Monografias
Considerações
sobre o pensamento
jornalístico de Frei Caneca
Por
Enio Moraes Júnior e Júlio Antônio Moreira
Introdução
Formular
considerações sobre o pensamento comunicacional
no mundo ocidental é, forçosamente, recorrer à
Grécia Antiga e aos estudos sobre a Retórica e
a Oratória. No entanto, é a partir da Era Moderna
que os estudos sobre a Comunicação Social passam
a despertar maior interesse. Dois fatores colaboram neste sentido:
a formação dos Estados nacionais e o desenvolvimento
do modo de produção capitalista, caracterizado
mais fortemente a partir da Revolução Francesa
de 1789.
Em
1690 Tobias Peucer, na Alemanha, constitui um marco fundamental
nos estudos da Comunicação e, mais precisamente,
do Jornalismo. Peucer defende, na Universidade de Lepzig, a
primeira tese de doutorado na área. A Alemanha é,
aliás, considerada o berço do ensino do Jornalismo
e passa a ter, já no século XIX, forte influência
sobre a criação dos cursos da área nos
Estados Unidos, que começam a aparecer na primeira década
do século XX.
Esta
influência européia e americana vai marcar também
as escolas e, conseqüentemente, as concepções
comunicacionais latino-americana e brasileira. O pensamento
comunicacional brasileiro constitui, pois, uma síntese
de toda uma postura forjada sobre a comunicação
no mundo ocidental desde a Antiguidade.
No
Brasil, referenciado na Antiguidade Clássica e nas idéias
iluministas da Europa do século XVIII, Frei Joaquim do
Amor Divino, o Frei Caneca, desenvolve, no início do
século XIX, no Recife, uma linha de reflexão e
atuação comunicacional e jornalística que
pode catapultá-lo à categoria de precursor da
teoria da comunicação brasileira.
Este
trabalho pretende, desta forma, levar-nos a ultrapassar a visão
clássica da história sobre o Frei e colocar luzes
sobre seu papel de comunicador e jornalista, destacando o poder
e os conhecimentos comunicacionais deste pernambucano autor
de uma vigorosa obra política, jornalística e
didática produzida em Recife entre 1803 e 1824.
Neste
sentido, tomamos como principal elemento de análise o
jornal Typhis Pernambucano, editado por Caneca entre 1823 e
1824 e que constitui elemento emblemático do seu pensamento
jornalístico.
Frei
Caneca e o contexto histórico de sua atuação
Frei
Joaquim do Amor Divino Rabelo, o Frei Caneca, nasceu Joaquim
da Silva Rabelo em 1779, no bairro Fora-de-Portas, na periferia
do Recife, então importante entreposto comercial do Império.
O bairro, modesto, era uma região de artesãos,
onde morava e trabalhava seu pai, que era tanoeiro. Tinha uma
população marcadamente portuguesa e costumava,
o bairro, receber as tripulações lusitanas.
Seus
pais, Domingos da Silva Rabelo (português, tanoeiro) e
sua mãe, Francisca Alexandrina de Siqueira, era filha
e neta de lisboetas, mas o bisavô havia casado com uma
mestiça brasileira chamada Maria, e graças a ela
Caneca entronca-se no passado da província. "Dessa
Maria, no futuro, o próprio Frei escreveria que 'havia
de ser alguma tapuia, petiguari, tupinambá' ou, talvez,
de sangue africano. Em todo caso, teria sido do avô, o
lisboeta Pedro José de Siqueira (...) que o frei herdara
cabelos cor-de-fogo" (Rebeldes Brasileiros, 2002: 388).
Caneca
tinha, ao que se sabe, um irmão, Januário, que
na vida adulta foi cirurgião formado pela Escola do Recife,
ajudante do exército e vacinador no Rio Grande de Norte.
Os
estudos religiosos do Frei foram facilitados pela ascendência
reinól e pela presença de um tio materno, Antônio
de Natividade Dantas, na Ordem Carmelita. Assim, vai para o
Convento do Carmo, vendo não só uma forma de estudar
como também de ascender socialmente. Em 1796 toma o hábito;
em 1797, professa e em 1801 ordena-se, com dispensa especial,
aos 22 anos, com o nome da profissão paterna. Caneca
era estudioso, inteligente e de "apetite enciclopédico",
dava atenção, especialmente, para a Retórica
e a Filosofia. No início de sua vida religiosa, leciona
retórica e geometria.
Nesta
primeira fase de sua vida, até 1817, produz textos de
conteúdo didático em que dá mostras da
erudição que iria caracterizá-lo. Datam
deste tempo um Tratado de Eloqüência: extrahido dos
melhores escritos e as Táboas Symópticas do Sistema
Rhetórico de Fábio Quintiliano.
Pelo
que se sabe, foi apaixonado por uma mulher - a quem chamava
Marília - e teve cinco filhos: Carlota, Joana, Ana, Fortunato
e Joaquim Teodoro. Chama atenção dos seus biógrafos
o fato de um homem de circulação tão restrita
- apenas saiu de Pernambuco (e de Alagoas, na época comarca
pernambucana), para ir à Bahia, onde esteve preso por
quatro anos. Além disso, é apontado como carismático
e popular. Uma prova é que, depois de decretada a sentença
de sua morte, três carrascos negaram-se a enforcá-lo.
Foi, então, fuzilado pelos soldados imperiais.
Independência
e liberdade
Entender
a obra e a atuação política de Frei Caneca
significa, também, entender o contexto histórico
e os aspectos econômicos e políticos de sua época.
A atuação de Caneca ocorre num período
de intensa agitação, no Brasil, em função
de tornar-se independente de Portugal e, em seguida à
Independência, de formular seus próprios preceitos
e leis e criar um país legitimamente independente.
O
momento final da atuação e da produção
de Caneca é a Confederação do Equador,
que eclode em 1824. No entanto, este fato é antecedido
pela Revolução (ou Insurreição)
Pernambucana, de 1817. Nestes dois momentos, "os seus ensinamentos
e a sua ideologia estavam calcados num liberalismo chamado radical
por não transigir com um estado centralista, forte, que
se propõe a realizar a felicidade universal". (FERRAZ:
Revista Continente Documento, 2003: 09).
A
Revolução Pernambucana é produto da grave
crise econômica e, conseqüentemente, política,
que passa a perturbar alguns setores do Nordeste brasileiro
a partir de 1780. A base das discordâncias está
no surgimento e fortalecimento de um Nordeste - ao norte, urbano
- que consegue produzir uma economia mista, passando a não
produzir apenas açúcar (cana), mas também
algodão, graças á fertilidade de seu solo
e um outro Nordeste - ao sul, basicamente de engenhos - que,
sem um solo apropriado, continua insistindo na monocultura da
cana-de-açúcar.
O
quadro de privilégios agrava-se, justamente, porque a
produção algodoeira alcança alto valor
no comércio com a Inglaterra, fortalecida com a Revolução
Industrial e com uma indústria têxtil em expansão.
No entanto, talvez a principal razão do zelo emancipacionista
do norte esteja ligada ao fato de a exportação
do algodão para a Inglaterra usufruir as vantagens do
livre câmbio. Some-se a isso a existência, na região,
de fortes núcleos urbanos, como Recife, o que fazia com
que as idéias e as discussões de base iluminista
e revolucionária se proliferassem. Mas Ferraz observa
(Revista Continente Documento, 2003: 10): "Esta situação
foi agravada com a Revolução de 1817. O governador
Luís do Rego informava que deveria acudir as despesas
com tropas e hospitais militares para organizar a defesa da
província, e acrescenta-se a este fato a separação
da Comarca de Alagoas, como castigo pela rebeldia, diminuindo
as rendas da província aumentando as despesas".
Mas
a Insurreição fracassa e Caneca, que participara
abertamente do movimento como ideólogo e conselheiro
do exército republicano, é preso e exilado na
Bahia por quatro anos. Nesta fase ele dá aulas e produz
o Breve Compêndio da Gramática Portuguesa. Em 1821,
já em seu estado natal, participa do movimento da Independência
de Pernambuco.
Três
anos mais tarde, levada a cabo por um conflito entre elites,
ocorre a Confederação do Equador, na qual Caneca
também toma parte. Na verdade, o movimento é uma
tentativa de algumas províncias do Nordeste brasileiro
- Pernambuco, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte
- criar um país independente em 1824, logo em seguida
ao surgimento do Império, em 1822. Politicamente, a Confederação
associa-se aos anseios da pequena burguesia urbana que não
aceitava continuar subalterna ao poder político e econômico
legado, pelo imperador, apenas aos portugueses instalados no
Brasil.
A
convocação da Assembléia Constituinte,
no início do Império, em 1823, sua posterior dissolução
pelo imperador D. Pedro I - que queria seu poder pessoal acima
do poder Legislativo e Judiciário - e, em 1824, a outorga
de uma Constituição para o Brasil são o
estopim para a deflagração da tentativa da Confederação.
Preparado
o projeto da Carta a ser outorgada, este é enviado a
algumas câmaras municipais para consulta. Ao chegar à
Câmara dos Deputados do Recife, Frei Caneca coloca-se
contra a proposta e a critica no documento "Crítica
da Constituição Outorgada" por expressar
preceitos contrários ao liberalismo. A partir daí,
tem lugar mais uma atuação política de
Caneca com todos os seus matizes intelectuais e jornalísticos
e preparam-se as condições para forjar Confederação
do Equador, que finalmente é proclamada em 02 de julho
de 1824.
A
produção intelectual, política e jornalística
de Frei Caneca
A
história de vida de Frei Caneca é marcada por
uma forte atuação e produção política,
intelectual e jornalística. Intelectualmente, possui
forte influência do Iluminismo, especialmente o iluminismo
jacobino francês e revolucionário (Revolução
Francesa), e não apenas o iluminismo trazido e liberado
pelos portugueses no Brasil Imperial, de origem italiana e reformista.
Por conta do seu tino intelectual, é considerado por
seus biógrafos, "um homem de idéias, não
de ação".
A
ele são atribuídas, por alguns biógrafos,
a autoria (ou, pelo menos, co-autoria) do hino da Confederação
dos Alfaiates (que é abafada na Bahia), da Lei Orgânica
de 1817, das bases para o pacto social de 1824 e do projeto
de Constituição da Confederação
do Equador.
Caneca
foi um revolucionário nato. Sua opção pelos
ideais liberais vem como conseqüência da sua formação
intelectual, que tem sido destacada por historiadores. A postura
liberal, na verdade, é produto de uma formação
acumulada a partir de 1809, quando é nomeado secretário
do visitador da Ordem Carmelita Frei Carlos de São José
e Souza. Da sua formação intelectual e no furor
da sua atuação política emerge o orador
Frei Caneca que, segundo Morel (2000), utiliza as bases dos
seus estudos de retórica e aponta para uma esfera da
teoria da comunicação, fundada na "práxis"
da atuação política. Esta característica
vai ficar clara não só nos seus escritos, como
Dissertação, quanto nos seus pronunciamentos altamente
panfletários e doutrinários e no jornalismo de
mesmas características que vai produzir.
É
do seu envolvimento nos cenários que antecedem, sediam
e sucedem a Confederação do Equador que surge
grande parte da sua produção. Neste período,
Caneca participa das discussões públicas dos temas
políticos do país que ocorriam nas praças
e nos redutos políticos recifenses. Grande orador e discursista,
tinha um enorme poder de eloqüência e exercia, assim,
com seus discursos e argumentações, grande influência
sobre o povo local. São deste período as publicações:
1.
"Dissertação sobre o que se deve entender
por pátria do cidadão e deveres deste para com
a mesma pátria" (1822). Neste texto, de alto teor
iluminista, Caneca preocupa-se em "instruir o povo"
sobre "a possibilidade da união entre os portugueses
de ambos os hemisférios, sobre os auspícios da
monarquia constitucional" (Rebeldes Brasileiros, 2002:
393);
2.
"Cartas de Pítia a Damão" (1823). Publicadas
no Correio do Rio de Janeiro, as Cartas tinham como principal
objetivo realizar constitucionais, especialmente a partir da
instalação da Assembléia Constituinte em
maio de 1823;
3.
"O Caçador atirando à Arara Pernambucana"
(1823);
4.
Edita e escreve para o "Typhis Pernambucano" (1823/24);
5.
"Itinerário" (1824), texto em que narra os
momentos que se seguem à Confederação do
Equador, incluindo sua tentativa de fuga até o Ceará
e seus dias de prisão a partir do momento em que é
capturado.
Grande
parte de sua obra integra o texto "Obras Polypticas e Litterárias
de Frei Joaquim do Amor Divino Caneca", organizada por
Antônio Joaquim de Melo, publicada em sua primeira edição
no Recife, em 1875.
Jornalisticamente,
o jornal Typhis Pernambucano, publicado a partir de dezembro
de 1823, é seu espaço, por excelência, de
atuação. No entanto, já a partir de setembro
do mesmo ano merece destaque a publicação das
suas Cartas. Conforme os padrões da época, seu
jornalismo é extremamente opinativo.
Caneca
é apontado também como um grande discípulo
de Cipriano Barata, redator do jornal Sentinela da Liberdade
que, no início da segunda década do século
XIX defendia, em Pernambuco, os mesmos ideais apregoado pelo
Frei. Vianna observa (SODRÉ, 1983: 95):
"Preparando
o ambiente favorável à desobediência à
escolha imperial, desde 25 de dezembro de 1823, começou
a ser ali publicado, sob a direção de frei Joaquim
do Amor Divino Caneca, bem aproveitado discípulo de Barata,
o Typhis Pernambucano, que pode ser considerado legítimo
herdeiro dos métodos desabridos e violentos da Sentinela
da Liberdade na Guarita de Pernambuco".
O Jornalismo de Frei Caneca
Há,
no século XIX, um boom de tipografias instaladas no Brasil.
Apesar de várias tentativas de implantação,
as tipografias ficaram oficialmente proibidas até 1808,
quando o Império implantou a Imprensa Régia.
Com
a instalação das tipografias, surgem os jornalistas
de ofício, personagens políticas reconhecidas
e alçadas a grande relevância social. Os jornais
são pequenos, panfletários e doutrinários.
O jornalismo é, por excelência, opinativo. São
poucos jornais, com público muito restrito, publicados
por duas, no máximo três pessoas, e identificado
com um líder. Este líder tem projeção
social provavelmente não alcançada sem o jornal
e geralmente elevado a cargos públicos ou eclesiásticos.
Os
jornais da época tinham posições políticas
bem definidas e inimigos públicos declarados. Assim,
podemos considerar que a atuação dos jornais de
Pernambuco, nos levantes que sacodem a província no início
do século XIX é uma reação externada
por uma imprensa inicialmente panfletária, tendo Cipriano
Barata como seu grande expoente, e depois mais erudita e que
foi ganhando corpo e adeptos até chegar a movimentos
armados, como a Revolução de 1817 e a Confederação
do Equador.
Barata
exerce forte influência sobre o comportamento político
de Caneca, que na verdade, através do Typhis, dá
continuidade às idéias que ele propagava no Sentinela.
Fausto localiza esta sucessão (1987: 153):
"Após
a dissolução da Constituinte, (Barata) foi preso
e enviado para o Rio de Janeiro, onde ficaria detido até
1830. Como figura central às críticas do Império,
passou então a destacar-se Frei Joaquim do Amor Divino
- o Frei Caneca - que participara ativamente da insurreição
de 1817".
Além
do Sentinela, outros jornais também colaboravam para
ascender a cena das discussões políticas da época.
Entre eles, o Aurora Pernambucana, orientado pelo então
governador Luís do Rego. Defendendo abertamente os princípios
constitucionais e os interesses portugueses, surgiu em 1821
e conclamava os brasileiros a "abraçarem as novas
instituições que a augusta Assembléia Nacional
está formando em Lisboa" (SODRÉ, 1983: 50).
No
entanto, era José Fernandes Gama, proprietário
do Arara Pernambucana, o principal alvo do Typhis e a quem Caneca
atacava afirmando que "idéias velhas não
podem reger o mundo novo" (SODRÉ, 1983: 90).
O
Typhis Pernambucano
A
primeira edição do Typhis Pernambucano aparece
na cidade de Recife, de 25 de dezembro de 1823 e circula até
05 de agosto de 1824. Ao todo são publicadas 28 edições,
sendo 26 pela Tipografia Miranda & Cia e, as duas últimas,
pela Tipografia Nacional.
O
nome da publicação é uma referência
a Tífis, que na mitologia é o primeiro piloto
do navio Argos e profundo conhecedor da arte da navegação.
Certamente Caneca procurava expressar, já no nome da
publicação que começava a editar, o papel
que desejava para ela: o de um guia, de um destemido herói
enfrentando as constantes tormentas num mar agitado e traiçoeiro.
O
primeiro número do Typhis reflete a situação
criada para a província pernambucana pelo monarca e,
ao mesmo tempo, seu texto dá mostras da referência
aos desafios dos clássicos argonautas (SEGISMUNDO, 1962:
155):
"Quando
a nau da pátria se acha combatida por ventos embravecidos,
cada um deve prestar a diligência a seu alcance, e sacrificar-se
pelos seus concidadãos em perigo".
As
características editoriais mais marcantes do jornal são:
1.
Modelo Opinativo
O Typhis, a exemplo dos padrões da época, é
extremamente ligado a causas políticas e sociais e segue
um modelo extremamente opinativo. Frei Caneca abre o primeiro
número do jornal criticando abertamente os atos do imperador
(CANECA, 2001: 307):
"É
um direito natural e inalienável de qualquer cidadão,
seja qual for a forma de governo em que se vive, o exame e o
juízo dos fatos público, sem que sirva de égide
a alguém a graduação, a classe, a hierarquia
e a autoridade; e este direito é tanto mais sagrado quanto
a ação praticada toca os direitos primários
de um povo, de uma nação; e s. m. i. se acha tão
penetrado desta verdade, que no dia 13 fez baixar o seu segundo
decreto, em que declara que a qualificação de
perjura, que o primeiro impôs à Assembléia
Geral Constituinte e Legislativa, não deveria entender
da 'totalidade da representação nacional do generoso
povo brasileiro', sim da 'facção dominante do
Congresso'"
2.
Para além da opinião: as críticas pessoais
Assim
como nos outros jornais, em que seus proprietários e
redatores defendiam suas posições e faziam ataques
pessoais sem a menor cerimônia, o Typhis Pernambucano,
a exemplo da edição de número 08, de 1º
de abril de 1824 (CANECA, 2001: 405), adotava os mesmos padrões:
"Então
o exmo. José de Barros convocou um conselho militar para
deliberarem sobre este objeto; e, determinando que se levantassem
os oficiais que haviam tramado essa sedição, apareceram
unicamente seis e o sargento-mor de Portugal Antônio Francisco
de Holanda Cavalcanti, que pouco antes estava à paisana
á frente dos sediciosos ao lado do facinoroso Manuel
Clemente do Rego Cavalcante, redator da Pernambucana, do número
23 em diante".
Além
disso, Caneca, por várias vezes, publica artigos, cartas
e citações de seus oponentes para, em seguida,
fazer críticas ferozes, chegando a ponto de ridicularizá-los.
É o que ocorre, por exemplo, ao referir-se ao Marechal
Felilisberto Caldeira Brant-Ponts, no Typhis de número
09, de 11 de março de 1824 (CANECA, 2001: 385):
"Qual
será o pernambucano digno de nome que possa ler, sem
indignação, os atrevimentos, as insolências
deste impostor? Sempre foi atrevida e imprudente a ignorância
e a filáucia! O que é que tem feito Pernambuco,
depois da presidência do exmo. Carvalho, que seja um crime,
objeto de devassas, digno de castigo e de que se repitam as
cenas do 1817?"
3.
Ausência de manchetes: informação sem hierarquia
Mais
uma vez seguindo os padrões das publicações
da época, não há uma preocupação
em estabelecer uma hierarquia no jornal. As notícias
e opiniões são distribuídas no sistema
de paginação ladrilho. Segundo Mário Erbolato
(1981: 68), este era, por excelência, o sistema adotado
até finais do século XIX: "As notícias
tinha seqüência, uma atrás das outras, com
títulos que não iam além de uma coluna
e sem qualquer ilustração".
4.
Seções fixas: Brasil e Pernambuco
Com
a intenção de melhor situar o leitor no cenário
das discussões e dos acontecimentos que apresentava,
Caneca procura estabelecer, no jornal, duas seções
fixas:
Brasil:
espaço do jornal dedicado à análise e à
crítica de atos do imperador e de seus homens de confiança;
Pernambuco:
seção usada para defender os atos e as idéias
da Confederação do Equador e posições
da junta de governo.
5.
Citações
Caneca
costumava, em todas as edições do Typhis, abri-las
e fechá-las com as mesmas citações. Na
abertura, uma recorrência à sua erudição
e aos padrões clássicos ao citar um trecho do
canto V de Luís de Camões: Uma nuvem, que os ares
escurece, sobre nossas cabeças aparece".
No final de cada edição, a mesma sentença
"'Cautela, união, valor constante. Andar assim,
é bom andar'. Boa viagem". Mais que uma mera citação,
o uso da retórica para expressar sua posição
sobre a necessidade de luta e enfrentamento.
Considerações
sobre o Pensamento Jornalístico de Frei Caneca
No
cenário da intensa agitação política
do início do século XIX proliferam, no Brasil,
os panfletos e jornais de característica extremamente
opinativa. Se por um lado são muitas publicações
ligadas à causa política, normalmente sedimentadas
nos princípios liberais, por outro, são comuns
o empastelamento das tipografias e as perseguições
aos jornalistas. Como observa Bahia (1990: 56):
"A
população brasileira é, por essa época,
cerca de 4 milhões e 500 mil habitantes, sendo 2 milhões
e 500 mil livres, 1 milhão e 200 mil escravos e 800 mil
índios puros ou primitivos. A imprensa de 1821 a 1837
reflete bem a transformação por que passa o país.
Ela é agente da transformação e da mudança".
Ainda
assim, neste momento, os jornais ainda são feitos de
forma incipiente, contando com dois ou três homens, mas
é neste cenário que as tipografias começam
a ensaiar seus passos para transformarem-se em empresas a partir
da segunda metade do século. Mas é ainda num contexto
artesanal que se desenvolve toda a atuação política
de Caneca no Typhis, identificado com as mudanças revolucionárias.
É
a partir de sua obra e atuação política,
jornalística e didática, podemos apontar algumas
características que fazem o amálgama seu do pensamento
jornalístico:
1.
Teoria e Práxis
Frei
Caneca é um teórico que converte seus pensamentos
numa prática comunicativa. Segundo Morel (2000: 75),
a quem cabe o mérito de entender Caneca como produtor
de um conhecimento precursor na comunicação brasileira:
"Eleger
(do latim, eligiere) e ler (legere) são duas ações
de agrupara vontades e palavras. A expansão dessas prerrogativas
era uma das características dos direitos do cidadão
que, como se sabe, não eram universais nem no próspero
Brasil da escravidão nem nas monarquias européias
liberais ou absolutistas. Frei Caneca não pregava apenas,
também assumia ele mesmo, em sua prática pessoal,
a ampliação dessa cidadania. Argonauta enfrentando
o contexto bravio de um novo Império ainda marcado pelas
práticas do Antigo regime".
2. Classicismo
No
início de sua carreira na Igreja, Caneca cria o Curso
Público e Gratuito de Retórica e Poética,
Filosofia Racional e Poética e Moral e Geometria. Esta
estrutura - retórica, moral e geometria - desenhada no
início de sua vida acadêmica, vai ser o fio condutor
de toda sua prática comunicacional.
O
estilo e a atuação de Caneca faz-se num espaço
de ressurgimento, no Brasil, das ágoras gregas. A partir
de 1808, com a chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro,
a imprensa começava a funcionar no país. No entanto,
a censura vigente e o número limitado de leitores alfabetizados
colocam a produção impressa num segundo plano.
Neste
cenário, os auditórios e as praças, que
ocupam função singular na formação
da opinião pública, são peças-chave
na sedimentação da vida literária brasileira,
na criação de públicos receptivos e auditores.
Como observa Marques de Melo (2003: 291):
"Foi
justamente para formar agentes dessa comunicação
discursiva, praticada intensamente nos claustros religiosos,
nas academias literárias ou nas assembléias políticas,
que Frei Caneca produziu alguns estudos basilares, enfeixando
uma precoce teoria brasileira da comunicação".
3. Iluminismo, Enciclopedismo e Liberalismo
Os
preceitos liberais, típicos das tendências iluministas
e enciclopedistas que proliferaram na Europa do século
XVIII e inspiraram a Revolução Francesa (e, mais
tarde, na América, a Revolução Americana),
vão marcar o pensamento que sustenta todo o comportamento
e atuação política e jornalística
de Frei Caneca.
Seu
pensamento ganha as condições favoráveis
para transformar-se numa práxis no contexto histórico
e político de que o Pernambuco de sua época é
palco por excelência. É neste cenário que
Caneca, detentor de uma rica e diversificada cultura fundamentada
no Enciclopedismo e em outras correntes racionalistas, encontra
espaço para a aplicação de seus conhecimentos
de fortes cores éticas e morais.
A
preocupação com a formação da cidadania
e com os direitos humanos - um dos principais pilares liberais
- era tamanha que a partir da edição 24 do Typhis
Pernambucano Frei Caneca publica, em forma de comunicado, um
conjunto de trinta textos sob o título de Bases para
a Formação do Pacto Social redigidas por uma Sociedade
de Homens de Letras.
O
material, influenciado pelas doutrinas das Revoluções
Americana e Francesa, constitui, na verdade, a um compêndio
de condutas na qual defende os direitos humanos, a igualdade,
a segurança e a propriedade; a resistência à
opressão, o fim da escravidão, a soberania nacional
e o direito do povo de rever a Constituição.
4.
Liberdade de imprensa, retórica e opinião, jornalismo
comparado
Os
familiares de Frei Caneca destruíram muitos dos seus
escritos. Talvez para ficar com sua herança ou até
mesmo por temer as represálias do imperador que o condenou
à morte. Entretanto, dos escritos que restaram, a defesa
que Caneca apresentou em seu julgamento sumário pelo
crime de rebelião, é o texto em que os principais
elementos do seu pensamento jornalístico aparecem mais
claramente.
A
defesa pioneira da liberdade de imprensa, o uso da retórica
como expressão do jornalismo de opinião e a prática
também pioneira do jornalismo comparado presente na analogia
que faz entre o Typhis, o Regulador Brasileiro e o Conciliador
Nacional constituem, estes três elementos, marcos do pensamento
jornalístico de Caneca.
Liberdade
de Imprensa (CANECA, 2001: 629):
"Conquanto
parecesse ao réu que as doutrinas de seus impressos não
formam objeto do conhecimento desta comissão, por já
estar determinado o tribunal dos jurados, como privativo dos
abusos da liberdade de imprensa; contudo ignorando o réu
as ordens imperiais, de que está escudada a mesma comissão,
e que este reto juízo não ultrapassará
os termos que lhe foram prescritos por sua majestade o imperador,
não hesita de si nestes artigos, que passa a expender".
Retórica
como expressão do jornalismo opinativo (CANECA, 2001:
628):
"A
enormidade da acusação é tão grande
que de por si basta para aterrar o varão mais forte,
e o faria temer, se acaso se não lembrasse que eram seus
juizes varões brasileiros, cheios de retidão,
e que sabem dar descontos às fraquezas da humanidade,
imitando a piedade e beneficência do príncipe magnânimo,
que os revestiu de tão alta autoridade. Esta idéia
consoladora anima o réu, e lhe alivia os espíritos
abatidos, para alçar a trêmula voz e fazer chegar
ao conhecimento deste juízo os argumentos em que funda
sua defesa, e mostrar sua constante adesão e obediência
ao supremo imperante da nação brasileira".
Jornalismo
Comparado (CANECA, 2001: 629):
"Que
a soberania reside na nação, que a nação
é quem se constitui e por meio dos seus representantes
em Cortes - dois pontos cardeais em que rola toda a doutrina
do Typhis - são duas verdades confessadas por sua majestade
no decreto de 8 de junho de 1822, no manifesto de 6 de agosto
do mesmo ano aos povos e nações amigas, além
de outras ocasiões".
"Que
sua majestade, depois de ter chamado seus súditos para
serem felizes, não lhes pode dizer 'não quero
que o sejam mais' - disse o Regulador Brasileiro à face
do mesmo trono, sem a menor censura. É destes princípios,
pois que nasce o juízo feito sobre a dissolução
da Assembléia do Rio de Janeiro, expostos nos números
1, 2 e 3 do Typhis".
"O
réu escrevia em Pernambuco, onde por um bando do governo
de 14 de maio de 1823, se publicou o decreto de sua majestade
o imperador, quando príncipe regente, de 18 de junho
do ano antecedente sobre a liberdade da imprensa; e o que escreveu
sujeitando-se a esta lei nunca pelas autoridades foi julgado
subversivo, anárquico e afrontoso à pessoa de
sua majestade, nem oposto aos seus direitos; pois que no dilatado
espaço de oito meses, que durou o seu periódico,
nunca foi chamado ao jurado, como devia no caso dos abusos da
liberdade de imprensa; assim como não foi chamado a dar
conta de sua doutrina e opiniões o redator do Conciliador
Nacional, que escreveu muito antes do réu que 'A soberania
estava nos povos' (números 3,18,22,30); 'Os povos não
são herança de ninguém' (número
40); 'Deus não quer sujeitar milhões de seus filhos
ao capricho de um só' (número 17); 'Os reis não
são emanação da divindade, são autoridades
constituídas etc'".
Conclusão
"Tem
fim a vida daquele
Que a pátria não soube amar;
A vida do patriota
Não pode o tempo acabar"
Frei Caneca, 1825 (SEGISMUNDO, 1962: 143)
Ao buscar uma definição para intelectuais, Antônio
Carlos Máximo (2000: 22) aponta, entre outras, algumas
características comuns em diversos autores que os definem
em diferentes momentos históricos. Entre elas, podemos
citar que o intelectual é definido pelo "exercício
constante da crítica", pela "dedicação
ao cultivo das idéias perenes, a vigilância com
relação aos valores universalmente válidos
da cultura (...), o cultivo das idéias de razão,
justiça e democracia" e a "produção
e difusão dos conhecimentos". Neste sentido, através
do jornalismo, Frei Caneca parece que levou às últimas
conseqüências seu papel de intelectual.
Nas
sociedades de classes, a comunicação constitui
um caminho por meio do qual os grupos dominantes buscam reproduzir
e homogeneizar seus valores para o conjunto dos indivíduos.
Ao mesmo tempo, os proprietários dos meios de comunicação
são também os donos dos meios de produção
e, antes de dada a reprodução material de bens
numa sociedade, essa mesma sociedade precisa reproduzir as suas
condições simbólicas de existência.
No seio dessas condições simbólicas, está
o papel desempenhado pelo jornalismo. Segundo Karl Marx (IANNI,
1992: 154),
"Os
pensamentos da classe dominante são também os
pensamentos dominantes de cada época; por outras palavras,
a classe que é a potência material dominante da
sociedade é também a potência espiritual
dominante".
Foi neste cenário, na luta de classes, acirrado no contexto
político do início do século XIX, que atuou
o jornalista Frei Caneca. Engajado, destemido e revolucionário,
Frei Joaquim do Amor Divino manteve, ao longo da vida, uma postura
crítica em relação à realidade que
o cercava. Ao questionar e recusar os valores dominantes e seus
vieses ideológicos, Caneca estabeleceu um estilo de jornalismo
caracterizado por uma atuação fundamentada na
crítica, na reflexão e tendo como base o conhecimento
e a formação intelectual.
Ainda
que seja, caracteristicamente, um modelo de atuação
jornalística da sua época - essencialmente opinativo
- talvez a grande contribuição de Caneca esteja
menos no seu estilo de comunicação e mais na sua
fidelidade a um projeto de sociedade que tem como sustentáculo
os direitos sociais e a cidadania. A atemporalidade deste aspecto
moral do seu trabalho é, sem dúvida, um modelo
a ser seguido pelos atuais profissionais e padrões de
jornalismo.
De
todo modo, ainda que os estudos sobre as contribuições
de Frei Caneca ao pensamento jornalístico brasileiro
estejam em fase embrionária, o mártir pernambucano
recebe, hoje, o título de protetor dos jornalistas, celebrado
a 13 de janeiro, dia da sua execução, em 1825.
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