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Monografias


Gramsci cronista e sua concepção de cultura (1)

Por Rodolfo Puttini

Resumo

Antonio Gramsci tem sido estudado através de sua obra mais famosa, os Cadernos do Cárcere. Esses estudos utilizam os seus esquemas conceituais seguindo a epistemologia marxista. No entanto, o seu pensamento só obteve plena formulação depois da experiência de treze anos de jornalismo militante. Esse artigo estuda essa produção gramsciana, tendo como fonte principal de análise as crônicas escritas para o operariado de Turim entre 1913 e 1926. Dois significados do conceito de cultura orientaram a composição do trabalho intelectual do autor, que posteriormente utilizou de base para uma teoria crítica da ação social.

Gramsci é um autor bastante estudado por suas contribuições à teoria política, à sociologia marxista e a diversos outros tópicos como as investigações sobre uma nova cultura. É possível reconstruir um quadro cultural a partir do levantamento de uma cronologia dos acontecimentos obtidos em obras de comentadores e historiadores, que se pode recuperar informações concatenadas, privilegiando a história do socialismo e a de Gramsci inserida nela. (2)

Considerando a produção gramsciana anterior ao cárcere como fundamental matéria e fonte de pesquisas, este artigo pretende ampliar tal quadro cultural.

Defendemos a hipótese de que existem níveis diferentes de compreensão entre os escritos precedentes ao cárcere e os Quaderni del carcere. Três tipos de escrituras podem ser observados:

1) as crônicas de crítica e cultura - a base da reconstrução humanista e dos pressupostos do homem integral inseridos na crise moral da sociedade capitalista;

2) as crônicas revolucionárias - a base que verifica a validade dos critérios pragmáticos e revolucionários;

3) os enunciados teóricos nos Cadernos do Cárcere - a constituição de uma linguagem teórica estruturada para uma ciência da ação social, organizada por esquemas conceituais.

Neste artigo desenvolvemos os dois primeiros níveis acima citados que correspondem ao período de 1913 a 1926. (3) Os três tipos de escrituras a serem observadas se confrontam com níveis de compreensão, ora reconstrutores de pressupostos teóricos de Marx e Lênin ora constituidores de proposições de Gramsci. A concepção gramsciana de cultura obteve definições, conforme a sucessão dos acontecimentos. O material de origem utilizado para a reconstrução do conceito de cultura foi composto pela crônica militante, que serviu de base para a construção dos enunciados teóricos dos Cadernos do Cárcere.

As crônicas perante a guerra

Pode-se constatar que Gramsci começa a se revelar no início da I Guerra Mundial. A sua primeira atividade intelectual se inseriu no contexto dos anos de guerra na função de reconstruir a cultura da luta de classe, afrouxada pela II Internacional e pelo Partido Socialista Italiano. Embora a leitura passo a passo das crônicas gramscianas nos ofereça a possibilidade da ordenação de temas desses registros históricos, devemos indagar quais foram os pressupostos teóricos na organização intelectual de Gramsci. Apresentaremos a seguir os critérios que o levaram à elaboração da primeira fase de seu trabalho de educação operária, através do qual transformou um complexo de idéias e princípios em elementos de cultura para o proletariado.

O primeiro sinal de vigor intelectual se pode encontrar quando da publicação do primeiro artigo político em resposta a Benito Mussolini, que tinha como substância o debate sobre a guerra mundial. (4) Os argumentos do artigo propõem conhecimentos a respeito de problemas práticos do Partido Socialista Italiano, de sua entrada ou não na guerra. Gramsci sustentava que não deveria ser encarado como um simples problema estratégico de interesses imediatos ao evento da guerra mundial; pois havia uma problemática sociológica implícita, pela qual se deixava evidenciar o verdadeiro papel de um partido revolucionário. Ele via a guerra mundial como um momento histórico de uma indizível gravidade, mas muitos socialistas italianos mantinham ambigüidades geradas pela II Internacional e acentuadas pelas indecisões:

"E, nós socialistas italianos, nos propomos o problema: 'Qual deve ser a função do Partido Socialista Italiano (veja, e não do proletariado ou do socialismo em gênero) no presente momento da vida italiana?' Porque o Partido Socialista, para a qual nós damos a nossa atividade, é também italiano, isto é, aquela seção da Internacional Socialista que se colocou o objetivo de conquistar a nação italiana para a Internacional; esta sua tarefa imediata, sempre atual, o conferiu alguns caracteres especiais, nacionais, que o obriga a assumir na vida italiana uma função específica de responsabilidade. É um Estado em potência, que vai amadurecendo, antagonista ao Estado burguês, que procura, na luta diária com este último e no desenvolvimento da sua dialética interior, criar os órgãos para superá-lo e absorvê-lo." (Dalla neutralità assoluta alla neutralità relativa ed operante, "Avanti!", em 18 de outubro de 1914, p.10).

É evidente a crítica de Gramsci sobre o papel do PSI, que se deixava levar, nos debates conceituais, pela falsa teoria de seguir os acontecimentos sem agir. Essa postura na verdade obscurecia a vitalidade do movimento: a luta de classe, enquanto instrumento tradicional, ficara para segundo plano. Por isso as funções de um partido revolucionário italiano deveriam ser revistas, chamadas a seu verdadeiro papel que deveriam ser: assumir a postura responsável de partido nacional, concretizar a meta de ser um Estado antagonista ao Estado burguês e criar seus próprios órgãos para superá-lo. Além disso, deveria contar com a autonomia de partido, devendo conquistar o Estado em seu país, a seu modo e no momento em que se sentisse maduro:

"E no desenvolvimento desta função é autônomo, não dependendo da Internacional senão por alcançar o fim supremo e pelo carácter que esta luta sempre apresentou de luta de classe. Do modo com que esta luta deve afirmar-se nas várias contingências e do momento em que deve culminar na revolução é competente o PSI, que vive por isso e sabe como movimentar-se." (Idem, p.11).

A exemplo de socialistas de outros países, principalmente os reformistas que se converteram à guerra (como Hervé e a Social-democracia alemã, e que se achavam autorizados a falar em nome da II Internacional), Gramsci condenava os dirigentes do Partido Socialista Italiano por seguir esse mesmo caminho, mas também condenava a atitude tranqüila da fórmula "neutralidade absoluta", porque esta, na verdade, refletia a covardia de enfrentar o problema, simbolizando mais uma sabotagem à esquerda do que uma sabotagem à guerra. No campo do conceito, portanto, a fórmula proposta por Gramsci "neutralidade ativa e operante", em favor da conscientização da massa operária e de sua unidade histórica como classe revolucionária, alcançaria um significado mais claro se utilizada junto aos princípios de intransigência revolucionária a serem conduzidos pelo Partido, do que as fórmulas "neutralidade absoluta", proposta pela Internacional e "neutralidade relativa e operante", proposta por Mussolini:

"Porque, faça-se atenção, não é sobre o conceito de neutralidade que se discute (neutralidade, bem entendido, do proletariado), mas sobre o modo desta neutralidade. A fórmula 'neutralidade absoluta' foi muito útil no primeiro momento da crise, quando os acontecimentos nos pegaram de improviso, relativamente despreparados. À sua grandiosidade, porque só a afirmação dogmaticamente intransigente, cortante, podia fazer-nos opor um baluarte compacto, inexpugnável ao primeiro alargar das paixões, dos interesses particulares. Agora, depois da situação inicial caótica em que precipitaram os elementos de confusão e cada qual deve assumir as próprias responsabilidades, essa tem só valor para os reformistas, que dizem de não valer jogar ternos secos (mas deixem que os outros os joguem e os ganhem) e querem que o proletariado assista de espectador imparcial aos acontecimentos, deixando acreditar que estes fazem a sua hora, enquanto os adversários fazem a própria hora e preparam suas plataformas para a luta de classe. Mas os revolucionários, que concebem a história como criação do próprio espírito, feita de uma série ininterrupta de rasgos operados sobre outras forças ativas e passivas da sociedade, e preparam o máximo de condições favoráveis para o rompimento definitivo (a revolução), não devem acontentar-se com a fórmula provisória 'neutralidade absoluta', mas devem transformá-la na outra, isto é, 'neutralidade ativa e operante'." (Idem, p.11).

Disposto assim, o problema da guerra transforma-se numa premissa sociológica que será sempre trabalhada: "Não é mais sobre o conceito de neutralidade do proletariado que se discute mas sobre o modo dessa neutralidade" é uma idéia polêmica. Gramsci evidenciou o verdadeiro modo de se interpretar o evento da guerra, mostrando que as teses em discussão não respeitavam a base teórica revolucionária, que deveria ser aplicada pelo Partido Socialista Italiano. Por outro lado, uma vez iniciada a guerra mundial em julho de 1914 com a declaração da Áustria, os debates em torno da questão teórica sobre a decisão já não teriam mais sentido; não se pôde evitar a entrada de todos no jogo, fatalmente determinada pela corrida imperialista. Se o conceito de neutralidade absoluta decidia erradamente que essa guerra não pertenceria ao proletariado nacional, não havia dúvidas para Gramsci de que agora, mais do que nunca, a única solução estaria, como sempre esteve, no proletariado mesmo, precisamente na consciência do conceito instrumental de "neutralidade ativa e operante" para retomar a luta de classe e não a luta nas trincheiras, esta sim de responsabilidade plena da classe dirigente:

"O que quero dizer [com a fórmula neutralidade ativa e operante] é restituir à vida da nação o seu genuíno e puro carácter de luta de classe, enquanto a classe trabalhadora, obrigando a classe detentora do poder a assumir as suas responsabilidades, obrigando-a a levar até o absoluto as premissas pelas quais traz a sua razão de existir, a suportar o exame da preparação com o qual procurou chegar ao fim que dizia ser-lhe próprio, a obriga a reconhecer que essa tem completamente falido em seus objetivos, pois que conduziu a nação, de que se proclamava única representante, a uma viela escura, da qual essa nação não poderá sair senão abandonando-se ao próprio destino, todos aqueles institutos, que são diretamente responsáveis pelo estado presente de grande tristeza. Só assim será restabelecido o dualismo das classes, o Partido Socialista se liberará de todos as incrustações burguesas, que o medo da guerra lhe tem atacado (jamais como nesses últimos dois meses o socialismo teve tantos simpatizantes, mais ou menos interessados). E tendo feito tocar com mão ao país (que na Itália não é tudo nem proletariado nem burguês, dado o pouco interesse que a grande massa do povo tem sempre demonstrado pela luta política, e portanto é tanto mais facilmente conquistável por quem saiba demonstrar energias e visões francas dos próprios destinos) como aqueles que se diziam os seus mandatários mostraram-se incapazes de qualquer ação, poderá preparar a substituí-la, prepará-lo a operar aquele máximo rompimento que assinala o precipitar da civilização de uma forma imperfeita por uma outra mais perfeita." (Idem, p.12).

Mas como seria possível a organização da classe operária para a luta de classe se quem fabricava armas, quem tinha o capital, quem mobilizava as tropas era a organização capitalista, a cujo poder o proletariado estava subordinado pelo salário, agora na indústria de guerra? Era uma falácia verificada até mesmo no companheiro Tasca, que não rebatia os argumentos de Mussolini com o método dialético marxista:

"Mas me parece errado o núcleo central do artigo de Angelo Tasca. Quando Mussolini disse à burguesia italiana: "Andeis onde os vossos destinos vos chamam", isto é: "Se vós reténs que seja vosso dever fazer a guerra contra a Áustria, o proletariado não sabotará a vossa ação", não renega inteiramente o seu posicionamento de fronte ao que Angelo Tasca chama "o mito negativo da guerra". Enquanto se fala de "vossos destinos" se deixa entender aqueles destinos que, pela função histórica da burguesia, culminam na guerra, e mantém então em seguida mais intenso ainda, depois de conquistar a consciência do proletariado, o seu carácter de antítese irreduzível com os destinos do proletariado." (Idem, p.13).

"A função histórica da burguesia culmina na guerra" mostra a consciência das patologias científicas de sua época. A guerra imperialista é um fenômeno próprio da mentalidade empresarial e burguesa em desenvolvimento. O método que deveria ser adotado para compreendê-la não descartaria essa contingência, a ponto de perder a oportunidade de aprimoramento da classe operária nas cidades industrializadas como Turim.

"Mussolini (...) queria que o proletariado, tendo conquistado uma consciência de sua força de classe, e reconhecendo no momento a própria imaturidade para assumir o timão do Estado (...) permitisse que na história fossem deixados operar aquelas forças que o proletariado, não sentindo-se em condições de substituir retém mais forte. E o sabotar uma máquina (que a uma verdadeira sabotagem se reduz a neutralidade absoluta, sabotagem aceita de resto entusiasticamente pela classe dirigente) não quer por certo dizer que aquela máquina não seja perfeita e não seja útil a alguma coisa (...) Em todos os casos a cômoda posição da neutralidade absoluta não nos faça faz esquecer a gravidade do momento que nós abandonemos nem ao menos por um instante a mais ingênua contemplação e renúncia budista de nossos direitos." (Idem, p.13).

Seis meses depois da entrada da Itália na guerra e um ano depois do primeiro artigo político, Gramsci denuncia em um segundo artigo, igualmente importante na reflexão da guerra, a falência da Internacional Socialista:

"Não acreditamos que a Internacional esteja viva só quando regularmente funciona seu birô e para ressurgir seja necessário que recomece a ficar a margens práticas ou a publicar ordens do dia. Para nós a Internacional é um ato do espírito, é a consciência que os proletariados de todo o mundo tem (quando o tem) de discutir uma unidade, isto é, um conjunto de forças tendentes a uma finalidade comum, obedecendo as posições nacionais, a um objetivo comum, a substituição da civilização socialista àquela burguesa, a substituição do fator produção ao fator capital no dinamismo da história, a irrupção violenta da classe proletária, até que sem história ou com história só potencial, no enorme movimento que produz a vida no mundo. Quando esta consciência unitária falta, não existe a Internacional e todos os esforços para seu renascimento são vazios e ilusórios, quando o proletariado por uma questão imediata que o toma à garganta e o constringe à ação, degola-se sobre o campo de batalha, indivíduos históricos de uma realidade atual concreta que todavia é o necessário pressuposto da realidade do amanhã para nós mais bela e mais inteiramente nossa" (In Dopo il Congresso socialista spagnolo, "Il Grido del Popolo", 13/11/1915, p.19).

Gramsci, não obstante a permanência de pequenos movimentos proletários como o da Espanha, acreditava que isso não debilitava o movimento internacional no seu conjunto, porque não significava uma perda de forças, mas poderia ser ao contrário um encorajamento, mesmo com as demagogias em favor da paz, defendidas pela burocracia da II Internacional distante da verdadeira problemática que a guerra impunha, há tempo noticiada pela grande imprensa nacionalista de forma secundária:

"Mas necessitamos viver e a vida necessita de ilusões: iludimo-nos que a Internacional viva, também se os socialistas franceses e ingleses na sua enorme maioria não querem ouvir falar, também se os socialistas alemães renegam a reunião de Zimmerwald e não desautorizam aqueles que falaram de novas anexações e de império colonial necessário ao proletariado germânico nos sentimos consolados por essas provas de sobrevivência de atividade puramente socialista na Europa. Cosas de España, gargalham orgulhosamente os pequenos coveiros que nós conhecemos. A nós também os pequenos movimentos, que aos olímpicos e míopes examinadores de política internacional parecem desprezíveis, parecem grandes porque se religam com outros que nós só ouvimos porque vivemos. A consciência da nossa força se faz maior, mais intensa quando sentimos mais vivamente a ligação que aperta esses pequenos fatos de Espanha ou do Japão, da França ou dos Estados Unidos; ouvimos moléculas atuantes de um modo em gestação, ouvimos esta maré que salta lentamente mas fatalmente, e como o infinito de gotas que a formam são aderentes; ouvimos que na nossa consciência vive verdadeiramente a Internacional. Passam as guerras e as realidades nacionais se exaurem na sua mesma afirmação vitoriosa. No entanto uma massa de polvos humanos se está construindo, seguramente pela surdina mas tenazmente, o banco coralífero que amanhã explodirá ao esplendor do sol, também se os pigmeus de vários nacionalismos acreditam de tê-lo enganado como os Liliputis acreditavam ter enganado Gulliver com os seus fios de aranha." (Idem, ps.19 e 21).

A cultura e a crítica como instrumentos de investigação social

Vimos que a questão da guerra foi o evento essencial para a organização (ou desorganização) do movimento internacional socialista; e foi com essa certeza que Gramsci, convencido de seus propósitos, uma vez que se ocupava de crônicas jornalistas, agiu durante os quatro anos de guerra sozinho e a seu modo, na execução de um projeto intelectual para o operariado turinense. A esse propósito compreendeu que não bastava apoiar-se somente na problemática da guerra. Na verdade partiu dela para desmascarar os homens públicos, mas isso não era suficiente para fazer surtir o efeito integral, o da conscientização da massa de trabalhadores enquanto unidade para a luta de classe. Seria preciso fundamentar o trabalho perseverante do jornalismo crítico num sistema teórico de regras, que fosse ofertada em substituição ao sistema de regras já estabelecido pela cultura capitalista, formada desde o iluminismo. A nova crítica então dependeria de uma nova concepção de cultura e vice-versa, ambas reconstruídas por critérios ainda em formulação.

Decorrido aproximadamente um mês após o início de suas atividades profissionais como redator do jornal "Avanti!" turinense (10/12/1915), Gramsci rejeita os velhos critérios que estabelecem a concepção de cultura capitalista:

"Precisa desabituar-se e deixar de conceber a cultura como saber enciclopédico, em que o homem não é visto senão sob forma de recipiente por encher e acumular dados empíricos, de fatos brutos e desconexos que ele depois deverá acasalar em sua cabeça como nas colônias de um dicionário para poder depois em toda ocasião responder aos vários estímulos do mundo externo. Esta forma de cultura é verdadeiramente danosa especialmente para o proletariado. Serve somente para formar deslocados, gente que pensa ser superior ao resto da humanidade, porque fez uma massa na memória de uma certa quantidade de dados e datas que manifesta em cada ocasião para fazer quase uma barreira entre sí e os outros. Serve para criar aquele intelectualismo de bolso e incolor, com razão fustigado a sangue por Romain Rolland, que gerou toda uma caterva de presunçosos e de delirantes, mais deletérios para a vida social de quanto são os micróbios da tuberculose ou da sífilis para a beleza da sanidade física dos corpos. O pequeno estudante que sabe um pouco de latim e história, o pequeno advogado que conseguiu tirar um pedacinho de título pela falta de vontade dos professores, crêem ser diferentes e superiores também ao melhor operário especializado que executa na vida um objetivo bem preciso e indispensável e que na sua atividade vale cem vezes mais do que os outros valem nas suas. Mas isso não é cultura, é pedantismo, não é inteligência, mas raciocínio, e contra isso a razão bem sabe reagir." (In Socialismo e cultura, "Il Grido del popolo", 29/01/1916, p. 100).

E propõe a sua definição de cultura:

"A cultura é coisa bem diferente. É organização, disciplina do próprio eu interior, é tomada de posse da própria personalidade, é conquista de consciência superior, pela qual se consegue compreender o próprio valor histórico, a própria função na vida, os próprios deveres e os próprios direitos. Mas tudo isso não pode acontecer por evolução espontânea, por ação e reação independentes da própria vontade, como acontece na natureza vegetal e animal em que todo indivíduo se seleciona e especifica os próprios órgãos inconscientemente, por lei fatal das coisas. O homem é sobretudo espírito, isto é, criação histórica e não natureza. Não se explicaria de outro modo o porquê, sempre existido os exploradores e os explorados, criadores de riqueza e consumidores egoístas dessa, não se realizou ainda o socialismo. (5) É que só de grau em grau, de nível em nível a humanidade adquiriu consciência do próprio valor e se conquistou o direito de viver independentemente dos esquemas e dos direitos de minoria historicamente afirmados antes. E esta consciência se firmou não sob o punho brutal das necessidades fisiológicas, mas pela reflexão inteligente, primeiro de alguns e depois de toda uma classe, sobre razão de certos fatos e sobre meios melhores para converter-lhes pela ocasião de vassalagem em senhores de rebelião e de reconstruções sociais." (Idem, pp.100-101).

Assim, em primeiro lugar, essa primeira definição de cultura carregou um significado metodológico reconstrutivo. Tinha de fato como meta reconstruir os pressupostos teóricos do marxismo clássico, contando com o instrumento comunicativo principal de sua época: através da comunicação de massa nos jornais socialistas e pelo domínio da sintaxe e da semântica da língua e cultura italianas retomou o projeto intelectual da luta de classes. Noutro momento, a partir da Revolução russa, trazendo para a solução italiana a opção comunista, com o mesmo meio de comunicação de massas concretizou o jornalismo integral para a finalidade última da revolução comunista globalizadora. Por outro lado, simultaneamente ao uso do conceito de cultura como procedimento de investigação social nesses dois momentos históricos, Gramsci acrescentou outros pressupostos que não foram exclusivamente da corrente dialética marxista. A partir da orientação metodológica do pensamento de Vico e do romântico Novalis, Gramsci estava construindo uma nova base de argumentações de onde desenvolveu as convicções teóricas próprias em direção ao futuro socialista:

"Recordemos dois trechos: um do romântico alemão Novalis (viveu de 1772 a 1801) que disse: "o supremo problema da cultura é de empadronizar-se do próprio eu transcendental, de ser ao mesmo tempo o eu do próprio eu. Por isso surpreende pouco a falta de sentido e inteligência completa dos outros. Sem uma perfeita compreensão de nós, não se pode verdadeiramente conhecer os outros (...) Vico ( no I Corolário em torno ao falar por caracteres poéticos das primeiras nações) dá uma interpretação política do famoso dito de Sólon, que depois Sócrates fez seu quanto à filosofia: "Conhece-te a ti mesmo", sustentando que Sólon queria com esse ditado advertir os plebeus, que acreditavam ser eles mesmos de origem bestial e os nobres de divina origem, a refletir sobre si mesmos para reconhecer-se de igual natureza humana que os nobres, e por conseqüência a pretender ter com eles igual direito civil. E põe depois nessa consciência de igualdade humana entre plebeus e nobres, a base e a razão histórica do surgir das repúblicas democráticas na antiguidade." (Idem, p.99). (6)

Sobre esses pressupostos antropológicos e filosóficos de Vico e Novalis, Gramsci complementou seus procedimentos metodológicos para concretizar o projeto intelectual de luta de classe. A resposta de Gramsci no campo da ação política não mais se fixava na instituição partidária dos socialistas nem mesmo na organização da Internacional, que para ele tinham falhado com o evento da guerra mundial, porém tão somente se determinava no indivíduo histórico, cujo conhecimento de si mesmo deveria coincidir com a crítica à coerção do mundo exterior, e que estando introjetado na vida cotidiana lançava-se contra a cultura tradicional vigente.

Partindo dessa oposição, o proletário adquiriria, segundo Gramsci, uma nova ciência racional e humanista da história. Por isso ele elaborou um novo modo de pensar e agir no mundo, demonstrando ao proletariado que precisava conhecer antes a si mesmo como pertencente a uma classe dominada e que viesse a lutar por tornar-se classe dominante. Isso constituía o ato político do eu social. Em outras palavras: o novo conceito de cultura para Gramsci estava intrinsecamente ligado a cada indivíduo da classe proletária, não mais às instituições políticas que deveriam ser renovadas de forma a efetivar a apropriação proletária para uma sociedade socialista.

A antiga concepção de cultura da classe dominante perdia o significado no ato intelectual de o operário perceber o novo critério de interiorização a ser utilizado. Assim como acontecera na revolução burguesa, em que todos os espíritos estavam preparados pela metodologia dos iluministas e enciclopedistas, o socialismo deveria entrar em vigor quando todos, num espírito coletivo, estivessem preparados para o momento da revolução. Gramsci conscientemente se propôs à divulgação e preparação desse objetivo educativo nas crônicas, já em 29 de janeiro de 1916:

"...toda revolução foi precedida de um intenso trabalho de crítica, de penetração cultural, de permeação de idéias através de agregados de homens, primeiro refratários e só preocupados em refletir dia após dia, hora após hora o próprio problema econômico e político por si mesmos, sem ligação de solidariedade com os outros que se achavam nas mesmas condições. O último exemplo, o mais vizinho a nós e por isso menos diferente do nosso, é aquele da Revolução francesa. O período cultural anterior, dito o Iluminismo... não foi em suma só um fenômeno de intelectualismo pedante e árido, similar àquele que vemos diante dos nossos olhos, e que acha a sua maior explicação na Universidade popular de ínfima ordem ... Tudo isso parece natural, espontâneo aos superficiais, e ao invés do que pensam esses seria incompreensível senão conhecêssemos os fatores de cultura que contribuíram a criar aqueles estados de ânimo prontos às explosões por causa do que se acreditava ser comum." (Idem, p.101).

Enfim, da crítica gramsciana à cultura dominante resulta imediatamente que crítica e cultura tem o mesmo valor para a nova cultura do proletariado:

"O mesmo fenômeno se repete hoje para o socialismo. É através da crítica da civilização capitalista que se formou a consciência unitária do proletariado, e crítica quer dizer cultura, e não já evolução espontânea e natural. Crítica quer dizer precisamente aquela consciência do eu que Novalis dava como fim à cultura. É o eu que se opõe ao outro, eu que se diferencia e, sendo criada uma meta, ajuíza os fatos e os outros acontecimentos que de si e por si também são valores de propulsão ou de repulsão. Conhecer-se a si mesmo quer dizer ser si mesmo, isto é, ser patrão de si mesmo, distinguir-se, sair fora do caos, ser um elemento de ordem, mas da própria ordem e da própria disciplina com um objetivo e um ideal. E não se pode obter isso se não se conhecem também os outros, a sua história, o suceder-se dos esforços que eles fizeram por ser aquilo que são, por criar a civilização que tem criado a qual nós queremos substituir pela nossa." (Idem, p.102).

Essas premissas foram aquelas às quais Gramsci adaptou os métodos e as técnicas para a tarefa específica de educar a classe operária turinense, servindo-se do seu jornalismo cotidiano. Com esses pressupostos estava preparada intelectualmente a estratégia para a instrução das massas proletárias da cidade de Turim. Assim identificadas as definições conceituais entre crítica e cultura ele pode iniciar com dedicação integral a difusão da cultura socialista às diversas camadas proletárias e aos dirigentes do Partido socialista italiano de entre 1919 a 1926.

Até agora desenvolvemos três pontos de suma importância para compreender o sistema metodológico gramsciano: a guerra mundial, o conceito de crítica e aquele de cultura. O conceito de cultura assumiu um papel fundamental. Veremos que o valor de uso dessa primeira conceituação sobre cultura foi adotado no nível de procedimentos tecnológicos e não só no nível teórico, como pressuposto para o trabalho crítico cotidiano. Ele usa um conceito já produzido por Vico e por Novalis, recurso esse que lhe permitirá construir, nos espaços das crônicas dos anos de guerra e nos anos pós-guerra, a sua concepção de cultura revolucionária.

A relação entre esses três pontos culminou num alicerce teórico simples que lhe permitiu realizar o projeto intelectual de educação política e revolucionária para a massa operária de Turim, cujo principal objetivo foi na prática reconstruir a pragmática marxista nos anos anteriores à sua prisão. É possível verificar que a validade desse procedimento instrumental-conceitual ajudou Gramsci a realizar um jornalismo crítico científico e recuperar determinados conhecimentos amparados pela sociologia marxista. Por exemplo, veremos que partindo dos conceitos de crítica e de cultura Gramsci realizou análises apuradas da realidade reacionária italiana. O conceito de cultura lhe serviu para sintetizar os acontecimentos do processo histórico de seu tempo. Portanto iniciou privilegiando a dialética da luta de classe através da crítica jornalística, que foi, por outro lado, instrumento de crítica à cultura dominante. Acreditamos que ele deixou uma inovação tecnológica para a atualidade. É o que nos preocuparemos demonstrar a seguir.

O homem na sociedade capitalista

Iniciando a investigação da obra de Gramsci pela leitura de artigos nas crônicas turinenses, de uma forma ou de outra nos defrontaremos com a evolução gradativa de esclarecimentos, de clareza e de lucidez de seu pensamento sobre o processo histórico que vivia, cronologicamente correspondente ao desenvolvimento de sua vida intelectual. Ele vive o que escreve e a cada novo dia o seu repertório evolui junto com o próprio jornal e com o leitor diante dos acontecimentos. Sua metodologia andava moldando-se, porque ele não estava consigo mesmo dialogando teoricamente, mas testava o sistema pragmático de pressupostos marxistas.

Sem os opositores Gramsci nunca teria concretizado a sua crítica dialética. Ele deixou demonstrado que a crítica à cultura, quando conduzida com ironia e desprezo, esclarece e reproduz os caracteres morais dos homens públicos, propriamente daqueles indivíduos participantes da cultura capitalista que assumem o poder para se favorecer. Essa demonstração deveria ser composta por dois elementos essenciais: os modelos positivo e negativo do homem na sociedade. Com esses modelos Gramsci iniciava o desenvolvimento de sua concepção de cultura, ainda mesclada entre a utilização prática e o conteúdo de conhecimento.

A seguir passamos a discorrer sobre a nossa investigação do primeiro bloco de artigos, que termina com a fundação do jornal "Ordine Nuovo" e que está reunida nos quatro primeiros livros das obras completas. (7) Foi possível organizar nossa pesquisa em quatorze grupos, que agregam ao todo duas divisões. (8) Não perdemos a atenção ao nosso objetivo principal, que é o desenvolvimento do conceito de cultura na obra gramsciana. Ao contrário, veremos que a crítica moral e social do indivíduo na sociedade italiana constituiu parte integrante da noção de cultura, cujos traços Gramsci tomou com precisão junto aos episódios, fatos e acontecimentos cotidianos, modificando diacronicamente, não somente o leitor que tentava conscientizar - para quem o fazia recorrendo à metodologia marxista -, mas registrando sincronicamente os elementos de crítica à Humanidade, válida para todos os tempos.

No artigo La luce che si è spenta (A luz que se apagou) encontramos dedicadas linhas ao modelo positivo que foi para Gramsci a pessoa de Renato Serra. (9) Estão ali registrados os significados para ele do verdadeiro professor, escritor e poeta modernos. Veremos a importância dessas reflexões tomar corpo no firme propósito de fundamentar o modelo de homem público, especialmente para a Itália, cujos professores universitários vinham ocupando cargos públicos de interesses políticos ao invés de se dedicarem ao ensino e à educação, em todos os níveis do conhecimento e da prática. Na verdade as características positivas descritas nesse artigo sempre estiveram em todos os tempos. Assim foi porque Gramsci justificou Francisco de Assis na Idade Média que, diante do conhecimento teológico escolástico, tentou aplicar e estabelecer uma nova era humanista:

"Penseis naquilo que na Idade Média representa o movimento franciscano enfrentando o teologismo doutrinário da Escolástica. A teologia era o pão dos anjos, não dos míseros mortais, mesmo assim penetradas todas as manifestações religiosas, também a predicação ao povo: Deus desaparecia atrás dos silogismos, aclarava longe ou gravava sobre a consciência como alguma coisa de enorme, esmagadora. O intelecto havia assassinado o sentimento, a reflexão com lupa tinha estrangulado o ímpeto da fé. Vem São Francisco, alma humilde, modesto. Espírito simples, bufou toda a papelada cartaceu, que tinham distanciado Deus dos homens e fez renascer em cada alma o divino delírio. Assim fez De Sanctis e o Serra para a poesia." (Idem, p.23).

A guerra mundial pertence à era da modernidade, mas o humanismo de Serra na visão de Gramsci não tem começo e nem fim, porque nele se encarnou a síntese de seu tempo, como acontecera com Francisco de Assis e com Francesco de Sanctis:

"Mas agora não podemos esperar mais nada do Renato Serra. A guerra o esmagou, a guerra da qual ele tinha escrito com palavras assim puras, com conceitos ricos de visões novas e de sensações novas. Uma nova humanidade vibrava nele: era o homem novo dos nossos tempos, que tanto ainda nos poderia ter dito e ensinado. Mas a sua luz se apagou e nós não vemos ainda quem poderá substituí-la." (Idem, p.25).

A modéstia não deixaria Gramsci perceber que ele mesmo caminhava com luzes suficientes para realizar o projeto latente da concretização de um novo homem e de um novo humanismo. Na verdade, o título do artigo bem reflete uma argúcia: não se estavam apagando as luzes com a morte de Serra, mas deixando de produzir coisas de seu espírito inspirador para o socialismo; ou seja inspirava a contradição, era um modelo vivo ideal, continuador de Francesco De Sanctis. Os dois foram os verdadeiros mestres de Gramsci, que concordaria em dizer que Serra e De Sanctis poderiam ser considerados os iluministas do socialismo italiano:

"...O Serra deu uma lição de humanidade; nisto ele verdadeiramente continuou Francesco De Sanctis, o maior crítico que a Europa jamais teve ... Renato Serra mostra que os professores, que os críticos de professores tem tomado por arte aquilo que era pura e simples tapeçaria. Esses dois homens foram verdadeiramente mestres, como entendiam os gregos, isto é, mistagogos, mas iniciaram aos mistérios mostrando que estes mistérios são vãs construções de literatos, e que tudo está claro, límpido para quem tem olhos puros e vê a luz como cor e não como vibrações de íons e elétrons. Eles são colaboradores da poesia, leitores da poesia. Cada ensaio deles é uma nova luz que se acende para nós. Sentimos-nos como absorvidos num encanto." (Idem, p.24).

Assim situado o modelo de homem integral, Gramsci tomou a integridade como um fator comparável aos homens que se mantinham no poder público. A contradição desses encontrava-se no posto em que assumiam, revelando uma personalidade pública sem abdicação de seus interesses particulares, nessa difícil tarefa de manter a integridade moral, junto à responsabilidade a respeito da coletividade. Na responsabilidade de reconstruir tais valores bem a vista do leitor socialista, Gramsci partiu em seguida para a reorganização das características negativas, fundamentais para caracterizar a (des)umanidade desses homens na relação ética com a sociedade, tais como: a vilania, a covardia moral de não enfrentar os adversários, o orgulho, a incapacidade de administração pública, a hipocrisia, as respostas vazias de conteúdo, a tábua rasa para gosto, a falsa moral, a preguiça e a miséria moral, o descaramento, a vaidade (de poder, de vestimenta, de decorações e de condecorações), a preguiça mental, a ganância, o egoísmo e tantos outros qualitativos alocados como elementos negativos, todos elencados num repertório que bem caracteriza o desenho entre 1914 e 1926.

Os artigos restantes (cerca de oitocentos) cumprirão a tarefa de revelar as deficiências morais desses promotores da cultura dominante, do qual faziam parte enquanto possuidores do poder e do saber na sociedade. A seguir os apresento como personagens os quais foram criticados por Gramsci.

Foram dedicados muitos artigos por exemplo ao acadêmico Vittorio Cian, (10) professor de Gramsci de literatura italiana na Universidade de Turim de 1913 a 1935, que também foi deputado e senador. Era colaborador do jornal nacionalista "Gazzetta del Popolo", do semanal "L'Idea Nazionale" e da revista organizada pelo movimento interventista turinense "Umanità nuova"; mas entre os nacionalistas era o verdadeiro capintesta, (11) foi a favor da guerra da Líbia e boicotava quem era contra a Guerra mundial, denunciando também às autoridades escolásticas os colegas que não conjugavam com os interesses da política da classe dirigente, intencionado assim em recolher os louros do patriotismo de guerra.

Passou a ser comum denunciar o disfattismo (12) e o movimento que o caracterizava foi denominado cianismo (do professor Cian). Um outro episódio de denúncia marca a covardia moral de Cian. Uma de suas vítimas foi Umberto Cosmo, também professor de Gramsci na Universidade de Turim e professor nos Liceus Gioberti e D'Azeglio, o qual foi submetido a um inquérito, conduzido pelo inspetor da escola média; mas tendo a seu favor Benedetto Croce e o historiador Gaetano De Sanctis, foi absolvido. O nacionalismo de Cian não se limitava à Universidade. Junto com Arnaldo Monti, estendia-se, desde o ano em que terminara a Guerra, para a juventude, a qual, de posse da consciência de Pátria que os nacionalistas ajudaram a plasmar, pensavam que eles eram as referências dos verdadeiros educadores, mas não percebiam que estavam só travestidos de intelectuais da alta cultura universitária.

Entretanto, propagavam a idéia de nação que deveria ser renovada para a obra de reconstrução do pós-guerra. Nos anos posteriores à Revolução Russa Cian chefiou o movimento contra o Lêninismo. Enfim, a seu respeito Gramsci complementa: "era cultor da tagarelice literária". Com profundo desprezo Gramsci o chamava de "questo epistolografo da bocca del leone" (epistológrafo de boca de leão) e de "sterile ciucciariello" (pequeno asno estéril) que "não conseguindo ejacular de seu cabeção de avestruz outra coisa a não ser volumes pesados e chatos", gostava de compor livros longos, de oitocentas páginas em média, mantendo-se assim como mandarino universitário junto ao governo.

Outro personagem que não escapou à crítica de Gramsci foi Francesco Ruffini (13) que tinha os mesmos ardentes traços de nacionalismo de Cian. Também foi na Universidade de Turim de 1908 a 1931 professor de Gramsci de direito eclesiástico, reitor da mesma, senador em 1914 e ministro da Educação no governo Boselli. Era contudo um pseudo-historiador, pois disfarçava intelectualidade. Pesquisando a obra de Camillo Cavour, justificava assim a propagação dos valores nacionalistas, exaltando as glórias da pátria através de conferências, fazendo-se passar como grande historiador ao público culto turinense.

Sentia-se autorizado a explorar teorias sobre o nacionalismo. "Palavras, palavras e palavras" foi o título dado a três artigos que Gramsci publicou para designar as atribuições das conferências bélicas em Turim, com as quais Ruffini se vangloriava. Entre outros citados por Gramsci vemos os professores Bertarelli, Bossi e o famoso Achille Loria, todos professores universitários nacionalistas, ora exaltando a guerra por conferências contra os alemães, ora dando ao pensamento cavouriano o sentido imperialista. Ruffini foi colaborador vivo da revista "Rassegna italiana", que era puramente nacionalista. Também como ministro nada deixou de importante; demonstrava incapacidade de compreender e fazer a história, de compreender as responsabilidades do Estado e do governo.

Francesco De Sanctis era considerado por Gramsci o único ministro da Educação que a Itália já teve. Aliás Ruffini enquanto ministro da educação organizou congressos de temas bélicos com nomes ilustres, todos evidentemente nacionalistas. Sobre o episódio da escola profissional para favorecer a indústria em detrimento da "escola de saber desinteressado", Gramsci posicionara-se escrevendo artigos contra Ruffini, que mostrava não dar importância nem a escola de estudos clássicos nem a escola profissional.

Mais um personagem duramente criticado por Gramsci foi Arnaldo Monti, (14) professor de escola média, que também atuava como presidente do "Fascio studentesco per la guerra e per l'idea nazionale" (Grupo estudantil pela guerra e pela idéia nacional), instituição de tendência interventista e nacionalista que ajudou a caminhar para o fascismo em anos posteriores. "Seja dado a Cesar o que é de Cesar e à Arnaldo o que é de Arnaldo" sintetiza com ironia um artigo no qual Gramsci denominou Arnaldo de cretino, pela polêmica de querer constituir uma organização estudantil a favor da guerra no ginásio de Turim. Também foi criticado por Gramsci toda vez que escrevia contra o filólogo alemão Schultz, cujo livro de latim Arnaldo Monti insistia em não respeitar, mais em função de ataques à nação alemã; tratava-se de uma ramificação da polêmica de Ruffini de elevar o ensino profissional e técnico em detrimento da escola clássica. Escrevia Gramsci:

"O Monti mais não é que um vulgar enchedor de mentes. Falta-lhe toda preparação também para fazer aquilo pouco de bem que as suas pesquisas poderiam dar" (In "Il presidente del 'soviet' degli scolaretti" (CF526). (15)

Gramsci dedicou um grande número de artigos ao nacionalismo. (16) Sabemos da importância desse tema para a ideologia dominante de um país que teve na guerra imperialista sua forma mais expressiva de dominação. Trazendo à tona as aparências ideológicas do nacionalismo, Gramsci estava promovendo a crítica à cultura em dois raios de ação: um no espaço nacional outro no ambiente internacional. A cultura dominante não atuava somente dentro da nação italiana, resultado de uma interação social do grupo de professores universitários. Esse conjunto de indivíduos sentia-se equilibrado de acordo com os interesses do capitalismo internacional e da grande burguesia, que se relacionava com o Estado italiano e não se relacionava com os seus cidadãos proletários.

A ideologia do liberalismo atuava, influenciando decisivamente. Era a época do capitalismo monopolista e se impunham regras aos Estados retardatários, mais ou menos de acordo com o jogo de forças entre os Estados beligerantes. Portanto o tema nacionalismo dizia respeito à essas duas instâncias.

Vimos que Vittorio Cian, Francesco Ruffini e Arnaldo Monti, entre outros, foram expoentes do nacionalismo italiano através de suas posições de professores e intelectuais interessados na manutenção e intervenção italiana na guerra. Demonstramos o uso do poder conferido ao intelectual universitário como instrumento de dominação, buscando a ideologia do nacionalismo em forma de propagação e movimento social. Ficou comprovado para Gramsci que a cultura dominante passava pelo crivo da razão desses indivíduos, que associavam-se a outras atividades sociais formando organizações, cuja estrutura desempenhava o papel de acordo com o status que ocupavam enquanto professores universitários.

Por isso mesmo Gramsci preocupou-se novamente em estereotipar o conjunto das ações dos membros desse grupo, mostrando que a cultura italiana tinha uma peculiaridade quanto a dinâmica da estrutura social que se formou para a guerra imperialista. Essa gente Gramsci denominou de Stenterello, (17) deixando claro que a mentalidade nacionalista era um tanto ridícula quanto falsamente culta e moralmente desprezível por não gostar de trabalho modesto:

"Stenterello não é nem menos um homem; é um animal. Stenterello é o protótipo da burguesia italiana, tagarela, vanitosa, vazia, que não quer se adaptar ao trabalho modesto, mas fecundo da coletividade anônima e sempre a soar a guitarra para louvar os grandes fatos dos antepassados, dos quais esses outros não é que um modesto piolho. Stenterello è cabeça vazia, e por isso não entende que uma forma de vida se deve opor a uma outra forma de vida. Que ao trabalho se opõe outro trabalho, mais e melhor se possível. Mas Stenterello è também embusteiro e embrulhão. Ele é o professor è il sempre chamado aos concursos; é o poeta que não acha leitores é o industrial que quer enriquecer-se dormindo; é o comediógrafo que o público zomba; é o nobre avariato que não acha mais quem tira o chapéu diante a sua majestade." (Idem, p.86).

Era costume explorar a fama mundial de que na Itália sempre nasceu e se formou "gênios altíssimos, verdadeiros criadores". Bem poderia ser verdade para reforçar o argumento nacionalista; mas disse Gramsci:

"Na Itália faltou sempre, ou quase sempre, um ambiente de seriedade de trabalho efetivo e digno em torno aos iluminados da ciência, da política, da vida moral, da cultura..." (Em CF85).

E continuava dizendo:

"uma caterva de medíocres ... Stenterellos que urram, berram, adulam com ares de gravidade a barriguinha acadêmica, exaltam as virtudes da estirpe, o alto saber dos antepassados, mas esses mesmos não fazem nada, não trabalham, não são produtores de uma idéia, de um fato." (Em CF85).

Nesse e em outros artigos que acentuou tal estereótipo Gramsci designou como fonte um dos primordiais elementos de formação da cultura italiana dominante. Ou seja, o Stenterello representava o conjunto de princípios (ou falta deles) aceito de modo geral pela sociedade italiana.

Ficaram registrados em vários artigos muitos personagens que personificavam o Stenterello , tais como: o falso cientificismo de Achille Loria; a demagogia do economista, redator e liberal Giuseppe Prato e a ideologia católica em geral. Entretanto, esses artigos funcionaram mais como denunciadores do que como elementos que definiam aquilo que Gramsci entendia por cultura. (18)

A participação nacionalista conquistou espaços em associações institucionalizadas para expandir suas atitudes conservadoras e reacionárias. Para além dos fundamentos e dos princípios que estavam sendo propagados em conferências e artigos de revistas e jornais por esses indivíduos e intelectuais universitários, queria-se estimular a nação para a ação imperialista. Avançou-se no campo da ideologia prática, que objetivava alcançar um maior raio de ação e legitimidade: o movimento nacionalista, o cianismo e o irredentismo de Cappa (CT472), tornaram-se entidades políticas dirigidas por esses homens, cujos fins eram validados por atos legais. De fato, agiam dentro da legalidade, como se tudo fosse corretamente instituído: foi o caso da Liga antialemã de Turim, liderado pelo professor universitário Pietro Romano, do "Fascio studantesco per la guerra e per l'idea nazionale", presidido por Arnaldo Monti e do "Fascio giovanile", liderado por Cesare Foà, também secretário da Liga antialemã. (19)

A esse propósito Gramsci move uma crítica sistemática ao prefeito de Turim, ao governador da província de Turim, aos ministros e políticos do Parlamento, aos editores e redatores de jornais liberais, aos políticos que se tornavam empresários e aos religiosos que se tornavam políticos. Ele dedica um grande número de artigos a eles, sempre cuidando em dialogar em duas instâncias, diacrônica e sincrônica, tentando realizar a meta de reconstrução do método dialético-marxista, conscientizando o leitor socialista e os líderes do proletariado turinense para a luta de classe. (20)

O prefeito Teofilo Rossi de Turim foi amplamente evidenciado logo no início das crônicas gramscianas. (21) As reuniões sindicais, freqüentadas por Gramsci para resultar posteriormente num produto jornalístico de interesse à classe operária turinense, não intencionavam apenas cumprir tal dever profissional; os estímulos maiores se concentravam em esclarecer as características de quem pertencia à classe burguesa e de quem pertencia à classe operária. Era questão de convicção delinear com precisão os dois limites.

Veremos que o modo como escreve a respeito do prefeito de Turim é atencioso: o estilo irônico marca a mente do leitor em dois lances: o primeiro deveria atraí-lo pela forma divertida. O segundo deveria desmanchar o poder artificial desse prefeito, que era antes de tudo um industrial.

O prefeito Rossi, representando o modelo moral de homem pertencente à cultura dominante, apresentava-se simultaneamente como industrial e administrador público, enquanto que claramente seus interesses eram particulares. Ou seja, era uma figura que sintetizava duas situações concretas: pertencia à classe de capitalistas italianos e exercia o poder público de um governo para manter o controle social sobre a situação vigente da guerra. Por isso era o típico estereótipo que Gramsci queria denunciar. Apontou a sua falta de caráter e a hipocrisia como elementos característicos de sua personalidade, que nunca mudaram enquanto exerceu o poder. Por isso chamou a atenção do leitor operário para conscientizá-lo de quem administrava, isto é, uma pessoa que pertencia à classe empresarial e exploradora, e o monopólio da violência do Estado, que utilizava, estava sendo feito com arbitrariedade contra a organização inimiga do proletariado de Turim. (22)

Necessário foi para Gramsci substancializar os adjetivos, tornar real e acentuar as qualidades impuras, que se poderiam referenciar com um nome próprio ao prefeito de Turim: o artigo L'idiota con decoro (O idiota com honra) tem essa função de apresentá-lo ao público como um personagem típico da história falida do capitalismo, fazendo marcar um clichê, pelo qual poderia facilmente ser lembrado com ironia. Teria ficado somente com esse apelido se não fosse o episódio do Museu do Risorgimento, quando o prefeito proibiu a participação dos socialistas na comissão municipal, e Gramsci o destacou com outro pronome: "aria ai monti". (23)

Um outro recurso literário para realçar essa contradição no processo histórico do capitalismo foi acrescentar prosas imaginárias, no mesmo estilo irônico. Os artigos "L Sindich", "Aria ai monti" prega" e "Da giovannnino", divertindo o leitor em diálogos fictícios, já poderiam fazê-lo raciocinar quão ridícula era a situação de visitas oficiais a Turim de homens tão obscuros quanto o prefeito Rossi: foi a primeira vez que Salandra, o governador da província, e Giolitti, o primeiro ministro, receberam o desprezo de Gramsci. Cinco meses depois desses episódios, surge um novo artigo, agora apontando com seriedade as irresponsabilidades do governo local, alarmando o prefeito com um discurso final, onde lembrava a Revolução francesa, botando medo nele pela possibilidade dos "administradores ineptos" serem guilhotinados. (24)

Será o artigo Vanità, virtù cardinale que melhor descreve a falta de caráter de Rossi, o qual escreveu um artigo para o aniversário da declaração de guerra da Itália. (25) Esse artigo fez a Gramsci abandonar não totalmente o estilo cômico, apesar de passar a interpretar com realismo a gravidade da situação:

"É seguro de si, o bom homem, certo de representar uma grande parte do mundo, e a vaidade o nutre. A vaidade é a plantinha que com mais amor ele cultiva no fechado orto da sua consciência, regando-a cotidianamente com abundante repetição como disco e de pergaminhos graciosamente ilustrados com miniaturas. Essa se torna a leva que move o universo. Entre a vaidade e o dever existe um abismo incomensurável, e o Rossi tem medo de dar saltos no escuro. Tanto mais que deveria começar de si mesmo e não se pode pedir a ninguém de suicidar-se por desarranjos morais." (Idem, p.326).

Além da vaidade gerada pelo exercício do poder, Gramsci apontava no seu artigo o descaramento resultante da hipocrisia do governo de Rossi. Também no artigo intitulado Attorno ad una veste rossa (Em torno de uma veste vermelha), o articulista se divertia a mostrar a vaidade do prefeito quando o descreve como uma pessoa pomposa que vestia roupas solenes, ostentado em conjunto com o representante oficial da Igreja. "Está sempre a caráter porque lhe falta caráter", diz Gramsci em Film "municipale"; "encomenda atores circenses mais famosos e mais caros, mas quando é denunciada que a carne suína está sendo contrabandeada pede ao ministério ajuda e aguarda, nada mais fazendo".

Vimos que a crítica de Gramsci ao comportamento desses indivíduos na sociedade capitalista não foi só uma crítica aos seus comportamentos morais e sociais, mas também à cultura por eles representada. A essa altura se pode constatar também que a noção de cultura para Gramsci vai se modificando, transformando-se de acordo com os eventos que lhe se apresentavam, ora na pessoa desses indivíduos que detinham algum poder, ora na pessoa jurídica daquelas entidades, dirigidas pelo mesmo grupo de homens. Vimos que as idéias de nacionalismo, ligando-se às ações de um grupo determinado, integraram-se harmoniosamente num programa ideológico em torno do conceito de nação italiana. O preconceito racial, o xenofobismo, o protecionismo econômico e científico, a discriminação principalmente em relação aos alemães, foram marcas do processo de identidade da nação italiana, que se formou portanto numa cultura moderna de dominação, cujos traços não se podem afinal separar do conceito de nacionalismo.

Mas tudo isso não se concretizaria se não existisse outro instrumento de dominação, no nível do controle e do consenso social. Tratava-se da censura, que naqueles anos de guerra exerceu papel fundamental do arbítrio, cuja propriedade funcionava como força atuante de dominação interna. Gramsci dedicou vários artigos à censura e aos censuradores, sempre com o propósito de denunciar a falta de responsabilidade e abuso de poder exercidos por eles:

"Não trabalhamos por esporte, para divertir-se em escrever. Obedecemos a um imperativo categórico da nossa consciência... a censura assim, sem conhecer os dados de fato, faz a sua escolha, e procura de destruir uma, justamente aquela que tem razão, aquela que pode contar só sobre a própria força de sacrifício para vencer. A censura milanesa, com um traço de lápis, abole tudo, cancela tudo, sem consciência da enorme responsabilidade que se assume. A censura milanesa talvez sem consciência daquilo que faz torna-se agente provocador. Cada palavra de ressentimento, cada ato de cólera seria pequena expressão daquilo que o nosso ânimo sente neste momento ..." (CT629).

Para Gramsci, ao contrário, a censura deveria ter outro objetivo, isto é, o papel de golpear a ostentação da riqueza inútil:

"Faltou a outra censura, a verdadeira tradicional censura, que golpeia o sentido, o luxo, o prazer. Nenhuma lei que proíbe a ostentação da riqueza inútil, porque transformada em jóias e ornamentos, retirado do trabalho, da produção. Foi criado o censor das idéias, não o censor dos costumes. Única riqueza por limitar, as idéias; única riqueza por seqüestrar, as idéias." (CF438).

A sociedade não dispunha de meios para denunciar o abuso da censura e cobrar dos censuradores uma postura digna:

"Quem censura os censuradores? Quem se preocupa de advertir que o seu trabalho deveria ter uma finalidade fundamentalmente educativa e por isso deveria ser desempenhado de modo lógico, com justiça, com calma? O censor italiano é a imagem viva do arbítrio estúpido." (CF435).

Com as denúncias às atitudes da censura e aos seus funcionários Gramsci, percebendo a aparente relação democrática entre o Estado e os cidadãos, revelava o despotismo de um certo grupo de pessoas e não de uma classe inteira, característica aliás pertinente à cultura dominante capitalista, que aparecia naquele momento do processo histórico como um sinal da organização fascista:

"A censura é o método do governo do Estado italiano permanecido paterno e despótico sob o superficial verniz da ênfase democrática. (...) O Estado italiano é paterno e despótico porque representa um círculo particular e não uma classe; é a negação da democracia liberal porque a vontade dos cidadãos conta nada, porque os cidadãos não podem ter uma vontade concreta, porque o Estado impede que esta vontade surja, inibindo a discussão, impedindo a chegada dos jornais estrangeiros (...) A censura continua a fazer estragos, e isso acontece porque o círculo de pessoas que nos governa quer instaurar também explicitamente um governo despótico, quer anular o Estatuto e as outras garantias de liberdade e de desenvolvimento das forças históricas novas." (NM390). (26)

Contudo, a indústria cultural também proporcionava um ambiente para esse estado de coisas: os proprietários, editores e redatores de jornais, revistas e livros foram uma preocupação constante de Gramsci. O instrumento de trabalho dele era fundamentalmente o jornal. O seu trabalho de intelectual servia à classe dominada no jogo da luta de classe, enquanto que a classe dirigente insistia com a superficialidade da tarefa jornalística em geral como um trabalho de intelectuais tradicionais. Vejamos como Gramsci descreve os promotores da cultura e o uso que esses fazem do instrumento de comunicação de massa. Os artigos dedicados aos diretores e redatores de jornais instruíam sobre a demagogia por exemplo do nacionalista Giuseppe Prato, economista e historiador, professor no "Istituto superiore di commercio de Turim" e redator chefe do jornal "Riforma Sociale":

"O professor Giuseppe Prato colabora, contribui à confecção da saladinha de ideais, de programas, de fins, que não é certo nutrição por dar solidez às mentes nacionais. O prof. Giusepe Prato não se percebe deste dissídio, que não é somente dele, mas de todo o grupo da "Riforma Sociale". Não se percebe que com esse dissídio ele e seu grupo, voluntária ou involuntariamente, são um dos elementos principais da deseducação nacional, da falta de idéias claras e concretas sobre todas as questões econômicas. O prof. Giuseppe Prato deveria escrever de si mesmo de ser um demagogo." (CF848).

O que vimos acima por Gramsci declarado sobre o prof. Giuseppe Prato não são injúrias criminosas, porque o sentido ideológico veiculado às idéias socialistas permitia-lhe nas crônicas desvendar os embustes, o que não poderia acontecer com os jornais da cultura dominante, pois a falta de clareza e a mistura de ideais são características de seu domínio. Gramsci alerta que nem mesmo a ideologia liberal era respeitada. Havia falta de responsabilidade civil, quando pronunciava-se pelos veículos de comunicação liberal, notícias sem seguir uma regra do jogo democrático, pressupostos básicos dos direitos e dos deveres assegurados por um poder judiciário. As injúrias contra as organizações socialistas deveriam ser interpretadas como crimes, pois facilmente invadiam a integridade dessas organizações por disputa ideológica, como por exemplo o jornal católico "Momento", dirigido por Guido Podrecca, quando noticiou contra a cooperativa socialista "Alleanza", insinuando ter contrabandeado remédios dos inimigos alemães:

"...O jornal clerical tinha insinuado que a Alleanza tivesse contrabandeado os medicamentos alemães. Que outra coisa queria dizer a pergunta: "E a proibição feita pelo governo de comercializar com empresas de nações inimigas?" ...as injúrias mais sanguinolentas não seriam justificadíssimas. Mas é melhor deixar correr e deixar que os caracóis clericais choraminguem na própria baba." (CT583-584).

Desmascarando os demagogos e a falsa cultura em torno da sociedade, Gramsci dispunha de elementos empíricos para análise da cultura dominante, que comumente utilizava o meio de comunicação de massa para manipular informações contra ou a favor de seus interesses. Com a contratação de Italo Minunni, ex-diretor do jornal "Idea Nazionale", para a direção do jornal liberal "Gazzetta di Torino", Gramsci mostrou as relações entre os intelectuais da classe burguesa e as instituições de cultura. Mesmo sendo um liberal audacioso Minunni refletia a falta de união da classe liberal italiana:

"O senhor Ítalo Minunni vem da "Gazzetta" para a "Perseveranza" de Milão e passou desta à "Idea Nazionale". Mas não é a sua carreira jornalística que importa a nós. Importa-nos notar um fenômeno que nesta carreira é também exteriormente marcado. O desenvolvimento do nacionalismo na Itália marcou e está marcando o surgimento da classe burguesa como organismo combativo e consciente. Até agora tínhamos na Itália uma burguesia política, sem programas claros e orgânicos, sem atividade econômica coerente e retilínea (...) O nacionalismo está dando consciência de sí à classe burguesa. O "Idea nazionale" é por este ponto de vista o jornal mais importante da Itália (depois do "Avanti!") ... é o fornecedor de idéias, de elementos polêmicos, de coragem para toda a imprensa burguesa italiana. Tornou-se também o incubador de energias jornalísticas se espalham da sua redação e galvanizam as gelatinosas colunas dos outros jornais burgueses. Uma destas energias é Ítalo Minunni (...) não é um economista, embora seja um especialista em "artigos" econômicos. É um audacioso, é um despreocupado, é um "focinho" duro. É um documento vivo da impotência liberal italiana, se não da idéia nacional. Representa, em comparação a idéia liberal, um pensamento imaturo, um pensamento confuso e inorgânico que se impõe com a audácia." (CF470).

Ainda não fundado o Partido comunista, Gramsci se pronunciava contra Prampolini, um socialista reformista que se desviou dos interesses de propaganda educativa do partido: levou ao Parlamento idéias mal interpretadas contidas num artigo de Gramsci e de Treves, publicados no "Giustizia", jornal semanal da Reggio Emilia, provando a sua incompetência pela ligeireza dos assuntos e pela distância entre o seu modo de pensar e o seu modo de agir:

"Liberalíssima a "Giustizia" em julgar homens e fatos. Mas para julgar deveria procurar de ser informada com exatidão dos homens e dos fatos de que quer se ocupar. De outro modo as suas hipóteses, as suas máximas, as suas afirmações tornam-se gratuitamente ofensas, são a expressão não da sagacidade, mas da ligeireza, e nestes casos como aqueles de que se trata, são perigosos estímulos para reforçar-se de uma opinião pública estranha ao proletariado, que contra o proletariado procura algemas e execuções sumárias ... Não se pode reprovar a ninguém de ser reformista ... pode-se no entanto reprovar, é antes um dever fazê-lo, àqueles que este método interpretam mal, dirigem-se a uma ação que não é de classe, que obstrui o sentido de classe; isso acontece quando existe um contraste entre pensamento e ação, e que se quer fazer passar por ação de classe, por fato proletário aquilo que é somente exterioridade de classe, exterioridade proletária." (CF391-392) (27)

Como se pode ver deste trecho Gramsci polemizava com Prompolini não só por uma razão política, mas também por razão cultural, revelando as contradições ideológicas incorporadas, enquanto ele não sabia assimilar a cultura revolucionária do proletariado, confundindo elementos da cultura proletária com elementos da classe dominante.

De forma geral encontramos nos artigos de Gramsci, que agregamos sob a rubrica "socialismo", a tônica revolucionária da ideologia comunista, confirmando a ditadura do proletariado mesmo antes da Revolução russa. Utilizando os parâmetros da militância no final de 1918 num artigo onde comentava as ações do Partido Trabalhista inglês, ele se posicionou claramente favorável aos conselhos dos operários, assim chamando os futuros Conselhos de fábrica italianos, que para ele significava o caminho para a verdadeira revolução comunista, uma vez que o controle econômico deveria preceder os objetivos políticos na tomada do poder, portanto bem diferente como ocorrera na Rússia:

"...os proletários mesmos devem convencer-se da verdade que somente os organismos de classe representam os seus interesses e as suas aspirações, que necessita trabalhar para que o poder executivo da nação passe do governo parlamentar às organizações, aos Conselhos dos operários." (NM438).

Dessas palavras se percebe que Gramsci nunca negligenciou o problema cultural-ideológico, com o fim de utilizá-lo na revolução política na Itália a favor dos operários. Em maio de 1919 afirmou fervorosamente os aspectos mais importantes para a política da Internacional comunista em seus objetivos de revolução mundial, apontando outra vez os conselhos de operários como fator primeiro na revolução dos países do Ocidente. Ao mesmo tempo declarava implicitamente as mudanças ocorridas em seu trabalho jornalístico: de crítica à cultura dominante passaria à cultura do realismo construtivo, tomando como referência a cultura comunista instaurada na Rússia:

"O proletariado russo, com o advento da Revolução, ofertou aos seus irmãos de todo o mundo uma experiência real histórica que substanciou robustamente o espírito e a ação da Internacional proletária. A ação revolucionária da crítica e negativa transformou-se em realismo construtivo; a dialética histórica gerou a sua síntese no novo tipo de Estado, o sistema dos conselhos de operários e camponeses. (...) O lento e tenaz esforço que os núcleos mais conscientes e historicamente eficientes do proletariado mundial cumprem por ordenar-se na Internacional comunista de Moscou, recriar os tecidos conjuntivos sociais, suscitar uma mais vasta e compreensiva unidade moral do mundo, realizar as teses marxistas do Comunismo na instauração de uma República federativa dos conselhos de operários e camponeses nos cinco continentes." (ON5-6).

Com essa nova postura revolucionária de pensar, Gramsci preparava a revolução italiana construindo criticamente a organização da cultura comunista. Três fatores importantes deviam ser observados no novo modo de produção comunista: a produção, o consumo e as instituições cooperativas de consumo. Assim devemos entender as críticas gramscianas às cooperativas, como um dos instrumentos de afirmação para atingir o poder pela via política da nova classe proletária. Diferente dos Conselhos de fábrica, onde o controle sobre a produção privilegiava a classe proletária e o seu domínio econômico, nas cooperativas de consumo não existiam conflitos de classes, porque todo mundo consumia. Aqui sim, advertia Gramsci, caberia uma interferência política. Apesar disso, as Cooperativas de consumo juntamente com os Conselhos de fábrica deveriam se voltar para o campo da luta de classe, orientando-se pelas diretrizes do modelo de controle econômico:

"O socialismo não tende a resolver só o problema da distribuição dos produtos. A justificativa moral do nosso esforço e da revolução que será determinado por isso, é invés, próprio dado pela certeza, adquirida pelo proletariado através da crítica dos modos atuais de produção, que o coletivismo servirá a acelerar o ritmo da produção mesma, eliminando todas as causas artificiosas que limitam o rendimento (...) O consumo é campo relativamente neutro da atividade social. O povo se separa em duas classes em função da produção, não do consumo. Só politicamente, não economicamente, também o consumo pode tornar-se campo de luta, enquanto o Estado, ente governativo e executivo da burguesia capitalista, com o protecionismo regula o consumo sobre a produção do capitalismo nacional. Mas consumidores somos todos (...) dadas estas interferências sociais em função ao consumo, não se pode certamente afirmar que a cooperação seja na sua essência socialista, e seria ingênuo e criminoso fazer crer que essa exaure o programa socialista (...) as cooperativas do tipo da Aliança são uma entre os grandiosos experimentos através dos quais se afina o sentido de responsabilidade social dos socialistas (...) as cooperativas de consumo podem, porque se quer, adquirir valor revolucionário (...) desenvolvidos, reforçados, multiplicados, tornar-se-ão tantas armas apontadas contra o organismo burguês." (CT600-602).

Em fevereiro de 1918, Gramsci reprovando o Congresso nacional das cooperativas agrícolas, levanta a polêmica frente às instituições sindicais, estas ideologicamente incoerentes em relação ao socialismo: as cooperativas de produção deveriam ter um controle espontâneo e não ser conduzida por vontade política, isto é, era necessário considerar o fator econômico pela lei da necessidade e não pelos interesses do capital:

"Entendemos a cooperação como atividade livre do proletariado, como necessidade que se afirma e se desenvolve também em regime de individualismo. Mas isso deve ser livre e representar uma necessidade útil, independente da ajuda e da legislação estatal. A sua força deve consistir somente na sua necessidade, na sua utilidade, não em leis de favores. De outro modo se cai nos mais perigosos protecionismos, criam-se organismos parasitários, suscitam-se pequenos grupos de proletários privilegiados, que saem liberados da exploração capitalista, a prejuízo da classe e a despesa da produção em geral. O nascimento das cooperativas agrícolas, o seu agrupar-se em sindicatos deve ser fenômeno espontâneo, assim como espontâneo deve ser o concentrar-se do capital e o surgir dos sindicatos industriais. Só assim se pode falar de progresso econômico e de modernidade. Mas se as cooperativas se reúnem em ligas só por ser uma força política e arrancar alguma coisa com a intriga de corredor, ou com a intimidação amestrada, com leis de favor, com concessões antieconômicas, não se pode falar de progresso e de modernidade: é idade média, é feudalismo, é privilégio." (CF677).

Esta nota de Gramsci é fundamental ao nosso modo de ver por duas razões: político-moral e cultural. Enquanto Gramsci mostra que a importância das cooperativas agrícolas operárias não deveria ser instrumentos de privilégio a ninguém, mas organizações que operassem de modo economicamente sadio, deveriam apoiar-se somente sobre suas próprias forças. Evidente que se os operários não tivessem cultura para gerar um organismo econômico nunca poderiam depois ser capaz de gerar um Estado comunista.

Crítica cultural ao reformismo socialista, ao sindicalismo e ao fascismo

Tentamos até agora provar a hipótese inicial de que as crônicas de crítica e cultura foram "a base da reconstrução humanista e dos pressupostos do homem integral inseridos na crise moral da sociedade capitalista". No período referido verificamos a atuação de crítica à cultura dominante, especialmente composta por artigos que denunciavam a produção da cultura da grande burguesia. Provamos, do conjunto de artigos, a sistematização e levantamento de elementos de humanidade, possíveis graças à concepção instrumental do conceito de cultura utilizado para a crítica.

No final desse exame começamos a verificar que com a Revolução russa os procedimentos de crítica metódica à cultura capitalista passaram para a crítica construtiva de uma cultura e ideologia comunistas, candidata na Itália à cultura dirigente. As crônicas revolucionárias gramscianas, referentes a esse período pós Revolução russa, foram então atuantes no campo da política profissional, como se pode verificar através do trabalho iniciado em 21 de janeiro de 1921 com o "Ordine Nuovo", órgão ligado ao Partido Comunista Italiano recém formado.

Gramsci seguiu a elaboração dos artigos apoiando-se sobre três frentes orientadoras:

1) no nível nacional, organizava o pensamento revolucionário do proletariado italiano;

2) no nível internacional, apoiava a Internacional Comunista, isto é, a organização política do proletariado internacional e

3) no nível global, compunha reflexões sobre a revolução comunista no planeta.

O conceito de cultura foi adquirindo uma nova formulação, passando de instrumento de investigação social para um teste político partidário, atuando e intervindo na realidade social. Formou-se assim a última etapa de sua produção intelectual orgânico, que culminou nos posteriores enunciados teóricos dos Cadernos do cárcere.

A sensibilidade da análise política de Gramsci aumentava de acordo com as responsabilidades assumidas junto ao Partido comunista. Agora como intelectual dirigente do partido, dispunha de forças políticas mais intensas para marcar com maior precisão a luta de classe revolucionária. Gramsci teve de enfrentar no nível interno os opositores da cultura comunista, que agora avançavam por uma oposição única: eram eles os socialistas reformistas do Partido Socialista Italiano; o sindicalismo congregado às várias instituições corporativas - no grau máximo da Confederação Geral do Trabalho; e o movimento fascista liderado por Mussolini.

Selecionamos um artigo (28) em que Gramsci denuncia justamente o Partido Socialista Italiano, que deveria seguir o rumo do socialismo revolucionário, advertindo que não se deveria deixar para depois a oportunidade de implantação do comunismo na Itália, para isso deveria seguir o modelo russo:

"A crítica desta posição ideológica do Partido socialista foi feita pelo mesmo desenvolvimento dos acontecimentos históricos: a situação atual do partido é o quadro real desta obra de crítica e de dissolução realizada não por homens individualizados, mas por todo um processo de desenvolvimento da história de um povo." (SF03).

O PSI e seus dirigentes, segundo Gramsci, não mais poderiam representar o proletariado italiano, porque se desviaram dos propósitos essenciais: a fundação de um Estado proletário e o incentivo e organização das condições políticas para essa finalidade. A objetividade da ideologia comunista confrontava o Partido socialista italiano à tarefas práticas e deveres imediatos em relação aos objetivos históricos da fundação de um novo Estado. Assim que o mito wilsoniano, o do imperador dos povos, defrontou-se com a nova paixão política de Lênin, chefe da Comuna Internacional, foi inevitável a formação de uma intransigência irremovível dos comunistas, que lutavam para a implantação de uma cultura social autêntica. Na prática isso significava a luta contra a corrupção e o ceticismo italianos, propiciando assim a defesa eficaz da educação política das massas operárias, que para Gramsci era a condição primordial na fundação do Estado operário italiano.

Gramsci denuncia a irresponsabilidade do governo que justificou os passos tomados pelo Partido socialista em abril de 1920, deixando de concluir o movimento dos Conselhos de fábrica, cujo controle operário era evidente ocorrer no país. A irresponsabilidade dos dirigentes políticos socialistas era prova da incapacidade de compreender o seguinte sobre as regras do jogo democrático:

"Uma associação pode ser chamada 'partido político' só enquanto possui uma própria doutrina constitucional, só quando conseguiu concretizar e divulgar uma noção própria da idéia de Estado, só enquanto conseguiu concretizar e divulgar entre as grandes massas o seu programa de governo, ato a organizar praticamente, isto em condições determinadas, com homem reais e não com fantasmas de humanidade...", (SF03).

"...hoje os socialistas, a propósito da situação criada pela aspereza da luta de classes, querem fazer crer que hesitam e querem só buscar as responsabilidades do governo burguês. O governo burguês é responsável só para a classe burguesa: essa obteve a confiança da classe representada; essa cumpriu o seu dever de classe. Os socialistas, assim raciocinando e assim impondo o problema, demonstram só uma coisa: de encontrar-se sobre o terreno da democracia, de ser persuadido que possa, no regime burguês, existir um governo parcial, árbitro desinteressado nos conflitos de classe."

Não sendo para Gramsci revolucionárias as ações políticas do Partido socialista, não conspirando com forças revolucionárias no nível internacional para se emanciparem da exploração do capitalismo nacional, deixavam às claras os desvios diante o autêntico objetivo, no interior do qual a meta de construção de um Estado de controle da classe operária não deveria ser retórica, não deveria ter por modelo o Estado democrático burguês, que falseava posturas de desinteresse e imparcialidade na luta de classes, enquanto na verdade mantinha a sua existência para manutenção dos interesses da classe dominante na sociedade. Gramsci atacou com tenacidade a falsa ideologia revolucionária do Partido socialista italiano, que continuava com a maioria nas cadeiras parlamentares desde as eleições de 1921 a 1924.

Havia uma relação conjunta do Partido socialista com o sindicalismo. Ambos acreditavam nas vias constitucionais para se chegar ao socialismo. No V Congresso Geral do Trabalho, o primeiro após a guerra ocorrido em 26 de fevereiro de 1921 em Livorno, Gramsci colocou-se no movimento alertando sobre as verdadeiras vias revolucionárias, que tinham sido abandonadas por ambas as instituições citadas, que eram representantes do maior número da classe trabalhadora. Eis as diferenças da tarefa do Partido comunista, único que proclamava a destruição da ordem estabelecida e contrapunha a cultura dominante a nova cultura revolucionária em formação. Mesmo que as massas operárias e camponesas estivessem no processo de conscientização de seu papel enquanto classe revolucionária, eis o que Gramsci desmistificava:

"O Partido socialista caiu completamente nas mãos da burocracia sindical que, de resto, com o seu pessoal e com os meios das organizações, procurara a maioria à tendência unitária: o Partido socialista reduziu-se a ser um janízero dos mandarins e dos condutores que estão na cabeça da Federação e da Confederação. Os comunistas devem reconhecer este estado de fato e operar conseqüentemente. Os comunistas devem considerar a Confederação à mesma medida do Estado parlamentar, isto é como um organismo a cuja conquista não pode vir a ser por via constitucional. De outro modo a questão confederal deve ser resguardada tendo em vista estes outros postulados: que se quer a unidade proletária e que se quer colocar-se no sentido revolucionário o problema do controle sobre a produção. O campo de atividade do Partido comunista é toda a massa de operários e camponeses; a Confederação é teatro de maior propaganda e maior atividade só porque numericamente abraça a maior parte dos operários e camponeses italianos organizados, isto é, os mais conscientes e preparados." (SF83).

Com a luta pela formação e pelo desenvolvimento dos Conselhos de fábrica, Gramsci acreditava que, sendo uma luta do Partido comunista, poderia mais tarde conquistar de modo estável e permanente a maioria da Confederação Geral do Trabalho, com postos de direção no período pós-revolucionário, como acontecera na Rússia. Na verdade acreditava que em breve tempo haveria um congresso dos Conselhos de fábrica e das Comissões internas e daí sim poder-se-ia gerar uma central de trabalhadores. Essa via mais racionalmente de acordo com seus propósitos revolucionários mostrava-se sempre possibilista. Gramsci acreditou nesta via mesmo depois dos resultados das primeiras eleições no pós-guerra, (29) que não foram favoráveis para os comunistas:

"Talvez a capacidade revolucionária da classe trabalhadora se mede pelo número de representantes comunistas que foram enviados ao Parlamento? (...) A participação às eleições teve o significado e o valor de uma revista, de uma resenha de forças de mobilização do partido (...) mas uma organização política de um partido como o nosso não tornar-se-á jamais forte e efetivamente ativo no seio da sociedade capitalista, se não cuidar de conquistar as massas trabalhadoras na sua sede mais natural de luta: sindicato, oficinas, fazendas, cooperativas, etc. Ter dez ou vinte deputados a mais no Parlamento não tem importância para um partido seriamente revolucionário (...)" (SF169-170).

No artigo Il prezzemolismo (O atrevido) Gramsci mostra a completa indignação com o Partido socialista italiano e com o sindicalista Mario Guarnieri na luta contra a Fiat, esclarecendo a incapacidade de direção política e da possível corrupção conjunta. Vale a pena observar os detalhes históricos nessa longa transcrição, principalmente nos conflitos de classes nas instituições sindicais, no qual poderemos ainda hoje resgatá-los como referência:

"A concepção política dos mandarins sindicais da Fiom é terra a terra, falta toda ossatura ideológica, falta toda quadratura teórica; é apenas uma justificação da velhacaria e do sectarismo anticomunista que faz idiotas estes senhores. Os mandarins sindicais crêem, não resistindo, não lutando, de evitar a reação. Em verdade eles evitam só a reação contra suas pessoas, não evitam a reação contra as massas trabalhadoras; algumas vezes não evitam nem mesmo a reação contra suas pessoas. Embebidos de violência, os mandarins crêem que tudo seja permitido aos capitalistas. Os capitalistas podem licenciar, podem condenar a morrer de fome milhares e milhares de operários com as suas famílias, podem espedaçar os concordatos, podem arrolar corpos armados de guarda branca e mandá-los incendiar, saquear e assassinar; para os mandarins sindicais isto é normal, é lógico, é naturalíssimo. Talvez tivemos inventado a luta de classe aos capitalistas contra os operários? - perguntam estupidamente os mandarins sindicais. Certo, é natural, é lógico, é normal que os capitalistas lutem contra as exigências vitais do povo trabalhador. Mas porque foram criados os sindicatos profissionais, as federações, a Confederação geral do trabalho? ... Mas que virá a ser das massas trabalhadoras que sofrem e desfalecem, devem pagar o aluguel de casa, a luz, a água, que devem matar a fome, vestir, calçar as mulheres, os filhos, os velhos pais ? As massas caem de todo nível humano: os operários rasgados, magros, desesperados se depravam, a delinqüência comum se multiplica, a loucura e a idiotia fazem estragos, os pequenos filhos do proletário se vêem desnutridos, raquíticos em um ambiente malsão de exasperação (grifos nossos). O que sucederá ainda? Vendo que a organização não funciona, que os entes máximos da resistência faltam aos seus precisos deveres, uma parte do operariado torna-se cética e passa ao fascismo; o fura-greve acha sempre maiores sequazes para o egoísmo e a desconfiança desenfreadas; a organização sindical se descara e a massa torna-se como um cadáver em decomposição." (SF199-200).

Essa longa citação, que é polêmica a respeito dos sindicalistas e do PSI, na realidade contém também uma polêmica cultural, no sentido que Gramsci bate contra a incapacidade ideológica dos dirigentes socialistas, que não sabiam elaborar uma teoria condutora do proletariado à tomada do poder. Não aderiram ao ideal político comunista. Evidente que Gramsci nunca divide em um dirigente o aspecto político do aspecto cultural, como também do aspecto moral.

E arrematando a denúncia da incompetência dos sindicalistas e do Partido socialista italiano, propôs com a união das duas instituições proletárias a luta de classe ideal contra o Estado burguês, mas agora também contra o inimigo comum gerado pelo movimento fascista:

"Porque continuar a chamar socialistas e revolucionários, se isso serve só para procurar quedas, se o socialismo caiu nas mãos de homens indiferentes, que sorriem dos sofrimentos populares, que dizem com um sorrisinho: - é natural, é lógico, é normal que seja assim, porque os proprietários devem necessariamente lutar contra os pobres - e não movem um dedo para organizar um qualquer resistência e não procuram fazer mobilização geral contra a tirania branca? O que seria sucedido se os dois milhões de operários e de camponeses que votaram para o Partido socialista, invés de ser chamado às urnas, fossem chamados à luta pelo 'Avanti!', pela direção do Partido socialista, pela Confederação geral do trabalho, simultaneamente, com as armas que a raiva e a dor metem nas mãos do povo quando insurge pelo seu direito e pela sua justiça? Certamente que o fascismo seria sufocado e com o fascismo o Estado burguês." (SF200-201).

O fascismo, segundo Gramsci, foi determinado por circunstâncias criadas pelos socialistas e pelos sindicalistas, que detendo a maioria no Parlamento e o controle das massas proletárias, não atuaram de acordo com as finalidades revolucionárias, anunciadas pelas regras comunistas. Os fascistas tomaram a vez, passando a atuar com violência pública, mas não em nome da revolução senão para continuidade da própria organização fascista.

"A posição política do fascismo é determina pelas seguintes circunstâncias: 1) os fascistas, nos seis meses de atividade militante, se encarregou de uma pesadíssima bagagem de atos delituosos que ficaram impunes, o que a faz mais forte e temida a organização fascista; 2) os fascistas desenvolveram suas atividades só porque dezenas de milhares de funcionários do Estado, especialmente da Segurança Pública (guarda do rei, soldados e policiais) e da magistratura, tornaram-se cúmplices morais e materiais; 3) os fascistas possuem , disseminados em todo território nacional, depósitos de armas e munições em quantidade tal de ser ao menos suficiente para construir uma armada de meio milhão de homens; 4) os fascistas organizaram um sistema hierárquico de tipo militar que encontra seu natural orgânico coroamento no estado maior." (SF186).

Gramsci, como intelectual orgânico da classe oprimida na luta pela consciência de sua alienação social, bastava-se na tarefa de dirigir o leitor comunista, insistindo abertamente em desvendar a lógica fascista e em denunciar a todos as iludidas relações estabelecidas entre os falsos representantes da classe operária, o Estado e os capitalistas, que convergiam para um inevitável golpe de estado, uma vez que os fascistas poderiam imitar os socialistas no golpe da ocupação de fábricas:

"Que intentam fazer os socialistas e os chefes confederados para impedir que sobre o povo venha a gravar a tirania do estado maior, dos latifundiários e dos banqueiros? Estabeleceram um plano? Tem um programa? Não parece. Os socialistas e os chefes confederados poderiam estabelecer um programa 'clandestino'? Este seria ineficaz, porque só uma insurreição das grandes massas pode espedaçar um golpe de força reacionário, e as insurreições das grandes massas, se tem necessidade de uma preparação clandestina, tem também necessidade de um propaganda legal, aberta, que dê um endereço, que oriente os espíritos, que prepare as consciências. Os socialistas jamais se colocaram seriamente a questão da possibilidade de um golpe de estado e dos meios de predispor para defender-se e para passar à ofensiva. Os socialistas, habituados a ruminar estupidamente algumas formuletas pseudo-marxistas, negam a revolução "voluntarista", "miraculosa", etc., etc. Mas se a insurreição do proletariado viesse imposta pela vontade dos reacionários, que não podem ter escrúpulos "marxistas", como deveria comportar-se o Partido socialista? Deixaria, sem resistência, a vitória à reação? E se a resistência fosse vitoriosa, se os proletários sublevados e armados derrotarem a reação, que palavra de ordem daria o Partido socialista: de consignar as armas ou de continuar na luta até o fim? Nós acreditamos que estas perguntas, neste momento, são todas elas acadêmicas e abstratas. Pode dar-se, é verdade, que os fascistas, que são italianos, que tem todas as indecisões e as fraquezas de caráter da pequena burguesia italiana, imitem a tática seguida pelos socialistas na ocupação das fábricas: voltem atrás e abandonem à justiça punitiva de um governo reconstrutor da legalidade aqueles dos quais tem cometido delitos e seus cúmplices. Pode dar-se; é no entanto horrível tática confiar-se aos erros dos adversários, imaginar os próprios adversários incapazes e ineptos. Quem tem a força, dela se serve. Quem sente o perigo de andar em galera, se sustenta sobre o espelho para conservar a liberdade. O golpe de estado dos fascistas, isto é, do estado maior, dos latifundiários, dos banqueiros é o espectro ameaçador que desde o início compete a esta legislatura." (SF187).

Diante dessa situação eminente do golpe de estado fascista, o Partido comunista em contraposição a qualquer outro partido garantiria a tomada do poder político e econômico diante a competência de intransigência revolucionária, momento do qual os socialistas e os sindicalistas jamais tiveram sequer a visão para estabelecer um programa de combate:

"O Partido comunista tem seu endereço: lançar a palavra de ordem da insurreição, conduzir o povo em armas até a liberdade, garantida pelo Estado operário. Qual é a palavra de ordem do Partido socialista? Como podem as massas ainda confiar-se deste partido, que exauriu a sua atividade política no gemido e se propõem somente fazer possuir pelos seus deputados alguns "belíssimos" discursos no Parlamento?" (SF187-188).

Com a ascensão fascista na Itália, os organizadores da cultura comunista foram encarcerados, impedidos de pensarem com as massas proletárias uma saída à organização política. Todo o esforço intelectual de Gramsci, inovador de uma pragmática marxista através da prioridade da Revolução cultural, demonstra a força do movimento histórico no qual foi protagonista. Esse percurso intelectual serviu de pressuposto para a sua construção teórica (conceitos, raciocínios e argumentos críticos), feita no cárcere diante o falecimento de sua ação política-cultural, quando a classe operária italiana sucumbira ao avanço fascista.

Conclusão

Foi precisamente tenaz e com "perseverança clarividente", como ele mesmo definia sua tarefa, o modo pelo qual Antonio Gramsci conduziu as críticas aos opositores do socialismo italiano. As provas, como vimos, podem ser encontradas nos registros que fez a partir dos anos da I Guerra mundial como jornalista da imprensa socialista da cidade italiana de Turim. Encontrar-se-ão detalhes históricos indispensáveis desses registros de variados temas se o leitor seguir suas crônicas passo a passo, elaboradas cotidianamente a serviço da classe proletária. Ele se dispunha a projetar os ideais socialista e comunista para essa classe que, posteriormente até a atualidade, deveria servir-se de sua obra como fonte historiográfica de enorme importância.

As esperanças revolucionárias, baseadas na teoria da luta e consciência de classe do marxismo clássico e as decepções históricas culminadas no nazismo e fascismo, foram fatos que Gramsci participou como um agente social na história. O intelectual orgânico Gramsci foi um dos responsáveis pela ascensão e triunfo fascista, uma vez que adotando a teoria mecanicista e causal presente na teoria revolucionária, contribuiu para a emancipação da classe operária de modo opressivo e violento?

Gramsci iniciara seu posicionamento crítico diante a neutralidade na guerra dos países capitalistas, com a crítica ao Partido Socialista que não seguia os caminhos clássicos da Revolução aproveitando o momento da guerra. Essa posição ideológica identificava-se em princípio com a Revolução Russa, que se tornou a esperança de universalizar intelectual e politicamente os países da Europa. A implantação do comunismo na Itália encontrou resistências naturais à repetição do modelo bolchevista, que se impôs como modelo internacional. Além disso, os países em luta pelo socialismo estavam em condições históricas e culturais diversas da Rússia. Gramsci registrou os fatos em seu país e foi seu intérprete nos acontecimentos, levantando toda a problemática para a implantação de uma revolução comunista global, apoiado em seus pressupostos conceituais sobre a cultura.

Teve como referência para o trabalho jornalístico a perda dos valores tradicionais substituídos pelos valores utilitários, dados pela ciência e pela técnica, pelo prestígio e pelo dinheiro. O conceito de cultura em um primeiro momento valeu como instrumental de crítica. Aplicou a noção de cultura quando o sujeito se defrontava com os elementos da cultura capitalista de modo crítico, isto é, objetivava a crítica desvendar a ilusão ideológica de hábitos da classe dominante, na qual o proletariado ou não percebia e aceitava ou também os admitia como próprio de sua cultura. Para desconstrução da base da racionalidade tradicional, cuja relação direta entre os indivíduos o homem transformado em coisa aliena-se, Gramsci promoveu incansavelmente seu projeto de atingir as "consciências". O seu papel como intelectual era através das crônicas alertar os desvios (ir)racionais da cultura dominante, sem no entanto descartá-la, transformando-a.

Num segundo momento, quando decide pela alternativa revolucionária soviética, o conceito de cultura significou para Gramsci a forma de promover a revolução pela via econômica dos Conselhos de Fábrica, em detrimento da opção política e violenta preconizada por Lênin. Como político, Gramsci não abandonara o marxismo em sua teoria da alienação. A práxis cotidiana dirigia as crônicas jornalísticas para uma efetiva transformação cultural no âmbito das instituições democráticas.

O presente artigo procurou sugerir de modo sistemático a existência das crônicas gramscianas como modelo metodológico para a crítica à cultura dominante. Constata-se uma ampliação no modo de encarar a luta de classe datada, que pode ser revista segundo o roteiro levantado a partir das suas duas definições de cultura. Procuramos mostrar a importância dessa metodologia para os estudos gramscianos, fornecendo o uso das definições de cultura que viriam a servir na elaboração dos esquemas conceituais elaborados nos Cadernos do Cárcere. Mas também acreditamos que tal reflexão aqui desenvolvida possa servir ao trabalho intelectual interessado na atual crítica à indústria cultural, que oculta a razão, o raciocínio, o pensamento e o acesso aos bens culturais, limitando o direito à sua compreensão para transformação das consciências.

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II) La città futura (1917-1918), organização de Sergio Caprioglio, Turim, Einaudi, 1982.

III) Il nostro Marx (1918-1919), organização de Sergio Caprioglio, Turim, Einaudi, 1984.

IV) L'Ordine Nuovo (1919-1920), organização de Valentino Gerratana e Antonio A. Santucci, Turim, Einaudi, 1987.

V) Socialismo e fascismo. L'Ordine Nuovo, 1921-1922, Turim, Einaudi, 1978

VI) La costruzione del partito comunista (1923-1926), Turim, Einaudi, 1978.

VII) Quaderni del carcere, edição crítica do Istituto Gramsci, organização de Valentino Gerratana, Roma, Einaudi, 1975

VII) Lettere (1908-1926), organização de Antonio A. Santucci, Turim, Einaudi, 1992.

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Notas

(1) Este artigo é uma versão condensada do capítulo 3 da dissertação de mestrado intitulada "O conceito de cultura em Antonio Gramsci: desde as crônicas turinenses aos Cadernos do Cárcere", que o autor apresentou à Universidade de São Paulo em 1997.

(2) Alguns estudos importantes são, por exemplo: Henri Pirenne, História Econômica e Social da Idade Média; Giuliano Procacci, Storia degli italiani; Maurice Dobb, A evolução do Capitalismo; Eugenio Garin, Scienza e vita civile nel Rinascimento italiano; Christopher Hill, A revolução inglesa de 1640; Albert Soboul, A Revolução Francesa; Barrington Moore Jr., As origens sociais da democracia e da ditadura; G.D.H.Cole, Historia del pensamiento socialista; Max Beer, Historia do Socialismo e das Lutas Sociais; Eric J. Hobsbawm, História do Marxismo e A Era das Revoluções; Annie Kriegel, Las Internacionales obreras (1864-1943); Robert Michels, La sociologia del partido politico; Norberto Bobbio, Perfil ideólogico del siglo XX en Itália; A.Chabod, L'Italia contemporanea (1918-1948); Giuseppe Fiori. Vita di Antonio Gramsci, Bari, Laterza, 1966. Maurice Finocchiaro. Gramsci and the history of dialetical thought, Nova York, Cambridge University Press.

(3) A base de pesquisa foi composta pela leitura sistemática e completa das crônicas gramscianas, organizados nos seguintes volumes: I) Cronache torinesi (1913-1917), 399 artigos; II) La città futura (1917-1918), 486 artigos; III) Il nostro Marx (1918-1919), 395 artigos; IV) L'Ordine Nuovo (1919-1920), 230 artigos; V) Socialismo e fascismo. L'Ordine Nuovo, 1921-1922, 218 artigos; VI) La costruzione del partito comunista (1923-1926), 115 artigos; VII) Lettere (1909-1926). Utilizarei nas futuras citações a seguinte legenda: CT (Cronache Torinesi), CF (La città futura), NM (Nostro Marx), ON (L'Ordine Nuovo), SF (Socialismo e fascismo), CPC (La costruzione del partido comunista), L (Lettere dal carcere). As citações poderão também estar seguidas da página: (CT35) significa Cronache Torinesi, página 35. É importante notar: 1º) as crônicas teatrais, os artigos "espúrios" e os artigos de "atribuição incerta" não fizeram parte desta pesquisa. 2º) As fontes gramscianas foram: palestras, conferências, reuniões sindicais e do Partido e leituras de jornais, revistas, livros e correspondências dirigidas ao seu jornal.

(4) Defronte da tese da neutralidade absoluta da guerra, proclamada pelo Partido Socialista Italiano em agosto de 1914 e da tese de Mussolini da neutralidade relativa, publicada no artigo Dalla neutralità assoluta alla neutralità relativa ed operante, "Avanti!", em 18 de outubro de 1914, que defendia a possibilidade da Itália entrar na guerra, Gramsci em seu artigo publicado em 31 de outubro de 1914, Neutralità attiva ed operante no "Il Grido del Popolo" (CT10-15), apurou a situação política e apontou seus os equívocos.

(5) Ou seja, se o socialismo não existe até hoje é porque vigora um estado de coisas determinantes pela relação entre exploradores e explorados. Eis o primeiro objetivo do jornalismo crítico: de levar à humanidade a partir do proletariado a consciência dos próprios valores, através de reflexões inteligentes sobre as razões de determinados fatos e sobre o melhor meio para convertê-los em ocasiões de reconstruções sociais. Faltam no parágrafo as aspas? Os grifos são nossos, idem, p. 100.

(6) Pode-se confrontar o citado em: Giambattista Vico, La scienza nuova seconda, a cura di F. Niccolini, Laterza, Bari 1953, pp.64-66 e Novalis, Frammenti, a cura di G. Prezzolini, Carabba, Lanciano 1914, ("Cultura dell'anima").

(7) Já citados na nota 2, p.1: I) Cronache torinense (1913-1917), 205 artigos; II) La città futura (1917-1918), 337 artigos; III) Il nostro Marx (1918-1919), 204 artigos, IV) L'Ordine Nuovo (1919-1920), 230 artigos. Ao todo foram 746 artigos escritos entre janeiro de 1914 a abril de 1919.

(8) A primeira divisão reforça a crítica moral do indivíduo na sociedade: 1) Professores, intelectuais, cientistas e literatos; 2) Prefeito de Turim; 3) Políticos em geral; 4) Editores, redatores e instituições de cultura - A segunda divisão demonstra temas que importam para a crítica social: 1) Capitalismo; 2) Catolicismo, religião, igreja católica e cristianismo; 3) Censura; 4) Episódios marcantes; 5) Guerra mundial, pacifismo e pós-guerra; 6) Questão meridional; 7) Nacionalismo; 8) Ações políticas; 9) Síntese histórica; 10) Socialismo, marxismo, proletariado, Internacional comunista, sindicalismo, Revolução russa, Lênin e comunismo. Lembramos que essas divisões só foram destacadas do material pesquisado, através do qual nos orientamos neste artigo.

(9) La luce che si è spenta, 20/11/1915, (CT23). Renato Serra foi escritor e crítico italiano morto em combate em 20/07/1915.

(10) Os artigos de referência ao professor Vittorio Cian (1862-1951) são os seguintes: CT81, CT85, CT317, CT576, CF247, CF338n, CF472n, CF860, CF862n, NM09, NM281, NM446.

(11) Capintesta significa quem guia um grupo de pessoas ou dirige uma empresa. É uma palavra que tem sentido desprezível.

(12) Disfattismo quer dizer a atividade de quem, em tempo de guerra, não concorda com o falso patriotismo de quem pensa que não se possa criticar as decisões tomadas do governo do país beligerante. O disfattista é então aquele que deseja e procura segundo suas forças e capacidade a desfazer o empreendimento bélico do próprio país.

(13) Os artigos de referência ao professor Francesco Ruffini (1863-1934) são os seguintes: CT27, CT159, CT358, CT384, CT537, CT676n, CF122, NM153n.

(14) Os artigos referentes ao professor Arnaldo Monti são os seguintes: CF217-19, CF458, CF524-26, NM104, NM466, NM492.

(15) Especialista em conduzir para a escola média o nacionalismo, o professor Monti escrevia: "A escola é uma força nacional; a nação faz neste momento convergir todas as forças para a vitória na guerra em que se empenhou (...) para obter isso, eu portanto não falarei aos meus escolares outra coisa que de guerra, farei assim que também fora da escola esses não se ocupem a não ser de guerra: conselherei a eles portanto de dedicar-se ao tiro ao alvo, conduzir-lhe-eis através da Itália a buscar as pólvoras fatais do teatro, promoverei entre eles associações anti-disfatistas" (In NM104). Aí o ensino irresponsável, a baixa cultura, a vulgaridade espiritual.

(16) Os artigos sobre nacionalismo são os seguintes: CT436, CT83, CT85, CF80, CT389, CT574, CT265, CT56, CT246, CT27, CT29, CT466, CF284, CT551.

(17) In Stenterello (CF84-86). Existem dois significados para a palavra Stenterello, mas que servem para Gramsci de protótipo da burguesia italiana: É uma máscara do teatro florentino que representa o caráter de uma pessoa magra e apática ou ainda vazia e ridícula.

(18) Confrontar os seguintes artigos de referência: 1) Achille Loria CT33, CT60, CT159, CF168, CF536, CF573, CF576, CF614, CF745, CF769, CF812, NM23, NM140, NM293; 2) Giuseppe Prato CF769, CF782, CF847, NM22, NM283, NM494; Cesare Foà CF89, CF126, CF136, 143, 144, 146; 4) Bertarelli CT64, CT158. Sobre o catolicismo confrontar nota 61.

(19) Confrontar os artigos sobre a Liga Antialemã CF136, CF144 e NM194. A Liga de ação antialemã iniciou em Turim em junho de 1916. O objetivo declarado da Liga era de "opor-se à danosa penetração alemã, do ponto de vista político, da cultura, da finança, da indústria, do comércio, para atingir a emancipação completa: moral, intelectual e econômica de toda hegemonia teutônica" em CT86. Confrontar os artigos de Pietro Romano: CT129, CF220 e de Cesare Foà: CF89, CF129, CF139, CF143.

(20) Confrontar os seguintes artigos sobre políticos e temas relacionados a eles: Agostino Berenini (NM70), Alessandro Di Giovanini (CF765), Bevione (CT135, CT366, CT475, CT244, CF534, CF561, CF622), Casalegno (CT619), Casalini (CF410), Crítica aos políticos em geral (CF655), Dante Ferraris (CF159), Delfino Orsi (CT363, CT489, CF317), Eduardo Verdinois (CT313), Estado corrupto (CF713), Ex socialistas (NM43), Francesco Ruffini (CT358, CT384, CF270, CF310), Francesco Saverio Nitti (CF463), Garafalo (CT616,CF544), Giolitti (NM241), Leuman (CT211), Maffi (CT430), Morgari (CF527), Muratori (CF629), Orlando (NM322), Petrolini (CT449), Saverio Fino (CT119, CT121), Tito Livio Cianchettini (CF493), Tulio Mazoti (NM125), Ulderico Mazzolini (CF776), Zibordi (CT153).

(21) Tratava-se do conde Teofilo Rossi de Montelera, empresário da famosa indústria vinícola "Martini e Rossi", eleito síndico de Turim em 1910 e confirmado no cargo depois das eleições municipais de junho de 1914. Será o primeiro alvo preferido de Gramsci para denotar o modelo imoral de homem público. São-lhe dedicados ao todo 11 artigos, a maioria durante o ano de 1916, quando foi deposto. Confrontar os seguintes artigos: CT32, CT36, CT38, CT57, CT106, CT110, CT123, CT155, CT310, CT326, CT334, CT355.

(22) Várias greves ou manifestações foram abafadas com violência injustificada, ocorrendo mortes e prisões.

(23) Em "L'escluzione" (CT57); Area ai monti (Ares aos montes) pode ser traduzido por um apelido daquele que anda com o nariz empinado.

(24) Confrontar o artigo CT326.

(25) La beneficenza torinense in un anno di guerra in "La Stampa", 19/05/1916.

(26) Confrontar os seguintes artigos sobre censura e censuradores: Censura turinense e milanesa (CT629, CT633, CF36, CF304, CF466, CF578, NM433); Ofício/Funcionários da censura (CT619, CF47, CF732, CF744, CF794), Protesto (CF435, CF436, CF438, CF793, NM373, NM389, NM598), Liga Antialemã (CF541), Segredo epistolar (CF559), Censura postal (NM371), Censura do país polichinelo (NM513).

(27) Confrontar os seguintes artigos sobre os editores, redatores e instituições de cultura: imprensa católica (CT132), imprensa italiana (NM615), Jornalismo (CT271, NM91), Réplicas de Dante Ferraris (CT381), Réplicas de Castagno (CT546), Notícias de massa (NM440), Informes (NM380), Prisão Pedro Balocca (NM420), Opinião Pública (CF102), Crítica ao Città Futura (CF105), Liga antialemã (CF143), Cottolengo (CF155), cultura e burguesia turinense (CF175), cultura e estilo literário (CF344), escritores socialistas: (CF178), Girola Tulin (CF80), Angelo Muratori (CF729), Roman Rollan (CF753), Mario Viscardini (NM216), Luigi Covre (NM569), Paulo Mattei Gentili (CF251), Lucro de guerra (CF181), Fato de Turim (CF289), Socialistas locais (CF370), Avaliação entre jornais (CT548), Matérias pagas (CF388), Reflexão sobre jornal (CF432), Exame jornalismo (CF487),Polêmica entre jornais (CF495, CF522), Diálogo entre jornais (CF589), Grido del popolo (CF485, CF652, NM164), Avanti! (NM423, NM426, NM428, NM449, NM472), Stampa (NM461), Gazetta del popolo (NM391, NM548, NM561), Preseveranza (NM352), Momento (CF822, NM106, NM363), artigos do Secolo (CF464), artigos do Idea Nazionale (CF491), artigos de Delfino Orsi (CF563), artigos de Ítalo Munini (CF565, CF585, CF609, NM366), diretores e redatores: Giuseppe Prato (CF847), Ettore Jane (CT74), Podrecca (CT583), Giuseppe Bevione (CT114), Delfino Orsi (CF286), Olivetti (CF371, CT374), Prampolini (CF390),Italo Munini (CF470, CF481, NM46), correspondência (NM474), Cottolengo (CF155), Crítica a Citta Futura (CF105), Fato de Turim (CF289), Informes (NM380), Jornalismo (CT271, NM91), Liga antialemã (CF143), Lucro de guerra (CF181), Notícias de massa (NM440), Opinião Pública (CF102), Prosa Gramsci (CF456, NM239, NM263), Prisão Pedro Balocca (NM420), Reflexões sobre escola (CF831, NM252), Socialistas locais(CF370), Tabela Logaritmo (CF185).

(28) "Lo stato operaio" in Socialismo e fascimo. L'Ordine Nuovo 1921-1922, Einaudi, 1966, ps. 3-7.

(29) As eleições de 15 de maio de 1921 tiveram o seguinte resultado: 139 cadeiras para os operários (123 socialistas e 16 comunistas) contra as 156 das eleições passadas. Os populares católicos obtiveram 110 cadeiras e os fascistas 35.

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