Nº 10 - Jul. 2008
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO V
 

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MONOGRAFIAS
 


O governo Hugo Chávez nas páginas
da grande imprensa venezuelana

Uma análise do noticiário do jornal El Universal

Por Gláucia da Silva Mendes*

RESUMO

A participação dos cidadãos no processo democrático depende, em grande medida, do consumo de informações. Como na atualidade os meios de comunicação de massa conhecidos como a “grande mídia” exercem um significativo papel na produção e na circulação de informações sociais, faz-se necessário analisar o contexto no qual o jornalismo é  desenvolvido em veículos desta natureza e como o mesmo interfere na construção de discursos realizada pelos periódicos para compreender as informações sobre a área política colocadas à disposição dos agentes sociais.

Reprodução


Este é o cenário elucidado no presente artigo com o objetivo de analisar a cobertura sobre o desempenho do primeiro governo de Hugo Chávez realizada pelo El Universal, um dos maiores jornais impressos venezuelanos.

PALAVRAS-CHAVE: Accountability / Mídia Oligopolista / Eleições Venezuelanas / Jornalismo Internacional

1. Introdução

A história da América do Sul vem sendo marcada por uma significativa mudança na configuração política. Após viver um longo período sob a liderança de governos neoliberais, diversos países latino-americanos vêm aderindo às propostas de reforma sócio-econômica sustentadas por representantes de esquerda: hoje, significativa parcela da população e do território do sub-continente são conduzidos por governantes de tendências esquerdistas.

A expressiva dimensão assumida pelo novo quadro político vem suscitando reflexões acerca da eficácia dessas administrações na implantação de programas sócio-econômicos e no atendimento das necessidades da população. Contudo, um aspecto tão relevante quanto a consecução ou não dos resultados prometidos em campanha eleitoral ainda carece de investigações: a capacidade de os representantes políticos prestarem contas de seus atos àqueles que representam.

Uma vez que tal processo encontra-se bastante dependente dos meios de comunicação de massa e que a grande mídia estrutura-se, cada vez mais, segundo os princípios neoliberais, torna-se premente averigüar como a atuação dos governos de tendência esquerdista da América do Sul vem sendo apresentada aos cidadãos pelas grandes empresas de comunicação do continente.

Visando a contribuir com o desenvolvimento de pesquisas dessa natureza é que o presente trabalho empreende uma análise da cobertura sobre o governo Hugo Chávez realizada pela grande mídia venezuelana. A escolha justifica-se em função do pioneirismo da nação no fenômeno citado – a Venezuela foi o primeiro da série de países latino-americanos que elegeram governantes de esquerda nas últimas décadas e, por conseguinte, é um dos poucos que já apresentam resultados concretos nesse sentido.       

Como objeto de estudo, foi selecionado o noticiário produzido pelo jornal El Universal, um dos maiores do país, no último mês da campanha eleitoral de 2006, na qual Chávez figurava como candidato à reeleição. A observação centrou-se nas matérias que apresentavam os resultados de oito anos da República Bolivariana em alguns dos assuntos considerados estratégicos pelos militantes de esquerda: combate à pobreza, educação, saúde, habitação e questão agrária.

2. A intervenção da grande mídia na accountability

Uma das questões-chave para a qualificação da democracia moderna, calcada no modelo representativo, consiste na prestação de contas das pessoas públicas aos cidadãos. Neste processo, a percepção que os atores sociais têm ou podem ter do desempenho e da capacidade do regime e dos mandatários responderem às suas necessidades e aos seus interesses são tão ou até mais importantes do que os resultados reais alcançados por um governo. Designada pelo termo accountability, tal prática depende, portanto, dos dispositivos de produção e difusão de informações para se efetivar.

Coloca-se assim a questão da informação – da produção e da circulação, na sociedade, de dados e versões sobre dados, de estruturas de representação e significação desses mesmos dados ou versões – como uma das mais decisivas no que se refere à mobilização e à legitimação de estratégias de conduta política ou de intervenções em questões de engenharia institucional democrática (Cf. Lattman-Weltman, 2003, 150).

Nesse contexto, os meios de comunicação de massa assumem um papel expressivo: é, em grande medida, a partir do consumo de informações midiáticas que os cidadãos participam do processo democrático, exercendo os poderes de recompensa e punição sobre seus representantes (Cf. Lattman-Weltman, 2003). Por conseguinte, assumem relevância no processo de accountability os fatores que estruturam e condicionam a oferta das informações colocadas à disposição dos indivíduos para que estes avaliem o desempenho dos governantes.

Um dos aspectos a considerar neste âmbito é a reconfiguração do setor midiático mundial iniciada na década de 80: com o advento do neoliberalismo e da globalização, a indústria de comunicação passou a se estruturar, em praticamente todo o planeta, segundo os princípios da concentração oligopolista em setores de ponta e da internacionalização. A combinação das duas variáveis resultou na formação de megaconglomerados de mídia transnacionais, por vezes originados de alianças entre empresas de diferentes países (Moraes, 1998).

Se, por um lado, o estabelecimento de parcerias dessa natureza desponta como uma estratégia de fortalecimento das grandes organizações de comunicação no mercado global, por outro, ela dificulta a emergência e a sobrevivência de médias e pequenas empresas no ramo e, assim, compromete a pluralidade de visões sobre o mundo: “a concentração e a conglomeração deitam raízes, dificultando cada vez mais o equilíbrio de forças no campo da comunicação e, por extensão, a pluralidade de visões de mundo que emergiria com fontes informativas descentralizadas” (Cf. Moraes, 1998, p. 105).

A conseqüência dessa reconfiguração do setor midiático, para o jornalismo, é a formação de um ambiente favorável à elaboração de produtos noticiosos consensuais, calcados na visão de mundo que mantém a ordem estabelecida; propensão esta que se vê reforçada por outro fator que condiciona a oferta informacional: o contexto no qual a prática jornalística se desenvolve.

Isso porque a transformação de um acontecimento em notícia é regida por uma série de fatores organizativo-burocráticos e elementos de ordem comunicativo-expressiva – os valores/notícia -, que induzem os profissionais do ramo a um trabalho similar de filtragem e manipulação dos acontecimentos. Tais regras e parâmetros permeiam todas as etapas constituintes do processo de produção noticiosa, como as de captação de material e apresentação das notícias (Wolf, 2005).

Uma das implicações desse modus operandi na fase de captação do material é o estabelecimento de canais estáveis de obtenção de informações, com vistas a favorecer o fluxo diário de notícias. Consideradas como um fator determinante da qualidade dos noticiários, as fontes despontam como um desses canais privilegiados. Mas:

(...) nem todas as fontes são iguais e igualmente relevantes, assim como o acesso a elas e o seu acesso aos jornalistas não são distribuídos de maneira uniforme. (...) a rede de fontes que os aparatos de informação estabelecem como instrumento essencial para o seu funcionamento reflete, de um lado, a estrutura social e de poder existente e, de outro, organiza-se na base das exigências colocadas pelos procedimentos de produção (Cf. Wolf, 2005, p. 234-235).

No que se refere à etapa de editing ou apresentação, “a rigidez do formato (...) acaba por constituir o parâmetro ao qual são adaptados os conteúdos dos noticiários: neste sentido, ele representa o contexto (formal, textual) em que são recebidas e a que são comensuradas a relevância e a significatividade das notícias” (Cf. Wolf, 2005, p. 259).

Para serem noticiados, os fatos precisam se submeter à estrutura da narrativa jornalística (Hohlfeldt, 2001). A adoção de tal parâmetro discursivo, no jornalismo impresso, implica ordenar os eventos não por sua seqüência temporal, mas pelo interesse ou importância decrescente, na perspectiva de quem conta e, sobretudo, na suposta perspectiva de quem ouve.

Além das variáveis organizativo-burocráticas e comunicativo-expressivas hegemônicas na área jornalística, outro fator que incide sobre a apresentação final das notícias é o posicionamento ideológico dos proprietários dos veículos de comunicação. Enquanto manifestação de indivíduos pertencentes a grupos sociais, cujos posicionamentos determinam a visão de mundo de seus membros, todo e qualquer discurso – inclusive o jornalístico – é ideologicamente marcado: “a cada formação ideológica corresponde uma formação discursiva (...). É com essa formação discursiva assimilada que o homem constrói seus discursos, que ele reage lingüisticamente aos acontecimentos” (Cf. Fiorin, 2004, p. 32).

As determinantes ideológicas incidentes sobre um discurso encontram-se arraigadas tanto a estruturas sintáticas quanto às redes de temas e figuras traçadas no interior do texto com o propósito de construir a trama significativa.

Há no discurso o campo da manipulação consciente e o da determinação inconsciente. A sintaxe discursiva é o campo da manipulação consciente. Neste, o falante lança mão de estratégias argumentativas e de outros procedimentos da sintaxe discursiva para criar efeitos de sentido de verdade ou de realidade com vistas a convencer seu interlocutor. (...) O campo das determinações inconscientes é a semântica discursiva, pois o conjunto de elementos semânticos habitualmente usados nos discursos de uma dada época constitui a maneira de ser do mundo numa dada formação social (...) (Cf. Fiorin, 2004, p. 18-19).

Realizar uma análise que procure desvelar a ideologia presente em um discurso implica, portanto, compreender as motivações que regem as escolhas sintáticas e semânticas empreendidas no processo de construção discursiva.

3. Mídia e poder na Venezuela

A abertura do setor de comunicação latino-americano aos investimentos externos, na passagem dos anos 80 aos 90, transformou a região em uma das principais partes do globo em que se propaga o modelo de entrelaçamento empresarial midiático. Na atualidade, a situação assume os seguintes contornos: “(...) a conglomeração tende a agravar-se na América Latina, unindo investidores internacionais a grupos multimídias regionais. A rota vem sendo pavimentada por fusões e alianças estratégicas” (Cf. Moraes, 1998l, p. 100).

Embora esteja disseminado por todo o continente, tal processo é mais marcante em alguns países, como a Venezuela. Além de ser praticamente dominada por quatro emissoras de televisão comerciais (Venevisión, Televen, RCTV e Globovisión) e dois jornais privados de circulação nacional (El Universal e El Nacional), a mídia venezuelana conta com um dos maiores conglomerados de comunicação que atuam no continente: as Organizações Cisneros.

A Divisão de Televisão, Mídia e Entretenimento [do grupo Cisneros] engloba (...) uma distribuidora internacional de programação de TV, vídeo e cinema, uma companhia fonográfica, uma promotora de espetáculos, duas empresas de produção e pós-produção em multimídia. A Cisneros tem 20% nos Consórcios Galaxy Latin America e Galaxy Brasil, que administram a DirecTV. Mas a sua participação na TV digital  por satélite chega a 30% graças às subsidiárias DirecTV da Venezuela, que transmite para a América Central e parte do Caribe, e Galaxy Caricom, que opera em outra área do Caribe (Cf. Moraes, 1998, p. 131).

Neste contexto, os produtos informativos venezuelanos em geral – incluindo a cobertura realizada sobre a área política -, ficam praticamente submetidos às normas do jornalismo-empresa. A conseqüência desse panorama é, conforme já mencionado, a tendência a um noticiário uniforme, calcado na ideologia hegemônica.

A quase inexistente variação de conteúdo daí resultante incide negativamente sobre o processo de accountability: como ele depende da oferta informacional do mercado de comunicação e esta consiste na abordagem de um conjunto bem definido de características do governo vigente, realizada sob limitadas angulações, os cidadãos têm a sua disposição escassas informações para avaliar seus representantes políticos e, assim, exercer seu poder de recompensa ou punição sobre eles.

4. O governo Hugo Chávez nas páginas de El Universal

No último mês da campanha eleitoral venezuelana de 2006, compreendido entre os dias três de novembro e dois de dezembro, o jornal El Universal publicou 14 matérias acerca do desempenho de Hugo Chávez em temas elencados como prioridades da República Bolivariana: pobreza, educação, saúde, habitação e questão agrária. O tratamento dispensado aos assuntos pelo veículo delineia, de uma forma geral, um quadro no qual a ineficiência no cumprimento das propostas desponta como principal característica do governo vigente: mais de 70% do noticiário suscitam uma imagem negativa da administração chavista.

É o que atesta, por exemplo, a abordagem sobre a pobreza. Em 19 de novembro, o assunto é tratado com dizeres como “combater a pobreza e acabar com a indigência eram prioridades para o Chávez de 1998”; “o mandatário afirmou que a situação da população nessas condições seria enfrentada ‘com medidas de caráter urgente’”(Díaz e Peñaloza, 2006) (tradução nossa). Embora as construções discursivas criem a expectativa de uma avaliação dos resultados alcançados neste sentido, a matéria não menciona as ações que foram realizadas ou deixaram de sê-lo, nem os sucessos e os insucessos obtidos pelo governo.

Os dados concretos, omitidos ao longo do processo de produção jornalística, são substituídos, em sua função de subsídio interpretativo, pelo julgamento do veículo, realizado no título As promessas iniciais da revolução e na linha fina Após 8 anos, a oferta programática da  revolução segue sem se concretizar.

Outra ponderação a respeito da atuação de Chávez contra a pobreza é expressa em uma entrevista realizada com Michael Rowan que, além de declaradamente contrário ao governo vigente – Michael é autor do livro Como sair de Chávez e da pobreza – atuava na época como assessor de estratégia do candidato da oposição Manuel Rosales. Para a fonte, “com suma facilidade, Chávez poderia ter reduzido a pobreza à metade na Venezuela nos últimos anos, mas escolheu não fazê-lo” (Rowan, 2006. Tradução nossa).

Segundo ele, o então presidente poderia tê-lo feito se, em vez de concentrar nas mãos do Estado o controle da economia, tivesse usado “clássicas ferramentas econômicas de criação de riqueza”, como “títulos de propriedade de terras” e “empresas privadas formais” no lugar de “coletivos socialistas do Estado”; ou seja, se tivesse seguido os preceitos capitalistas.

Tendo em vista que esta é a única opinião sobre o assunto publicada no período de análise – não foi dada voz, seja em notícias ou entrevistas, a fontes que defendessem idéias contrárias -, é possível afirmar que o veículo posicionou-se subtextualmente sobre a questão, construindo um discurso jornalístico ideologicamente marcado.

Tratamento muito similar a esse foi dispensado à questão da educação. Assim como na abordagem da pobreza, o jornal enquadrou o tema em uma retranca da matéria As promessas iniciais da revolução (Díaz & Peñaloza, 2006. Tradução da autora).

A diferença mais evidente entre os dois textos é que, neste segundo, a avaliação expressa na linha fina Após 8 anos a oferta programática da revolução segue sem se concretizar é reiterada por dados concretos: “nos últimos oito anos o Governo não construiu 500 escolas primárias e secundárias, e ainda falta em torno de cinco mil escolas secundárias para dar cobertura à demanda de educação básica e secundária da população” (tradução da autora).

Também a citação de fontes diretamente ligadas ao candidato da oposição apresenta-se como uma prática recorrente. As matérias ‘A política educativa do Governo é uma grande fachada’ (Méndez, 2006b. Tradução da autora), do dia 13 de novembro, e Diminui investimento oficial no setor educativo (Méndez, 2006a. Tradução da autora), publicada em 24 de novembro, sustentam-se quase integralmente em declarações e ponderações do coordenador do programa educativo de Manuel Rosales, José Luis Farías.

Sentenças como “As conquistas que se anuncia ao país são uma dose de realismo mágico”, “Anuncia-se ao país uma revolução educativa que não existe” (Méndez, 2006b) e “É brutal a distância entre os anúncios propagandísticos do Governo sobre supostas conquistas educativas e a realidade (...)” (Méndez, 2006a. Tradução da autora) definem o tom das notícias.

Apesar de respaldadas por dados oficiais, as asserções realizadas nas matérias apontam para a existência de parcialidade no tratamento do assunto. O posicionamento do veículo evidencia-se, sobretudo, em duas etapas do processo de produção noticiosa: a captação de material e a seleção de informações.

No que tange à primeira, a recorrência a uma única fonte, defensora de um ponto de vista claro, revela que o veículo feriu a “lei básica” da imparcialidade: a prática de ouvir os dois lados. A observação dos resultados provenientes da segunda, por sua vez, demonstra que ambas notícias centraram-se apenas na elucidação de fracassos do governo chavista.

A contraposição ideológica entre o neoliberalismo e o modelo de governo implantado por Chávez, que tenta se impor como uma alternativa socialista, e a caracterização do último como uma experiência ineficaz também é reincidente na cobertura do tema educação, como demonstra a matéria Chávez lança em Punto Fijo a Missão Alma Mater (Peñaloza, 2006. Tradução da autora).

O jornalista inicia a narrativa dizendo que “o presidente Hugo Chávez criticava o ‘capitalismo’ das universidades privadas, onde ‘só interessa ganhar dinheiro e não tem nada a ver com educação de qualidade’”. Logo em seguida, é dada voz a uma estudante da universidade pública Unefa que, com seus dizeres, levanta questionamentos sobre a suposta qualidade do ensino superior oferecido pelo Estado: “‘No [núcleo] Coro contamos somente com três módulos, que não são suficientes para a quantidade de estudantes, não temos mais do que um ônibus, não contamos com nenhuma biblioteca, não temos laboratórios (...)’” (Tradução da autora).

À primeira vista, a cobertura realizada pelo El Universal sobre a área de saúde apresenta um certo equilíbrio em relação ao tratamento dispensado aos temas da pobreza e da educação: na principal matéria sobre o assunto, contrapõem-se versões e pontos de vista. Contudo, uma análise detalhada revela a existência de procedimentos destinados a conferir mais credibilidade aos ditos oposicionistas.

Em Vivendo com dengue (Medina, 2006. Tradução da autora), acusações de um ex-ministro da Saúde são confrontadas com declarações do então diretor de Epidemiologia e Análises Estratégicas do Minsalud (Ministério da Saúde da Venezuela) e intercaladas com o relato de ações e avanços governamentais alcançados no combate à doença. Apesar do contrapeso, as asserções do ex-ministro José Félix Oleta ganham proeminência, em função do respaldo proporcionado pelas avaliações dos médicos Julio Castro e José Suárez.

Caracterizadas como fontes que “se atém à visão técnica” e, portanto, neutras na polêmica, as declarações médicas sustentam importantes acusações da oposição, como a de que “as autoridades sanitárias estão fazendo pouco ou nada” para resolver o problema da dengue. Sobre a questão, “Suárez e Castro asseguram que ‘aqui nunca se fez trabalho de prevenção, nem antes nem agora, só campanhas esporádicas’” (Tradução da autora).

Embora a citação de fontes de origens diversas apresente-se como uma marca positiva do discurso jornalístico elaborado pelo El Universal sobre a questão da dengue, apesar das manobras supracitadas, igual procedimento não se estende a toda a cobertura da área de saúde. É o que comprova o tratamento dado às acusações realizadas pelo Movimento de Profissionais e Técnicos do Copei contra a administração chavista.

Às denúncias feitas por um integrante da entidade na edição do dia 12 de novembro – as acusações de que o governo fora responsável pelo fechamento de 2.300 farmácias, em virtude da introdução de medicamentos cubanos no país; de que os remédios cubanos eram ilícitos; de que o governo comprava medicamentos contra Aids e câncer sem licitações e de que Chávez eliminara a medicina preventiva, fazendo ressurgir doenças já erradicadas - não se seguiu nenhuma réplica ou justificativa oficial. Ao contrário, no dia seguinte foi publicada uma nota que não acrescentava qualquer informação à matéria do dia anterior, apenas reiterava as acusações.

A captação de informações para a constituição do noticiário sobre habitação, por sua vez, englobou a cobertura de um ato do governo, com o conseqüente acolhimento de declarações presidenciais, e a pesquisa a dados oficiais. Na matéria 80.000 moradias foram construídas pelo governo até este momento (Zambrano, 2006. Tradução da autora), a junção das informações selecionadas das duas fontes envolve procedimentos de edição dotados de intencionalidade semântica.

É o que atesta a construção do lead e do sublead. À assertiva feita no primeiro, com base em dados concretos, de que até o antepenúltimo mês do ano o“Executivo somente havia cumprido 66% do novo objetivo” de construção de soluções habitacionais, segue a declaração de Chávez “‘terminamos 80.000 moradias e isso para nós é um êxito’” (Tradução da autora). A aproximação das informações conduz ao entendimento de que o governo se sentia satisfeito com os resultados, embora estes demonstrassem sua ineficiência, por estarem bem aquém das metas traçadas.

É importante ressaltar que, apesar de contar com construções dessa natureza, a notícia dedica espaço a declarações favoráveis à presidência, atitude pouco verificada até então. O lado positivo da imagem governamental é expresso em informações como: “Para o próximo ano o objetivo é construir 150.000 soluções habitacionais e [Chávez] manifestou que a compra de moradias, além dos juros baixos, tem-se beneficiado dos subsídios que se utilizam para completar a compra”.

Em 27 de novembro, a questão habitacional é retomada em uma matéria que, baseada em dados do Conselho Nacional de Habitação, demonstra o desempenho do governo em todo o mandato de Chávez (Armas, 2006). Os dados negativos registrados a cada ano são reforçados por escolhas léxicas empreendidas pelo jornal. “Escassa oferta”, “lentidão na construção de moradias”, “calcanhar de Aquiles da administração de Hugo Chávez” são algumas das expressões utilizadas para caracterizar os programas chavistas na área e os resultados por eles alcançados.

Por fim, o balanço sobre a questão agrária apresenta um cenário de recrudescimento das condições de produção rural. Com base em informações de fontes não identificadas claramente – é utilizado o termo “vários grupos do setor” para se referir a elas -, o veículo afirma que a Lei de Terras e Desenvolvimento Agrícola provocou uma “situação de conflitividade e de volatilidade” no campo; conflitos que, segundo o jornal, muitas vezes “têm contado com um manto de impunidade e anarquia” (Tovar, 2006. Tradução da autora).

Outras informações suscitadas para compor esse quadro são o questionamento da validade das cartas agrárias, criadas pelo presidente com a finalidade de atribuir direitos de uso e posse da terra –  “sua validade [das cartas agrárias] ainda está em julgamento” -, as afirmações de que a fixação de preços realizada pelo Ministério de Agricultura e Terras provoca a “redução da rentabilidade” do produtor rural e “a lenta comercialização e a irrentabilidade afetam a capacidade de pagamento do campesino (...), deixando-o exposto a especuladores intermediários” (Tradução da autora).

O único feito governamental, dentre os citados na notícia, cujos resultados aparentam ser positivos – a recuperação de terras ociosas – é retomado e desenvolvido dois dias depois, naquela em que vem a ser a notícia mais favorável ao desempenho do governo Chávez no período analisado: Prevê-se recuperar 1.800.000 hectares este ano (Tovar, 2006. Tradução da autora).

Totalmente respaldada por dados advindos de fontes oficiais – o ministro da Agricultura e Terras e o Instituto Nacional de Terras – a matéria fala em uma provável superação da meta de recuperação de terras de 2006 e cita a transposição, em 60%, do número de fundos Zamoranos criados com a finalidade de tornar todos esses hectares de terra produtivos.

5. Conclusão

A capacidade de acesso da administração Hugo Chávez ao jornal El Universal, para cumprir sua função de prestação de contas à população dos resultados alcançados pela República Bolivariana, apresentou-se muito limitada no último mês da campanha eleitoral de 2006: raras foram as ocasiões em que vozes governistas fizeram-se ouvir no noticiário produzido pelo jornal.

A restrição do espaço concedido ao governo de esquerda encontra suas raízes sobretudo nos fatores que estruturam a oferta de informações midiáticas em âmbito nacional. O domínio exercido pelas grandes empresas sobre o setor de comunicação venezuelano, aliado à hegemonia, no jornalismo, de determinados fatores organizativo-burocráticos e elementos comunicativo-expressivos e à intervenção ideológica sofrida pelos noticiários conformam um mercado caracterizado pela difusão de produtos midiáticos impregnados pela visão de mundo hegemônica.

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*Gláucia da Silva Mendes é mestranda em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]