Nº 12 - Nov. 2009
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO VI
 

 

Expediente
Ombudsman: opine sobre a revista Ombudsman: opine sobre a revista Ombudsman: opine sobre a revista Ombudsman: opine sobre a revista

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 
 

 

 


 

 

 

 

 

 



MONOGRAFIAS
 

A perspectiva heteronormativa
Representações de casais homossexuais no Globo Repórter

Por Márcia Veiga e Vicente Darde*

RESUMO

O jornalismo, entendido como construtor de sentidos sobre a realidade, é um discurso que busca contemplar a diversidade de pensamento da sociedade contemporânea. Neste texto, [1] discutimos o viés heteronormativo que permeia o discurso jornalístico sobre homossexuais na mídia brasileira.

Reprodução

A partir da análise da reportagem sobre casais gays que adotaram crianças, veiculada no programa Globo Repórter, em 2008, verificou-se que a representação destes casais é colocada numa perspectiva que busca atributos socialmente valorados como justificativa da existência discursiva dos mesmos na mídia. Entendemos que o discurso produzido está amparado nas concepções heteronormativas hegemônicas sobre gênero e sexualidade, e com isso não contempla uma perspectiva de cidadania, mas apenas de tolerância em relação aos homossexuais.

PALAVRAS-CHAVE: Mídia / Representações / Heteronormatividade

1. Introdução

O jornalismo é, em nossa concepção, um discurso que necessita representar a diversidade de pensamento da sociedade contemporânea, considerando-se a natureza pública e o compromisso social do campo jornalístico. Um dos principais deveres do jornalismo é o de explicitar as formas de injustiça e opressão, e só conseguirá atingir tal objetivo buscando dar voz àqueles que estão à margem da sociedade.

Partimos da premissa de que o jornalismo produz e recria bens simbólicos, fazendo-os circular na sociedade. O campo jornalístico, enquanto lugar de fala legitimado sobre a realidade, contribui para a definição de papéis e a afirmação de valores e sentidos na sociedade.

O conjunto de informações gerado na sociedade é trabalhado pelos meios de comunicação, que organizam esse conteúdo de acordo com um conjunto próprio de estratégias comunicativas. Ao definir essas estratégias, a mídia cria e reforça representações do discurso social hegemônico. Um dos pressupostos da atividade jornalística é o de fornecer o maior número de informações possíveis acerca de um fato para que o público tire suas próprias conclusões. Esse processo, que pode ser entendido como desnaturalização a partir do distanciamento do jornalista em relação ao fato, entra em choque com a constante naturalização das rotinas de produção dentro das redações.

Os fatos imediatos do cotidiano transformados em notícia são compreendidos como “naturais”, e não socialmente construídos através dos múltiplos discursos. Essa perspectiva condiciona também a forma como os indivíduos e os comportamentos são compreendidos pela mídia, ou seja, numa perspectiva essencialista e universalizante que não leva em conta os processos culturais historicamente construídos nas sociedades, tomando-os sempre pelo viés da “natureza”. Este viés se fundamenta em perspectivas do pensamento psico-biomédico, via de regra, utilizado para dar conta de fenômenos sociais.

Essa perspectiva naturalizante dos sujeitos e dos comportamentos sociais por parte da mídia é o eixo que norteia a construção de sentidos sobre a representação das relações de gênero e sexualidade na sociedade contemporânea. Mais do que isso, ela se funda num padrão normativo ocidental hegemônico – a heteronormatividade – que, além de partir do pressuposto da heterossexualidade compulsória, hierarquiza e atribui valores aos sujeitos, às feminilidades, às masculinidades, aos arranjos sócio-afetivos e familiares, à sexualidade e às relações de poder.

É através do conceito de heteronormatividade (o qual trataremos adiante) que entendemos estarem fundados os valores-notícia responsáveis pela produção de discursos e sentidos sobre comportamentos, indivíduos e grupos na sociedade pela mídia.

Deste modo, ensejamos compreender de que maneira as representações dos gays criadas a partir do discurso jornalístico estão fundamentadas num padrão heteronormativo e de que forma podem condicionar e/ou intensificar o processo de marginalização dos homossexuais na sociedade, excluindo-os do exercício da cidadania. Nesse sentido, este artigo busca contribuir para a discussão sobre a construção de sentidos de casais gays pela mídia brasileira, tomando como exemplo o programa Globo Repórter, veiculado pela TV Globo no dia 9 de maio de 2008.

2. Gênero e sexualidade sob a regência heteronormativa ocidental

A perspectiva que norteia o presente artigo está apoiada em teorias construtivistas que entendem que os padrões comportamentais e normas, socialmente partilhados, estão calcados em valores históricos e culturalmente construídos, e não na natureza biológica dos seres humanos. Este prisma leva em consideração que cada sociedade possui um sistema de atribuição de valores aos diferentes sujeitos e práticas, revelando que estas relações não são inatas, mas sim construídas.

A cultura, aqui compreendida como o conjunto de regras, hábitos, costumes e valores de cada sociedade, histórica e permanentemente em transformação, é o campo pelo qual pretendemos discutir a existência de um padrão normativo ocidental hegemônico responsável pela hierarquização dos papéis de gênero e da sexualidade. Encontramos um caminho para estas discussões apoiados no conceito de construtivismo social que:

(...) reúne abordagens que buscam problematizar a universalidade desse instinto sexual [defendido por teorias essencialistas]. O foco da argumentação é o de que existem formas culturalmente específicas, que o olhar ocidental chamaria de sexualidade, que envolvem contatos corporais entre pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes, ligados ou não à atividade reprodutiva, que podem ter significados radicalmente distintos entre as culturas, ou mesmo entre grupos populacionais de uma determinada cultura. Portanto, os significados sexuais e, sobretudo, a própria noção de experiência ou comportamento sexual não seriam passíveis de generalização, dado que estão ancorados em teias de significados articuladas a outras modalidades de classificação, como o sistema de parentesco e de gênero, as classificações etárias, a estrutura de privilégios sociais e de distribuição de riqueza etc. (Cf. HEILBORN; BRANDÃO, 1999:3).

A mídia, enquanto produtora de sentidos, está vinculada à reprodução de valores na sociedade. Para uma tentativa de compreensão das representações midiáticas de indivíduos e grupos sociais no Brasil, é importante evidenciar o padrão normativo de comportamento ao qual esta mídia está vinculada.

A sociedade brasileira acompanha o padrão normativo vigente nos países ocidentais. Ou seja, pode-se dizer que vivemos em uma nação que tem como padrão de normalidade relações conjugais monogâmicas heterossexuais. Dessa norma segue-se uma infinidade de implicações, dentre as quais se destacam o padrão de arranjos familiares nucleares formado por mulher, homem e filhos e as relações de parentesco baseadas nos laços de sangue.

A esse padrão, muitos estudiosos têm chamado de heteronormatividade, cuja base fundadora é a heterossexualidade compulsória (Butler, 2003a). Essa heteronormatividade se complexifica quando associada a outros marcadores sociais como raça, cor, orientação sexual, classe, idade resultando em valores sociais que assumem uma hierarquia, produzindo relações sociais de desigualdade bem como masculinidades, feminilidades, sexualidades e arranjos familiares periféricos, como se pode perceber atualmente no fenômeno das “famílias gays” (Butler 2003b).

Por heteronormatividade, entende-se:

(...) a reprodução de práticas e códigos heterossexuais, sustentada pelo casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal, constituição de família (esquema pai-mãe-filho(a)(s)). Na esteira das implicações da aludida palavra, tem-se o heterossexismo compulsório, sendo que, por esse último termo, entende-se o imperativo inquestionado e inquestionável por parte de todos os membros da sociedade com o intuito de reforçar ou dar legitimidade às práticas heterossexuais. (CALEGARI, 2006) [2].

Assim, compreendendo o padrão de comportamento normativo das sociedades ocidentais como um padrão heteronormativo, interessa-nos pensar de que maneira a mídia, e mais especificamente o jornalismo, contribui para a reprodução e manutenção deste padrão. Assim, o conceito de gênero pode nos ajudar a pensar a heteronormatividade:

[...] a categoria gênero é conformada por duas proposições fundamentais: "é o elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e o primeiro modo de dar significado às relações de poder" (Scott, 1990, p.16). Esta definição é fundada em concepções cultural e historicamente situadas, partindo de significantes disponíveis na cultura, que são apropriados e aos quais se lhes atribuem sentido. (Cf. BONETTI, 2000:170-171).

O conceito de gênero refere-se aos significados atribuídos a feminilidades e masculinidades, bem como à atribuição de valores empenhados nas mais diversas relações sociais, com potencial de criar relações de desigualdade. Estes valores estão hierarquizados socialmente na heteronormatividade.

A manutenção deste padrão normativo não se dá pela exclusão do discurso sobre a homossexualidade, e sim por torná-la excêntrica, exótica, transformando-a em um “estilo de vida” da minoria da população, reforçando a hegemonia da norma heterossexual. É um discurso discriminatório porque reforça a heteronormatividade também no momento em que leva os homossexuais a quererem aderir a normas e valores entendidos como heterossexuais, como o “casamento” e  adoção de crianças. E é justamente a hierarquização desses atributos, associados a outras marcas identitárias tais como classe e raça, que contribui para o estigma dos homossexuais.

Acredita-se que é por meio do entendimento acerca dessa hierarquização que se poderá compreender tanto os valores sociais quanto as concepções de gênero que se constituem na prática jornalística e que acabam contribuindo para a heteronormatização da nossa sociedade, sendo, portanto, fundantes das desigualdades sociais construídas historicamente.

3. A homossexualidade como discurso construído historicamente

A compreensão social da homossexualidade é historicamente perpassada por diversos vieses construídos por instituições regulatórias das relações sociais, tais como a religião (subversão da lei divina), o Estado (repressão) e pelas ciências médicas e psicológicas (patologização). São essas instâncias, fundadoras da e fundamentadas na heteronormatividade, que historicamente constroem discursos que atribuem um caráter desviante, anormal e patológico à homossexualidade.
O caráter político da identidade homossexual é o eixo norteador da construção dos discursos acerca do tema:

(...) a “construção” da homossexualidade como patologia, ocorrida na maioria das sociedades ocidentais, deixa claro que, assim como a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo passou a fazer parte do conjunto de doenças ocidentais por uma questão política, ela saiu da lista das patologias também por uma questão política e não científica. (Cf. ZAMBRANO, 2008:54).

O surgimento de grupos organizados de homossexuais no Brasil e no mundo foi significativo na busca por respeito e direitos iguais. E as transformações nas formas de compreensão da homossexualidade acontecem em decorrência das manifestações destes movimentos no final do século XX (ZAMBRANO, 2008).
No Brasil, como em outros tantos países laicos, a disputa política pela extensão e garantia de direitos aos homossexuais, como o casamento civil, ainda encontra como principais adversários os movimentos religiosos, que constroem a homossexualidade como ‘pecado’ e prática ‘anti-natural’. A influência religiosa na visão da sociedade foi relevante para que esta desenvolvesse uma homofobia, ou seja, uma aversão à homossexualidade.

Entretanto, países como Dinamarca, Espanha, Bélgica e Holanda deram um grande passo para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária no que diz respeito aos direitos civis com a aprovação da lei que permite a união civil entre pessoas do mesmo sexo. A garantia do exercício da cidadania nesses países permite desconstruir tabus que tratam a homossexualidade no campo do desvio e da anormalidade.

Apesar da grande visibilidade da homossexualidade e transformações políticas surgidas em decorrência da ação dos movimentos gays e lésbicos, “a homossexualidade não alcança consenso sobre ser ou não uma doença, tanto entre os médicos quanto, principalmente, entre os psicanalistas” (Cf. ZAMBRANO, 2008:53). Nesse sentido, cabe inferir que a relevância dos discursos oriundos das ciências médicas e psicológicas se dá num lugar de legitimidade nas sociedades ocidentais.

Não por acaso são justamente os especialistas dessas áreas alguns dos principais produtores de discurso na mídia como fontes fidedignas. Esses elementos nos levam a pensar sobre o viés heteronormativo que perpassa e consolida esses discursos e as representações e sentidos produzidos socialmente pela mídia ainda nos dias de hoje.

A mídia, enquanto instância social que pode tanto legitimar quanto silenciar grupos e sujeitos sociais, deve perceber que é determinante nesse jogo de poder. A compreensão mais ampla da identidade sexual e da sexualidade, e sua construção histórica, é que pode contribuir para perturbar a tranqüilidade da heteronormatividade reproduzida na sociedade. Porém, os meios de comunicação, partícipes da cultura da sociedade, ainda produzem discursos que tendem a dar seguimento à normatividade vigente, e com isso, contribuem para processos discriminatórios relativos à homossexualidade.

4. A construção do discurso jornalístico

Na intrínseca relação jornalismo-formação de valores, certamente é a notícia (principal produto jornalístico) o elo capaz de revelar esta imbricação. Ao refletir na perspectiva da notícia como uma construção social infere-se que há um conjunto de elementos fundamentais para que um “fato” adquira o status de notícia. Segundo WOLF (2003:190), “[...] a noticiabilidade corresponde ao conjunto de critérios, operações e instrumentos com os quais os órgãos de informação enfrentam a tarefa de escolher, quotidianamente, de entre um número imprevisível e indefinido de factos, uma quantidade finita e tendencialmente estável de notícias”.

A definição de WOLF (2003) sobre a noticiabilidade indica claramente que há um processo de escolha, o qual demonstra que “a necessidade de selecionar, excluir, acentuar diferentes aspectos do acontecimento – processo orientado pelo enquadramento escolhido – são alguns exemplos de como a notícia, dando vida ao acontecimento, constrói o acontecimento e constrói a realidade” (CAREY [3] Apud TRAQUINA, 2001:87). Esse processo complexo, que transforma matéria-prima (os acontecimentos) num produto (as notícias) tem a ver com um conjunto de requisitos que devem necessariamente “fazer sentido” tanto aos órgãos de informação quanto aos profissionais (os jornalistas).

Para compreender a construção da notícia, nos filiamos às teorias construcionistas, que trazem o próprio ethos [4] jornalístico, o lugar onde as notícias são produzidas, como um elemento fundante, e no centro desse ethos, o jornalista se destaca. De acordo com Traquina (2001:86), as teorias construcionistas “reconhecem que as notícias são narrativas, ‘estórias’, marcadas pela cultura dos membros da tribo e pela cultura da sociedade onde estão inseridos”. Wolf (2003:190) compartilha desse ponto de vista e vai além, afirmando que “as notícias são aquilo que os jornalistas definem como tal”.

Os estudos da teoria da Narrativa põem os acontecimentos em perspectiva, encaixando os significados parciais em explicações e significações mais estáveis. Motta (2004) explica que as narrativas criam significações sociais, são produtos culturais inseridos em certos contextos históricos, conformam as crenças, os valores, as ideologias, a política, a sociedade inteira. A análise da narrativa é um caminho rumo ao significado, porque vê o significado como uma relação social e cultural, reafirmando ou renovando valores, atitudes, formas de dar sentido à realidade.

Na narrativa da mídia televisiva, Mota (2006) destaca que a análise precisa levar em conta que o plano de expressão é constituído de duas formas de representação: a imagética e a verbal. Para facilitar a decodificação por parte do telespectador, a autora observa que o código visual na TV é de natureza convencional. A seriação no formato das narrativas, com a respectiva repetição de padrões, como aponta Machado (2005), proporciona uma maior aproximação e aceitação do público ao discurso jornalístico.

Outra estratégia utilizada pela mídia televisiva para a construção de sentidos sobre a realidade é a referenciação. Como afirma Mota (2006:133), “o texto constrói a referência em imagem, dando-lhe atributos, da mesma forma que se alimenta da imagem para se auto-construir”. Os significados construídos pelo texto jornalístico geram efeitos de realidade.

No entendimento de que o jornalismo contribui para a construção da realidade e que dessa forma está fortemente relacionado com a normatividade vigente (seja no partilhamento de valores, seja na reprodução destes), parte-se da hipótese de que o mesmo contribui para reforçar os valores dominantes da sociedade, indiretamente trabalhando para a manutenção do status quo, ou seja, para a heteronormatividade. É importante ressaltar que não se trata de pensar o jornalismo de forma maniqueísta, atuando perversa e deliberadamente nesse sentido, mas sim na perspectiva de compreender as notícias como resultado das imbricações do próprio jornalismo com a cultura na qual está inserido.

5. As representações dos casais gays pelo Globo Repórter

A fim de discutir as representações dos casais gays na mídia, em especial no jornalismo, optamos pela análise de um dos principais e mais tradicionais programas de reportagem televisiva do Brasil, o Globo Repórter, da Rede Globo de Televisão. Inicialmente com periodicidade mensal, o programa surge em 3 de abril de 1973 com a finalidade de analisar com mais profundidade os principais acontecimentos jornalísticos nacionais e internacionais do mês, que por uma questão de tempo não podiam ser detalhados nos telejornais.

A partir de agosto do mesmo ano, o programa passou a ser semanal, e desde então, passou por uma grande transformação. Entre outras coisas, passou a contar com a figura do repórter, modelo que se mantém até hoje, com edições que elegem um só assunto por vez, dividido em cinco blocos que somam em torno de 45 minutos.

Neste artigo, analisamos a edição do Globo Repórter de 9 de maio de 2008, que na antevéspera do Dia das Mães discutiu as novas formações familiares. Utilizamos como objeto de pesquisa mais precisamente a reportagem sobre dois casais homossexuais que adotaram crianças. Optamos por grifar as marcas indicativas de sentidos que aparecem nos trechos por nós recortados na referida reportagem.

A matéria sobre a qual nos debruçamos traz como personagens centrais dois casais homossexuais, um feminino e outro masculino, que de alguma forma obtiveram reconhecimento jurídico na conformação familiar estabelecida com a presença de filhos. O primeiro casal a ser apresentado é formado por duas mulheres, Rosangela e Rosiere, e uma criança, Lucas, filho biológico de Rosangela e adotivo de Rosiere. Passemos à análise deste primeiro casal representado.

A reportagem inicia com imagens de Lucas destacando atributos de gênero (masculino). Ele é representado como “igual aos demais”, ele joga futebol, o que reforça sua masculinidade heterossexual. Mostra-se que sua vida é “normal”, comum como a dos outros meninos. Logo em seguida a matéria traz a mãe, Rosangela, e novamente se funda nos atributos de gênero como forma de representá-la: a mãe presente, atuante, zelosa, rígida com relação à educação, cumprindo com o seu papel de mulher: um exemplo de mãe e dona de casa.

A heteronormatividade tem a maternidade (e a reprodução) como papel social fundamental da mulher, sendo este o viés pelo qual a sexualidade é “autorizada” para este sexo biológico. Os cuidados com os filhos assim como o ambiente doméstico são tipicamente entendidos como femininos.

Lucas tem 9 anos. Junto com a turminha da rua, adora jogar bola. Em casa, videogame. Mas a pedagoga Rosangela Martins Dias, mãe dele, está sempre de olho no relógio. Rotina de criança é coisa séria! Vestir o uniforme, almoçar e ficar prontinho à espera da condução para a escola.

Entra em cena uma terceira pessoa que vem pra desafiar a justiça (aqui poderia se dizer a sociedade, representada por essa instituição): outra mulher, Rosiere, que vai formar o casal. Neste fato se revela o diferencial, o estranhamento, o valor-notícia necessário para estar no programa.

Mas os dois não estão mais sozinhos. A técnica de administração Rosiere de Lima entrou na vida de Rosangela com uma determinação que desafiou a Justiça brasileira: adotar Lucas como filho também. E conseguiu! Está na certidão de nascimento e na carteira de identidade dele.

Segue-se depois o discurso de Rosiere, mostrando que, com a adoção, eles agora formam uma família, no estilo padrão heteronormativo, também reproduzido por ela e reforçado pelo discurso jornalístico. Mostra a conquista de direitos civis pela adoção, enfatizando a legitimidade conferida pela justiça à “nova” família.

"Nos consideravam um casal diferente com uma criança. Com a adoção, nós passamos a ser uma família, um núcleo familiar. Ele passou a ter auxílio da minha empresa, como benefício educacional e assistência médica. Eu dei meu nome a ele, e ele tem a segurança de que, se ela faltar, nós continuaremos juntos", diz Rosiere.

A reportagem segue mostrando que a vizinhança é composta por famílias tradicionais. O casal de lésbicas e a criança são citados como “a” família diferente:

Se você nunca viu nada igual, não se preocupe. Também foi novidade para a vizinhança em Porto Alegre. Em uma casa moram Estela, José e três filhos. Em outra, Mara, Luis e um casal de filhos. E, em outra, Luíza, Souza e dois filhos. A chegada de uma família diferente dos padrões tradicionais poderia ter sido motivo de preconceito, de fofocas. Mas não naquela rua, onde Rosângela, Rosiere e Lucas estão entre os moradores mais queridos.

“Uma família diferente dos padrões tradicionais” traz claramente uma alusão a existência de um padrão, no caso o heteronormativo. E essa diferença está claramente calcada na identidade sexual do casal, uma vez que as demais famílias (vizinhos) trazidas à matéria não são questionadas quanto ao tipo de família que vivenciam (monoparental, recomposta, com filhos adotivos ou consangüíneos etc.).

A “aceitação” dessa família “diferente” aparece mais adiante na fala de Rosiere, quando afirma que as relações sociais próximas não as colocam numa situação de discriminação. Ela declara que tiveram “a sorte” de serem tratados bem. Indica certa normalidade pela exclusão de casais homossexuais, como se não fosse um direito de fato de serem respeitados enquanto cidadãos.

"Não tem nada de olhares diferentes. Tivemos muita sorte em relação as nossas famílias e aos nossos amigos", diz Rosiere.

Na seqüência, também aparecem as vozes normalmente autorizadas para falar sobre o que é ou não normal nos comportamentos da sociedade, como a justiça. A reportagem traz o juiz responsável pela decisão no caso de adoção de Lucas por Rosiere, e mostra que o mesmo recorreu a fontes legitimadas pela sociedade para decidir e dar parecer favorável sobre a adoção.

O discurso jurídico é de que a adoção foi aceita sob critérios de organização familiar entendidos como satisfatórios para que a criança cresça feliz. Não se questiona a legitimidade da união homossexual.

O juiz da Infância e da Juventude José Antônio Daltoé Cezar procurou outros juristas, psicanalistas e psicólogos antes de decidir sobre a adoção de Lucas. "Os nossos técnicos fizeram uma avaliação e me trouxeram a informação de que aquela família estava bem organizada e feliz, que seria bom para todo mundo o instituto da adoção de Lucas por outra mãe. Então, eu não podia decidir de forma contrária a isso", diz.

Cabe referir que, convencionalmente, a justiça tende a tomar a heteronormatividade como parâmetro nas decisões sobre adoção. Em primeiro lugar estão os laços de sangue, como se pode perceber nos casos de crianças abandonadas ou órfãs, onde a regra é sempre procurar um parente consangüíneo. Depois, segue a preferência por casais (heterossexuais) que preencham alguns pressupostos considerados relevantes, como a estabilidade do relacionamento e o poder aquisitivo “adequado”.
 
A segunda parte da reportagem mostra os irmãos gêmeos que foram adotados no sul do Brasil por um casal homossexual masculino e agora moram em Nova Iorque.

Abrem a reportagem ressaltando os atributos de classe (baixa) das crianças, demonstrando que os mesmos saíram de uma situação de abandono e pobreza para a expectativa de viver no país onde, no imaginário coletivo, eles terão condições de serem mais felizes, com possibilidades de estudos e ascensão social que não teriam no Brasil. Os atributos de raça não foram indicados, mas subentendidos uma vez que se tratam de crianças negras, além de órfãs e pobres.

E esse novo olhar da Justiça mudou a vida de dois irmãozinhos que também nasceram no Sul do país. Marcos e Felipe foram morar em Nova Iorque. Eles são irmãos gêmeos. Foram entregues para adoção logo que nasceram. Moravam em um abrigo quando conheceram seus pais: Marco Campello e Antônio Maciel.

A representação do casal homossexual masculino é acionada através de atributos positivamente valorados na heteronormatividade. O primeiro deles é a monogamia e a durabilidade do relacionamento do casal. Logo em seguida, outro atributo socialmente muito valorado é acionado: a classe social. Esse atributo é expresso através da clara alusão ao lugar de moradia (país de primeiro mundo), ao padrão intelectual (ambos graduados em cursos de áreas socialmente valoradas – saúde e direito) e profissional (advogado e professor universitário) de ambos, que dá conta de um padrão financeiro e posicionamento social “legitimo”.

Marco, que nasceu no Brasil, é fisioterapeuta e professor na Universidade de Nova Iorque. Antonio é advogado. Eles se conheceram nos Estados Unidos e já estão juntos há 16 anos.

Acionar a estabilidade da relação conjugal aliada com a estrutura sócio-econômica bem definida também aparece como marca no discurso de Marco quando o mesmo se percebe em condições legitimas de exercer a paternidade (“éramos legais”).  O desejo de ser pai, independente da orientação sexual, pode também ser entendido como busca por uma constituição familiar padrão, que neste caso só poderia ser concebida com a adoção.

"Eu sempre pensei que seria muito legal ser pai", diz Antônio. "De repente, caiu a ficha de que éramos legais, tínhamos uma estrutura legal. Por que não sermos pais?", conta Marco.

Novamente as fontes que legitimam as relações sociais são invocadas pela mídia. O cerne do discurso proferido por uma desembargadora corrobora com a idéia de que a boa estrutura socioeconômica do casal é um fator determinante na legitimação desta adoção. Nesse caso, os atributos de classe se sobrepõem aos de gênero e sexualidade.

A desembargadora chega a referir que as crianças, neste tipo de organização familiar, comprovadamente não vivenciam sofrimentos por discriminação. Porém, essa aparente postura de vanguarda da jurista resvala na seqüência, quando afirma que as crianças “sofrem muito mais se ficarem em abrigos”.  

"Nós temos que ver se essas pessoas têm condições para isso, independentemente da sua orientação sexual. É difícil porque bate no preconceito, naquela ideia de que não seriam famílias com formato ético para abrigar uma criança ou que a criança que vivesse nesses lares sofreria alguma discriminação no colégio, na vizinhança. Mas, em primeiro lugar, está comprovado que as crianças não passam esse sofrimento. Sofrem muito mais se ficarem em abrigos", revela a desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Maria Berenice Dias.

O padrão heteronormativo permeia fortemente o discurso das fontes utilizadas na matéria. A escolha destas fontes, mesmo que numa tentativa de legitimar as “novidades” apresentadas, acaba revelando os valores e hieraquizações heteronormativas que os fundam. Também o viés essencializante de compreensão dos indivíduos e relações sociais, fundado na visão psico-biomédica, se desnuda em diversos momentos da matéria, mesmo quando as fontes não oriundas destas áreas específicas.

"O formato da família em si mudou. Hoje nós temos famílias que não são apenas de homem, mulher e filhos. Isso pode não ser tão bem aceito quanto nós gostaríamos, mas temos que ser tolerantes e aceitar tudo porque a família mudou, a sociedade mudou e não há como voltar atrás", ressalta a historiadora Eni Samara, da Universidade de São Paulo (USP).

Por último, a construção textual abaixo revela uma mudança, mas ainda presa ao contraponto do conceito de família tradicional, normatizado. Não há uma ruptura com o modelo hegemônico, e sim algumas alterações, mas que não chegam a desestabilizar o que está estabelecido na sociedade.

São as novas famílias brasileiras – seja em Nova Iorque ou em uma rua como a de Porto Alegre.

6. Considerações finais

Compreendendo as notícias como resultado das imbricações do jornalismo com a cultura na qual está inserido, e levando em consideração a realidade de desigualdades sociais de um país como o Brasil, interessa-nos compreender de que forma as hierarquias de valores permanecem apesar das permanentes transformações sociais. Tomando as exclusões sociais a que historicamente são submetidos os cidadãos e cidadãs homossexuais como eixo desta tentativa de compreensão é que empreendemos a análise construída no presente artigo.

A constatação de um forte viés heteronormativo que permeia a construção do discurso jornalístico é um dos fundamentos que norteia nossas observações. Este viés se desvela de imediato pelo enfoque da reportagem em questão: a família, princípio fundante da heteronormatividade, é o eixo central da narrativa.

Em não se tratando da família nuclear prevista como padrão, a representação dos casais gays se apóia em outros elementos que igualmente servem como paradigma de valores socialmente aceitos e previstos na norma, tais como a monogamia, os atributos e papéis de gênero e questões referentes à classe social. As fontes utilizadas fazem clara referência à existência de um padrão e contribuem para a reprodução do discurso psico-biomédico, base estrutural da heteronormatividade.

Os homossexuais, personagens centrais da narrativa, adquirem existência e visibilidade a partir de seus atributos e papéis sociais hierarquicamente valorizados; fundamentalmente porque são casais monogâmicos, possuem filhos, têm condições financeiras, exercem papéis de gênero distintos e são legitimados pela justiça. Nesse sentido, cabe refletir se os homossexuais que não possuem atributos altamente valorados na norma gozariam da mesma visibilidade.

Em nosso entendimento, a representação dos casais gays no Globo Repórter se dá numa perspectiva que tende a enquadrá-los numa norma, a heteronormatividade, capaz de lhes conferir legitimidade para serem retratados pela mídia. Percebemos que nem sempre a visibilidade de questões diversas às normas sociais, como a homossexualidade, são construídas através de discursos que visam assegurar o exercício da cidadania, como se esperaria de um papel democrático dos meios de comunicação.

Pelo contrário, pode-se perceber que a existência discursiva da homossexualidade no programa só se dá a partir da exacerbação de outros marcadores sociais que possam se sobrepor aos relativos à sexualidade, a fim de legitimá-los e validá-los.

De uma forma geral, podemos pensar que o discurso produzido sobre a homossexualidade se dá numa perspectiva que estimula uma cultura de tolerância com esta população. Além do mais, este discurso se mostra atrelado aos padrões normativos vigentes que historicamente têm sido responsáveis pela hierarquização de valores e exclusão de determinados indivíduos, práticas e grupos.

Nesse sentido, entendemos que a heteronormatividade (re)produzida no discurso jornalístico contribui com a manutenção de padrões que reforçam as desigualdades dos homossexuais. O programa nos leva a refletir até que ponto o jornalismo contribui para reforçar os valores dominantes da sociedade, trabalhando para a manutenção do status quo.

NOTAS

[1] Trabalho apresentado no VI Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo, 20 nov. 2008.

[2] Documento eletrônico não paginado. Disponível em: http://coralx.ufsm.br/grpesqla/revista/num07/art_01.php. Acesso em: 14 jun. 2008.

[3] CAREY, J. “The dark continent of american journalism”. In: MANOFF; SCHUDSON (Ed.). Reading the news. Nova Iorque: Pantheon Books, 1986.

[4] A definição de ethos aqui adotada acompanha Muniz Sodré que define que esta palavra “designa tanto a morada quanto as condições, as normas, os atos práticos que o homem repetidamente executa e por isso com ele se acostuma, ao se abrigar num espaço determinado. É a consciência atuante e objetivada de um grupo social – onde se manifesta a compreensão histórica do sentido da existência- e, portanto instância de regulação das identidades individuais e coletivas” (Cf. SODRÉ, 2006:24).

[5] Informações retiradas do site www.globo.com.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONETTI, A. “Entre feministas e mulheristas: uma etnografia sobre promotoras legais populares e novas configurações da participação política feminina popular em Porto Alegre”. Dissertação de mestrado, Curso de Pós-graduação em Antropologia Social, Centro de Ciências Humanas e Filosofia, Florianópolis, UFSC, 2000.

BUTLER, J. “O parentesco é sempre tido como heterossexual?” In: Cadernos Pagu, Olhares Alternativos, S/r, 2003b.

________. Problemas de gênero – Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003a.

CALEGARI, L. “A mulher no cinema brasileiro e a tentativa de afastamento da heteronormatividade: uma leitura de Dona Flor e seus dois maridos”. In: Revista Literatura e Autoritarismo: Cinema , música e história, S/r, n° 7, jan.-jun. 2006. Disponível em: http://coralx.ufsm.br/grpesqla/revista/num07/art_01.php. Acesso em: 14 jun. 2008.

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*Márcia Veiga da Silva é jornalista e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Vicente William da Silva Darde é jornalista e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]