Nº 11 - Fev. 2009
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO VI
 

 

Expediente
Ombudsman: opine sobre a revista Ombudsman: opine sobre a revista

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 
 

 

 


 

 

 

 

 

 



MONOGRAFIAS
 

O narrador-andarilho
Imagens e jornalismo esfacelados em João Antônio

Por Cláudio Rodrigues Coração*

RESUMO

Este trabalho pretende discutir, identificar e analisar as nuanças conflitantes no que se refere à apreensão de imagens, pelo narrador, em Abraçado ao Meu Rancor, texto confeccionado pelo jornalista e escritor João Antônio. A partir de um referencial sustentado pelos estudiosos da semiótica da cultura de críticos da mídia, pretende-se, evidenciar, com este trabalho, as inquietações presentes no objeto analisado: flâneur versus aceleração; o funcionamento na apreensão de imagens, no texto; e o papel do jornalista rancoroso, personificado na figura do narrador-repórter.

Reprodução

PALAVRAS-CHAVE: Narrador / Literatura / Jornalismo

1. Introdução

Com este trabalho, pretende-se a identificação do narrador-repórter em sua relação com a cidade circundante, em Abraçado ao meu Rancor (1986), espécie de ensaio/conto/reportagem, produzido pelo escritor/jornalista João Antônio (1937-1996). João Antônio faz de Abraçado ao meu Rancor um texto ácido sobre o papel de um jornalista andarilho [1] a percorrer uma cidade multifacetada, em que imagens sucessivas são ligadas ao desempenho narrativo digressivo estabelecido por um narrador “desconfortável” em sua condição.

Assim, o narrador, em Abraçado ao meu Rancor, dialoga com uma cidade visualmente entrecortada e, conseqüentemente, apreende e projeta imagens desconcertantes, nas quais estabelecerá uma demarcação: o espaço da periferia versus a faceta cosmopolita de desenvolvimento metropolitano. De maneira que o narrador encontrará, por meio de um confronto entre uma São Paulo rica e despojada e a representação da apropriação de um espaço percorrido nos guetos periféricos – uma espécie de imagem mental fortemente preestabelecida ao próprio universo joãoantoniano. [2]

Pretendemos, assim, localizar, identificar e interpretar alguns temas surgidos de tais contextos, acima elucidados, a saber:

  • A narração flanada versus o caos pós-histórico narrativo (contemplação x aceleração);

  • Projeção imagética nos códigos culturais apreendidos pelo narrador, em seu percurso;

  • O olhar “pessimista” vinculado a uma “postura jornalística” – característica intrínseca ao universo de João Antônio.

Cumpre salientar que o narrador, em Abraçado ao meu Rancor, pode ser respaldado como um repórter, na medida em que capta os acontecimentos em uma angulação profundamente metalingüística (o próprio narrador é um jornalista). Nesse sentido, não devemos estabelecer uma relação da reportagem ao estrito jogo da captação informativa, mas sim, ao ato investigativo-observador na planificação corpórea do “andar”: o repórter-narrador está emaranhado pela própria existência, pelas reminiscências e pelo percurso (espacial e textual).

Desse modo, o narrador destila imagens projetadas de espaços geográficos distintos de São Paulo, e é, justamente, por meio de tais imagens, que ele, o repórter-narrador, demarcará as nuanças da cidade multidimensional. Abraçado ao meu Rancor surge, então, como desilusão e desassossego na apreensão das imagens.

Para identificarmos os caminhos de apreensão de tal percurso “pessimista”, necessitamos de uma demarcação estrutural. Para isso, utilizaremos Benjamin (1994; 1996) em contraponto a Flusser (1983; 2002) para discutirmos a manifestação do narrador e o desempenho do percurso – do “flanar” – como métodos narrativos de projeção e “fotografias” de imagens.

Em seguida, decifraremos as intenções presentes nos questionamentos suscitados pelo narrador-repórter, por meio dos códigos culturais captados e suas sugestões e projeções de imagens, a partir dos conceitos de Pross (1974), Bystrina (1995) e Flusser (1983; 2002). Finalmente, em relação aos anseios jornalísticos do narrador, colocaremos em discussão a apreensão do pensamento de Marcondes Filho (2000), Flusser (1983; 2002), Chiappini (2000) e Aguiar (2000), sendo os dois últimos, analistas da obra joãoantoniana.

Comecemos, então, pelo objetivo central: a decifração do narrador no ato da experiência do andar e da função dele em um contexto percorrido.

2. O percurso corrosivo do andar

Para Benjamin (1994), o papel do flâneur está condicionado às experiências da observação e da contemplação. Sabemos que na demarcação da cidade, em Abraçado ao meu Rancor, João Antônio, tenta captar a cidade, justamente, pelo bojo da contemplação. Entretanto, as imagens apreendidas pelo andar flanado são condicionadas a uma velocidade absurda. Benjamin (1994) fala do funcionamento do flâneur em meio à imersão textual narrativa:

A rua conduz o flanado a um tempo desaparecido. Para ele, todas são íngremes. Conduzem para baixo, se não para as mães, para um passado que pode ser tanto mais enfeitiçante na medida em que não é o seu próprio, o particular. Contudo, este permanece sempre o tempo de uma infância. Mas por que o de sua vida vivida? No asfalto sobre o qual caminha, seus passos despertam uma surpreendente ressonância (Cf. Benjamin, 1994, p. 185).

Notamos, portanto, a imbricação da experiência ao funcionamento de apreensão do flâneur. Trata-se, evidentemente, de um rearranjo da figura do narrador clássico, que, para Benjamin, sedimenta-se na experiência vivida e rememorada, na construção da uma vida preenchida. Mas, com o flâneur, há uma espécie de percurso corrosivo, “fotográfico”, aliado a uma nova técnica, a um sentido de modernidade: os “frames”, os gestos incorporados na corrente vertiginosa do texto.

Em Abraçado ao meu Rancor, o narrador percorre a cidade, no entanto, não se pode dizer, categoricamente, que tal narrador “flana” pela cidade cosmopolita, na medida em que todos os códigos da memória, da sugestão memorialística e da experiência se sucumbem, esfacelam-se.

No percurso que se estende dos ambientes chiques e “publicitários” de São Paulo até Presidente Altino, no Morro da Geada, em Osasco, o narrador surpreende-se com as mudanças inextricáveis da cidade em mutação. Ou seja, a cidade vista pelo narrador, distancia-se absurdamente da cidade experimentada, ou ensejada, por um processo de experiência vivido. No estranhamento da cidade, o narrador faz a digressão comparativa absurda com outros lugares, na ânsia de estabelecer paralelos menos aterrorizantes da cidade, a qual, ele, narrador, viu passar e morrer:

A cidade deu em outra. Deu em outra a cidade, como certos dias dão em cinzentos, de repente, num lance. As caras mudaram, muito jogador e sinuqueiro sumiu na poeira. Maioria grisalhou, degringolou, esquinizou-se para longe, Deus saberá em que buraco fora das bocas-do-inferno em que eu os conheci. Ou a cidade os comeu (Cf. Antônio, 2001, p. 74).

A “cidade os comeu”! Eis uma expressão que parece sintetizar a diferença entre as imagens apreendidas pelo flâneur e o novo funcionamento de apreensão. Como o flâneur trabalha com a contemplação e a observação mais nítidas, perde-se, com o narrador contemporâneo, os desvios da velocidade cortante de imagens experimentadas, vividas e que, agora, são regidas por mediadores.

Benjamin (1996) diz que, com o fim da experiência e com o advento das técnicas “fotográficas”, ocorre o fim do narrador, no sentido, justamente, do fim da experiência desenvolvida. Surge a mola-mestra da figura do narrador clássico: a experiência.

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de múltiplas maneiras (Cf. Benjamin, 1996, p. 198).

Tem-se, obviamente, a conclusão de que o texto frenético de João Antônio em Abraçado ao meu Rancor não funciona aos ditames experienciais profundos do narrador clássico. Se Benjamin (1996) nota o fim da figura do narrador ao surgimento da técnica, e, com o fim da decodificação memorialística enraizada na narrativa linear, podem-se localizar algumas hipóteses plausíveis e paralelas neste caldo.

Com a figura do flâneur, já ocorre um pequeno “desvio” do caráter experiencial extremamente rígido do narrador clássico benjaminiano, na medida em que seu andar pode subverter a experiência no processo do percurso e da imersão.

Entretanto, Benjamin (1994) afirma que o flâneur está regido, emaranhado por certo “jogo”, por certo sentimento “narcotizante” que permite a esse “novo narrador” (o flâneur) a radiografia de um momento fugaz atrelado a códigos preestabelecidos de sua vida. Mas, como funciona a técnica e os novos mediadores de imagens no cenário da cidade multifacetada “percorrida” e “apreendida” pelo narrador em Abraçado ao meu Rancor?

Flusser (1983) no diz que as imagens técnicas são regidas por aparelhos, aos quais a decifração é atada a códigos culturais e valores embutidos na apreensão. Isto é, em uma pós-história, em que aparelhos tecnológicos desenvolvem uma busca incessante de produção de imagens vertiginosas e condicionadas à própria aceleração da realidade apreendida em que a presença do aparelho amalgama o homem e, conseqüentemente, os dois, homem e aparelho, confundem-se.

Como os aparelhos são compostos por uma infinidade de símbolos, percebe-se o desassossego do narrador em Abraçado ao meu Rancor na demarcação das imagens da cidade multidimensional. Isto porque as imagens buscadas pelo narrador são as tradicionais, as experienciadas, as rememoradas, enquanto as quais ele se depara são regidas por uma infinidade de simbolizações.

Para melhor entender, como as imagens preenchidas na contemplação do flâneur não fazem mais sentido na assimilação do narrador em Abraçado ao meu Rancor, faz-se necessário ver a comparação que Flusser (1983) faz da descrição das imagens pelo ordenamento do texto narrativo (as imagens tradicionais) e com os aparelhos (as imagens técnicas):

O texto descreve a imagem, ao alinhar os símbolos nela contidos. Ordena os símbolos como se fossem pedrinhas (“calculi”), e os ordena em séries como em colares (“abacus”). Textos são cálculos, enumerações da mensagem de imagens. São contas e contos. Imagens devem ser explicadas, contadas, porque, como toda mediação entre o homem e o mundo, estão sujeitas a dialética interna. Representam o mundo para o homem, mas simultaneamente se interpõem entre homem e mundo (Cf. Flusser, 1983, p. 98). As tecnoimagens são essencialmente diferentes das imagens tradicionais. As imagens tradicionais são produzidas por homens, as tecnoimagens por aparelhos (...) os aparelhos são caixas pretas que são programadas para devorarem sintomas de cenas, e para vomitarem tais sintomas em forma de imagens. O programa dos aparelhos provém de textos: por exemplo, das equações da química e de ótica. De maneira que os aparelhos transcodam sintomas em imagens em função de textos.

São caixas que devoram história e vomitam pós-história (Cf. Flusser, 1983, p. 101).

Em certo sentido, as tecnoimagens produzidas por aparelhos (ideológicos, sensórios etc) pretendem-se objetivas, racionalizadas. Desse modo, a polarização com a subjetividade pessoal da imagem tradicional faz sentido. Logo, o rancor e a angústia do narrador de Abraçado ao meu Rancor, em não reconhecer as imagens por ele buscadas, e não encontradas, fundamentam-se em tal contraposição. Novamente, no trecho abaixo, ocorre a dificuldade de flanação clássica da imagem apreendida. O narrador percebe os novos “valores”. Ao final , ao contrário da ética e habitação do flâneur, o narrador se exacerba em sua condição pós-histórica:

As calçadas apinhadas. Aflita e suportando filas, gentes e mais gente se acotovela, se esbarra, se peita, se empurra. É pressa, a cidade tem. Gentes. Aqui os lentos não têm vez. Ela os engole e os substitui, num golpe.
Mas que eu não a achincalhe, afinal, fonte de ternura e, no fundo, comoção de antigamente, ela é uma cidade, todos têm a sua e nasceram numa. Esta é a minha, queira ou não. Mais que geografia, um modo de vida.
De mais a mais, tem que tem um quê. Que outras serão melhores se a elas também carrego o meu bando de espetos íntimos? Se eles não me largam, nem as praias? Necessário alguma tolerância. Ou serei eu quem não os larga (...).
Sei lá, sei lá por quê. Estou me lembrando de uma letra de tangaço. Carregada. E em que o osso, o buraco e o nervo da coisa ficam mais embaixo. Diz, corta, rasga que me quero morrer abraçado ao meu rancor (Cf. Antônio, 2001, p. 86).

Até aqui, chega-se a algumas evidências:

  • mesmo com o percurso – o andar – a narração praticada em Abraçado ao meu Rancor não se direciona totalmente ao princípio flanador de Benjamin (1994);
  • o percurso fragmentário é resultado, justamente, da dificuldade de apreensão da busca da “imagem tradicional” pelo narrador em contraste com a cidade preenchida por códigos técnicos instrumentalizados por aparelhos;
  • ocorre em Abraçado ao meu Rancor um embate entre a experiência deslocada a um espaço corrosivo, estranho e não mais assimilado, a uma suma ânsia por retornar à experiência;
  • nesse sentido, o fim da experiência enquanto característica intrínseca ao fim do narrador clássico de Benjamin (1996), desloca-se ao próprio funcionamento do cenário pós-histórico das imagens técnicas mediadas por aparelhos para Flusser (1983, p. 2002).

Nesse contexto, a casualidade e a contigüidade como modelos históricos (para Flusser [1983], pré-históricos) não se sustentam na difícil tarefa de apreensão citadina, por exemplo. A amargura do narrador em Abraçado ao meu Rancor em não dar conta da “cidade que deu em outra” é justamente o não reconhecimento das imagens técnicas.

A pós-história está raiando. Está raiando em duas formas: na da estupidez dos aparelhos programadores, e na forma da estupidez dos bárbaros destruidores de aparelhos. Mas, em meio de tal maré de alienação desenfreada, continuamos abertos para a realidade concreta, a qual vivenciamos, atualmente, sob forma da solidão para a morte. Não apenas sob forma da nossa própria solidão para a morte, mas, através dessa, sob forma da solidão para a morte do outro (Cf. Flusser, 1983, p. 167).

Delimita-se, portanto, a necessidade de uma focalização: Quais são os códigos culturais embutidos no amargor e na solidão do narrador de Abraçado ao meu Rancor? Quais as experiências pré-predicativas em choque com os aparelhos de imagem? Qual a intenção do narrador? Quais os textos culturais e as polarizações presentes na escrita?

3. Valores dos marginalizados

É importante frisar a importância dos textos culturais na identificação do papel do narrador em Abraçado ao meu Rancor: há, em sua busca, uma clara idéia de demarcação espacial, de certo saudosismo e de certas demandas sociais discutidas. Nesse sentido, é relevante esclarecer as funções textuais e os códigos/valores culturais presentes no texto.
Segundo Bystrina (1995):

Os textos exercem sempre mais de uma função, muitas vezes simultaneamente. Mas no centro da cultura humana situam-se, naturalmente, os textos imaginativos e criativos. São esses os textos de que o homem necessita não apenas para a sua sobrevivência física e material – que pode também ser garantida pela técnica – mas para a sua sobrevivência psíquica (Cf. Bystrina, 1995, p. 3).

Ora, a sobrevivência psíquica ocorre, em Abraçado ao meu Rancor, pelo viés de representações próximas ao universo do próprio autor – João Antônio. Assim, a localização dos merdunchos e dos pingentes (alcunhas denominadas em toda obra joãoantoniana a explanar os desvalidos sociais) com o andar reforça, não apenas a proximidade e a preocupação de atender um embate social na cidade grande, mas também estabelecer um grau de polaridade mínimo na sustentação de um código satisfatório de apreensão da realidade.

Como vimos, o percurso delineado pelo narrador-repórter não se sustenta pura e simplesmente pelo flanar, mas sim, por aparatos imagéticos intensos e velozes.

Então, é no uso do texto criativo que surgem as posições e os confrontos com o universo urbano. Resta dizer, portanto, utilizando-se da classificação dos códigos culturais em Bystrina (1995), que, são ativados os códigos terciários, ou seja, a representação máxima de um aparato cultural, em Abraçado ao meu Rancor.

Os códigos terciários, segundo sua estrutura, origem e desenvolvimento, tornam-se, assim, a questão primordial, a questão cardinal da Semiótica da Cultura. Um dos problemas mais importantes quando o homem tenta dar conta da sua existência é saber como ele chegou à sua materialidade atual, como ele foi no passado e como conseguiu mostrar-se à altura das exigências que lhe foram impostas nesse percurso (Cf. Bystrina, 1995, p. 4).

Tem-se uma visualização, por meio do uso dos códigos terciários, de intenções estabelecidas pelo narrador, na demarcação de dois espaços e de duas “verdades” a “dar conta de sua existência”. Nota-se, contudo, a diferenciação entre uma simples apropriação da experiência vivida e a condição precípua ao olhar cultural. No trecho abaixo, o narrador traça um paralelo bastante claro na polarização (para ele, ética) no percurso que faz na cidade:

Minha cidade de meu pai não chegava pelos brilharecos publicitários de um folheto que leio profissionalmente, com nojo. Nunca o pai gabou a Praça da República, falando de uma arte que ela não tem.
‘Você encontrará moedas antigas, artesanato, selos, quadros, rapazes cabeludos e moças sardentas. Um mutirão de artistas. Sinta, veja, avalie’.
Principalmente avalie e faça negócio. Avaliar o quê, meu folheto empulhador? Hippies de butique, macaqueadores, ondeiros, engambeladores de turistas e incautos?
‘os preços são do princípio do século; as mensagens de paz, grátis’.
Sim... Em pouco, os baianos do morro, mal e mal aprumados na vidinha, aos domingos e feriados, comem uma carne, uma galinha, farofa. E a sanfona se abre, rasgando. A avó, quando os vê ali festando, faz uns olhos claros atrás dos óculos e só não gosta se é forró encabrochado e calibrado na pinga (Cf. Antônio, 2001, p. 105).

É muito importante tal demarcação digressiva e pontual, para confluir uma dualidade social, e, mais do que isso, para sedimentar-se a uma intenção.
Percebe-se, no excerto acima, a descrição de elementos binários/duais e uma clara elucidação de polaridade. Bystrina (1995) estende o conceito de polaridade às vicissitudes de ‘valor’, de ‘comportamento’:

A estrutura binária dos códigos culturais terciários é, como vimos, organizada em polaridades. Desde seu princípio o binarismo é valorado polarmente. A necessidade de dar valor vem em primeiro lugar para, logo a seguir, subsidiar a decisão. A polaridade existe, portanto, para facilitar a decisão, a atitude, o comportamento, a ação. E elas surgiram, evidentemente, de situações práticas da vida. Assim, cada pólo recebe um valor (Cf. Bystrina, 1995, p. 5).

Com os valores devidamente estabelecidos, a intenção preconizada pelo narrador/repórter não se separa, obviamente, do centro da ação. Para isso, o narrador utilizará a digressão como ingrediente fundamental na demarcação polarizada de seus objetos verificados, bem como em sua relação com as imagens puramente técnicas.

Pode-se dizer, aqui, que uma causa do desconforto e da solidão do narrador é não conhecer os aparatos técnicos da imagem mediada por aparelhos e, a partir daí, tecer polaridades múltiplas de apreensão do espaço narrado. Trata-se de estabelecer uma intenção. Entretanto, tal intenção vem preenchida pela velocidade do próprio olhar: com isso desconforto, a solidão e o rancor se fazem presentes.

Em outro trecho, o narrador buscará na memória as imagens tradicionais e valores dos merdunchos (na figura de sua avó e do sambista ‘na lata de graxa’ Germano Mathias – sempre presentes no texto) para dialogar com a cidade multifacetada que ele vê, localizando as mudanças e os dissabores da sociedade de consumo:

A avó, no morro da Geada, dá de presente aos paus-de-arara as camisas que costura, tecido arranjado, favor e esmola, no orfanato da Lapa.
Logo caio em mim. Não foram os jornalistas que encomendaram ditadura, mas são eles, principalmente, quem a têm no lombo. Nem pediram políticos biônicos. Também não inventaram a sociedade de consumo.
Mais buracos e rondas policiais do que diamantes nas ruas. Isso, não me dizem. E nem para onde correram com o samba levado na lata de graxa. Onde, o sarará? (...)
A fórmica. Um comportamento asséptico gadanhou o lugar das risadas, charlas, papos sem amanhã. Se era madrugada, a gente passando ouvia o vozeirio. A casa tem, agora, luminoso vermelho e verde que, à noite, acende e apaga, como precisando anunciar que existe (Cf. Antônio, 2001, p. 110).

Entende-se, pois, que há um desconhecimento e um estranhamento do objeto apreendido pelo narrador em sua andança. Com o estabelecimento de dualidades conflitantes, o narrador se coaduna aos partícipes marginalizados de uma cidade “carcomida”, ensejada em valores distintos e díspares. Mas cabe salientar, novamente, o advento da experiência.

Se Benjamin preconiza o fim do narrador no ensejo dos fluxos de consciência, dos processos epifânicos e o advento da técnica fotográfica apreendedora da imagem momentânea, todavia, não se deve esquecer, justamente, das dualidades envolvidas na condição representativa do ser, os valores, as atitudes; ou, as experiências pré-predicativas, para Pross (1974):

El estúdio de la comunicación de tipo político tiene que partir de que la realidad social no consta  solamente de cosas, personas y sus correlaciones, sino que es determinada, en una medida cuyas dimensiones no pueden todavia estimarse en toda su importancia, por representaciones e ideas, en aras de cuyo reconocimento e no reconocimiento se organizan, ahora como antes, hecatombes humanas (Cf. Pross, 1974, p. 48).

É, portanto, com a dualidade reconhecer/não reconhecer que se solidifica a relação de estranhamento do narrador para com as imagens apreendidas e as projetadas em sua busca valorativa e ética de São Paulo.

Nesse sentido, delineia-se um choque entre os valores pré-predicativos (em sua representação ética) e o não reconhecimento de novos “valores”, novas “demandas”, e novas “técnicas” das imagens com as quais se depara. Pross (1974) fala da desordem surgida da crise, na idade adulta, com o manuseio das experiências pré-predicativas, desencadeando, conseqüentemente, um embate representacional: caos x ordem: Las cosas esparcidas aparentemente al azar com las que el niño designa su presencia y se delimita su mundo cubriendolo con sus signos aparecen, a los ojos del adulto como algo caótico, sin sentido ni razón, sumamente desordenado (Pross, 1974, p. 53).

É neste cenário pós-histórico, de regimento em programas e aparelhos, que o narrador, profundamente desordenado, colocará o seu posicionamento e a sua ação: o jornalista andarilho que se aproxima e se emaranha junto aos merdunchos para tentar reconhecer – ou fugir – dos valores novos e imagens fugazes e aceleradas que o rodeia.

Outra discussão se faz presente, evidentemente: a função e o papel do jornalista no cenário “desordenado” de imagens.

4. Velocidade x contemplação: o rancor do jornalista

Já falamos da característica intrínseca à reportagem em Abraçado ao meu Rancor.

Mas, mais do que isto, a personificação do eu-lírico se transmuta na figura do jornalista amargurado. Dessa maneira, é o jornalista que verá com estranhamento imagens imperceptíveis e fugazes. Parece que chegamos a um entendimento do tratamento das imagens no texto.

Na condição de jornalista amargurado (descrente da profissão, cobrindo os espaços burgueses da cidade em detrimento de sua “morada”: Morro da Geada, Presidente Altino, Osasco), o narrador (travestido de repórter) tenta romper com os “dogmas” objetivos da profissão.

É como se o interesse e a necessidade de apreensão de uma cidade profundamente partida fosse peça obrigatória no fabrico de acontecimentos reais. Trata-se, não só da projeção de um jornalismo que fira, que penetre os acontecimentos (pela imersão, pelo enfrentamento social), [3] mas também de uma crítica aos moldes e modelos do jornalismo asséptico praticado pelas redações. Em todos os momentos do texto há a demarcação das frases feitas construídas em um reclame publicitário para o dinamismo turístico de São Paulo, com as mazelas e a transformação da cidade no percurso imersivo.

Ou seja, é pela reportagem que o sujeito é visto. Contudo, como já vimos, a experiência do olhar e da decodificação dos códigos culturais e das imagens técnicas ocupam e adquirem outras facetas. Facetas essas que imbricam o jornalista na condição de sujeito pós-histórico, em um choque que nos parece evidente: o confronto entre a contemplação de outrora e a velocidade absurda dos novos tempos, pelas quais as imagens são verificadas e apropriadas.

Não seria exagero dizer que a amargura e o desconsolo do narrador-jornalista-repórter se fundamenta no status de convívio com a velocidade. Nesse sentido, o jornalista se sente perdido, desconectado, ébrio em meio à selva de signos e valores, em uma cidade multidimensional. Marcondes Filho (2000) localiza o momento de passagem do jornalista “indomável” ao “perdido”:

No passado, os jornalistas, apesar de dependentes do poder do proprietário, da autoridade do capital, exerciam um poder intersticial, exatamente por não possuírem poder material algum, mas por terem condições de jogar com a sensibilidade da opinião pública. Os poderosos sempre se incomodaram com a imprensa e sua capacidade de desestabilizar. Hoje se observa uma mudança na qualidade do poder (...). Daí o desamparo da profissão, sua decadência diante dos promotores da informação. A saga dos cães indomáveis termina aí (Cf. Marcondes Filho, 2000, p. 57).

Marcondes Filho (2000) também nos fala da precarização do jornalista na sociedade contemporânea, ao se deparar, a todo o momento, com uma infinidade de aparatos tecnológicos, velozes, fugazes:

O mundo caminha em descompasso da formação do jornalista: uma realidade cada dia mais complexa, uma formação cada vez mais precária. É exatamente o paradoxo de uma época e, ao mesmo tempo, o testemunho da inevitável superação desses profissionais (Cf. Marcondes Filho, 2000, p. 64).

Na localização do “paradoxo”, outro oxímoro se mostra presente: como contemplar e observar, no calor da reportagem e da narração verificada, se a velocidade é mediadora de um processo vertiginoso de signos? Cumpre salientar que a informação – otimizada, esclarecida, devidamente decodificada – transforma-se também em um código efêmero de objetividade. Por meio da suposta “superação” do jornalista e do manuseio das imagens técnicas por aparelhos, o narrador em Abraçado ao meu Rancor vocifera, bravamente, contra a condição de jornalista, a qual está submetido:

Com vão as coisas neste país adjetivo, preferível e menos desastroso o sujeito ser apenas jornalista. Com o correr dos anos, perderá duas coisas e só duas. Embora é verdade, propriedades que um homem só perde uma vez. O tempo e a vergonha (...).Pior é, no país, o sujeito que, escritor, se mete a também jornalista. Aí perderá, potencial maior – o tempo, a vergonha, o talento e o estilo. Além, claro, de correr outros riscos sérios da dor inútil (Cf. Antônio, 2001, p. 83).

Mais adiante, identifica os códigos presentes na profissão em relação aos processos de dissimulação, de apreensão da realidade:

Poucos profissionais conheço aqui na minha ocupação de sabidos embelecados, com tamanha e afiada habilidade, conseqüência e poder de dissimulação. Nela, os mandriões e picaretas dissimulam mal, não enganam sequer a si mesmos e são uns falidos diante da opinião pública (Cf. Antônio, 2001, p. 98).

No choque da contemplação com a aceleridade da pós-história, o jornalista sucumbe, pois, a uma crise do olhar, a um estranhamento do objeto, a um desassossego no percurso. Voltemos, aqui, a uma proposição: o narrador, em Abraçado ao meu Rancor, não carrega mais as tintas do “flanar”, entretanto, sente-se desconfortável em relação ao processo tecnológico, ao qual Benjamin identificou como fim da “narração”. Marcondes Filho (2000) localiza a perda do “humanismo” no jornalismo:

O jornalismo sucumbiu, como todos os processos nascidos da modernidade, à crise do humanismo, ao desmoronarem as ideologias que investiam nos homens e acreditavam que pela força, convicção e determinação o mundo mudaria. Posição ingênua para alguns, inconseqüente para outros, pois o mundo gira indiferente aos homens. Ou melhor: apesar dos homens (Cf. Marcondes Filho, 2000, p. 148).

5. Resultados do percurso e algumas conclusões

Com o quadro de polarizações culturais, de apreensão das imagens multifacetadas, do papel de um novo “sujeito” histórico – ou melhor, pós-histórico –, a aproximação aos merdunchos e desvalidos faz, de Abraçado ao meu Rancor, um texto entregue aos ditames das imagens frenéticas, mas também, localiza-o na imensidão imersiva, uma espécie de “contemplação vertiginosa”. O reduto final do narrador é nada mais do que o Morro da Geada.

Todo o percurso, toda a visualização, toda a projeção da cidade (lugares esquecidos, lugares inexistentes, o jornalismo, os “embelecos publicitários”), são devidamente contrastados no caminho – também como a cidade – fragmentado. Abaixo, recortamos alguns trechos que mostram o “ritmo” do andar até a chegada do lugar idealizado e vislumbrado da polarização máxima e, nas entrelinhas do texto, espaço cosmopolita versus espaço marginal, periférico:

A travessia da Avenida São João para ganhar a Duque de Caxias e tomar, finalmente, a Estação Júlio Prestes é difícil, me confunde e dificulta, o frio me bate nas pernas e driblo o tráfego, mal e mal (...).
para quem toca para os cantos industriais, ABC, num pólo, Osasco no outro, a poluição em quase tudo (...).
Um trem desses pára. Empaca e atrasa. O pessoal agüenta um, agüenta dois. Três dias, não. A moçada desce e o mulherio também (...).
Lapa. O empurra-empurra é luta, trambolhões entre os que têm de descer e os que sobem de algum jeito. Caras fanadas, crispadas se contraem, a gente acaba descendo ou subindo. (...).
Vou descer em Altino, encaro o compromisso. Luto. Apertando, apertado, empurrando, cara fechada, crispo a boca, não peço licença, uso cotovelos e joelhos (...).
E toco a subir no escuro o Morro da Geada. Um pensamento me passa, que empurro. Se tivesse de viver de novo aqui, de onde me viria a força? (Cf. Antônio, 2001: p. 115, 120, 121, 122 e 124).

Com a clara absorção do narrador a um espaço urbano, com todas as violências que o percurso carrega, notam-se alguns pontos relevantes discutidos neste trabalho, em relação ao texto Abraçado ao meu Rancor e ao narrador-repórter:

  • o percurso feito com os ditames das imagens técnicas;

  • a desconstrução do flâneur, com a pós-história, ou com o “fim da experiência”;

  • as experiências pré-predicativas presentes, entretanto. A dualidade entre caos e ordem, entre conhecimento, reconhecimento e não reconhecimento de signos;

  • os códigos culturais terciários como representações e intenções do narrador, fincados em polaridades e embates;

  • a contemplação x a velocidade: ingredientes fragmentados na captação das imagens, durante o percurso;

  • a aproximação do narrador aos seus “iguais” e o rumo estabelecido ao encontro deles, o ponto final de Abraçado ao meu Rancor;

  • a presença do eu-lírico rancoroso, travestido na figura do jornalista, profissional profundamente “perdido”, assim como o narrador, às vicissitudes e às dificuldades de novas representações imagéticas.

No término deste trabalho, não poderíamos deixar de contextualizar o fundamento da escrita joãoantoniana com o que já foi discutido. Aguiar (2000) nos mostra que, na própria hibridização de seus textos, João Antônio exerce uma nova função estética e localiza o autor no bojo da não-concessão, porém, não o enxerga como representante de um discurso meramente pessimista:

Um Brasil [o de João Antônio] construído pela busca de uma adequação entre o valor estético, a forma, que aqui inclui uma visão sobre o gênero escolhido, o conto ou no último caso a reportagem com laivos de crônica, e a função da literatura. Este Brasil assim decomposto, analisado e recomposto, é retrato, é raiz e é também projeto. Não se pode dizer que a literatura de João Antônio seja pessimista, nem mesmo amarga.

Ela procura se valer do argumento de “mostrar as coisas como elas são”, deseducando o leitor para a apreciação de uma literatura que seja o adorno (Cf. Aguiar, 2000, p. 154).

Em tal “deseducação” o narrador não se desvincula do processo de suas experiências pré-predicativas: daí a imersão, o choque corrosivo e conflituoso com o objeto abordado (no caso, a cidade de São Paulo), o embate entre imagem projetada – idealizada – e imagens técnicas que – com a dificuldade contemporânea em “flanar” – não reconhece.
Chiappini (2000), ao analisar o narrador de Abraçado ao meu Rancor, sintetiza a perplexidade de tal narrador-andarilho e “ex-pingente”:

O escritor que busca essa linguagem [dos pingentes] é um marginal. Ex-pingente, sente-se um pouco como um habitante do Morro da Geada, bairro periférico, de onde provém e para onde volta para visitar a mãe” (...) “mas ao descer do trem e percorrer de novo o bairro de sua infância, rumo à casa da mãe”, o personagem-narrador se sabe viajante esporádico desse trem, porque, imbricado agora em outra classe, pergunta-se perplexo; ‘se tivesse que viver aqui de novo, de onde me viria força?’ (...) essa distância social não afeta apenas as roupas e os gestos, mas também a linguagem (Cf. Chiapini, 2000, p. 170).

Na linguagem de um narrador-repórter perplexo durante o percurso, e no desvario das imagens apreendidas, é que se localiza, a nosso ver, a polarização de outras frentes preconizadas por João Antônio: a busca textual configurada no “corpo-a-corpo com a vida”. [4] Se Flusser (1983) localiza nosso encolhimento diante dos novos processos programáticos e mediadores, a rudeza dos enfrentamentos e das polarizações culturais passa, necessariamente, pela agudeza do desconforto e estranhamento ante a uma velocidade cada vez mais galopante. Precisa-se, pois, do fortalecimento da imersão, para, a partir daí, tecer contemplações e informações: em meio ao caos, o narrador de Abraçado ao meu Rancor, a nosso ver, tece tal caminho.

NOTAS

[1] Chiappini (2000): “Na marcha para cima e para baixo narrador e personagens buscam o tempo todo não apenas espaços, ruas, becos, guetos da cidade, mas outra cidade que não mais existe, descobrindo que a ‘cidade deu em outra’”. (Cf. Chiappini, 2000: 159).

[2] “Além de geográfica, social, cultural e temática, a amplitude da obra [de João Antônio] é sobretudo uma amplitude simbólica que aprofunda a crítica à modernização à custa de exclusão, o que serve para as periferias das cidades brasileiras” (Cf. Chiappini, 2000, p. 159).

[3] ANTÔNIO, J. “Corpo a corpo com a vida”. In: ANTÔNIO, J. Malhação do judas carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

[4] Idem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR, F. “Evocação de João Antônio ou do purgatório ao inferno”. In: CHIAPPINI, L.; DIMAS, A.; ZILLY, B. Brasil: o país do passado? São Paulo: Boitempo; Edusp, 2000.

ANTÔNIO, J. Abraçado ao meu rancor. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

__________. “Corpo a corpo com a vida”. In: ANTÔNIO, J. Malhação do judas carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

BENJAMIN, W. “O Flâneur”. In: BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1994. 3ª ed.

___________. “O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: BENAJMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996.

BYSTRINA, I. Tópicos de semiótica da cultura. São Paulo: CISC/PUC-SP, 1995.

FLUSSER, V. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.

__________. Pós-História: vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Duas Cidades, 1983.

MARCONDES FILHO, C. A saga dos cães perdidos. São Paulo: Hacker, 2000. 2ª ed.

PROSS, H. Estructura simbólica del poder. Barcelona: GG Mass Media, 1974.

*Cláudio Rodrigues Coração é jornalista e mestrando em Comunicação Midiática pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).


Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]