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Monografias


Considerações sobre o pensamento
jornalístico de Frei Caneca

Por Enio Moraes Júnior e Júlio Antônio Moreira

Introdução

Formular considerações sobre o pensamento comunicacional no mundo ocidental é, forçosamente, recorrer à Grécia Antiga e aos estudos sobre a Retórica e a Oratória. No entanto, é a partir da Era Moderna que os estudos sobre a Comunicação Social passam a despertar maior interesse. Dois fatores colaboram neste sentido: a formação dos Estados nacionais e o desenvolvimento do modo de produção capitalista, caracterizado mais fortemente a partir da Revolução Francesa de 1789.

Em 1690 Tobias Peucer, na Alemanha, constitui um marco fundamental nos estudos da Comunicação e, mais precisamente, do Jornalismo. Peucer defende, na Universidade de Lepzig, a primeira tese de doutorado na área. A Alemanha é, aliás, considerada o berço do ensino do Jornalismo e passa a ter, já no século XIX, forte influência sobre a criação dos cursos da área nos Estados Unidos, que começam a aparecer na primeira década do século XX.

Esta influência européia e americana vai marcar também as escolas e, conseqüentemente, as concepções comunicacionais latino-americana e brasileira. O pensamento comunicacional brasileiro constitui, pois, uma síntese de toda uma postura forjada sobre a comunicação no mundo ocidental desde a Antiguidade.

No Brasil, referenciado na Antiguidade Clássica e nas idéias iluministas da Europa do século XVIII, Frei Joaquim do Amor Divino, o Frei Caneca, desenvolve, no início do século XIX, no Recife, uma linha de reflexão e atuação comunicacional e jornalística que pode catapultá-lo à categoria de precursor da teoria da comunicação brasileira.

Este trabalho pretende, desta forma, levar-nos a ultrapassar a visão clássica da história sobre o Frei e colocar luzes sobre seu papel de comunicador e jornalista, destacando o poder e os conhecimentos comunicacionais deste pernambucano autor de uma vigorosa obra política, jornalística e didática produzida em Recife entre 1803 e 1824.

Neste sentido, tomamos como principal elemento de análise o jornal Typhis Pernambucano, editado por Caneca entre 1823 e 1824 e que constitui elemento emblemático do seu pensamento jornalístico.

Frei Caneca e o contexto histórico de sua atuação

Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo, o Frei Caneca, nasceu Joaquim da Silva Rabelo em 1779, no bairro Fora-de-Portas, na periferia do Recife, então importante entreposto comercial do Império. O bairro, modesto, era uma região de artesãos, onde morava e trabalhava seu pai, que era tanoeiro. Tinha uma população marcadamente portuguesa e costumava, o bairro, receber as tripulações lusitanas.

Seus pais, Domingos da Silva Rabelo (português, tanoeiro) e sua mãe, Francisca Alexandrina de Siqueira, era filha e neta de lisboetas, mas o bisavô havia casado com uma mestiça brasileira chamada Maria, e graças a ela Caneca entronca-se no passado da província. "Dessa Maria, no futuro, o próprio Frei escreveria que 'havia de ser alguma tapuia, petiguari, tupinambá' ou, talvez, de sangue africano. Em todo caso, teria sido do avô, o lisboeta Pedro José de Siqueira (...) que o frei herdara cabelos cor-de-fogo" (Rebeldes Brasileiros, 2002: 388).

Caneca tinha, ao que se sabe, um irmão, Januário, que na vida adulta foi cirurgião formado pela Escola do Recife, ajudante do exército e vacinador no Rio Grande de Norte.

Os estudos religiosos do Frei foram facilitados pela ascendência reinól e pela presença de um tio materno, Antônio de Natividade Dantas, na Ordem Carmelita. Assim, vai para o Convento do Carmo, vendo não só uma forma de estudar como também de ascender socialmente. Em 1796 toma o hábito; em 1797, professa e em 1801 ordena-se, com dispensa especial, aos 22 anos, com o nome da profissão paterna. Caneca era estudioso, inteligente e de "apetite enciclopédico", dava atenção, especialmente, para a Retórica e a Filosofia. No início de sua vida religiosa, leciona retórica e geometria.

Nesta primeira fase de sua vida, até 1817, produz textos de conteúdo didático em que dá mostras da erudição que iria caracterizá-lo. Datam deste tempo um Tratado de Eloqüência: extrahido dos melhores escritos e as Táboas Symópticas do Sistema Rhetórico de Fábio Quintiliano.

Pelo que se sabe, foi apaixonado por uma mulher - a quem chamava Marília - e teve cinco filhos: Carlota, Joana, Ana, Fortunato e Joaquim Teodoro. Chama atenção dos seus biógrafos o fato de um homem de circulação tão restrita - apenas saiu de Pernambuco (e de Alagoas, na época comarca pernambucana), para ir à Bahia, onde esteve preso por quatro anos. Além disso, é apontado como carismático e popular. Uma prova é que, depois de decretada a sentença de sua morte, três carrascos negaram-se a enforcá-lo. Foi, então, fuzilado pelos soldados imperiais.

Independência e liberdade

Entender a obra e a atuação política de Frei Caneca significa, também, entender o contexto histórico e os aspectos econômicos e políticos de sua época. A atuação de Caneca ocorre num período de intensa agitação, no Brasil, em função de tornar-se independente de Portugal e, em seguida à Independência, de formular seus próprios preceitos e leis e criar um país legitimamente independente.

O momento final da atuação e da produção de Caneca é a Confederação do Equador, que eclode em 1824. No entanto, este fato é antecedido pela Revolução (ou Insurreição) Pernambucana, de 1817. Nestes dois momentos, "os seus ensinamentos e a sua ideologia estavam calcados num liberalismo chamado radical por não transigir com um estado centralista, forte, que se propõe a realizar a felicidade universal". (FERRAZ: Revista Continente Documento, 2003: 09).

A Revolução Pernambucana é produto da grave crise econômica e, conseqüentemente, política, que passa a perturbar alguns setores do Nordeste brasileiro a partir de 1780. A base das discordâncias está no surgimento e fortalecimento de um Nordeste - ao norte, urbano - que consegue produzir uma economia mista, passando a não produzir apenas açúcar (cana), mas também algodão, graças á fertilidade de seu solo e um outro Nordeste - ao sul, basicamente de engenhos - que, sem um solo apropriado, continua insistindo na monocultura da cana-de-açúcar.

O quadro de privilégios agrava-se, justamente, porque a produção algodoeira alcança alto valor no comércio com a Inglaterra, fortalecida com a Revolução Industrial e com uma indústria têxtil em expansão. No entanto, talvez a principal razão do zelo emancipacionista do norte esteja ligada ao fato de a exportação do algodão para a Inglaterra usufruir as vantagens do livre câmbio. Some-se a isso a existência, na região, de fortes núcleos urbanos, como Recife, o que fazia com que as idéias e as discussões de base iluminista e revolucionária se proliferassem. Mas Ferraz observa (Revista Continente Documento, 2003: 10): "Esta situação foi agravada com a Revolução de 1817. O governador Luís do Rego informava que deveria acudir as despesas com tropas e hospitais militares para organizar a defesa da província, e acrescenta-se a este fato a separação da Comarca de Alagoas, como castigo pela rebeldia, diminuindo as rendas da província aumentando as despesas".

Mas a Insurreição fracassa e Caneca, que participara abertamente do movimento como ideólogo e conselheiro do exército republicano, é preso e exilado na Bahia por quatro anos. Nesta fase ele dá aulas e produz o Breve Compêndio da Gramática Portuguesa. Em 1821, já em seu estado natal, participa do movimento da Independência de Pernambuco.

Três anos mais tarde, levada a cabo por um conflito entre elites, ocorre a Confederação do Equador, na qual Caneca também toma parte. Na verdade, o movimento é uma tentativa de algumas províncias do Nordeste brasileiro - Pernambuco, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte - criar um país independente em 1824, logo em seguida ao surgimento do Império, em 1822. Politicamente, a Confederação associa-se aos anseios da pequena burguesia urbana que não aceitava continuar subalterna ao poder político e econômico legado, pelo imperador, apenas aos portugueses instalados no Brasil.

A convocação da Assembléia Constituinte, no início do Império, em 1823, sua posterior dissolução pelo imperador D. Pedro I - que queria seu poder pessoal acima do poder Legislativo e Judiciário - e, em 1824, a outorga de uma Constituição para o Brasil são o estopim para a deflagração da tentativa da Confederação.

Preparado o projeto da Carta a ser outorgada, este é enviado a algumas câmaras municipais para consulta. Ao chegar à Câmara dos Deputados do Recife, Frei Caneca coloca-se contra a proposta e a critica no documento "Crítica da Constituição Outorgada" por expressar preceitos contrários ao liberalismo. A partir daí, tem lugar mais uma atuação política de Caneca com todos os seus matizes intelectuais e jornalísticos e preparam-se as condições para forjar Confederação do Equador, que finalmente é proclamada em 02 de julho de 1824.

A produção intelectual, política e jornalística de Frei Caneca

A história de vida de Frei Caneca é marcada por uma forte atuação e produção política, intelectual e jornalística. Intelectualmente, possui forte influência do Iluminismo, especialmente o iluminismo jacobino francês e revolucionário (Revolução Francesa), e não apenas o iluminismo trazido e liberado pelos portugueses no Brasil Imperial, de origem italiana e reformista. Por conta do seu tino intelectual, é considerado por seus biógrafos, "um homem de idéias, não de ação".

A ele são atribuídas, por alguns biógrafos, a autoria (ou, pelo menos, co-autoria) do hino da Confederação dos Alfaiates (que é abafada na Bahia), da Lei Orgânica de 1817, das bases para o pacto social de 1824 e do projeto de Constituição da Confederação do Equador.

Caneca foi um revolucionário nato. Sua opção pelos ideais liberais vem como conseqüência da sua formação intelectual, que tem sido destacada por historiadores. A postura liberal, na verdade, é produto de uma formação acumulada a partir de 1809, quando é nomeado secretário do visitador da Ordem Carmelita Frei Carlos de São José e Souza. Da sua formação intelectual e no furor da sua atuação política emerge o orador Frei Caneca que, segundo Morel (2000), utiliza as bases dos seus estudos de retórica e aponta para uma esfera da teoria da comunicação, fundada na "práxis" da atuação política. Esta característica vai ficar clara não só nos seus escritos, como Dissertação, quanto nos seus pronunciamentos altamente panfletários e doutrinários e no jornalismo de mesmas características que vai produzir.

É do seu envolvimento nos cenários que antecedem, sediam e sucedem a Confederação do Equador que surge grande parte da sua produção. Neste período, Caneca participa das discussões públicas dos temas políticos do país que ocorriam nas praças e nos redutos políticos recifenses. Grande orador e discursista, tinha um enorme poder de eloqüência e exercia, assim, com seus discursos e argumentações, grande influência sobre o povo local. São deste período as publicações:

1. "Dissertação sobre o que se deve entender por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria" (1822). Neste texto, de alto teor iluminista, Caneca preocupa-se em "instruir o povo" sobre "a possibilidade da união entre os portugueses de ambos os hemisférios, sobre os auspícios da monarquia constitucional" (Rebeldes Brasileiros, 2002: 393);

2. "Cartas de Pítia a Damão" (1823). Publicadas no Correio do Rio de Janeiro, as Cartas tinham como principal objetivo realizar constitucionais, especialmente a partir da instalação da Assembléia Constituinte em maio de 1823;

3. "O Caçador atirando à Arara Pernambucana" (1823);

4. Edita e escreve para o "Typhis Pernambucano" (1823/24);

5. "Itinerário" (1824), texto em que narra os momentos que se seguem à Confederação do Equador, incluindo sua tentativa de fuga até o Ceará e seus dias de prisão a partir do momento em que é capturado.

Grande parte de sua obra integra o texto "Obras Polypticas e Litterárias de Frei Joaquim do Amor Divino Caneca", organizada por Antônio Joaquim de Melo, publicada em sua primeira edição no Recife, em 1875.

Jornalisticamente, o jornal Typhis Pernambucano, publicado a partir de dezembro de 1823, é seu espaço, por excelência, de atuação. No entanto, já a partir de setembro do mesmo ano merece destaque a publicação das suas Cartas. Conforme os padrões da época, seu jornalismo é extremamente opinativo.

Caneca é apontado também como um grande discípulo de Cipriano Barata, redator do jornal Sentinela da Liberdade que, no início da segunda década do século XIX defendia, em Pernambuco, os mesmos ideais apregoado pelo Frei. Vianna observa (SODRÉ, 1983: 95):

"Preparando o ambiente favorável à desobediência à escolha imperial, desde 25 de dezembro de 1823, começou a ser ali publicado, sob a direção de frei Joaquim do Amor Divino Caneca, bem aproveitado discípulo de Barata, o Typhis Pernambucano, que pode ser considerado legítimo herdeiro dos métodos desabridos e violentos da Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco".

O Jornalismo de Frei Caneca

Há, no século XIX, um boom de tipografias instaladas no Brasil. Apesar de várias tentativas de implantação, as tipografias ficaram oficialmente proibidas até 1808, quando o Império implantou a Imprensa Régia.

Com a instalação das tipografias, surgem os jornalistas de ofício, personagens políticas reconhecidas e alçadas a grande relevância social. Os jornais são pequenos, panfletários e doutrinários. O jornalismo é, por excelência, opinativo. São poucos jornais, com público muito restrito, publicados por duas, no máximo três pessoas, e identificado com um líder. Este líder tem projeção social provavelmente não alcançada sem o jornal e geralmente elevado a cargos públicos ou eclesiásticos.

Os jornais da época tinham posições políticas bem definidas e inimigos públicos declarados. Assim, podemos considerar que a atuação dos jornais de Pernambuco, nos levantes que sacodem a província no início do século XIX é uma reação externada por uma imprensa inicialmente panfletária, tendo Cipriano Barata como seu grande expoente, e depois mais erudita e que foi ganhando corpo e adeptos até chegar a movimentos armados, como a Revolução de 1817 e a Confederação do Equador.

Barata exerce forte influência sobre o comportamento político de Caneca, que na verdade, através do Typhis, dá continuidade às idéias que ele propagava no Sentinela. Fausto localiza esta sucessão (1987: 153):

"Após a dissolução da Constituinte, (Barata) foi preso e enviado para o Rio de Janeiro, onde ficaria detido até 1830. Como figura central às críticas do Império, passou então a destacar-se Frei Joaquim do Amor Divino - o Frei Caneca - que participara ativamente da insurreição de 1817".

Além do Sentinela, outros jornais também colaboravam para ascender a cena das discussões políticas da época. Entre eles, o Aurora Pernambucana, orientado pelo então governador Luís do Rego. Defendendo abertamente os princípios constitucionais e os interesses portugueses, surgiu em 1821 e conclamava os brasileiros a "abraçarem as novas instituições que a augusta Assembléia Nacional está formando em Lisboa" (SODRÉ, 1983: 50).

No entanto, era José Fernandes Gama, proprietário do Arara Pernambucana, o principal alvo do Typhis e a quem Caneca atacava afirmando que "idéias velhas não podem reger o mundo novo" (SODRÉ, 1983: 90).

O Typhis Pernambucano

A primeira edição do Typhis Pernambucano aparece na cidade de Recife, de 25 de dezembro de 1823 e circula até 05 de agosto de 1824. Ao todo são publicadas 28 edições, sendo 26 pela Tipografia Miranda & Cia e, as duas últimas, pela Tipografia Nacional.

O nome da publicação é uma referência a Tífis, que na mitologia é o primeiro piloto do navio Argos e profundo conhecedor da arte da navegação. Certamente Caneca procurava expressar, já no nome da publicação que começava a editar, o papel que desejava para ela: o de um guia, de um destemido herói enfrentando as constantes tormentas num mar agitado e traiçoeiro.

O primeiro número do Typhis reflete a situação criada para a província pernambucana pelo monarca e, ao mesmo tempo, seu texto dá mostras da referência aos desafios dos clássicos argonautas (SEGISMUNDO, 1962: 155):

"Quando a nau da pátria se acha combatida por ventos embravecidos, cada um deve prestar a diligência a seu alcance, e sacrificar-se pelos seus concidadãos em perigo".

As características editoriais mais marcantes do jornal são:

1. Modelo Opinativo

O Typhis, a exemplo dos padrões da época, é extremamente ligado a causas políticas e sociais e segue um modelo extremamente opinativo. Frei Caneca abre o primeiro número do jornal criticando abertamente os atos do imperador (CANECA, 2001: 307):

"É um direito natural e inalienável de qualquer cidadão, seja qual for a forma de governo em que se vive, o exame e o juízo dos fatos público, sem que sirva de égide a alguém a graduação, a classe, a hierarquia e a autoridade; e este direito é tanto mais sagrado quanto a ação praticada toca os direitos primários de um povo, de uma nação; e s. m. i. se acha tão penetrado desta verdade, que no dia 13 fez baixar o seu segundo decreto, em que declara que a qualificação de perjura, que o primeiro impôs à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa, não deveria entender da 'totalidade da representação nacional do generoso povo brasileiro', sim da 'facção dominante do Congresso'"

2. Para além da opinião: as críticas pessoais

Assim como nos outros jornais, em que seus proprietários e redatores defendiam suas posições e faziam ataques pessoais sem a menor cerimônia, o Typhis Pernambucano, a exemplo da edição de número 08, de 1º de abril de 1824 (CANECA, 2001: 405), adotava os mesmos padrões:

"Então o exmo. José de Barros convocou um conselho militar para deliberarem sobre este objeto; e, determinando que se levantassem os oficiais que haviam tramado essa sedição, apareceram unicamente seis e o sargento-mor de Portugal Antônio Francisco de Holanda Cavalcanti, que pouco antes estava à paisana á frente dos sediciosos ao lado do facinoroso Manuel Clemente do Rego Cavalcante, redator da Pernambucana, do número 23 em diante".

Além disso, Caneca, por várias vezes, publica artigos, cartas e citações de seus oponentes para, em seguida, fazer críticas ferozes, chegando a ponto de ridicularizá-los. É o que ocorre, por exemplo, ao referir-se ao Marechal Felilisberto Caldeira Brant-Ponts, no Typhis de número 09, de 11 de março de 1824 (CANECA, 2001: 385):

"Qual será o pernambucano digno de nome que possa ler, sem indignação, os atrevimentos, as insolências deste impostor? Sempre foi atrevida e imprudente a ignorância e a filáucia! O que é que tem feito Pernambuco, depois da presidência do exmo. Carvalho, que seja um crime, objeto de devassas, digno de castigo e de que se repitam as cenas do 1817?"

3. Ausência de manchetes: informação sem hierarquia

Mais uma vez seguindo os padrões das publicações da época, não há uma preocupação em estabelecer uma hierarquia no jornal. As notícias e opiniões são distribuídas no sistema de paginação ladrilho. Segundo Mário Erbolato (1981: 68), este era, por excelência, o sistema adotado até finais do século XIX: "As notícias tinha seqüência, uma atrás das outras, com títulos que não iam além de uma coluna e sem qualquer ilustração".

4. Seções fixas: Brasil e Pernambuco

Com a intenção de melhor situar o leitor no cenário das discussões e dos acontecimentos que apresentava, Caneca procura estabelecer, no jornal, duas seções fixas:

Brasil: espaço do jornal dedicado à análise e à crítica de atos do imperador e de seus homens de confiança;

Pernambuco: seção usada para defender os atos e as idéias da Confederação do Equador e posições da junta de governo.

5. Citações

Caneca costumava, em todas as edições do Typhis, abri-las e fechá-las com as mesmas citações. Na abertura, uma recorrência à sua erudição e aos padrões clássicos ao citar um trecho do canto V de Luís de Camões: Uma nuvem, que os ares escurece, sobre nossas cabeças aparece".
No final de cada edição, a mesma sentença "'Cautela, união, valor constante. Andar assim, é bom andar'. Boa viagem". Mais que uma mera citação, o uso da retórica para expressar sua posição sobre a necessidade de luta e enfrentamento.

Considerações sobre o Pensamento Jornalístico de Frei Caneca

No cenário da intensa agitação política do início do século XIX proliferam, no Brasil, os panfletos e jornais de característica extremamente opinativa. Se por um lado são muitas publicações ligadas à causa política, normalmente sedimentadas nos princípios liberais, por outro, são comuns o empastelamento das tipografias e as perseguições aos jornalistas. Como observa Bahia (1990: 56):

"A população brasileira é, por essa época, cerca de 4 milhões e 500 mil habitantes, sendo 2 milhões e 500 mil livres, 1 milhão e 200 mil escravos e 800 mil índios puros ou primitivos. A imprensa de 1821 a 1837 reflete bem a transformação por que passa o país. Ela é agente da transformação e da mudança".

Ainda assim, neste momento, os jornais ainda são feitos de forma incipiente, contando com dois ou três homens, mas é neste cenário que as tipografias começam a ensaiar seus passos para transformarem-se em empresas a partir da segunda metade do século. Mas é ainda num contexto artesanal que se desenvolve toda a atuação política de Caneca no Typhis, identificado com as mudanças revolucionárias.

É a partir de sua obra e atuação política, jornalística e didática, podemos apontar algumas características que fazem o amálgama seu do pensamento jornalístico:

1. Teoria e Práxis

Frei Caneca é um teórico que converte seus pensamentos numa prática comunicativa. Segundo Morel (2000: 75), a quem cabe o mérito de entender Caneca como produtor de um conhecimento precursor na comunicação brasileira:

"Eleger (do latim, eligiere) e ler (legere) são duas ações de agrupara vontades e palavras. A expansão dessas prerrogativas era uma das características dos direitos do cidadão que, como se sabe, não eram universais nem no próspero Brasil da escravidão nem nas monarquias européias liberais ou absolutistas. Frei Caneca não pregava apenas, também assumia ele mesmo, em sua prática pessoal, a ampliação dessa cidadania. Argonauta enfrentando o contexto bravio de um novo Império ainda marcado pelas práticas do Antigo regime".

2. Classicismo

No início de sua carreira na Igreja, Caneca cria o Curso Público e Gratuito de Retórica e Poética, Filosofia Racional e Poética e Moral e Geometria. Esta estrutura - retórica, moral e geometria - desenhada no início de sua vida acadêmica, vai ser o fio condutor de toda sua prática comunicacional.

O estilo e a atuação de Caneca faz-se num espaço de ressurgimento, no Brasil, das ágoras gregas. A partir de 1808, com a chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, a imprensa começava a funcionar no país. No entanto, a censura vigente e o número limitado de leitores alfabetizados colocam a produção impressa num segundo plano.

Neste cenário, os auditórios e as praças, que ocupam função singular na formação da opinião pública, são peças-chave na sedimentação da vida literária brasileira, na criação de públicos receptivos e auditores. Como observa Marques de Melo (2003: 291):

"Foi justamente para formar agentes dessa comunicação discursiva, praticada intensamente nos claustros religiosos, nas academias literárias ou nas assembléias políticas, que Frei Caneca produziu alguns estudos basilares, enfeixando uma precoce teoria brasileira da comunicação".

3. Iluminismo, Enciclopedismo e Liberalismo

Os preceitos liberais, típicos das tendências iluministas e enciclopedistas que proliferaram na Europa do século XVIII e inspiraram a Revolução Francesa (e, mais tarde, na América, a Revolução Americana), vão marcar o pensamento que sustenta todo o comportamento e atuação política e jornalística de Frei Caneca.

Seu pensamento ganha as condições favoráveis para transformar-se numa práxis no contexto histórico e político de que o Pernambuco de sua época é palco por excelência. É neste cenário que Caneca, detentor de uma rica e diversificada cultura fundamentada no Enciclopedismo e em outras correntes racionalistas, encontra espaço para a aplicação de seus conhecimentos de fortes cores éticas e morais.

A preocupação com a formação da cidadania e com os direitos humanos - um dos principais pilares liberais - era tamanha que a partir da edição 24 do Typhis Pernambucano Frei Caneca publica, em forma de comunicado, um conjunto de trinta textos sob o título de Bases para a Formação do Pacto Social redigidas por uma Sociedade de Homens de Letras.

O material, influenciado pelas doutrinas das Revoluções Americana e Francesa, constitui, na verdade, a um compêndio de condutas na qual defende os direitos humanos, a igualdade, a segurança e a propriedade; a resistência à opressão, o fim da escravidão, a soberania nacional e o direito do povo de rever a Constituição.

4. Liberdade de imprensa, retórica e opinião, jornalismo comparado

Os familiares de Frei Caneca destruíram muitos dos seus escritos. Talvez para ficar com sua herança ou até mesmo por temer as represálias do imperador que o condenou à morte. Entretanto, dos escritos que restaram, a defesa que Caneca apresentou em seu julgamento sumário pelo crime de rebelião, é o texto em que os principais elementos do seu pensamento jornalístico aparecem mais claramente.

A defesa pioneira da liberdade de imprensa, o uso da retórica como expressão do jornalismo de opinião e a prática também pioneira do jornalismo comparado presente na analogia que faz entre o Typhis, o Regulador Brasileiro e o Conciliador Nacional constituem, estes três elementos, marcos do pensamento jornalístico de Caneca.

Liberdade de Imprensa (CANECA, 2001: 629):

"Conquanto parecesse ao réu que as doutrinas de seus impressos não formam objeto do conhecimento desta comissão, por já estar determinado o tribunal dos jurados, como privativo dos abusos da liberdade de imprensa; contudo ignorando o réu as ordens imperiais, de que está escudada a mesma comissão, e que este reto juízo não ultrapassará os termos que lhe foram prescritos por sua majestade o imperador, não hesita de si nestes artigos, que passa a expender".

Retórica como expressão do jornalismo opinativo (CANECA, 2001: 628):

"A enormidade da acusação é tão grande que de por si basta para aterrar o varão mais forte, e o faria temer, se acaso se não lembrasse que eram seus juizes varões brasileiros, cheios de retidão, e que sabem dar descontos às fraquezas da humanidade, imitando a piedade e beneficência do príncipe magnânimo, que os revestiu de tão alta autoridade. Esta idéia consoladora anima o réu, e lhe alivia os espíritos abatidos, para alçar a trêmula voz e fazer chegar ao conhecimento deste juízo os argumentos em que funda sua defesa, e mostrar sua constante adesão e obediência ao supremo imperante da nação brasileira".

Jornalismo Comparado (CANECA, 2001: 629):

"Que a soberania reside na nação, que a nação é quem se constitui e por meio dos seus representantes em Cortes - dois pontos cardeais em que rola toda a doutrina do Typhis - são duas verdades confessadas por sua majestade no decreto de 8 de junho de 1822, no manifesto de 6 de agosto do mesmo ano aos povos e nações amigas, além de outras ocasiões".

"Que sua majestade, depois de ter chamado seus súditos para serem felizes, não lhes pode dizer 'não quero que o sejam mais' - disse o Regulador Brasileiro à face do mesmo trono, sem a menor censura. É destes princípios, pois que nasce o juízo feito sobre a dissolução da Assembléia do Rio de Janeiro, expostos nos números 1, 2 e 3 do Typhis".

"O réu escrevia em Pernambuco, onde por um bando do governo de 14 de maio de 1823, se publicou o decreto de sua majestade o imperador, quando príncipe regente, de 18 de junho do ano antecedente sobre a liberdade da imprensa; e o que escreveu sujeitando-se a esta lei nunca pelas autoridades foi julgado subversivo, anárquico e afrontoso à pessoa de sua majestade, nem oposto aos seus direitos; pois que no dilatado espaço de oito meses, que durou o seu periódico, nunca foi chamado ao jurado, como devia no caso dos abusos da liberdade de imprensa; assim como não foi chamado a dar conta de sua doutrina e opiniões o redator do Conciliador Nacional, que escreveu muito antes do réu que 'A soberania estava nos povos' (números 3,18,22,30); 'Os povos não são herança de ninguém' (número 40); 'Deus não quer sujeitar milhões de seus filhos ao capricho de um só' (número 17); 'Os reis não são emanação da divindade, são autoridades constituídas etc'".

Conclusão

"Tem fim a vida daquele
Que a pátria não soube amar;
A vida do patriota
Não pode o tempo acabar"
Frei Caneca, 1825 (SEGISMUNDO, 1962: 143)


Ao buscar uma definição para intelectuais, Antônio Carlos Máximo (2000: 22) aponta, entre outras, algumas características comuns em diversos autores que os definem em diferentes momentos históricos. Entre elas, podemos citar que o intelectual é definido pelo "exercício constante da crítica", pela "dedicação ao cultivo das idéias perenes, a vigilância com relação aos valores universalmente válidos da cultura (...), o cultivo das idéias de razão, justiça e democracia" e a "produção e difusão dos conhecimentos". Neste sentido, através do jornalismo, Frei Caneca parece que levou às últimas conseqüências seu papel de intelectual.

Nas sociedades de classes, a comunicação constitui um caminho por meio do qual os grupos dominantes buscam reproduzir e homogeneizar seus valores para o conjunto dos indivíduos. Ao mesmo tempo, os proprietários dos meios de comunicação são também os donos dos meios de produção e, antes de dada a reprodução material de bens numa sociedade, essa mesma sociedade precisa reproduzir as suas condições simbólicas de existência. No seio dessas condições simbólicas, está o papel desempenhado pelo jornalismo. Segundo Karl Marx (IANNI, 1992: 154),

"Os pensamentos da classe dominante são também os pensamentos dominantes de cada época; por outras palavras, a classe que é a potência material dominante da sociedade é também a potência espiritual dominante".

Foi neste cenário, na luta de classes, acirrado no contexto político do início do século XIX, que atuou o jornalista Frei Caneca. Engajado, destemido e revolucionário, Frei Joaquim do Amor Divino manteve, ao longo da vida, uma postura crítica em relação à realidade que o cercava. Ao questionar e recusar os valores dominantes e seus vieses ideológicos, Caneca estabeleceu um estilo de jornalismo caracterizado por uma atuação fundamentada na crítica, na reflexão e tendo como base o conhecimento e a formação intelectual.

Ainda que seja, caracteristicamente, um modelo de atuação jornalística da sua época - essencialmente opinativo - talvez a grande contribuição de Caneca esteja menos no seu estilo de comunicação e mais na sua fidelidade a um projeto de sociedade que tem como sustentáculo os direitos sociais e a cidadania. A atemporalidade deste aspecto moral do seu trabalho é, sem dúvida, um modelo a ser seguido pelos atuais profissionais e padrões de jornalismo.

De todo modo, ainda que os estudos sobre as contribuições de Frei Caneca ao pensamento jornalístico brasileiro estejam em fase embrionária, o mártir pernambucano recebe, hoje, o título de protetor dos jornalistas, celebrado a 13 de janeiro, dia da sua execução, em 1825.

Bibliografia

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