Monografias
Os
primeiros repórteres do Brasil
Por Maria Cecília Guirado*
Resumo:
Testemunhas verdadeiras da formação do país
e do povo brasileiro, Pero Vaz de Caminha (1500), Pero Lopes
de Sousa (1530-1532) e Pero de Magalhães de Gândavo
(1576), ao traduzirem a realidade que brotava do aparente paraíso,
podem ser considerados como os primeiros repórteres do
Brasil.
Palavras-chave:
reportagem, livro-reportagem, relatos de viagens quinhentistas,
História da Comunicação no Brasil, colonização
brasileira.
A forma de olhar os que estão perante nós, como
a nós próprios, varia segundo os grupos sócio-culturais
e os objectivos por eles prosseguidos. Navegadores, mercadores,
guerreiros, padres e missionários, cavaleiros-mercadores,
administradores, capitães, colonos ("casados estantes")
e lançados, são levados por motivações
que se chocam ou se completam (...) (Godinho 1994:44).
1.
Caminha, Pero Lopes e Gândavo
As primeiras notícias sobre o Brasil em língua
portuguesa, descobertas até este momento, são:
a Carta, de Pero Vaz de Caminha (1500), o Diário da Navegação,
de Pero Lopes de Sousa (1530-1532) e o Tratado da Província
do Brasil, de Pero de Magalhães de Gândavo (c.1570).
Inseridos nos primórdios da Literatura Brasileira como
textos de informação, estes escritos contêm
as primeiras impressões do descobrimento e do início
do período colonial brasileiro:
"Enquanto
informação não pertencem à categoria
do literário, mas à pura crónica histórica
e, por isso, há quem omita por escrúpulo estético
(...). No entanto, a pré-história das nossas letras
interessa como relfexo da visão do mundo e da linguagem
que nos legaram os primeiros observadores do país. É
graças a essas tomadas diretas da paisagem, do índio
e dos grupos sociais nascentes, que captamos as condições
primitivas de uma cultura que só mais tarde poderia contar
com o fenômeno da palavra-arte" (sublinhado meu,
Bosi 1993: 15).
Estes
primeiros observadores do país produziram matérias
noticiosas que foram, ainda no século XVI, alvo de "cuidadosa
investigação policial ou procura jornalística",
conforme observa Banha de Andrade (1972:227).
É verdade que os textos produzidos por Caminha, por Pero
Lopes e por Magalhães de Gândavo, se aproximam
em forma ou conteúdo do conceito atual de reportagem,
mas, também é verdade que não foram elaborados
para estampar as páginas da imprensa, pois, naquela altura,
o jornalismo em lusa-língua ainda engatinhava manuscritos.
(1)
Daí
que pode parecer absurda a tentatia de ler autores/viajantes
do século XVI com lentes jornalísticas, mas por
outro lado, tem-se a hipótese de fazer com que, vistos
por um outro prisma, estes textos possam ser úteis para
compreender o engendramento entre História, Literatura
e Filosofia, três áreas que se confundem nas narrativas
dos Descobrimentos. É também na confluência,
na intersemiose, destas áreas que se fundamenta o jornalismo
enquanto gênero literário, que desemboca nos meios
de comunicação em forma de reportagens, documentários,
grandes reportagens ou livros-reportagens.
E
quando se usa aqui o termo reportagem para designar os primeiros
relatos do Brasil, é porque se encontra (além
das "parecenças" quanto ao processo criativo)
apoio na etimologia da palavra.(2) Tanto a Carta como
o Diário e o Tratado se adaptam ao conceito de relação
(3) e ao mesmo tempo exercem a função
de um relato. (4) O objetivo da produção
destes textos é a elaboração de uma reportagem,
no sentido latino de reportare, porque são textos que
funcionam como uma resposta, que trazem uma notícia das
ações percepcionadas. Na imprensa periódica
atual, "é da natureza da reportagem revelar a origem
e o desenrolar da questão que ela retrata. Assim, de
alguma forma, a reportagem responde, ou busca responder - em
tese - temas de interesse social" (Guirado 1993:11-12).
Sob
o ponto de vista histórico, literário, antropológico,
enfim cultural, estes três textos marcam etapas fundamentais
tanto para a formação do povo brasileiro, como
para a formação da imagem européia sobre
esta nova terra dos papagaios. São três viagens,
distantes entre si, divergentes na forma de apresentação
textual (uma carta, um diário e um tratado), mas com
um ponto em comum: a descrição do Brasil, nos
primórdios de sua história. Três formas
de encontro com o outro, três maneiras de traduzir a realidade
e de registrar o olhar, que marcam as três primeiras fases
do confronto entre portugueses e ameríndios.
1ª
fase) Carta de Caminha: o deslumbramento, fase inaugural da
alteridade (o descobrimento da terra, vista sobretudo a partir
do mar);
"(...)
pelo sertão nos pareceu do mar muito grande, porque,
a estender olhos, não podíamos ver senão
a terra e arvoredos, que nos parecia mui longa terra.".
(5)
2º
fase) Diário de Pero Lopes: o reconhecimento e defesa
da terra (conflitos por terra e por mar);
"Estando
assi com a nao tomada chegou o capitão Irmão com
os outros navios, logo abalroei com a nao e entrei dentro. E
o capitão irmão abalroou com o seu navio e os
mais franceses se passaram ao navio. A nao vinha carregada de
brasil, trazia muita artelharia e outra muita munição
de guerra. Por lhes faltar pólvora se deram. Na nao não
demos mais que üa bombardada com um pedreiro ao lume d'água.
Com a artelharia meúda lhe ferimos 6 homens. Na caravela
me não mataram nem feriram nenhum homem. De que dei muitas
graças ao senhor deus" (2/02/1531 Ms.6r). (6)
3º
fase) Tratado e História de Gândavo: a posse, ocupação
e nominação (da terra, na terra).
"(...)
são de cor baça, e cabello corredio; tem o rosto
amassado, e algumas feições delle á maneira
de Chins. Pela maior parte sam bem dispostos, rijos e de bôa
estatura; gente mui esforçada, e que estima pouco morrer,
temeraria na guerra, e de muito pouco consideraçam (...).
Vivem todos mui descançados sem terem outros pensamentos
senam comer, beber, e matar gente, e por isso engordam muito,
mas com qualquer desgosto pelo conseguinte tornam a emmagrecer,
e muitas vezes pode delles tanto a imaginaçam que se
algum deseja morrer, ou alguem lhe mete em cabeça que
ha de morrer tal dia ou tal noite nam passa daquelle termo que
nam morra" (Gândavo,1980:122).
2.
A viagem da construção do texto
Tanto para o jornalista como para o relator-viajante do século
XVI importa, antes de tudo, descobrir...
"As
chaves do descobrir são, por conseguinte: saber onde
se pretende chegar; estabelecer marcos na via susceptível
de nos conduzir ao destino; daí, conseguir traçar
a rota que nos conduzirá ao porto de largada; e, finalmente,
saber regressar ao mesmo destino são e salvo. O regresso
é evidentemente a chave mestra" (Godinho 1994:27).
Na
prática do jornalismo, em geral, o repórter recebe
uma pauta (planejamento investigativo) que contém, os
questionamentos básicos para a feitura da matéria
jornalística (seguindo a ideologia da empresa de comunicação
a qual pertence), sai a campo para observar e investigar, anota
dados, elabora o texto e o encaminha para publicação.
Genericamente,
as etapas características da elaboração
de uma reportagem são:
1)
pauta (metas a alcançar);
2)
observação e coleta de dados (anotações);
3)
organização e análise das informações
colhidas para a preparação do texto;
4)
elaboração do texto;
5)
publicação do texto-reportagem em veículo
da imprensa periódica.
Não é certo afirmar que as narrativas elaboradas
durante as viagens de descobertas tenham sido pautadas. Mas
é seguro aventar a hipótese de que as viagens
eram, de algum modo, direcionadas por pautas régias,
ou melhor, obedeciam a um tipo de raciocínio do poder,
com a meta de descobrir "cousas" de interesse imperial
(como se verá no caso do Diário).
Com
base na Carta de Afonso de Albuquerque, (7) suspeita-se
que muitos outros narradores das viagens ultramarinas, deste
período, tenham recebido uma orientação
sobre o tipo de coisas que deveriam ser por eles retratadas.
Mas,
o "faro jornalístico" é indispensável
a qualquer relator/viajante. Também na época dos
Descobrimentos era necessário decidir, diante das novidades,
quais eram merecedoras de adentrar o relato, de traduzir aquela
nova realidade. Mas a realidade, ao ser traduzida, sempre se
transforma, como garante Foucault:
"(...)
por mais que se tente dizer o que se vê, o que se vê
jamais reside no que se diz; por mais que se tente ver por imagens,
por metáforas, comparações, o que se diz,
o lugar em que estas resplandecem não é aquele
que os olhos projectam, mas sim aquele que as sequências
sintácticas definem" (1968:25).
Caminha
era um homem das letras, um humanista, escrivão. Pero
Lopes de Sousa era navegador e Pero de Magalhães de Gândavo
era professor de latim e gramático. Como a maneira de
olhar e de registrar o olhar está condicionada à
sensibilidade e à capacidade de traduzir, cada um, ao
seu modo, reportou os fenômenos do novo mundo.
3.
O alumbramento de Caminha
Imaginando estar na Ilha de Vera Cruz, Pero Vaz de Caminha redige,
no dia 1º de Maio de 1500, a primeira notícia sobre
a terra brasilis. António Baião (1940:63), que
estuda a Carta no âmbito historiográfico, afirma
que "nenhum país teve até agora um historiador
no próprio dia do seu descobrimento".
Tomando emprestadas as palavras do historiador José Manuel
Garcia, "o repórter é o sujeito que presencia
as 'novas novidades' transmitindo, nas suas palavras, uma visualização
precisa (dentro do possível), directa e viva, dos acontecimentos
no qual participa" (1983:113).
Já
ao historiador não se pode aplicar semelhante definição,
pois o indivíduo que registra a história raramente
se encontra defrontado com o agon circunscrito pela realidade
palpável. O historiador liga-se aos acontecimentos a
posteriori, enquanto o repórter, em geral, acompanha,
direta ou indiretamente, o desenrolar dos fatos.
Daí
que seja razoável dizer que o Brasil teve um repórter
no dia do seu descobrimento oficial e não um historiador.
Envolvido pela magia da novidade física e sensorial daquela
paragem, onde a frota passara uma semana, Caminha deixa-se contaminar
pelo prazer da descoberta. Defende a veracidade de sua narrativa
quando diz, logo de início: "creia que por afremosentar
nem afear haja aqui de pôr mais que aquilo que vi e me
pareceu" (op. cit.:165).
Por
mais que Caminha se tenha esforçado no sentido de alcançar
a verdade, ele tem diante de si uma bela paisagem, "de
muito bons ares"; com lindas mulheres, que poderiam encarnar
o mito das amazonas "com cabelos muito pretos, compridos,
pelas espáduas; e suas vergonhas tão altas";
numa terra onde os homens parecem viver em paz e não
dependem de grandes sacrifícios físicos e morais
para obter conforto e alimentação, pois "eles
não lavram e não criam"; donde se supõe
terem uma vida longa e saudável, assim "andam tais
e tão rijos e tão nédios".
Como
é possível não distorcer, em algum ponto,
a imagem paradisíaca implícita neste contexto?
O repórter inaugural elabora um texto instigante, onde
há mais espaço para as hipóteses que para
as crenças. Por exemplo, sugere que poderá haver
ouro e prata naquela terra, mas não afirma que os metais
preciosos realmente possam ali existir:
"(...)
um deles, pôs olho no colar do capitão e começou
a acenar com a mão para a terra e depois para o colar,
como que nos dizia que havia em terra ouro. E também
viu um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a
terra e então para o castiçal, como que havia
também prata" (op. cit.:168)
Não afirma que os índios tivessem um chefe, mas
admira-se por constatar que havia "um que falava muito
aos outros que se afastassem, mas não já que me
a mim parecesse que lhe tinham acatamento nem medo".
E supõe que os índios também não
percebiam a autoridade de Cabral "vieram alguns deles a
ele, não por o conhecerem como senhor, cá me parece
que não entendem nem tomavam disso conhecimento",
como também intui que os selvagens não relutariam
em adotar a religião cristã:
"Parece-me
gente de tal inocência que, se os homens entendessem,
e eles a nós, que seriam logo cristãos, porque
eles não têm nem entendem nenhuma crença,
segundo parece" (op.cit.:180).
Como
um hábil repórter diante do inesperado, Caminha
cumpre seu papel de declarar, sem muitos rodeios, o resultado
de sua percepção (segundo o que viu e o que lhe
pareceu) sobre aquele acontecimento inusitado. Um furo de reportagem,
se fosse possível usar a linguagem jornalística
atual, pois muitos documentos comprovam que a armada dirigia-se
à Índia, onde Cabral iria negociar o monopólio
das especiarias com o Samorim de Calecute.
4.
O confronto com o outro: a "pauta" do Diário
Ao contrário de Caminha, Pero Lopes é um homem
que domina mais o leme que a língua. Embarcado ao lado
de seu famoso irmão Martim Afonso de Sousa, sua observação,
de modo geral, é mais direcionada para os assuntos da
navegação (talvez para que o seu Diário
pudesse ser de alguma utilidade para as próximas viagens
portuguesas). Preocupa-se, sobretudo, o autor-capitão
em cumprir as metas da expedição. Neste caso,
as exigências de D. João III (Freitas, 1924) direcionam
a viagem e a escritura:
- à
exploração e reconhecimento do litoral;
- à
expulsão dos franceses (desde 1501 no Brasil) estabelecidos
na feitoria de Pernambuco, que controlavam o comércio
do pau-brasil;
- à
tomada de posse do ouro e da prata (exploração
do Rio da Prata);
- à
criação das bases para a efetivação
da colônia.
De maneira que, o texto - retirados os excessos da linguagem
de marinharia - resulta numa espécie de reportagem pré-comprometida
quanto ao enfoque de acesso à realidade. Como na lista
de D. João III não se encontra qualquer indício
de interesse pelo modus vivendi do índio brasileiro,
estes trechos brotam do texto, às vezes desconectados
no tempo e no espaço, e acabam por constituir uma leitura
fragmentada da realidade.
Ao
longo do texto o destaque é para o combate. O combate
com o mar (o pânico causado pelas tormentas, o fantasma
do naufrágio), o combate com os corsários franceses,
o reconhecimento do litoral e o patrulhamento incansável
da costa brasileira pelos irmãos expedicionários,
ocupa grande parte dos fólios. A caminho do Brasil, nas
ilhas de Cabo Verde, colocam em prática as ordens do
rei:
"Aqui
achámos üa nao de 200 tonéis e üa chalupa
de castelhanos e em chegando nos disseram como iam ao rio de
Maranhão e o capitão Irmão lhe mandou requerer
que eles não fossem ao dito rio por quanto era d'el Rei
Nosso Senhor e dentro da sua demarcação"
(28/12/1530, Ms. 3v).
Este
e outros seguimentos podem ser percebidos como trechos de reportagem,
da narração in locu. Próximo ao cabo de
Sant'Agostinho lutam contra os corsários franceses.A
seguir Pero Lopes assiste a uma batalha entre duas tribos. Aparecem
neste documento-reportagem os primeiros registros sobre cenas
de canibalismo na Bahia de Todos os Santos:
"E
pelejaram desd'o meo dia até o sol posto, as 50 almadias
da banda de que estávamos surtos foram vencedores. E
trouxeram muitos dos outros captivos e os matavam com grandes
cerimónias presos percordas. E dipois de mortos os assavam
e comiam, não têm nenhum modo de física.
Como se acham mal não comem e põem-se ao fumo
e assi polo conseguinte os que são feridos" (13/3/1531,
Ms. 8r).
Para
além da observação de que os índios
"não têm nenhum modo de física",
que parece significar a ausência de comportamento natural,
o texto prossegue, abordando outro tema, sem qualquer julgamento
perceptivo sobre o ritual antropofágico. (8)
Pero Lopes não explora o pormenor, não faz análise
detalhada deste ou de outros fatos.
O
autor do Diário desconhecia a diversidade das línguas
indígenas do Brasil:
"A
fala sua não entendíamos nem era como a do Brasil,
falavam do papo como mouros" (25/11/1531, Ms. 17r). De
maneira geral, na literatura de viagens quinhentistas ibéricas,
os autóctones são considerados inferiores. Os
índios, aos olhos dos brancos, têm uma natureza
submissa, praticam o canibalismo, sacrificam seres humanos,
ignoram qualquer forma de religiosidade e falam uma língua
ininteligível (Todorov, 1990).
Mas,
Pero Lopes não admite textualmente o choque causado pelos
costumes "bárbaros" das tribos encontradas.
Como diz Darcy Ribeiro,
"Os
recém-chegados eram gente prática, experimentada,
sofrida, ciente de suas culpas oriundas do pecado de Adão,
pré-dispostos à virtude, com clara noção
dos horrores do pecado e da perdição eterna. Os
índios nada sabiam disso. Eram, a seu modo, inocentes,
confiantes, sem qualquer concepção vicária,
mas com claro sentimento de honra, glória e generosidade,
e capacitados, como gente alguma jamais o foi, para a convivência
solidária" (1995:45).
A
expedição de Martim Afonso de Sousa lança
os dados para a possibilidade de colonização.
São fundadas as vilas de São Vicente e de São
Paulo, os homens adentram o sertão. Pero Lopes anota
o acontecimento:
"Aqui
neste porto de São Vicente varámos üa nao
em terra; a todos nos pareceo tão bem esta terra que
o capitão Irmão deteminou de a povoar e deu a
todolos homens terras pera fazerem fazendas e fez üa vila
na ilha de São Vicente e outra nove légoas dentro
polo sartão a borda dum rio que se chama Piratininga
e repartio a gente nestas duas vilas, e fez nelas oficiaes e
pôs tudo em boa obra de justiça de que a gente
toda tomou muita consolação com verem povoar vilas,
e ter leis e sacrefícios, e celebrar matrimónios,
e viverem em comunicação das artes, e ser cada
um senhor do seu, e vestir as enjúrias particulares,
e ter todolos outros bens da vida sigura e conversável"
(22/12/1531, Ms.27r).
Estava
deflagrado o germe da colonização e do desenvolvimento
desordenado da sociedade e da formação do povo
brasileiro. Dúvidas várias pairam sobre o manuscrito
da Ajuda, mas ainda se pode colher neste Diário as notícias
daquele povo que vivia uma vida segura e confortável,
como afirma o próprio Pero Lopes de Sousa. Assim sendo,
extraídas as abundantes anotações de marinharia,
o Diário é fruto de registro in locu de uma aventura
exploratória e, mesmo tendo sido redigido por um repórter-navegador
poderia ser considerada a primeira grande reportagem sobre o
Brasil.
5.
A História na divulgação do Brasil
Ao contrário dos outros relatores-repórteres mencionados,
Gândavo é o primeiro a elaborar a experiência
vivida (através de uma leitura sistêmica da realidade
brasileira no último quartel do século XVI) com
o objetivo de publicá-la. Por esse motivo, e dentro dessa
perspectiva singular, é que os textos gandavianos devem
ser analisados como fazendo parte de um processo de criação
similar ao processo de elaboração de um texto
jornalístico e jamais pertencendo ao processo de criação
da História, pois conforme já foi mencionado,
o repórter presencia o fato, o historiador, junta os
dados sabidos, geralmente por outros, e monta a narrativa.
Um
bom texto não se concretiza no primeiro jacto de tinta
sobre o papel. É um processo de criação,
que como qualquer outro, caminha do caos para a ordem, segundo
a gênese semiótica abordada por Charles Sanders
Peirce. O criador, nesse caso, reescreve sua obra até
atingir um estado de satisfação.
A elaboração da grande reportagem de Gândavo
tem início provável em 1569. Os estudos de Pereira
Filho (1965:19) indicam que Gândavo viveu no Brasil entre
1565 e 1570. Provavelmente enquanto navegava longas distâncias
entre as capitanias hereditárias, como provedor da capitania
baiana, não deixava de tomar notas das cousas principais
da terra e dos índios.
Nesse
primeiro estágio ele escreveu o Tractado da Província
do Brasil no qual se contem a informação das cousas
que ha na terra, assi das captanias e fazendas dos moradores
que vivem pella costa, & doutras particullaridades que aqui
se côtam: como tam bê da condição
e bestiais custumes dos Jndios da terra, & e doutras estranhezas
de bichos q ha nestas partes. Já neste texto inicial,
o amigo do rei, ilustra seu discurso com cores e sabores capazes
de seduzir os que viviam miseravelmente em Portugal. No prólogo,
ele declara:
"Minha
tenção não foi outra (discreto & corioso
lector) se não denunçiar neste summario em breves
palavras a fertilidade e abundançia da terra do Brasil
pera q esta fama venha a noticia de muitas pessoas que nestes
Reinos vivê com pobreza, e não duuidê escolhella
pera seu Remedio porq a mesma terra he tam natural e fauorauel
aos estraños que a todos agazalha e conuida com Remedio
por pobres e desemparados que seião. (....)". (Tratado
1965:59).
Tempos
depois, já em Lisboa, ele fez correções
no texto e resumiu o título para Tractado da Terra do
Brasil, no qual se côntem a informação das
cousas que há nestas partes. Persistente no aprimoramento
de seu texto, Gândavo reescreve e amplia a obra dando-lhe
o nome de História da Província Santa Cruz, que
mais uma vez sofreu modificações antes de ser
publicada em 1576.
Portanto, tem-se quatro versões de um mesmo texto, embora
alguns estudiosos não considerem que eles façam
parte de uma mesma cadeia genética. O objetivo, que palpita
nos textos gandavianos é muito claro: a divulgação
do Brasil com a intenção de atrair o maior número
de pessoas para a colônia no além-mar. A cada etapa
os tópicos vão sendo detalhados, enriquecidos
com informações cada vez mais precisas.
Mesmo
que em breves trechos, evidenciando-se apenas o último
estágio do processo de criação, (9)
pode-se verificar a unidade narrativa do autor e seu propósito:
a descrição histórico-geográfica,
etnográfica e etnológica, com vistas a divulgar
em Portugal as "encelências" do Brasil. Veja-se,
a seguir, alguns fragmentos do texto.
Após
explicar que no Brasil não há trigo como em Portugal,
descreve o costume de comer, em lugar do pão, a farinha
de mandioca. A descrição pormenorizada sobre a
mandioca aparece no Capítulo V, que trata "Das plantas,
mantimentos e fruitas que ha nesta provincia".
"Primeiramente
tratarei da planta e raiz de que os moradores fazem seus mantimentos
que la comem em logar de pão. A raiz se chama mandioca,
e a planta de que se gera he de altura de hum homem pouco mais
ou menos. Esta planta nam he muito grossa, e tem muitos nós:
quando a querem plantar em alguma roça cortão-na
e fazem-na em pedaços, os quaes metem debaixo da terra,
depois de cultivada, como estacas, e dahi tornaõ arrebentar
outras plantas de novo: e cada estaca destas cria tres ou quatro
raizes e dahi pera cima (segundo a virtude da terra em que se
planta) as quaes põem nove ou dez meses em se criar:
salvo em Sam Vicente que põem tres annos por causa da
terra ser mais fria" (História 1980:95)
O
mesmo irá ocorrer com a detalhada explicação
sobre as frutas da terra. Veja-se o caso do caju:
"Ha
outra fruita que nasce pelo mato em humas arvores tamanhas como
pereiras, ou macieiras: a qual he de feição de
peros repinaldos, e muito amarella. A esta fruita chamão
cajús: tem muito sumo, e come-se pela calma para refrescar,
porque he ella de sua natureza muito fria, e de maravilha faz
mal, ainda que se desmandem nella. Na ponta de cada pomo destes
cria hum caroço tamanho como castanha, da feição
de fava: o qual nasce primeiro, e vem diante da mesma fruita
como flôr; a casca delle he muito amargosa em extremo,
e o meolo assado he muito quente de sua propriedade e mais gostoso
que a amendoa" (História 1980:98).
Entre
os animais dos trópicos o que mais chama a atenção
de Gândavo é o tatu. A observação
detalhada desse bicho emblemático do Brasil, está
no Capítulo VI da História, que fala Dos animaes
e Bichos Venenosos que ha nesta provincia:
"Outros
ha tambem nestas partes muito pera notar, e mais fora da commum
semelhança dos outros animaes, (a meu juizo) que quantos
até agora se tem visto. Chamam-lhe Tatús, e são
quasi tamanhos como Leitões: tem um casco como de Cágado,
o qual he repartido em muitas juntas ou lamninas, e proporcionadas
de maneira, que parece totalmente um cavalo armado. Tem um rabo
comprido todo coberto do mesmo casco: o focinho he como de leitam,
ainda que mais delgado algum tanto, e nam bota mais fóra
do casco que a cabeça. Tem as pernas baixas, e crião-se
em covas como coelhos. A carne destes animaes he a melhor, e
mais estimada que ha nesta terra, e tem o sabor quasi como de
galinha" (História, 1980:104).
Ao
longo do texto, várias interpretações sobre
a vida e os costumes dos índios aparecem esparsas. Entretanto,
ao ritual antropofágico Gândavo dedica um longo
e minucioso capítulo: Da morte que dão aos cativos
e da crueldade que usam com elles. Era impossível para
Gândavo, naquela altura, saber que:
"A
antropofagia era também uma expressão do atraso
relativo dos povos Tupi. Comiam seus prisioneiros de guerra
porque, com a rudimentaridade de seu sistema produtivo, um cativo
rendia pouco mais do que consumia, não existindo, portanto,
incentivos para integrá-lo à comunidade como escravo"
(Ribeiro 1995:35).
Dentro de sua visão possível, de acordo com seu
background, Gândavo conseguiu publicar, em minúcias,
as primeiras imagens do ritual antropofágico que tanto
assombrava os europeus. Seu relato continua despertando interesse
e acaba de ser relançado, com texto modernizado e notas
de Sheila Moura Hue e Ronaldo Mennegaz. No capítulo dedicado
à antropofagia a observação dos editores
é clara: "(...) Gândavo descreve as etapas
do canibalismo tupi de forma bastante semelhante à de
seus contemporâneos, mas faz observaçõs
fruto de experiências próprias (...)" (Gândavo,
2004: 156). Registro nem sempre fiel ao acontecimento, pois
depende da interpretação do Gândavo repórter.
Para ele, uma terra "sem Fé, nem Lei, nem Rei".
Clichê reverberado até os dias de hoje, sem que
lhe seja dado o crédito de autoria.
"A
lingoa de que usam, toda pela costa, he huma: ainda que em certo
vocábulos differe n'algumas partes; (...) carece de três
letras, convem a saber, nam têm F, nem L, nem R, cousa
digna despanto porque assi nam têm Fé, nem Lei,
nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente sem terem alem
disto conta, nem peso, nem medido" (História, 1980:123-124).
De qualquer modo, a História da Província Santa
Cruz ultrapassa as raias de um relato de viagem, pois oferece
um amplo quadro dos primórdios da colonização.
O livro, como relato de experiência, contem defeitos e
qualidades pertinentes ao jornalismo literário, podendo
ser considerado o primeiro livro-reportagem sobre o Brasil.
Conclusão
Os
textos de Gândavo colaboram para a divulgação
do Brasil desde 1576, enquanto a Carta e o Diário esperaram
três séculos pela publicação. Contudo,
os textos aqui apresentados merecem pertencer a um estilo de
reportagens de viajantes quinhentistas, pois refletem a viagem
física propriamente dita (deslocamento geográfico;
a viagem representada na escritura), a viagem particular de
cada autor-repórter (amparado pelo seu quadro de referências
mentais, sejam elas advindas do imaginário mitológico
literário ou através de informações
adquiridas) e a viagem contada aos que ficaram em terra, através
do registro do vivido. Processo de elaboração
de texto pertinente a qualquer repórter designado a realizar
coberturas como correspondente internacional.
Testemunhas
verdadeiras da formação do país e do povo
brasileiro, Caminha, Pero Lopes e Gândavo, ao traduzirem
a realidade que brotava do aparente paraíso, podem ser
considerados como os primeiros repórteres do Brasil.
Fontes
e bibliografia
1.
Fontes manuscritas
GÂNDAVO,
Pero Magalhães (1576) Historia da Provincia de Sãcta
Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil [B.N.L. 365].
______________
(1579) Tractado da Terra do Brasil, no qual se cõtem
a informação das cousas que ha nestas partes [B.N.L.
552].
SOUSA,
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2.
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3.
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4.
Notas
(1)
Aliada à aventura da expansão marítima,
a invenção da arte de imprimir, engendendrada
por Gutenberg (na segunda metade do século XV), faz com
que as informações circulem cada vez mais rapidamente:
"(...) as notícias dos descobrimentos e as viagens
que ampliavam as dimensões de um mundo ainda reduzido
para além de cujas fronteiras apenas existia mistério,
a inter-relação cada vez maior dos territórios
europeus, etc., criaram uma avidez de notícias cuja resposta
só podia ser dada por um novo sistema que permitisse
reproduzir em grande número" (Quintero 1996: 43).
Contudo,
desde a Alta Idade Média já existiam as folhas
noticiosas manuscritas. Em Portugal, pode-se supor que o surgimento
dos primeiros fenômenos jornalísticos possam estar
enredados à experiência dos Descobrimentos, através
da necessidade do registro dos relatos de além-mar. As
técnicas de impressão chegam à Lisboa no
final do século XV, mas as notícias ligadas ao
Descobrimento do Brasil já circulavam por toda a Europa
desde 1501.
As
primeiras folhas manuscritas (século XVI), assim como
as Relações (século XVII), também
referem-se à experiências marítimas. Porém,
o jornalismo português só seria desenvolvido a
partir das "Gazetas da Restauração"
e o primeiro periódico em lusa-língua data de
1663, redigido em Lisboa, por António Sousa de Macedo,
com o nome de Mercúrio Português.
(2)
Reportagem deriva do francês reportage. O verbo reportar
tem sua origem no latim reportare "regressar com, tornar
a trazer; trazer uma notícia, uma resposta". O substantivo
repórter vem do inglês reporter, que data, no seu
sentido atual, dos princípios do séc. XIX; provém
do verbo to report, "narrar". Esta palavra talvez
tivesse entrado em Portugal por via francesa, em 1890 (Machado
1977:79).
(3)
De relatione, que deriva do latim como "acto de levar,
conduzir de novo (...); testemunho de reconhecimento; relatório
a magistrado do senado; apresentção à ordem
do dia; relato, narração; epanáfora"
(Machado 1977: 69).
(4)
Deriva do latim relatu para designar "narração
oficial, posta em deliberação; relação,
narrativa" (Machado 1977:69).
(5)
Utiliza-se a transcrição de José Manuel
Garcia (1983) por acreditar que seja a mais fidedigna.
(6) Citação da Edição Crítica
publicada por Maria Cecília GUIRADO em "Relatos
do Descobrimento do Brasil: as primeiras reportagens",
Lisboa, Piaget, 2001. O fragmento pode ser localizado no Diário
através da data (2/02/1531), ou ainda no referido fólio
(6r) do Ms., que encontra-se na Biblioteca da Ajuda.
(7)
Conforme demonstra Magalhães Godinho (1994) ao analisar
a Carta de Afonso de. Albuquerque, havia uma receita sobre o
método de registrar o descobrimento de novas terras.
O caso que este autor apresenta é relativo ao descobrimento
de Madagáscar (vê-se aqui o termo descobrimento
enquanto exploração metódica). A suposta
pauta do "descobrimento" coloca doze questões
essenciais que deverão ser abordadas pelo relator-repórter.
Entre elas destacam-se os conhecimentos geográficos,
comerciais, marítimos, religiosos e antropológicos
de Madagascar.
(8)
As interpretações quinhentistas sobre o canibalismo
dos índios brasileiros seriam exploradas mais tarde nas
publicações de André Thevet (Singularidades
da França Antártica, 1557), de Pero de Magalhães
de Gândavo (História da Província Santa
Cruz, 1576), e de Jean de Léry (Viagem à Terra
do Brasil, 1578).
(9)
Utiliza-se neste estudo a versão editada por Afrânio
Peixoto para o Annuario do Brasil, 1924, reeditada em 1980,
pela Itatiaia/Edusp.
*Maria
Cecília Guirado é jornalista (UEL), mestre em
Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e Doutora
em Estudos Portugueses/Comunicação (UNL - Universidade
Nova de Lisboa). Atualmente é professora na Graduação
e na Pós-Graduação em Comunicação
da Universidade de Marília-SP, onde coordena o Núcleo
de História Crítica da Comunicação
no Brasil. Desde 1999 é colaboradora do Centro de História
de Além-Mar (UNL-Portugal).
Texto
apresentado no GT História do Jornalismo do II Encontro
Nacional da Rede Alfredo de Carvalho, realizado em Florianópolis
em abril de 2004.
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