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MONOGRAFIAS

ENSINO DE JORNALISMO
Postura docente nos órgãos laboratoriais:
Uma proposta baseada na complexidade

Por Maria do Socorro F. Veloso*

Resumo

A urgente religação dos saberes é o fio condutor da presente reflexão acerca do papel do professor na condução dos órgãos laboratoriais nos cursos de jornalismo. Na prática experimental do estudante, o conhecimento fragmentado é um mal a ser combatido. De acordo com Edgar Morin, a "reforma do pensamento", com uma articulação dos conhecimentos que nos permita conhecer e reconhecer os problemas do mundo, deve ser encarada como a questão central da educação.

Reprodução

Em A arte de tecer o presente, Cremilda Medina chama atenção para o fato de que, no jornalismo, a construção social dos sentidos se faz no cotidiano, na rua, na percepção dos gestos coletivos. "Se a comunicação social se propõe à ação solidária, a construir redes de significação contemporânea, terá de pesquisar, sensibilizar-se e praticar a dialogia". (2003: 74).

Ao eleger a prática do repórter como mediadora social dos discursos da realidade, a autora critica os esquematismos que desprezam a intuição criativa do jornalista.

Defensora de um tipo de jornalismo cuja pedagogia recupere o prazer de descobrir pessoas e coisas, Cremilda lembra que "em ambientes pedagógicos - mais favoráveis na universidade pública, mas também em algumas instituições privadas - é possível desenvolver essas aptidões conjuntamente, observando e motivando os estudiosos numa oficina permanente". (Ibidem, 35).

Esses ambientes pedagógicos de que fala a professora incluem os veículos laboratoriais produzidos por alunos. Na grande maioria das mais de 100 faculdades de jornalismo existentes hoje no Brasil, é possível encontrar pelo menos um produto experimental periódico - geralmente, um jornal mensal - feito por estudantes, sob supervisão dos professores.

A produção regular de veículos laboratoriais, pelos cursos de Comunicação Social, é obrigatória desde 1978. Naquele ano foi aprovada pelo Conselho Federal de Educação a Resolução 03/78, determinando a obrigatoriedade.

Considerados imprescindíveis para o bom funcionamento dos cursos, [1] aos produtos laboratoriais é atribuída a função de exercitar o aprendizado dos estudantes no que se refere às técnicas de apuração, redação, edição e distribuição da notícia. De acordo com o professor Dirceu Fernandes Lopes,

(...) o jornal laboratório dá condições ao estudante de realizar treinamento na própria escola, possibilitando que coloque em execução, ainda que experimentalmente, os conhecimentos adquiridos nas disciplinas da área técnico-profissionalizante. Integra os alunos na problemática da futura profissão, tornando possível que obtenham uma visão global do processo jornalístico, não apenas no aspecto conceitual, mas também na prática do dia-a-dia das redações. (1989: 49)

Obter "uma visão global do processo", como defende o professor, nos remete à noção de que, também na prática laboratorial do estudante de jornalismo, o conhecimento fragmentado é um mal a ser combatido. Tão típica de nossa época histórica, esse olhar compartimentado do mundo afeta a prática jornalística como um todo.

Na rotina diária dos veículos de imprensa, permeia desde a concepção da pauta - que deve estar "conectada" com as exigências de um certo público-alvo (entidade por vezes etérea, não sabida) - até o processo de fechamento, calcado menos na profundidade daquilo que está sendo (in)formado do que nas demandas industriais tão conhecidas por quem já vivenciou ou vivencia o cotidiano das redações.

Nas faculdades de jornalismo, como de resto no ensino universitário brasileiro, professores e alunos pouco temos nos sensibilizado com o alerta que Edgar Morin faz desde a década de 1960: o de que existe uma questão central na educação, relativa à "necessidade de promover o conhecimento capaz de apreender problemas globais para neles inserir os conhecimentos parciais e locais". (2003: 14).

Defendendo a condição humana como objeto primeiro do ensino, ataca a incapacidade das disciplinas de promover "relações mútuas e influências recíprocas entres as partes e o todo em um mundo complexo" (Ibidem, 14).

Ao formular essa crítica, Morin elege o princípio de Pascal como a base da educação do futuro: "sendo todas as coisas causadas e causadoras, ajudadas ou ajudantes, mediatas e imediatas, e sustentando-se todas por um elo natural e imperceptível que une as mais distantes e as mais diferentes, considero ser impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tampouco conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes". (PASCAL apud MORIN, 2003: 37).

A urgente religação dos saberes é o fio condutor da presente reflexão acerca do papel do professor na condução dos órgãos laboratoriais nos cursos de jornalismo. Geralmente concebidas na forma de oficinas (aprender a fazer, fazendo), as disciplinas que embutem a produção de jornais laboratório e demais produtos experimentais visam aproximar o aluno das práticas profissionais.

Ao professor - geralmente alguém com reconhecida experiência no mundo do trabalho - cabe a tarefa de cuidar para que o jornal reflita, de fato, o esforço de aprendizado do grupo.

Como, porém, embutir nessa tarefa mais do que um arrazoado de conceitos técnicos relativos à estrutura do texto jornalístico ou a procedimentos de edição (de resto disponíveis em qualquer manual de redação)?

Como incentivar o aluno a conceber o jornal-laboratório como uma possibilidade de comunicação que vai muito além das sedutoras ferramentas de editoração eletrônicas?

Como estimulá-lo a buscar um conhecimento do mundo que não reside apenas na rede de computadores, mas no conjunto das relações afetivas que, espera-se, possa estabelecer dentro da escola, mas também fora dela?

Como conduzi-lo à compreensão de que a imprensa deve ser concebida como um exercício de cidadania incansável, onde leitores e jornalistas não podem - ou pelo menos não deveriam - ser separados por um balcão de negócios?

Como praticar a dialogia de que fala Cremilda Medina, atribuindo um sentido de solidariedade a uma prática que só faz sentido se for concebida coletivamente?

A lógica da complexidade pode nos ajudar na busca de respostas. De acordo com ela, objeto de conhecimento e seu contexto não podem ser separados, visto constituírem um "tecido interdependente, interativo e inter-retroativo".

Economia, política, sociologia, psicologia e mitologia são, ao mesmo tempo, elementos diferentes e "inseparáveis constitutivos do todo" (Ibidem, 38).

Quando isolados, esses conhecimentos constituem um quebra-cabeças incompreensível, comprometendo a disposição natural de contextualizar os fenômenos. Pulverizados, os grandes problemas humanos dão lugar a problemas técnicos de ordem particular. São olhados a partir de uma inteligência míope.

Para Morin, a "reforma do pensamento", com uma articulação dos conhecimentos que nos permita conhecer e reconhecer os problemas do mundo, deve ser encarada como a questão central da educação, visto que, enquanto os saberes estão desunidos, os problemas são cada vez mais "multidisciplinares, (...) globais e planetários":

O conhecimento dos problemas-chave, das informações-chave relativas ao mundo, por mais aleatório e difícil que seja, deve ser tentado sob pena de imperfeição cognitiva, mais ainda quando o contexto atual de qualquer conhecimento político, econômico, antropológico, ecológico...é o próprio mundo. A era planetária necessita situar tudo no contexto e no complexo planetário. O conhecimento do mundo como mundo é necessidade ao mesmo tempo intelectual e vital. (2003: 35-36)

"Para ter sentido", lembra Morin, "a palavra necessita do texto, que é o próprio contexto, e o texto necessita do contexto no qual se enuncia". (Ibidem, 36). Para conhecer o mundo que nos é dado, incluindo pessoas e coisas, informações ou dados isolados não bastam.

Neste sentido, cabe ao professor a tarefa de cotidianamente lembrar aos alunos envolvidos em práticas laboratoriais - e não só a eles, obviamente - que informações isoladas são compartimentos do saber e só adquirem sentido quando situadas em um cenário multidimensional.

"Onde está o conhecimento que perdemos na informação?", perguntava o poeta e dramaturgo norte-americano T.S. Eliot (apud MORIN, 2004: 16). O sociólogo francês, por sua vez, constata que em "toda parte, nas ciências como nas mídias, estamos afogados em informações. O especialista da disciplina mais restrita não chega sequer a tomar conhecimento das informações concernentes a sua área". (Ibidem, 17)

A curiosidade é um dos motores do conhecimento e, por extensão, da prática jornalística em qualquer instância. [2] Nesse esforço, a literatura, a filosofia, o cinema e as artes se apresentam como elementos essenciais para a constituição de uma verdadeira compreensão da condição humana.
Em um texto que já se tornou clássico, Cláudio Abramo observa que grande parte do nosso conhecimento é adquirida nas leituras.

Em razão disso, prega a necessidade que o jovem jornalista tem de garantir uma forma cultural e humanística sólida, fundamental no exercício da profissão: "Assim como os jovens, também não vivi o Império romano e nem ouvi o discurso de Marco Antônio; não vi as conquistas de Genghis Khan ou as manobras de Shaka. Não vi nada disso mas sei que existiram" (1988: 249).

Paralelamente à produção de um órgão laboratorial, seja de que natureza for (impresso, audiovisual, digital), o estudante deve ser permanente estimulado pelo professor a se aproximar das fontes de relato do mundo, que estão nos romances, revistas e jornais, estão nos filmes e nas obras de arte, estão nas músicas, nas poesias, nos ensaios, nos livros de história. Para Morin,

"São o romance e o filme que põem à mostra as relações do ser humano com o outro, com a sociedade, com o mundo. O romance do século XIX e o cinema do século XX transportam-nos para dentro da História e pelos continentes, para dentro das guerras e da paz. E o milagre de um grande romance, como de um grande filme, é revelar a universalidade da condição humana, ao mergulhar na singularidade de destinos individuais localizados no tempo e no espaço". (Ibidem, 44)

O romance expõe a complexidade da vida mais banal, do ser mais insignificante, o que, por si só, constitui poderosa ferramenta de produção de sentidos para o estudante de jornalismo que não se conforma com a profusão de pautas viciadas e a imposição de técnicas de texto empobrecidas nos veículos experimentais.

Essa compreensão parece ganhar força nas faculdades de jornalismo brasileiras, onde grupos de professores e alunos se empenham na tarefa de revigorar o espaço das narrativas diante da absoluta falência dos modelos textuais que se propunham meramente "informativos". O mundo é confuso demais, e já não pode ser só informado.

A interpretação é fundamental porque a incomunicabilidade avança na mesma velocidade com que a indústria multiplica a capacidade de processamento dos computadores. Federico Fellini já atestaria esse fenômeno em A doce vida (1960), onde o jornalista vivido por Marcello Mastroianni transita num mundo de aparências em que comunicar é um desejo impossível.

A esse respeito, vale notar que em nenhuma outra instância do conhecimento, como no cinema, forjou-se com tanta ênfase a imagem exterior que - para o bem e para o mal - acompanha o profissional de jornalismo. Além de A doce vida, essa representação é evidenciada em clássicos como A montanha dos sete abutres (1951), de Billy Wilder, e Cidadão Kane, de Orson Welles, entre inúmeros outros títulos.

Artes, cinema, livros: ao mesmo tempo em que apreende novas possibilidades de linguagem, o estudante deve ser incentivado a manter os sentidos atentos para a realidade que o cerca, e que inclui desde o burburinho juvenil dos corredores da faculdade aos conchavos políticos que ecoam nos salões de Brasília.

"Detesto política": eis uma frase comum entre universitários que precisa ser colocada no centro do debate nos cursos, sob pena de nós, professores, estarmos ajudando a formar gerações de jornalistas desprovidos de senso verdadeiramente crítico a respeito do poder e de suas esferas.

Seu desconhecimento implica uma posição de ignorância perigosa, visto que a vida democrática das nações depende também de uma imprensa vigilante e aberta à diversidade de idéias e opiniões. Nos jornais-laboratório, salvo exceções, a cobertura e a análise do ambiente político é com freqüência desprezada.

Outra questão abordada por Morin na epistemologia da complexidade, e que interessa de perto aos cursos de jornalismo, é a hiperespecialização. Quando, no grupo, cada um tende a ser responsável apenas por uma tarefa especializada, a percepção global dos fenômenos e a solidariedade dos gestos perdem força.

Entendida por Morin como a "especialização fechada em si mesma, sem permitir sua integração na problemática global ou na concepção do conjunto do objeto do qual ela só considera um aspecto ou uma parte" (2003: 41), a hiperespecialização remove o objeto de seu contexto ("abs-trai") e o introduz em uma disciplina compartimentada, recusando as inter-relações com seu meio.

Como resultado, o conhecimento das partes e a ignorância do todo avançam na mesma proporção.

No jornalismo moderno, essa fragmentação é visível na estruturação das redações em editorias, onde alimenta-se a falsa idéia de que o noticiário de esportes é divorciado da política, ou que as páginas de arte e lazer estão dissociadas da economia.

Entre os estudantes, é preciso estimular a compreensão do jornal como um sistema que depende não só de softwares eletrônicos ou de máquinas fotográficas digitais de última geração: depende disso tudo também, e principalmente de jornalistas investidos de um senso de observação e capacidade de expressão daquilo que observaram; de um profundo sentido de responsabilidade social que não distingue a cobertura de cidades da cobertura de turismo; enfim, de uma visão complexa do fazer jornalístico que coloca a todos, repórteres, editores, diagramadores, fotógrafos, na mesma condição, a de produtores de sentido para uma realidade que nos é irremediavelmente dada.

Para Morin, a educação do futuro deve promover o que chama de "inteligência geral", aquela capaz de articular o complexo, o multidimensional, ao mesmo tempo em que supera "as antinomias decorrentes do progresso nos conhecimentos especializados". (Ibidem, 39-40).

Na prática experimental que tenciona reproduzir as rotinas de uma redação, certamente espera-se que o estudante de jornalismo possa, de fato, entender o sentido dessa profissão - cuja idade não se sabe ao certo, mas calcula-se que tenha entre 200 e 300 anos.

No entanto, vale atentar para o alerta que faz o professor José Coelho Sobrinho, do Departamento de Jornalismo da ECA/USP: antes de contribuirmos para a formação de profissionais de imprensa, estamos trabalhando, isto sim, na formação de cidadãos críticos. "Formar apenas para o mercado seria limitar, e muito, nossa tarefa. (...) Estamos muito preocupados com a tecnologia, mas não estamos sabendo como administrar a questão humana", observa Coelho. [3]

Também para Morin a educação deve dar seu contributo à autoformação da pessoa, ensinando-a a assumir sua condição humana, sem a qual não se tornará um cidadão. Lembrando que o conceito de cidadania é maior que o conceito de Estado-Nação, o sociólogo afirma:

"Somos verdadeiramente cidadãos (...) quando nos sentimos solidários e responsáveis. Solidariedade e responsabilidade não podem advir de exortações piegas nem de discursos cívicos, mas de um profundo sentimento de filiação (...), sentimento matripatriótico que deveria ser cultivado de modo concêntrico sobre o país, o continente, o planeta". (2004: 74)

Por reagir contra o reducionismo que paralisa a educação como tudo, acreditamos que a epistemologia da complexidade é um caminho aceitável para pensarmos a formação do profissional de imprensa. Sabemos que o ensino de Jornalismo no Brasil vem enredado, desde suas origens, em uma crise paradigmática longe de uma solução.

Esse mal-estar afeta a maioria dos cursos de graduação por diferentes razões: a estranha condição de habilitação, as grades curriculares no geral confusas e repetitivas, a relação de amor-e-ódio com o mercado de trabalho, o aprisionamento do conjunto das técnicas profissionais a modelos cuja superação já se mostrou mais do que necessária.

Combater esse mal-estar passa, em nossa opinião, pela possibilidade de oferecermos ao estudante uma outra forma de ver/ouvir o mundo que o ajude a fugir dos esquematismos de que falávamos no início destas reflexões.

Concordamos com Morin (2004: 102) quando ele diz que esse desafio passa por uma honesta compreensão de problemas cada vez mais complexos e a capacidade de distingui-los e contextualizá-los (o que demanda o uso da inteligência geral); pelo conhecimento da condição humana, em suas diversidades individuais e culturais; e, ainda, para o enfrentamento de incertezas que não cessam de aumentar.

Notas

[1] A esse respeito, consultar a tese de doutorado de Antonio Vieira Junior ("Uma pedagogia para o jornal-laboratório"), defendida em 2002 na ECA/USP. Vieira Jr entrevistou, para a pesquisa, nove professores responsáveis por jornais experimentais.

[2] Rubem Alves (2004: 58) lembra que "O pensamento é como águia que só alça vôo nos espaços vazios do desconhecido. Pensar é voar sobre o que não se sabe. Não existe nada mais fatal para o pensamento do que o ensino das respostas certas. Para isto existem as escolas; não para ensinar as respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra firme. Mas somente as perguntas nos permitem entrar pelo mar desconhecido".

[3] Aula proferida na pós-graduação em Ciências da Comunicação (ECA/USP), na disciplina "A formação do jornalista: Fundamentos pedagógicos e didáticos da construção curricular". 17 set 2004.

Referências bibliográficas:

ABRAMO, Cláudio. A regra do jogo. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

ALVES, Rubem. Ao professor, com meu carinho. Campinas, SP: Versus, 2004.

LOPES, Dirceu Fernandes. Jornal laboratório: do exercício escolar ao compromisso com o público leitor. São Paulo: Summus, 1989.

MEDINA, Cremilda. A arte de tecer o presente: narrativa e cotidiano. São Paulo: Summus, 2003.

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

____________. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: Unesco, 2003.

VIEIRA JR, Antônio. Uma pedagogia para o jornal-laboratório. Tese de doutorado. São Paulo: ECA/USP, 2002.


*Maria do Socorro F. Veloso é doutoranda em jornalismo na ECA/USP.

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