Meio
ambiente:
Discursos jornalísticos e representações
da desordem global
Por Leonel
Azevedo de Aguiar*
Resumo
Este
artigo realiza, a partir das primeiras páginas
de dois jornais diários de circulação
no Rio de Janeiro, um mapeamento das representações
sociais sobre os problemas ambientais presentes
na Atualidade. Constata que as notícias
sobre as catástrofes ecológicas
globais ocupam um espaço, na grande
imprensa, cada vez maior e discute como
esses discursos jornalísticos constroem
uma representação da crise
do meio ambiente que se vincula a uma heurística
do medo, na qual o signo da negatividade
esvazia a possibilidade da ação
política. Conclui que as representações
produzidas pelos jornais pesquisados acabam
sendo reforçadas pelo contexto social
de fruição das mensagens,
pois o público-receptor encontra-se
imerso em um modelo de sociedade marcada
pelos riscos globais.
Palavras-chave
[Jornalismo
ambiental / Discursos jornalísticos
/ Representações sociais /
Riscos ecológicos]
Introdução
Ao
realizarmos um levantamento das manchetes
sobre os problemas ambientais em dois jornais
do Rio de Janeiro, no período situado
entre 1992 e 2001, podemos afirmar que o
processo de globalização produziu
um discurso jornalístico marcado
pela representação de que
os riscos ecológicos também
se tornaram globais.
O
período estudado está delimitado
por dois eventos de caráter mundial:
a Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento,
realizada por iniciativa da Organização
das Nações Unidas, em 1992,
no Rio de Janeiro, e o ano que antecede
a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento
Sustentável, ocorrida em 2002, em
Johannesburgo, na África do Sul.
O corpus de análise compõe-se
de 1322 textos jornalísticos, manchetes
que abordam assuntos sobre meio ambiente.
A
escolha pelas manchetes justifica-se pela
análise empreendida por Adriano Rodrigues
em relação às figuras
dos títulos jornalísticos,
na qual aponta que, por causa do processo
de figuração, as manchetes
"se constituem em texto dentro do texto
que fazem, ao mesmo tempo, ver e esconder
o texto para que dirigem o olhar do leitor"
(Cf. Rodrigues, 1990:108).
A
seguir, apresentamos apenas alguns exemplos
de manchetes, estampadas nas primeiras páginas
dos jornais O Globo e Jornal do Brasil na época da Conferência
"Rio-92" e nos dois anos anteriores
a "Rio + 10", que selecionamos
para evidenciar as premissas apontadas nesse
trabalho:
- "ONU
aponta destruição ambiental
sem precedentes". [1]
- "Civilização
desaparecerá em 20 anos".
[2]
- "Desertificação
já ameaça vida na Terra".
[3]
- "Temos
que agir para salvar a Terra". [4]
- "Chefes
do mundo assumem na Rio-92 o compromisso
de salvar a Terra". [5]
- "Terra
está em perigo, dizem 1575 cientistas".
[6]
- "ONU
mostra que saúde do planeta piorou".
[7]
- "Especialistas
listam tragédias ambientais que
podem ser causadas pelo aquecimento do
planeta". [8]
- "Aquecimento
global começa a derreter geleiras".
[9]
- "Caos
no clima trará fome". [10]
- "Estudo
lista os perigos do aquecimento global".
[11]
- "Aumenta
o risco de extinção global".
[12]
- "Caos
no clima aumenta violência de furacões".
[13]
A
partir do corpus de análise
e dos exemplos acentuados nessas manchetes,
escolhemos duas questões para pensar
como os riscos globais, resultantes da mundialização
do capitalismo, marcam os valores contemporâneos
sob a negatividade de uma pedagogia política
centrada no sentimento do medo coletivo
e estão expressos nos discursos jornalísticos.
Entendemos
que este procedimento político-pedagógico
atravessa a quase totalidade dos discursos
jornalísticos sobre os problemas
ambientais, nos quais se produz o signo
de uma heurística do medo. As questões
que nos propomos a discutir podem ser pensadas
a partir do método arqueológico
de análise do discurso apresentado
por Foucault (1997).
Como
na perspectiva foucaultiana todo discurso
é o eco lingüístico da
articulação entre saber e
poder, se torna inseparável uma análise
genealógica do poder contemporâneo,
que descreva um regime de discursividade
e investigue a relação existente
entre os grandes tipos de discursos e as
condições históricas
e políticas de seu aparecimento (Foucault,
1996).
As
duas questões sintetizam-se nas seguintes
perguntas, típicas do método
genealógico de Foucault (1990): para
que os desastres ambientais e as catástrofes
ecológicas ocupam um espaço
cada vez maior na mídia? Para que
a mídia produz um discurso aproximando
o princípio da responsabilidade e
uma ação política impulsionada
pelo medo?
Heurística
do medo
As
notícias relacionadas à desordem
ecológica global vêm recebendo
um destaque cada vez maior nos meios de
comunicação de massa. Essas
mensagens jornalísticas, entretanto,
constroem uma representação
dos problemas ambientais que vincula esta
temática ao princípio da responsabilidade
[14], no qual a ação da sociedade
acaba sendo impulsionada por uma pedagogia
política centrada no sentimento do
medo coletivo.
Se
concordarmos que uma das características
da Atualidade [15] é a produção
de riscos globais [16] de conseqüências
cataclísmicas - entre os quais, o
aquecimento dO Globo terrestre e o enfraquecimento
da camada de ozônio pela emissão
de gases poluentes, além das "tecno-epidemias"
[17], isto é, as doenças resultantes
de tecnologias que poluem a água,
o ar, o solo e os alimentos -, podemos apontar
que tais riscos, além de serem inerentes
ao processo de mundialização
do capitalismo, determinam os valores contemporâneos
sob a negatividade de uma heurística
do medo.
O
princípio da responsabilidade, ao
reconhecer que a irredutibilidade dos riscos
globais implica no fim das certezas dadas
pela ciência [18] e seus instrumentos
de controle típicos da Modernidade,
também atua como imperativo do dever
moral indutor de um sentimento do medo coletivo.
Ou seja, esse procedimento político-pedagógico
não só se materializa através
da produção dos textos jornalísticos
sobre os problemas do meio ambiente, mas,
simultaneamente, a representação
da crise ambiental construída pela
mídia traz a marca da heurística
do medo.
Nesta
perspectiva, a crise ambiental recoloca,
na cena teórica, a natureza enquanto
uma questão para o pensamento: a
ecologia emerge como um campo de saber e
um problema ético-político,
tornando-se, ao mesmo tempo, um ramo especializado
da ciência e uma das vertentes do
movimento social contemporâneo de
maior visibilidade na mídia.
O movimento ecológico pode ser situado
enquanto um movimento social típico
da cultura de massa, pois as inúmeras
denúncias de desastres ecológicos
e manifestações em defesa
do meio ambiente veiculadas incessantemente
pelos meios de comunicação
de massa acabaram por produzir uma "sensibilidade
ecológica" e uma "consciência
ecológica" [19] que ultrapassaram
as fronteiras do próprio movimento.
A
dupla perspectiva da ecologia - um saber
científico e um novo movimento social
- aponta que estão em jogo valores
contraditórios e a crise ambiental
torna-se, na avaliação dos
ecologistas, oportunidade para a construção
de uma proposta ética que possibilite
a transformação histórica.
Esta ética, todavia, não pode
ser construída a partir do medo da
catástrofe ecológica global
- conforme fazem os discursos jornalísticos
veiculados nos meios de comunicação
de massa -, já que tais formações
discursivas têm, como imperativo moral,
a problemática "vida ou morte"
[20] da humanidade.
As
representações sociais da
desordem ecológica da biosfera veiculadas
na mídia também podem ser
interpretadas como uma produção
de sentido que expressa não só
o problema da destruição da
natureza e a degradação dos
estilos de vida urbanos e rurais, mas, principalmente,
os riscos de uma catástrofe ecológica
global que ameaça a sobrevivência
da humanidade e do planeta. Por um lado,
os riscos globais que inauguram a era das
"três ecologias" (Guattari,
1990) são também demarcações
distintivas dos discursos jornalísticos
presentes na mídia, inflados por
um dever moral centrado no medo em relação
às catástrofes globais e aos
desequilíbrios planetários.
Por
outro, a questão ecológica
ganha visibilidade social nos discursos
jornalísticos a partir de duas representações
hegemônicas: vinculada ao passado,
uma visão de preservação
da natureza por ser um espaço do
sagrado e de conservação da
tradição; já na direção
do futuro, uma visão de gerenciamento
eficaz dos ecossistemas pela eficácia
da ciência e eficiência da tecnologia.
Representações
da crise ambiental
Ao
abordarmos as mudanças ocorridas
nas formas de representação
social dos problemas ambientais pelos meios
de comunicação de massa, é
possível distinguir - a partir de
uma revisão bibliográfica
sobre o tema - quatro diferentes produções
de sentido. Para melhor entendimento das
representações da crise do
meio ambiente e das ações
do movimento ecológico, montamos
quatro cenários nos quais se desenrolam
as respectivas representações
sociais, delimitado por décadas.
Na
década de 60, os problemas ambientais
eram representados como resultantes de uma
crise de participação e a
luta política do movimento ecológico
centrava-se no acesso aos recursos naturais
e sua distribuição para os
setores socialmente excluídos. A
vertente da Ecologia Política surgiu
nos anos 60 com uma plataforma de propostas
políticas para superar os problemas
ambientais. Entretanto, justamente por estar
ainda no quadro de um sistema de pensamento
tipicamente moderno, é que esta vertente
elegeria a ecologia - enquanto ciência
- para se tornar o paradigma da superação
dos impasses modernos.
Nos
anos 70, a crise ambiental deixa de ser
representada como uma crise de participação,
na qual a temática ecológica
estava marcada pela mobilização
política de poucos e pequenos grupos
sociais e por um silêncio dos meios
de comunicação de massa em
torno do tema da degradação
do meio ambiente.
Eis
um exemplo: instituído pela Organização
das Nações Unidas (ONU), o
Dia da Terra veio a se tornar na maior manifestação
em defesa do meio ambiente realizada, até
então, nos Estados Unidos - em 22
de abril de 1970, foram realizados comícios
e palestras, simultaneamente, em dez mil
colégios e em 1.500 faculdades, além
de atos públicos em Nova York e em
Washington. As estimativas apontam a mobilização
de dois milhões de participantes.
Os eventos resultaram em reportagens de
capa e manchetes de jornais e de revistas
como a Time e a Life.
Com
a publicação do relatório
do Clube de Roma/Instituto de Tecnologia
de Massachusetts (MIT) - intitulado Os
Limites do Crescimento e propondo o
"crescimento zero" [21] da economia
- e a realização da Conferência
das Nações Unidas sobre o
Meio Ambiente Humano, em 1972, na Suécia,
Estocolmo, a representação
social da desordem do meio ambiente assume
o enfoque de uma crise de sobrevivência.
A crise ambiental é representada,
portanto, como um problema de escassez,
já que os cientistas e as autoridades
governamentais afirmavam existirem limites
insuperáveis para a exploração
e o uso dos recursos naturais, sendo imprescindível
frear a expansão material ilimitada
da sociedade.
A
crítica dos ecologistas vai apontar
que o projeto desenvolvimentista da sociedade
moderna está baseado em um sistema
de valores materialistas, de tal modo que
se reduz a finalidade da vida social à
acumulação infindável
de bens materiais. Neste modelo de representação
da crise ambiental, o problema ecológico
decorre da ideologia do progresso, que considera
a base material - isto é, a natureza
- desse estilo de desenvolvimento como inesgotável.
Este desenvolvimentismo, cuja finalidade
é o crescimento ilimitado, entende
que esta base material é infinita
do ponto de vista dos recursos naturais
e, também, na sua capacidade de suportar
as atividades poluidoras e seu resultado,
a poluição ambiental.
Já
na década de 80, a representação
social da crise ambiental assume a imagem
de uma crise cultural. A crise do meio ambiente
passa a ser representada como o momento
oportuno para superar a racionalidade instrumental
e a ética de valores materialistas
que construíram a Modernidade.
Em
1987 é publicado, pela Comissão
Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
da ONU, o relatório Nosso Futuro
Comum, que, além de ser um esforço
para a obtenção do consenso
mundial sobre questões de meio ambiente
e desenvolvimento, tem como principal avanço
apontar a problemática ambiental
enquanto um campo de articulação
entre ética e política. O
relatório propõe o conceito
de "desenvolvimento sustentável"
[22], enquanto um estilo de desenvolvimento
econômico que leva em conta a sustentabilidade
global do meio ambiente, de modo a atender
às necessidades do presente sem comprometer
a possibilidade das gerações
futuras atenderem as suas próprias
necessidades.
Este
conceito, que tem assegurado amplos espaços
de divulgação nos meios de
comunicação de massa, ao acomodar
consensualmente interesses empresariais
e governamentais, apresenta três aspectos
principais: crescimento econômico,
equidade social e equilíbrio ecológico.
Além de reconhecer a complexidade
e a interdependência da problemática
ambiental, o conceito de desenvolvimento
sustentável vincula-se a uma ética
da responsabilidade comum da sociedade frente
à natureza.
Um
exemplo dessa representação
na mídia: conforme realiza sempre
no seu último número anual,
a revista Time elegeu como "personalidade
do ano" de 1988 aquele que vinha se
destacando enquanto um novo e inusitado
protagonista do noticiário jornalístico
- o planeta Terra. Para Viola e Leis (1991),
este fato jornalístico pode ser entendido
como uma ruptura na representação
social dos desequilíbrios ecológicos
globais que ameaçam a biosfera.
O
que está em questão é
saber para que um meio de comunicação
de massa - neste caso, uma revista pertencente
a uma mega-empresa norte-americana, que
funciona como "agenciamento coletivo
de enunciação" (Cf. Guattari,
1990:46) voltado para a produção
de subjetividades adequadas à atual
etapa do imperativo consumista do capitalismo
- propõe uma mudança urgente
no modelo de desenvolvimento e nos atuais
modos de vida para solucionar a crise ambiental.
Morin
e Kern (1995) apontam que foi exatamente
o consumismo, enquanto ideologia resultante
do pensamento materialista moderno, que
se transformou na forma hegemônica
de realização do capitalismo
a partir da segunda metade do século
XX e acarretou a desordem do meio ambiente
em níveis globais, ultrapassando
os até então níveis
locais dos desequilíbrios ambientais.
Catástrofes
e riscos globais
Na
década de 90, a representação
da crise ambiental consolida-se enquanto
uma questão de risco planetário,
vinculada ao processo de globalização
do capitalismo, ao seu modelo de sociedade
e a uma forma de individualidade centrada
na ideologia do individualismo e no racionalismo
técnico-científico. Ou seja,
a desordem ecológica do meio ambiente
não é apenas o resultado de
uma explosão demográfica ou
de uma depleção dos recursos
naturais, mas é representada pela
ótica de uma crise global de civilização,
de um modelo de sociedade que se tornou
globalizado. A crise ambiental é
global porque abrange toda a humanidade
e seu lugar de habitação,
a biosfera.
Esta representação, que se
aprofunda ao longo da década de 90,
aponta que a problemática desencadeada
pela desordem global da biosfera vai além
das abordagens teóricas que entendem
o movimento ecológico enquanto expressão
dos novos movimentos sociais, campo político
contemporâneo de formulação
de uma crítica ao sistema capitalista
e de uma ética com valores contrapostos
aos da ordem social moderna, inclusive aquela
orientação valorativa dos
movimentos sociais tipicamente modernos,
como o sindicalismo.
Esta
representação também
aponta que há um afastamento do movimento
ecológico em relação
aos novos movimentos sociais: os movimentos
das mulheres, dos negros, dos indígenas,
dos jovens, dos loucos possuem como referência
um sujeito histórico preciso, que
se expressa na imanência do corpo
- demandando, portanto, ações
políticas específicas para
questões singulares. Já o
movimento ecológico aposta que não
se chegou ao "fim da História"
[23] e deseja a transformação
ampla e radical da sociedade capitalista
em sua totalidade, ou seja, em todas as
dimensões da vida.
No movimento ecológico, a falta de
definição precisa de um sujeito
histórico é entendida como
a expressão "de sua posição
privilegiada de novo patamar, a partir do
qual se pode repensar a trajetória
da civilização" (Cf.
Sader, 1992:139). Na associação
da crise ambiental como uma crise de civilização
em nível planetário, englobando
toda a humanidade, em suas diversas formas
de sociedades, o ecologismo aponta para
um projeto totalizante que se afasta das
propostas singularizantes dos novos movimentos
sociais, afirmadoras da primazia do particular
sobre o geral.
Se
a proposta política típica
da Modernidade era universalizante e geral,
a perspectiva contemporânea dos novos
movimentos sociais não pretende realizar
nenhum projeto de síntese totalizante
e, sim, afirmar a possibilidade de uma consciência
fragmentada. O movimento ecológico,
entretanto, "ao acreditar que tudo
se liga a tudo e ao proclamar a totalidade
como a medida do homem" (Cf. Crespo,
1997:210), marca sua diferença em
relação aos movimentos sociais
que afirmam a produção de
novas identidades e enfatizam a fragmentação
da consciência política e o
reconhecimento da impossibilidade de projetos
totalizantes como uma das principais características
do campo político contemporâneo.
Partir,
portanto, da premissa de que a civilização
urbano-industrial em sua atual etapa de
integração mundial é
insustentável, segundo parâmetros
sócio-ambientais formulados pelo
movimento ecológico, significa representar
este como um movimento histórico
que coloca em questão os padrões
civilizacionais contemporâneos.
No
relatório Nosso Futuro Comum,
a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento solicita que a Assembléia
Geral da ONU convoque uma conferência
internacional com o objetivo de produzir
um programa de ação global
para o desenvolvimento sustentável.
A Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
(CNUMAD) - a Rio-92 - realizou-se no Rio
de Janeiro, em 1992, um ano após
a dissolução da União
Soviética e dos países do
Leste europeu que integravam o contexto
de um mundo bipolarizado entre nações
capitalistas versus comunistas. O fim da
bipolaridade cria uma expectativa positiva
e otimista em nível internacional:
após o longo período da Guerra
Fria, ocorre o primeiro encontro de cúpula
da comunidade internacional, a Cúpula
da Terra da Rio-92 (Earth Summit).
Um
dos principais documentos resultantes da
Earth Summit, a Declaração
do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento [24], apresenta 27 princípios
que têm por objetivo criar uma nova
parceria global entre as nações,
para alcançar o desenvolvimento sustentável
em nível mundial.
No
documento oficial, entretanto, já
era possível perceber a primeira
contradição política
e ética: como administrar uma parceria
global dentro da desigualdade internacional,
onde 20% da população do planeta
que habitam o hemisfério norte consomem
80% dos recursos ambientais e são
responsáveis por 75% da poluição
ambiental, além de deterem 80% da
renda mundial? Como é possível
implantar parcerias se os Estados Unidos,
com 6% da população mundial,
consomem 25% da produção internacional
de petróleo? [25]
A
Declaração do Rio de Janeiro
começa reafirmando os princípios
da Conferência de Estocolmo-72 e reforçando
uma perspectiva utilitarista da civilização
ocidental, segundo a qual a humanidade está
no centro dos objetivos do desenvolvimento
sustentável e as medidas de proteção
do meio ambiente são restritas a
esforços que favoreçam exclusivamente
a sociedade.
A
diferença é que a conferência
de 1972 teve como principal preocupação
introduzir a questão ambiental nas
políticas de âmbito nacional
de cada país, enquanto que a Rio-92
trouxe para o debate o avanço da
degradação ambiental em nível
internacional e a importância de soluções
globais para os problemas ambientais, igualmente,
globais. Ou seja, constatou-se que os danos
ambientais não respeitam as fronteiras
entre países e, nos vinte anos entre
as duas reuniões da ONU, houve um
agravamento dos problemas ambientais, tornados
transfronteiriços.
Medo
ecológico
Na
Atualidade, quando os problemas produzidos
pela devastação dos ecossistemas
se tornam globais, a crise ambiental dissolve
as fronteiras rígidas da Modernidade
e a natureza entra no campo da cultura:
para Serres, este fato é inédito
na Filosofia, pois "o que está
em risco é a Terra em sua totalidade
e os homens em seu conjunto" (Cf. Serres,
1991:15).
De
objeto, na Modernidade, a natureza transforma-se,
na Atualidade, em "sujeito de Direito":
um "sujeito" capaz de colocar
em risco a existência do homem por
uma contra-ação aos processos
de destruição que vem sofrendo,
pois estão em jogo os riscos das
catástrofes ecológicas produzidas
por esse "novo sujeito da História"
(Cf. Giddens, 1996:28). Esta passagem da
Modernidade para a Atualidade é,
também, a passagem do local ao global:
um objeto local, sobre o qual o sujeito
do conhecimento moderno empreendia seu projeto
de dominação tecno-científico,
passa a sujeito global - o planeta Terra
-, com o qual um outro novo sujeito, também
global - a humanidade -, vai ter que forjar
um novo contrato, conforme propõe
Serres, análogo ao contrato social
proposto pelos filósofos do século
XVIII: o contrato natural.
Mas,
afinal, o princípio de responsabilidade
é um dever moral ou uma opção
ética? O homem é responsável
em relação a quem? A questão,
por conseguinte, que se coloca é
como produzir um princípio de responsabilidade
que vá além das perspectivas
da Modernidade centradas no otimismo do
futuro - como nas utopias políticas
- ou na nostalgia dos modelos do passado
- voltadas para as sociedades indígenas
tradicionais - e que não deixe ao
presente apenas a sensação
de pessimismo.
Se,
por um lado, Jonas atribui à liberdade
humana a tarefa ética de assumir
voluntariamente a responsabilidade pela
preservação da natureza, por
outro, aproxima excessivamente a responsabilidade
do medo. Esta heurística do medo
é um retorno à passagem hobbesiana
do estado de natureza - o lugar da "guerra
de todos contra todos" (Cf. Hobbes,
1979:77) - para o Estado de Direito. O medo
é a paixão política
fundamental: antes do aparecimento das leis
que regem a vida em sociedade, os homens
viviam o medo permanente da morte violenta.
Para
escapar a este sentimento, acabaram aceitando
a imposição de um estado regido
por leis que garantisse a segurança
coletiva. Se a paixão política
foi moldada pelo medo egoísta, na
Atualidade este medo está em função
do Outro, entendido como vida, biosfera,
natureza, planeta Terra ou gerações
futuras.
Assim,
o medo ecológico torna-se um "medo
planetário" [26] frente à
incapacidade de produzir com precisão
certezas científicas que levem a
uma tomada de decisão que não
coloque em jogo escolhas éticas.
O saber científico atual ainda é
insuficiente e não porta garantias
definitivas para medir as conseqüências
da ação humana face à
complexidade da questão ambiental.
Também se pode dizer que o medo ecológico
já estava enraizado na mitologia
grega, com sua representação
de uma natureza como lugar do mistério
e do mal.
Na
origem do projeto de dominação
e artificialização da natureza
da ciência moderna, está este
medo ecológico, remanescente como
um resíduo do irracionalismo arcaico
que a Modernidade não conseguiu eliminar.
O esquecimento desse medo arcaico leva o
homem moderno a dar vazão a esta
vontade de poder, que resulta na ameaça
de destruição global da natureza:
vencer a natureza, artificializar o mundo
para maior controle é também
extirpar este medo arcaico. Ou seja, como
afirma Latour (1994), o homem da Modernidade
não é tão moderno quanto
acreditava ser.
Considerações
finais
Para
Jonas, a responsabilidade volta-se sobre
a vida ameaçada e o medo passa a
ser um dever moral - e não uma escolha
ética - e também um método
de conhecimento para localização
e distinção das ameaças
ecológicas, de modo a poder separar
os riscos aceitáveis pela sociedade
dos perigos insuportáveis. A tecno-ciência
desenvolveu um poder de grande perigo, que
não é percebido como ameaça,
em função do atual nível
de progresso material dos países
centrais do capitalismo mundial e suas elites
periféricas.
O
perigo da tecno-ciência reside no
enorme sucesso e no amplo alcance de suas
intervenções no mundo. Aliás,
o próprio desenvolvimento da tecno-ciência
toma impulso através dos problemas
acarretados pelo sucesso de seu projeto
de dominação da natureza.
A razão iluminista já não
detém a capacidade de controle sobre
o potencial de destruição
da vida que se tornou o aparato da tecno-ciência
na Atualidade.
É
o sucesso da tecno-ciência e, em contrapartida,
seu potencial de aniquilamento da vida que
tornam impossível garantir o total
controle das conseqüências das
decisões sobre os problemas globais
da biosfera. Deste modo, será o medo
como uma paixão política primordial
- traduzida em sua proximidade pelo princípio
da responsabilidade - que conduzirá
ao imperativo do dever moral de afastar
a possibilidade do risco total, pois coloca
em perigo a vida humana e afeta o futuro
da humanidade e da biosfera.
O
princípio da responsabilidade, conforme
enunciado nos discursos jornalísticos,
não consegue erigir uma nova ética
que vise ao processo de simbiose entre a
humanidade e um objeto precário e
frágil como a biosfera. Por ser direcionada
pela antecipação das ameaças
e controle dos riscos, esta responsabilidade
torna-se - pela representação
social produzida na e pela cultura de massa
- um dever moral guiado pelo sentimento
coletivo do medo.
Notas
[1]
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,
08mai1992.
[2]
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,
18mai1992. A manchete refere-se a um recorte
da entrevista feita com Lester Brow, editor
do relatório Situação
do Mundo.
[3]
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29mai1992.
[4]
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31mai1992.
A manchete remete a um recorte da entrevista
realizada com Maurice Strong, secretário-geral
da ONU para a Conferência "Rio-92".
[5]
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13jun1992.
[6]
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19nov1992.
[7]
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 10dez1992.
[8]
O Globo, 16out2000.
[9]
O Globo, 07dez2000.
[10]
O Globo, 20fev2001.
[11]
O Globo, 02mai2001.
[12]
O Globo, 09mai2001.
[13]
O Globo, 20jul2001.
[14]
Para uma discussão sobre o princípio
de responsabilidade e a proposta de uma
ética para a sociedade tecnológica,
ver Jonas (1992).
[15]
O conceito de Atualidade está em
Deleuze (1992:219-26).
[16]
Sobre sociedade de riscos, ver Beck (1992).
[17]
O termo "tecno-epidemias" está
em Beck (1994).
[18]
Para uma crítica ao determinismo
da ciência moderna, ver Prigogine
(1996).
[19]
A distinção entre "sensibilidade
ecológica" e "consciência
ecológica" está em Ward
e Dubos (1973) e Castoriadis e Cohn-Bendit
(1983), respectivamente.
[20]
Em 1972, o Le Nouvel Observateur
realizou uma série de debates e entrevistas
sobre a questão ambiental, onde prevalece
a visão catastrófica dos problemas
ambientais. Marcuse fala em "terricídio"
e Morin aponta que "a natureza vencida
é a autodestruição
do homem". Cf. Mansholt et al. (1979:49;80).
[21]
Na época, houve um forte consenso
a favor de limitar o crescimento da economia
e da população, unindo ecologistas
radicais da revista The Ecologist,
cientistas - a maioria da área das
ciências naturais - e empresários,
além de políticos. Sobre o
relatório do MIT, consultar Meadows
et al. (1973).
[22]
Sobre as contradições do conceito
de desenvolvimento sustentável, ver
Redclift (1989).
[23]
A emergência de lutas que reivindicam
direitos particulares em contraposição
aos direitos universalizáveis da
Modernidade é visto por Fukuyama
(1992) como o fim da História, centrada
na luta de classes. Para contrapor esta
visão, ver Ewald (1984:92-99).
[24]
Para mais detalhes sobre este documento,
consultar: Conferência das Nações
Unidas Sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento.
"Declaração do Rio de
Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento".
In: ___. Agenda 21. Brasília:
Câmara dos Deputados, 1995.
[25]
Para estes dados, consultar o relatório
do Banco Mundial (1992).
[26]
Sobre a transformação do medo
ecológico em de medo planetário,
consultar: Alphandéry, P.; Bitoun,
P. e Dupont, Y. (1993).
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*Leonel
Azevedo de Aguiar é doutor Comunicação
e Cultura pela UFRJ e professor do Programa
de Pós-graduação em
Comunicação Social da PUC-Rio,
onde também exerce o cargo de coordenador
do Curso de Jornalismo do Departamento de
Comunicação Social.
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