anos". [2]
  • "Desertificação já ameaça vida na Terra". [3]
  • "Temos que agir para salvar a Terra". [4]
  • "Chefes do mundo assumem na Rio-92 o compromisso de salvar a Terra". [5]
  • "Terra está em perigo, dizem 1575 cientistas". [6]
  • "ONU mostra que saúde do planeta piorou". [7]
  • "Especialistas listam tragédias ambientais que podem ser causadas pelo aquecimento do planeta". [8]
  • "Aquecimento global começa a derreter geleiras". [9]
  • "Caos no clima trará fome". [10]
  • "Estudo lista os perigos do aquecimento global". [11]
  • "Aumenta o risco de extinção global". [12]
  • "Caos no clima aumenta violência de furacões". [13]

A partir do corpus de análise e dos exemplos acentuados nessas manchetes, escolhemos duas questões para pensar como os riscos globais, resultantes da mundialização do capitalismo, marcam os valores contemporâneos sob a negatividade de uma pedagogia política centrada no sentimento do medo coletivo e estão expressos nos discursos jornalísticos.

Entendemos que este procedimento político-pedagógico atravessa a quase totalidade dos discursos jornalísticos sobre os problemas ambientais, nos quais se produz o signo de uma heurística do medo. As questões que nos propomos a discutir podem ser pensadas a partir do método arqueológico de análise do discurso apresentado por Foucault (1997).

Como na perspectiva foucaultiana todo discurso é o eco lingüístico da articulação entre saber e poder, se torna inseparável uma análise genealógica do poder contemporâneo, que descreva um regime de discursividade e investigue a relação existente entre os grandes tipos de discursos e as condições históricas e políticas de seu aparecimento (Foucault, 1996).

As duas questões sintetizam-se nas seguintes perguntas, típicas do método genealógico de Foucault (1990): para que os desastres ambientais e as catástrofes ecológicas ocupam um espaço cada vez maior na mídia? Para que a mídia produz um discurso aproximando o princípio da responsabilidade e uma ação política impulsionada pelo medo?

Heurística do medo

As notícias relacionadas à desordem ecológica global vêm recebendo um destaque cada vez maior nos meios de comunicação de massa. Essas mensagens jornalísticas, entretanto, constroem uma representação dos problemas ambientais que vincula esta temática ao princípio da responsabilidade [14], no qual a ação da sociedade acaba sendo impulsionada por uma pedagogia política centrada no sentimento do medo coletivo.

Se concordarmos que uma das características da Atualidade [15] é a produção de riscos globais [16] de conseqüências cataclísmicas - entre os quais, o aquecimento dO Globo terrestre e o enfraquecimento da camada de ozônio pela emissão de gases poluentes, além das "tecno-epidemias" [17], isto é, as doenças resultantes de tecnologias que poluem a água, o ar, o solo e os alimentos -, podemos apontar que tais riscos, além de serem inerentes ao processo de mundialização do capitalismo, determinam os valores contemporâneos sob a negatividade de uma heurística do medo.

O princípio da responsabilidade, ao reconhecer que a irredutibilidade dos riscos globais implica no fim das certezas dadas pela ciência [18] e seus instrumentos de controle típicos da Modernidade, também atua como imperativo do dever moral indutor de um sentimento do medo coletivo. Ou seja, esse procedimento político-pedagógico não só se materializa através da produção dos textos jornalísticos sobre os problemas do meio ambiente, mas, simultaneamente, a representação da crise ambiental construída pela mídia traz a marca da heurística do medo.

Nesta perspectiva, a crise ambiental recoloca, na cena teórica, a natureza enquanto uma questão para o pensamento: a ecologia emerge como um campo de saber e um problema ético-político, tornando-se, ao mesmo tempo, um ramo especializado da ciência e uma das vertentes do movimento social contemporâneo de maior visibilidade na mídia.

O movimento ecológico pode ser situado enquanto um movimento social típico da cultura de massa, pois as inúmeras denúncias de desastres ecológicos e manifestações em defesa do meio ambiente veiculadas incessantemente pelos meios de comunicação de massa acabaram por produzir uma "sensibilidade ecológica" e uma "consciência ecológica" [19] que ultrapassaram as fronteiras do próprio movimento.

A dupla perspectiva da ecologia - um saber científico e um novo movimento social - aponta que estão em jogo valores contraditórios e a crise ambiental torna-se, na avaliação dos ecologistas, oportunidade para a construção de uma proposta ética que possibilite a transformação histórica. Esta ética, todavia, não pode ser construída a partir do medo da catástrofe ecológica global - conforme fazem os discursos jornalísticos veiculados nos meios de comunicação de massa -, já que tais formações discursivas têm, como imperativo moral, a problemática "vida ou morte" [20] da humanidade.

As representações sociais da desordem ecológica da biosfera veiculadas na mídia também podem ser interpretadas como uma produção de sentido que expressa não só o problema da destruição da natureza e a degradação dos estilos de vida urbanos e rurais, mas, principalmente, os riscos de uma catástrofe ecológica global que ameaça a sobrevivência da humanidade e do planeta. Por um lado, os riscos globais que inauguram a era das "três ecologias" (Guattari, 1990) são também demarcações distintivas dos discursos jornalísticos presentes na mídia, inflados por um dever moral centrado no medo em relação às catástrofes globais e aos desequilíbrios planetários.

Por outro, a questão ecológica ganha visibilidade social nos discursos jornalísticos a partir de duas representações hegemônicas: vinculada ao passado, uma visão de preservação da natureza por ser um espaço do sagrado e de conservação da tradição; já na direção do futuro, uma visão de gerenciamento eficaz dos ecossistemas pela eficácia da ciência e eficiência da tecnologia.

Representações da crise ambiental

Ao abordarmos as mudanças ocorridas nas formas de representação social dos problemas ambientais pelos meios de comunicação de massa, é possível distinguir - a partir de uma revisão bibliográfica sobre o tema - quatro diferentes produções de sentido. Para melhor entendimento das representações da crise do meio ambiente e das ações do movimento ecológico, montamos quatro cenários nos quais se desenrolam as respectivas representações sociais, delimitado por décadas.

Na década de 60, os problemas ambientais eram representados como resultantes de uma crise de participação e a luta política do movimento ecológico centrava-se no acesso aos recursos naturais e sua distribuição para os setores socialmente excluídos. A vertente da Ecologia Política surgiu nos anos 60 com uma plataforma de propostas políticas para superar os problemas ambientais. Entretanto, justamente por estar ainda no quadro de um sistema de pensamento tipicamente moderno, é que esta vertente elegeria a ecologia - enquanto ciência - para se tornar o paradigma da superação dos impasses modernos.

Nos anos 70, a crise ambiental deixa de ser representada como uma crise de participação, na qual a temática ecológica estava marcada pela mobilização política de poucos e pequenos grupos sociais e por um silêncio dos meios de comunicação de massa em torno do tema da degradação do meio ambiente.

Eis um exemplo: instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU), o Dia da Terra veio a se tornar na maior manifestação em defesa do meio ambiente realizada, até então, nos Estados Unidos - em 22 de abril de 1970, foram realizados comícios e palestras, simultaneamente, em dez mil colégios e em 1.500 faculdades, além de atos públicos em Nova York e em Washington. As estimativas apontam a mobilização de dois milhões de participantes. Os eventos resultaram em reportagens de capa e manchetes de jornais e de revistas como a Time e a Life.

Com a publicação do relatório do Clube de Roma/Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) - intitulado Os Limites do Crescimento e propondo o "crescimento zero" [21] da economia - e a realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, em 1972, na Suécia, Estocolmo, a representação social da desordem do meio ambiente assume o enfoque de uma crise de sobrevivência. A crise ambiental é representada, portanto, como um problema de escassez, já que os cientistas e as autoridades governamentais afirmavam existirem limites insuperáveis para a exploração e o uso dos recursos naturais, sendo imprescindível frear a expansão material ilimitada da sociedade.

A crítica dos ecologistas vai apontar que o projeto desenvolvimentista da sociedade moderna está baseado em um sistema de valores materialistas, de tal modo que se reduz a finalidade da vida social à acumulação infindável de bens materiais. Neste modelo de representação da crise ambiental, o problema ecológico decorre da ideologia do progresso, que considera a base material - isto é, a natureza - desse estilo de desenvolvimento como inesgotável. Este desenvolvimentismo, cuja finalidade é o crescimento ilimitado, entende que esta base material é infinita do ponto de vista dos recursos naturais e, também, na sua capacidade de suportar as atividades poluidoras e seu resultado, a poluição ambiental.

Já na década de 80, a representação social da crise ambiental assume a imagem de uma crise cultural. A crise do meio ambiente passa a ser representada como o momento oportuno para superar a racionalidade instrumental e a ética de valores materialistas que construíram a Modernidade.

Em 1987 é publicado, pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU, o relatório Nosso Futuro Comum, que, além de ser um esforço para a obtenção do consenso mundial sobre questões de meio ambiente e desenvolvimento, tem como principal avanço apontar a problemática ambiental enquanto um campo de articulação entre ética e política. O relatório propõe o conceito de "desenvolvimento sustentável" [22], enquanto um estilo de desenvolvimento econômico que leva em conta a sustentabilidade global do meio ambiente, de modo a atender às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades.

Este conceito, que tem assegurado amplos espaços de divulgação nos meios de comunicação de massa, ao acomodar consensualmente interesses empresariais e governamentais, apresenta três aspectos principais: crescimento econômico, equidade social e equilíbrio ecológico. Além de reconhecer a complexidade e a interdependência da problemática ambiental, o conceito de desenvolvimento sustentável vincula-se a uma ética da responsabilidade comum da sociedade frente à natureza.

Um exemplo dessa representação na mídia: conforme realiza sempre no seu último número anual, a revista Time elegeu como "personalidade do ano" de 1988 aquele que vinha se destacando enquanto um novo e inusitado protagonista do noticiário jornalístico - o planeta Terra. Para Viola e Leis (1991), este fato jornalístico pode ser entendido como uma ruptura na representação social dos desequilíbrios ecológicos globais que ameaçam a biosfera.

O que está em questão é saber para que um meio de comunicação de massa - neste caso, uma revista pertencente a uma mega-empresa norte-americana, que funciona como "agenciamento coletivo de enunciação" (Cf. Guattari, 1990:46) voltado para a produção de subjetividades adequadas à atual etapa do imperativo consumista do capitalismo - propõe uma mudança urgente no modelo de desenvolvimento e nos atuais modos de vida para solucionar a crise ambiental.

Morin e Kern (1995) apontam que foi exatamente o consumismo, enquanto ideologia resultante do pensamento materialista moderno, que se transformou na forma hegemônica de realização do capitalismo a partir da segunda metade do século XX e acarretou a desordem do meio ambiente em níveis globais, ultrapassando os até então níveis locais dos desequilíbrios ambientais.

Catástrofes e riscos globais

Na década de 90, a representação da crise ambiental consolida-se enquanto uma questão de risco planetário, vinculada ao processo de globalização do capitalismo, ao seu modelo de sociedade e a uma forma de individualidade centrada na ideologia do individualismo e no racionalismo técnico-científico. Ou seja, a desordem ecológica do meio ambiente não é apenas o resultado de uma explosão demográfica ou de uma depleção dos recursos naturais, mas é representada pela ótica de uma crise global de civilização, de um modelo de sociedade que se tornou globalizado. A crise ambiental é global porque abrange toda a humanidade e seu lugar de habitação, a biosfera.

Esta representação, que se aprofunda ao longo da década de 90, aponta que a problemática desencadeada pela desordem global da biosfera vai além das abordagens teóricas que entendem o movimento ecológico enquanto expressão dos novos movimentos sociais, campo político contemporâneo de formulação de uma crítica ao sistema capitalista e de uma ética com valores contrapostos aos da ordem social moderna, inclusive aquela orientação valorativa dos movimentos sociais tipicamente modernos, como o sindicalismo.

Esta representação também aponta que há um afastamento do movimento ecológico em relação aos novos movimentos sociais: os movimentos das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos jovens, dos loucos possuem como referência um sujeito histórico preciso, que se expressa na imanência do corpo - demandando, portanto, ações políticas específicas para questões singulares. Já o movimento ecológico aposta que não se chegou ao "fim da História" [23] e deseja a transformação ampla e radical da sociedade capitalista em sua totalidade, ou seja, em todas as dimensões da vida.

No movimento ecológico, a falta de definição precisa de um sujeito histórico é entendida como a expressão "de sua posição privilegiada de novo patamar, a partir do qual se pode repensar a trajetória da civilização" (Cf. Sader, 1992:139). Na associação da crise ambiental como uma crise de civilização em nível planetário, englobando toda a humanidade, em suas diversas formas de sociedades, o ecologismo aponta para um projeto totalizante que se afasta das propostas singularizantes dos novos movimentos sociais, afirmadoras da primazia do particular sobre o geral.

Se a proposta política típica da Modernidade era universalizante e geral, a perspectiva contemporânea dos novos movimentos sociais não pretende realizar nenhum projeto de síntese totalizante e, sim, afirmar a possibilidade de uma consciência fragmentada. O movimento ecológico, entretanto, "ao acreditar que tudo se liga a tudo e ao proclamar a totalidade como a medida do homem" (Cf. Crespo, 1997:210), marca sua diferença em relação aos movimentos sociais que afirmam a produção de novas identidades e enfatizam a fragmentação da consciência política e o reconhecimento da impossibilidade de projetos totalizantes como uma das principais características do campo político contemporâneo.

Partir, portanto, da premissa de que a civilização urbano-industrial em sua atual etapa de integração mundial é insustentável, segundo parâmetros sócio-ambientais formulados pelo movimento ecológico, significa representar este como um movimento histórico que coloca em questão os padrões civilizacionais contemporâneos.

No relatório Nosso Futuro Comum, a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento solicita que a Assembléia Geral da ONU convoque uma conferência internacional com o objetivo de produzir um programa de ação global para o desenvolvimento sustentável. A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD) - a Rio-92 - realizou-se no Rio de Janeiro, em 1992, um ano após a dissolução da União Soviética e dos países do Leste europeu que integravam o contexto de um mundo bipolarizado entre nações capitalistas versus comunistas. O fim da bipolaridade cria uma expectativa positiva e otimista em nível internacional: após o longo período da Guerra Fria, ocorre o primeiro encontro de cúpula da comunidade internacional, a Cúpula da Terra da Rio-92 (Earth Summit).

Um dos principais documentos resultantes da Earth Summit, a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento [24], apresenta 27 princípios que têm por objetivo criar uma nova parceria global entre as nações, para alcançar o desenvolvimento sustentável em nível mundial.

No documento oficial, entretanto, já era possível perceber a primeira contradição política e ética: como administrar uma parceria global dentro da desigualdade internacional, onde 20% da população do planeta que habitam o hemisfério norte consomem 80% dos recursos ambientais e são responsáveis por 75% da poluição ambiental, além de deterem 80% da renda mundial? Como é possível implantar parcerias se os Estados Unidos, com 6% da população mundial, consomem 25% da produção internacional de petróleo? [25]

A Declaração do Rio de Janeiro começa reafirmando os princípios da Conferência de Estocolmo-72 e reforçando uma perspectiva utilitarista da civilização ocidental, segundo a qual a humanidade está no centro dos objetivos do desenvolvimento sustentável e as medidas de proteção do meio ambiente são restritas a esforços que favoreçam exclusivamente a sociedade.

A diferença é que a conferência de 1972 teve como principal preocupação introduzir a questão ambiental nas políticas de âmbito nacional de cada país, enquanto que a Rio-92 trouxe para o debate o avanço da degradação ambiental em nível internacional e a importância de soluções globais para os problemas ambientais, igualmente, globais. Ou seja, constatou-se que os danos ambientais não respeitam as fronteiras entre países e, nos vinte anos entre as duas reuniões da ONU, houve um agravamento dos problemas ambientais, tornados transfronteiriços.

Medo ecológico

Na Atualidade, quando os problemas produzidos pela devastação dos ecossistemas se tornam globais, a crise ambiental dissolve as fronteiras rígidas da Modernidade e a natureza entra no campo da cultura: para Serres, este fato é inédito na Filosofia, pois "o que está em risco é a Terra em sua totalidade e os homens em seu conjunto" (Cf. Serres, 1991:15).

De objeto, na Modernidade, a natureza transforma-se, na Atualidade, em "sujeito de Direito": um "sujeito" capaz de colocar em risco a existência do homem por uma contra-ação aos processos de destruição que vem sofrendo, pois estão em jogo os riscos das catástrofes ecológicas produzidas por esse "novo sujeito da História" (Cf. Giddens, 1996:28). Esta passagem da Modernidade para a Atualidade é, também, a passagem do local ao global: um objeto local, sobre o qual o sujeito do conhecimento moderno empreendia seu projeto de dominação tecno-científico, passa a sujeito global - o planeta Terra -, com o qual um outro novo sujeito, também global - a humanidade -, vai ter que forjar um novo contrato, conforme propõe Serres, análogo ao contrato social proposto pelos filósofos do século XVIII: o contrato natural.

Mas, afinal, o princípio de responsabilidade é um dever moral ou uma opção ética? O homem é responsável em relação a quem? A questão, por conseguinte, que se coloca é como produzir um princípio de responsabilidade que vá além das perspectivas da Modernidade centradas no otimismo do futuro - como nas utopias políticas - ou na nostalgia dos modelos do passado - voltadas para as sociedades indígenas tradicionais - e que não deixe ao presente apenas a sensação de pessimismo.

Se, por um lado, Jonas atribui à liberdade humana a tarefa ética de assumir voluntariamente a responsabilidade pela preservação da natureza, por outro, aproxima excessivamente a responsabilidade do medo. Esta heurística do medo é um retorno à passagem hobbesiana do estado de natureza - o lugar da "guerra de todos contra todos" (Cf. Hobbes, 1979:77) - para o Estado de Direito. O medo é a paixão política fundamental: antes do aparecimento das leis que regem a vida em sociedade, os homens viviam o medo permanente da morte violenta.

Para escapar a este sentimento, acabaram aceitando a imposição de um estado regido por leis que garantisse a segurança coletiva. Se a paixão política foi moldada pelo medo egoísta, na Atualidade este medo está em função do Outro, entendido como vida, biosfera, natureza, planeta Terra ou gerações futuras.

Assim, o medo ecológico torna-se um "medo planetário" [26] frente à incapacidade de produzir com precisão certezas científicas que levem a uma tomada de decisão que não coloque em jogo escolhas éticas. O saber científico atual ainda é insuficiente e não porta garantias definitivas para medir as conseqüências da ação humana face à complexidade da questão ambiental. Também se pode dizer que o medo ecológico já estava enraizado na mitologia grega, com sua representação de uma natureza como lugar do mistério e do mal.

Na origem do projeto de dominação e artificialização da natureza da ciência moderna, está este medo ecológico, remanescente como um resíduo do irracionalismo arcaico que a Modernidade não conseguiu eliminar. O esquecimento desse medo arcaico leva o homem moderno a dar vazão a esta vontade de poder, que resulta na ameaça de destruição global da natureza: vencer a natureza, artificializar o mundo para maior controle é também extirpar este medo arcaico. Ou seja, como afirma Latour (1994), o homem da Modernidade não é tão moderno quanto acreditava ser.

Considerações finais

Para Jonas, a responsabilidade volta-se sobre a vida ameaçada e o medo passa a ser um dever moral - e não uma escolha ética - e também um método de conhecimento para localização e distinção das ameaças ecológicas, de modo a poder separar os riscos aceitáveis pela sociedade dos perigos insuportáveis. A tecno-ciência desenvolveu um poder de grande perigo, que não é percebido como ameaça, em função do atual nível de progresso material dos países centrais do capitalismo mundial e suas elites periféricas.

O perigo da tecno-ciência reside no enorme sucesso e no amplo alcance de suas intervenções no mundo. Aliás, o próprio desenvolvimento da tecno-ciência toma impulso através dos problemas acarretados pelo sucesso de seu projeto de dominação da natureza. A razão iluminista já não detém a capacidade de controle sobre o potencial de destruição da vida que se tornou o aparato da tecno-ciência na Atualidade.

É o sucesso da tecno-ciência e, em contrapartida, seu potencial de aniquilamento da vida que tornam impossível garantir o total controle das conseqüências das decisões sobre os problemas globais da biosfera. Deste modo, será o medo como uma paixão política primordial - traduzida em sua proximidade pelo princípio da responsabilidade - que conduzirá ao imperativo do dever moral de afastar a possibilidade do risco total, pois coloca em perigo a vida humana e afeta o futuro da humanidade e da biosfera.

O princípio da responsabilidade, conforme enunciado nos discursos jornalísticos, não consegue erigir uma nova ética que vise ao processo de simbiose entre a humanidade e um objeto precário e frágil como a biosfera. Por ser direcionada pela antecipação das ameaças e controle dos riscos, esta responsabilidade torna-se - pela representação social produzida na e pela cultura de massa - um dever moral guiado pelo sentimento coletivo do medo.

Notas

[1] Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 08mai1992.

[2] Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18mai1992. A manchete refere-se a um recorte da entrevista feita com Lester Brow, editor do relatório Situação do Mundo.

[3] Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29mai1992.

[4] Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31mai1992. A manchete remete a um recorte da entrevista realizada com Maurice Strong, secretário-geral da ONU para a Conferência "Rio-92".

[5] Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13jun1992.

[6] Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19nov1992.

[7] Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 10dez1992.

[8] O Globo, 16out2000.

[9] O Globo, 07dez2000.

[10] O Globo, 20fev2001.

[11] O Globo, 02mai2001.

[12] O Globo, 09mai2001.

[13] O Globo, 20jul2001.

[14] Para uma discussão sobre o princípio de responsabilidade e a proposta de uma ética para a sociedade tecnológica, ver Jonas (1992).

[15] O conceito de Atualidade está em Deleuze (1992:219-26).

[16] Sobre sociedade de riscos, ver Beck (1992).

[17] O termo "tecno-epidemias" está em Beck (1994).

[18] Para uma crítica ao determinismo da ciência moderna, ver Prigogine (1996).

[19] A distinção entre "sensibilidade ecológica" e "consciência ecológica" está em Ward e Dubos (1973) e Castoriadis e Cohn-Bendit (1983), respectivamente.

[20] Em 1972, o Le Nouvel Observateur realizou uma série de debates e entrevistas sobre a questão ambiental, onde prevalece a visão catastrófica dos problemas ambientais. Marcuse fala em "terricídio" e Morin aponta que "a natureza vencida é a autodestruição do homem". Cf. Mansholt et al. (1979:49;80).

[21] Na época, houve um forte consenso a favor de limitar o crescimento da economia e da população, unindo ecologistas radicais da revista The Ecologist, cientistas - a maioria da área das ciências naturais - e empresários, além de políticos. Sobre o relatório do MIT, consultar Meadows et al. (1973).

[22] Sobre as contradições do conceito de desenvolvimento sustentável, ver Redclift (1989).

[23] A emergência de lutas que reivindicam direitos particulares em contraposição aos direitos universalizáveis da Modernidade é visto por Fukuyama (1992) como o fim da História, centrada na luta de classes. Para contrapor esta visão, ver Ewald (1984:92-99).

[24] Para mais detalhes sobre este documento, consultar: Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento. "Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento". In: ___. Agenda 21. Brasília: Câmara dos Deputados, 1995.

[25] Para estes dados, consultar o relatório do Banco Mundial (1992).

[26] Sobre a transformação do medo ecológico em de medo planetário, consultar: Alphandéry, P.; Bitoun, P. e Dupont, Y. (1993).

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*Leonel Azevedo de Aguiar é doutor Comunicação e Cultura pela UFRJ e professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da PUC-Rio, onde também exerce o cargo de coordenador do Curso de Jornalismo do Departamento de Comunicação Social.

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