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Manchetes


O futuro do jornalismo em jogo

Por Martin Bell
LONDRES

Foi um mau dia para a BBC. Não me recordo de nenhum pior nos 34 anos em que trabalhei na ainda maior organização de radiodifusão do mundo. é difícil encarar esse veredicto tão confortável para o governo e tão cruel para a corporação.

Claro que a BBC teve uma significativa responsabilidade na causa do próprio infortúnio. Os erros se originaram em entrevistas improvisadas de correspondentes que talvez não tenham atentado completamente para suas falhas, pelas quais a BBC está agora pagando um alto preço. A emissora já tinha pedido desculpas por esses erros e seu diretor-geral - que ontem pediu demissão - tinha voltado a se desculpar na quarta-feira.

Mas, diante das presentes dificuldades, espero que a BBC descubra como arrumar a casa em um dia ou dois. Este não é o caso de penitências exageradas. Embora a reportagem de Andrew Gilligan para o programa Today estivesse errada em um ponto importante, seu mote principal estava correto.
Gilligan não foi o único jornalista a informar que o governo tinha exagerado em seus relatos sobre o arsenal iraquiano para justificar o envolvimento do país na guerra. Mas sua reportagem foi a que mais causou furor e provocou a maior tensão entre a BBC e o governo britânico, na longa história de discordância entre as duas entidades.

Acho que Gilligan prestou a todos nós algum serviço, enquanto o relatório Hutton - que o acusa tão extensivamente - foi extraordinariamente tolerante com o governo. Sabemos, por exemplo, que Downing Street (sede do governo britânico) sugeriu o reforço na linguagem do dossiê (sobre o arsenal proibido do Iraque) apresentado em setembro de 2002. Isso era mais que uma questão de apresentação. Era uma questão de substância.
Lorde Hutton sentenciou que a exatidão do dossiê não foi comprometida. Mas esse dossiê era vital para justificar a guerra. A nação foi levada a acreditar que o Iraque era uma grave e atual ameaça. Sabemos agora que não era nem uma coisa nem outra. O veredicto de Hutton, apesar do alívio que trouxe ao governo, nada fez para justificar a guerra no Iraque pelos motivos sob os quais a necessidade dela era apresentada antes de as hostilidades começarem.

Espero profundamente que a BBC não perca sua verve como conseqüência desse revés. De muitas maneiras, o episódio estabelece padrões pelos quais outras emissoras de notícias serão julgadas.

Este não é um tempo para a BBC esmorecer, apesar da tentação de fazê-lo. Não é apenas sua reputação de independência que está em jogo, mas o futuro de todo o jornalismo do país. Manter o governo sob fiscalização e nunca permitir que ele se torne tão triunfalista - como ocorreu na quarta-feira - é importante para nossa democracia. Especialmente quando o governo trabalhista, quando questionado por causa de uma guerra impopular, teve tantos defensores em veículos britânicos administrados por proprietários estrangeiros.

É importante que a BBC, assim como outras organizações de notícia, não se permita intimidar-se.

Entendo por que Gavyn Davies, o presidente da BBC, sentiu a necessidade de renunciar, mas a autoflagelação deveria parar por aí. A BBC deve erguer-se, sacudir a poeira e continuar a nos prover com o serviço de notícias que a tornou famosa. Seria de grande ajuda se alguns dos novos diretores tivessem experiência em jornalismo de televisão. Um grande acordo dependerá da determinação e, se necessário, da sede de sangue, do próximo presidente. Mas quem apontará esse novo presidente? O governo, é claro. é fácil imaginar um cenário no qual a BBC mergulhe na timidez e se permita atender aos desejos do governo.

A BBC vinha recentemente experimentando um revival de seus bons tempos. O diretor-geral, Greg Dyke - que ontem se tornou outra vítima do episódio e pediu demissão -, vinha tentando elevar o moral do staff. Sua análise da cobertura, levada ao ar no programa Panorama, tinha sido um exemplo de jornalismo independente e robusto.

A direção da BBC deveria se aprofundar nisso, mantendo a agilidade e a verdade de suas posições. A maior parte das pessoas, ainda mais agora, está mais disposta a acreditar na BBC do que no governo.

Fonte: The Guardian - O Estado de S.Paulo, 30.01.2004.

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