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Fórum


Série "Correspondentes de Guerra"
Se você morre, não tem sentido

Depoimento de Carlos Turdera a Ruth Vianna*

"Si la historia la escriben los que ganan, eso quiere decir que hay otra historia". (Ditado popular citado pelo jornalista argentino Carlos Turdera em seu artigo Hábeas Data, publicado no livro Guerra e Imprensa: Um olhar crítico da cobertura da Guerra do Iraque, Summus Editorial, São Paulo, 2003, págs. 91-96).

Ruth Vianna - Quando você iniciou na profissão e qual sua formação?

Turdera - Eu sou formado pela Universidade de Buenos Aires, na carreira de Ciências da Comunicação Social - com a orientação em jornalismo. Eu comecei a trabalhar em jornalismo no final de 1988. Trabalhei a maior parte das vezes em jornais e em revistas. Mas passei em períodos também em rádio e televisão, na qual trabalhei em produção.

Ruth Vianna - Quando você decidiu se tornar correspondente?

Turdera - Há dois anos, vim a São Paulo para fazer um intercâmbio no jornal Folha de S. Paulo. O programa era de seis meses, mas gostei do modo de trabalho dos jornalistas no Brasil e do modo como a imprensa brasileira considerava a informação, como um produto. Eu achava estranho porque na Argentina há basicamente o jornalismo investigativo, que tem sido responsável pela descoberta de casos de corrupção, e o que tem a ver com entretenimento, que não aprofunda nenhum tema.

Então, gostei do equilíbrio que se tem aqui e comecei a ver que São Paulo poderia ser um lugar para eu conhecer outro modo de fazer jornalismo.

Assim, fui estabelecendo relações de correspondente e passei a trabalhar aqui. O jornal para o qual eu trabalhava não tinha muito interesse nesse tipo de reportagens e, em princípio, fiz mais trabalhos de free-lance.

Ruth Vianna - E você continua como free-lance até hoje?

Turdera - Sim.

Ruth Vianna - Qual a diferença entre fazer jornalismo para uma empresa jornalística e em ser correspondente? O que mudou no seu dia-a-dia de trabalho?

Turdera - Mudou tudo. Em um jornal, mesmo sendo repórter ou editor, há uma estrutura maior como a que eu tenho como correspondente e mais ainda como free-lance. Permanentemente, tenho de criar pautas, que nem sempre são aceitas.

Ruth Vianna - Como se dá esse processo de pautar o Brasil para fora?

Turdera - Tem uma agenda no Brasil que, pelo próprio conteúdo, é de interesse. Quando falo em Brasil, certamente falo em São Paulo. Eu sou correspondente em São Paulo. Como o Brasil é muito grande, tento deixar claro que as matérias foram feitas em São Paulo, que refletem a realidade dessa cidade ou Estado e não do Brasil. De outro modo, seria alimentar estereótipos que existem sobre o Brasil.

Mesmo assim, os temas de mais interesse nos últimos tempos têm sido política e economia. Às vezes sugiro matérias de outros temas, mas não despertam tanto interesse. Eu diria que os temas de interesse são: economia em primeiro lugar, política em segundo lugar e depois futebol, carnaval e cultura, por exemplo.

Ruth Vianna - Como você faz para pautar política e economia? Qual o seu processo? E o que você faz durante o dia?

Turdera - Pela manhã leio dois jornais locais, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo; leio pelo menos quatro jornais da Argentina, para saber o que acontece no meio; leio outro jornal internacional, principalmente da Espanha ou dos Estados Unidos; e reviso o correio (incluindo a Internet) para saber quais são as sugestões de pauta que mandam assessores de imprensa. Meu trabalho é basicamente todo na Internet e no telefone.

No domingo, vou tendo uma idéia de o que vai acontecer na semana e na quarta-feira vejo como foram evoluindo os fatos e vejo o que virá no final de semana. Mas leio os jornais todos os dias. Já na televisão, assisto aos jornais da Rede Globo, para saber o que está acontecendo no cenário internacional, e da TV Cultura, por interesse pessoal e para ter sugestões de pauta.

Ruth Vianna - Quem decide, enfim, qual das pautas que você preparou e deverá realizar)?

Turdera - O editor responsável pela sessão internacional.

Ruth Vianna - Para quais jornais você faz matérias?

Turdera - Jornada, La Rázon, que são do Grupo Clarín... e agência Tlal, uma agência argentina que agora tem capital estatal e privado; tem o site. Site argentino criado com a idéia de funcionar como um espaço de encontro de manifestações culturais brasileiras e argentinas particularmente, para o qual produzo uma newsletter quinzenal.

Esse site tem cerca de 500 assinantes, que não são apenas da Argentina e do Brasil. Então, vou vendo para qual desses veículos são mais próprias essas pautas. De repente, uma que não sirva para determinado veículo pode servir para outro.

Ruth Vianna - Quantas pautas você chega a sugerir e quantas são aceitas?

Turdera - Na semana, eu faço umas seis ou sete pautas. Dessas, duas são aceitas imediatamente. As outras ficam para depois e são negociadas.

Ruth Vianna - Quanto e como eles pagam, é por matéria ou por pauta?

Turdera - Por matéria, é pago por quantidade de linha. Mas depende do veículo. Agência paga mais que jornal. Em geral, é uma matéria standart, que varia de 30 a 60 linhas. Para cada 30 linhas se paga de R$ 150,00 a R$ 170,00.

Ruth Vianna - Em termos de economia, quais são os assuntos de mais interesse?

"Tudo que desperta mais interesse e que é matéria certa, imediatamente aceita, é Lula. Isto desde 2002, no tempo de campanha. Mas sua imagem foi positiva até o momento de toda aquela esperança surgida durante a campanha, que era claro que era só no plano retórico...".

Turdera - Mercosul, exportação de produtos brasileiros e tudo que tem a ver com movimentação financeira.

Ruth Vianna - Na questão política, que tipo de matéria desperta mais interesse?

Turdera - Tudo que desperta mais interesse e que é matéria certa, imediatamente aceita, é Lula. Isto desde 2002, no tempo de campanha. Mas sua imagem foi positiva até o momento de toda aquela esperança surgida durante a campanha, que era claro que era só no plano retórico.

Com o passar do tempo, as medidas econômicas e sociais tomadas pelo governo Lula criaram uma imagem do presidente de político tradicional, que faz o mesmo que os outros.

Na Argentina, por exemplo, Carlos Menem chegou com um discurso muito popular de reformas. E a primeira atitude que teve no governo foi implementar medidas contrarias às que tinha pregado. Então, é mais ou menos essa imagem que se tem de Lula agora.

Ele chegou ao governo com um discurso popular. Mas suas medidas não têm uma expressão mais coerente com o discurso. Entretanto, isso é uma condição do momento mundial atual. Internacionalmente, vê-se que ele está fazendo as coisas necessárias. E é bem melhor a imagem que Lula tem do que a de outros governos.

"A informação passou, realmente, pela Internet, independentemente das grandes corporações jornalísticas, com exceções muito pontuais. Mas, em geral, tudo que num primeiro momento foi informado como verdade jornalística terminou sendo apenas uma fórmula de propaganda. Então, foi uma grande armadilha".

Ruth Vianna - Guerra entra em pauta? Você chegou a pautar alguma matéria em relação ao conflito no Iraque?

Turdera - Não. A exceção foi o atentado no qual morreu o funcionário da ONU Sérgio Vieira de Melo e mais no sentido das relações, da postura e das declarações do Brasil sobre o assunto. Só isso.

Ruth Vianna - Do ponto de vista de correspondente, de argentino, e levando em conta que os Estados Unidos têm a ver com os nossos países em termos financeiros, como você assistiu à cobertura da guerra por parte do Brasil e do mundo?

Turdera - A minha impressão foi que não houve um tratamento jornalístico em termos gerais. A informação passou, realmente, pela Internet, independentemente das grandes corporações jornalísticas, com exceções muito pontuais. Mas, em geral, tudo que num primeiro momento foi informado como verdade jornalística terminou sendo apenas uma fórmula de propaganda. Então, foi uma grande armadilha.

Ruth Vianna - E a imprensa, os profissionais e a sociedade perdem com isso?

Turdera - Em primeiro lugar, a sociedade perde com qualquer guerra. Parece-me que qualquer sociedade perde com uma guerra.Mas digo em questão jornalística, que é um meio de expressão onde se demonstra que possa haver democracia e que cubra de maneira mais ética possível.

Em segundo lugar, perde mais ainda quando se tem uma guerra e a informação é parcializada. Então, não se sabe realmente o que está acontecendo. Em uma guerra o jornalista tem o dever de informar o que acontece, mas conta mentiras ou uma informação parcializada.

"Tenho falado com colegas que estiveram no front. Eles contaram as dificuldades de acesso a uma realidade diferente daquela que o próprio governo queria mostrar. Mas eles procuraram chegar a outros lugares que não foram pautados pela versão oficial dos fatos, seja do Iraque ou dos Estados Unidos, e conseguiram o diferencial de ver que a história não era do modo como contavam os americanos ou os iraquianos."

Ruth Vianna - Essa mentira e essa visão parcializada se deu por culpa dos profissionais, dos empresários de comunicação ou por culpa de quem?

Turdera - Acho que tem responsabilidades divididas. Tenho falado com colegas que estiveram no front. Eles contaram as dificuldades de acesso a uma realidade diferente daquela que o próprio governo queria mostrar. Mas eles procuraram chegar a outros lugares que não foram pautados pela versão oficial dos fatos, seja do Iraque ou dos Estados Unidos, e conseguiram o diferencial de ver que a história não era do modo como contavam os americanos ou os iraquianos.

Mas foram poucos. Eu acho que uma parte é de responsabilidade do repórter. Mas é difícil, sem estar no front, dizer que você pode se arriscar. Se bem que você já colocou em risco sua própria vida no momento em que aceitou ir para lá. Mas você aceitou ir lá para informar.

Se você morre, não tem sentido. Eu acho que, mesmo assim, o repórter tem parte de responsabilidade de tentar abrir os limites impostos pelo cenário dos fatos.

Eu também acho que há uma grande responsabilidade dos editores porque, exceto algumas empresas respeitáveis, há empresas muito variáveis e que facilmente se aliam com a política do governo de determinado momento, ainda quando usam disfarces e máscaras de jornalismo independente.

"A BBC é um exemplo de isenção. Não trabalharam durante a guerra de um jeito diferente ao qual têm trabalhado em outros casos e que têm construído sua credibilidade".

Ruth Vianna - Essa falta de verdade aconteceu só no Brasil ou no mundo todo?

Turdera - Não, no mundo todo. Tem alguns casos de isenção. A BBC é um exemplo de isenção. Não trabalharam durante a guerra de um jeito diferente ao qual têm trabalhado em outros casos e que têm construído sua credibilidade.

Mesmo nesse caso estando com o governo dos Estados Unidos, mantiveram a isenção. Mas os outros casos não. Bom, falou-se muito nessa guerra do jornalismo embutido. Mesmo assim, penso que a responsabilidade é dos repórteres, dos editores e da empresa.

Ruth Vianna - Como você viu a cobertura da Guerra pela televisão?

Turdera - Nessa época eu não era assinante dos canais a cabo. Então, assistia só à televisão aberta. Pareceu-me lamentável. Estava completamente desinformado. Não tinha nada a ver com a realidade. Mesmo que o Brasil não tivesse participado da guerra, acho que o tratamento da televisão aberta deixou bastante a desejar.

Ruth Vianna - Você falou que assiste aos jornais da Rede Globo e da TV Cultura? Quais telejornais dessas emissoras você assiste?

"É como a Coca-Cola que tem uma fórmula e repetindo-se essa fórmula ao longo dos anos obtém-se o mesmo produto. Parece-me que os jornais da Rede Globo têm conseguido isso. Encontraram uma fórmula de apresentação de notícias que não mudou e satisfaz às demandas informativas do público que assiste a esse telejornal. Agora, se você quer ver um pouco mais, não vai encontrar".

Turdera - O Jornal Nacional.

Ruth Vianna - Em geral, ou assiste a outros também?

Turdera - Sim. Vejo o Bom Dia São Paulo e o Bom Dia Brasil.

Ruth Vianna - Como você analisa cada um deles em termos de conteúdo, de linguagem e de edição?

Turdera - Na semana passada, por coincidência, assisti a um especial da Globo de oitos anos atrás. Encontrei por acaso uma fita que alguém me emprestou. Então, consegui ver as propagandas daquela época, que eram muito engraçadas, e os jornais. Vi que nem a estética nem o estilo nem a apresentação das notícias mudaram, mas a realidade tem mudado bastante de oito anos atrás até hoje.

Isso me faz pensar que eles são uma indústria como, sei lá, a indústria alimentícia. O produto tem uma fórmula determinada. É como a Coca-Cola que tem uma fórmula e repetindo-se essa fórmula ao longo dos anos obtém-se o mesmo produto. Parece-me que os jornais da Globo têm conseguido isso.

Encontraram uma fórmula de apresentação de notícias que não mudou e satisfaz às demandas informativas do público que assiste a esse telejornal. Agora, se você quer ver um pouco mais, não vai encontrar.

Ruth Vianna - Você se sente informado quando assiste a esse telejornal?

Turdera - Sim. Sinto que tenho um panorama de tudo. A partir daí, vou vendo o que tenho mais interesse para pesquisar. Mas tenho uma idéia geral apenas do que acontece.

Ruth Vianna - Com relação ao jornal da Cultura, qual a diferença que você vê?

Turdera - O enfoque que me permite descobrir coisas com as quais eu sinto mais afinidade. Encontro trabalho de pessoas nas áreas cultural, artística e intelectual.

Ruth Vianna - E do ponto de vista editorial, como forma de apresentação, estética e tudo mais?

Turdera - Tem matérias menos produzidas do que as da Globo. Às vezes, parecem mais improvisadas. Mas percebe-se que tem um trabalho de apuração.

Ruth Vianna - Você acha que as matérias apresentadas pela TV Cultura têm mais conteúdo do que as matérias da Globo? As notícias são maiores, mais aprofundadas?

"A CNN, a BBC e as cadeias de televisão têm uma estética uniforme. Se você desliga o som, quase não identifica se é Japão, Inglaterra, Estados Unidos, Espanha ou Brasil. Parece tudo a mesma coisa".

Turdera - Não. Há um conteúdo diferente. Mas as matérias duram mais tempo. Em termos de conteúdo, a televisão já não permite um maior aprofundamento. Exceto aquele programa de uma hora sobre o mesmo tema que você se dispõe a ver. Mas há cinco mil pessoas que assistem a esse tipo de programa.

"Há a preocupação de colocar a luz de determinado jeito, iluminar o personagem ou o entrevistado ou a cena. Não há a utilização de som como recurso dramático. Já nos especiais da Globo, o som tem uma função muito forte, muito significante".

Ruth Vianna - Na Argentina, os telejornais têm esse mesmo formato brasileiro ou é mais politizada?

Turdera - O que vejo é que os telejornais em quase todo mundo têm uma linguagem pasteurizada. A CNN, a BBC e as cadeias de televisão têm uma estética uniforme. Se você desliga o som, quase não identifica se é Japão, Inglaterra, Estados Unidos, Espanha ou Brasil. Parece tudo a mesma coisa.

Ruth Vianna - Você chega a avaliar a imagem, como iluminação, o som e a montagem?

Turdera - No Jornal da Globo parece que eles têm um cuidado específico, quase cinematográfico, quanto à utilização dos recursos de iluminação e do enquadramento nas matérias mais quentes.

Há a preocupação de colocar a luz de determinado jeito, iluminar o personagem ou o entrevistado ou a cena. Não há a utilização de som como recurso dramático. Já nos especiais da Globo, o som tem uma função muito forte, muito significante.

Ruth Vianna - Isso não para o jornalismo, mas para outros tipos de produção?

"Agora, como estamos em início de campanha municipal em São Paulo, começa a se ver o tratamento das notícias e, dependendo do candidato, há entrelinhas. Se se atentar especificamente a isso, é fácil descobrir quais são as entrelinhas e, às vezes, é a linha editorial da emissora. Mas eu acho que isso é de bastante mau-gosto. Os apresentadores deveriam dizer que isso é um editorial".

Turdera - Sim. Algumas são até engraçadas. Carrega-se na dramaticidade.

Ruth Vianna - Você acha que o texto dos telejornais é inteligente?

Turdera - Em geral, quando não se trata de um tema capital para o país, parece-me que é um texto informativo, mas inócuo. Não tem grandes conseqüências no receptor e não desperta reflexão. Parece-me que, imediatamente, não produz reflexão.

Agora, como estamos em início de campanha municipal em São Paulo, começa a se ver o tratamento das notícias e, dependendo do candidato, há entrelinhas. Se se atentar especificamente a isso, é fácil descobrir quais são as entrelinhas e, às vezes, é a linha editorial da emissora. Mas eu acho que isso é de bastante mau-gosto. Os apresentadores deveriam dizer que isso é um editorial.

"O conteúdo da notícia poderia estar bem relatado e colocado de maneira isenta, só com os fatos, mas ele (apresentador) ou ela (apresentadora) fez uma cara de desagrado e já determinou uma leitura".

Ruth Vianna - Você acha que os telejornais trabalham com a comunicação verbal de forma a influenciar o telespectador a ter uma opinião?

Turdera - Eu não saberia dizer até que ponto é consciente e deliberado, mas, muitas vezes, na apresentação de uma notícia ou de um fato, só com a expressão do rosto o apresentador está qualificando positiva ou negativamente uma notícia. E isso é claro. Tenho assistido à reação de pessoas perante o telejornal.

Quando o apresentador faz uma cara de desagrado a respeito de uma notícia que irá apresentar, a pessoa se amarra mais à expressão do que ao próprio conteúdo. O conteúdo da notícia poderia estar bem relatado e colocado de maneira isenta, só com os fatos, mas ele ou ela fez uma cara de desagrado e já determinou uma leitura.

"Na Argentina... Houve um momento em que as pessoas se identificavam com esse tipo de programa porque viam no jornalismo a possibilidade de ter sua opinião e sua voz representadas."

Ruth Vianna - Isso acontece também na Argentina? Como são as notícias dos telejornais argentinos?

Turdera - Há dois anos que não estou na Argentina, mas viajo periodicamente para lá. A última vez que estive lá foi há dois meses. Percebi que a televisão caiu muito de nível em relação ao que era. Antes de começar a crise de 2001 tinha um jornalismo muito interessante. O negócio foi realmente rentável para muitas empresas "periodísticas".

Houve um momento em que as pessoas se identificavam com esse tipo de programa porque viam no jornalismo a possibilidade de ter sua opinião e sua voz representadas. Então, isso também deu lugar a equívocos. As pessoas recorriam aos jornalistas antes de denunciar na Justiça um delito. Mas em termos gerais ainda tem um bom número de programas na televisão dedicados exclusivamente ao tratamento jornalístico, de informação. Porém, está tudo mais voltado ao entretenimento.

Mas eu acho que é um período que terminará logo. Na medida em que outras mídias, como a Internet, vão se desenvolvendo e ganhando público; se a televisão não produzir algum diferencial, necessariamente, vai perdendo credibilidade e vai ganhar um espaço nas casas das pessoas como elemento decorativo. Acho que é um risco na medida em que não produza produtos de interesse e que seja mero entretenimento.

"Para mim, naquele momento em que o governo decidiu expulsar o jornalista terminou o respeito natural que Lula (Presidente do Brasil) inspirava nas pessoas".

Ruth Vianna - Qual sua interpretação em termos de jornalismo e de representatividade em termos internacionais,; enfatizo aqui o episódio envolvendo o presidente Lula e o correspondente do jornal americano The New York Times?

Turdera - O episódio com o correspondente foi muito triste do ponto de vista tanto da matéria como da reação do governo. Para mim, naquele momento em que o governo decidiu expulsar o jornalista terminou o respeito natural que Lula inspirava nas pessoas. Estava claro que o governo não iria continuar com essa medida, mas só o fato de tomar uma decisão assim fez com que eu pensasse que Lula terminou de desencantar completamente.

Eu lembro em 2002, quando já estava aqui durante a campanha, e vi todo o processo de construção de uma imagem do Lula através da mídia. Por ser estrangeiro, identifiquei-me tanto com o momento histórico que o Brasil estava vivendo. Eu estava quase disposto a fazer campanha por ele. Na América Latina há poucos momentos comparados àquele. Depois da empolgação inicial dele chegando ao governo. Bastante romântica e ingênua em muitos casos de que sua política irá ser revolucionária, reformista e ativa, e achando que iria poder fazer arte do possível.

Eu pensei que quatro anos não é muito, mas é margem para fazer algo.

Se é que não uma (alguma coisa) do povo, uma revolução no estilo de Cuba, ou seja, algo mais radical. Então, é isso que vai acontecer. Serão quatro anos de reforma mínima para legitimar. Mas com a medida de expulsar o correspondente, pensei que era o pior do regime cubano, o pior dos regimes ditatoriais e num país onde nem dava para fazer algo assim.

"Depois desse episódio (pedido de expulsão do correspondente do The New York Times), seria muito ridículo tentar expulsar alguém. Se fosse, seria muito grave não só para os correspondentes porque eles poderiam estar hoje no Brasil e amanhã estar na Ásia ou em outro lugar... Mas seria muito ruim para a imagem do Brasil e para o próprio jornalismo porque estabelece um antecedente de pretensão de controle da livre expressão".

Ruth Vianna - O que mudou na vida do correspondente Carlos Turdera no Brasil e de um modo geral?

Turdera - Na vida do correspondente existe uma certeza geral de que podemos escrever sobre o que quisermos e que não acontecerá nada exceto algum tipo de pressão, mas ninguém vai nos expulsar. Depois desse episódio, seria muito ridículo tentar expulsar alguém.

Se fosse, seria muito grave não só para os correspondentes porque eles poderiam estar hoje no Brasil e amanhã estar na Ásia ou em outro lugar.

Mas seria muito ruim para a imagem do Brasil e para o próprio jornalismo porque estabelece um antecedente de pretensão de controle da livre expressão.

Eu estarei do lado daqueles que (alguma coisa). Mesmo uma matéria ruim como aquela do correspondente do The New York Times, acho que primeiro tem de se defender o direito de expressão. Depois vamos analisar. A partir desse episódio, eu acho que perdemos uma oportunidade de debater também o roll e os modos de trabalho do correspondente.

Ruth Vianna - Como deveria ser? O que deveria ser discutido?

Turdera - Essa pergunta é a melhor. Cada um de nós tem diferente... alguns, por exemplo, se dão muito bem com o Itamaraty, outros não têm acesso. Imagino que não por questões de interesse. Quando tento, muitas vezes, conseguir um contato para fazer uma matéria com alguém de primeira linha é sempre difícil.

Eu considero que não seja porque tenha alguma coisa em particular comigo ou para o meio para o qual eu represento ou escrevo às vezes. Mas cada um tem coisas diferentes.

Ruth Vianna - Deve ter ainda alguns interesses?

Turdera - Sim.

Ruth Vianna - Então, eles atendem de acordo com os interesses políticos e econômicos deles?

Turdera - Sim. Primeiro quanto ao lugar. Depois, quanto ao setor privado, digamos, às vezes há uma relação dupla como, por exemplo, empresários ou com pessoas do âmbito cultural. Muitas vezes, as pessoas estão trabalhando em coisas que são de interesse para fora, mas não percebem que o correspondente pode ser uma chave importante.

De repente, tem um projeto que funciona aqui e eles não têm idéia que possa funcionar e que há uma premissa de que deveria se conhecer o trabalho que está sendo bem feito. Os movimentos sociais, como o MST e alguns grupos da Amazônia, têm bem claro isso.

Ruth Vianna - Você tem em redação problemas de fazer uma matéria e as pessoas não quererem que você faça?

Turdera - Eu não diria que eles não querem, mas que eles, às vezes, não facilitam as coisas quando estariam ao seu alcance.

Ruth Vianna - Mas isso acontece sempre?

Turdera - Não, apenas em alguns casos.

Ruth Vianna - Qual o caso mais gritante?

Turdera - O caso mais recente é, por exemplo, o do Fórum Cultural Mundial que começa agora. Está bem que não é algo que vai mudar a realidade do Brasil, mas é algo interessante na medida em que junta pessoas do mundo todo em São Paulo, que é uma cidade de discussões e de debates.

Há dois dias, estou atrás de uma pessoa e não consigo que as pessoas responsáveis pela impressa me facilitem a chegar a essa pessoa para fazer uma entrevista.

Ruth Vianna - Não é o ministro...

Turdera - Poderia falar sobre relações oficiais. Agora estou colaborando com uma associação, uma parte mais formal e que tem a ver com contato e com relações institucionais e está melhor. Por experiência, às vezes é mais fácil conseguir uma entrevista por canais informais do que por canais organizados.

Ruth Vianna - A associação não faz esse contato para vocês?

Turdera - A associação organiza pautas, promove encontros com ministros e faz sondagem por interesses pessoais. Às vezes, precisa encontrar alguém e encontra. Eu conhecia a associação quase que por acaso. (Alguém) está vindo virar jornalista, virar estrangeiro e perguntou seu estava na associação.

Eu já sabia da existência e a partir daí tomei conhecimento de que os correspondentes estrangeiros trabalhavam quase juntos na medida do possível e que tinham criado a associação. Entrei em contato. Para mim, facilitou muitas as coisas. O fato de ser estrangeiro, ser jornalista e ter tido a participação na Folha tinha me aberto várias portas. Mas na associação encontrei a minha turma porque as problemáticas do jornalista brasileiro também são diferentes das do correspondente.

"Sempre há preferência por um jornalista da Folha, da Globo, do Estadão, da grande mídia e, de repente, o correspondente não tem acesso tão fácil. Se eu falo que sou do The New York Times, tenho acesso fácil e abrem-se as portas. Nem todos que estão na associação trabalham para veículos tão importantes".

Ruth Vianna - Quais são os problemas que a associação tem atendido e o que é necessário melhorar?

Turdera - Para mim, a associação facilitou muito principalmente depois do episódio do correspondente do The New York Times. Tem facilitado o acesso a outros âmbitos que eram mais difíceis de chegar mesmo com a associação pelo fato de que não tinham percebido o correspondente no dia-a-dia do trabalho jornalístico, em particular, em São Paulo. Ao mesmo tempo em que somos jornalistas aqui, somos correspondentes.

Sempre há preferência por um jornalista da Folha, da Globo, do Estadão, da grande mídia e, de repente, o correspondente não tem acesso tão fácil. Se eu falo que sou do The New York Times, tenho acesso fácil e abrem-se as portas. Nem todos que estão na associação trabalham para veículos tão importantes.

O jornal para o qual eu trabalho, por exemplo, não tem uma importância estratégica para o Brasil. Eles têm um interesse informativo, mas não têm um peso político. Para mim é difícil falar sobre a problemática mais grave do trabalho do correspondente em São Paulo porque a associação cobre o real institucional estabelecendo as relações públicas com ministérios, com empresas e com determinados âmbitos. Depois, fica na responsabilidade do correspondente manter esse relacionamento e manter as fontes.

Ruth Vianna - O correspondente não tem uma visibilidade no Brasil. Seria isso?

Turdera - Sim.

Ruth Vianna - Não é compreendida muito bem a importância desse correspondente?

Turdera - Sim.

Ruth Vianna- Talvez até uma deformação da própria visão do que é jornalismo e de desenvolver a atividade de jornalismo. Como são os correspondentes no seu país? Às vezes, tem uma importância vital você estar em outro país e ter pessoas de outro país cobrindo seu país, eu penso que isso é democracia. A informação e o direito de expressão são o auge da democracia. É fundamental ter outros jornalistas de outros países cobrindo o Brasil...

Turdera - Parece-me que tanto no Brasil como na Argentina só nos últimos tempos começou a conciliar o correspondente como alguém que faz parte da vida e do cotidiano. Na Argentina a idéia que eu tinha dos correspondentes era de um cara que o jornal alguma vez mandava à cidade para um evento importante. Depois, o cara voltava para a redação.

Eu tinha essa visão parcializada. Já é difícil ignorar que já existe um correspondente todo dia, não o que só vem para cobrir um evento, como eleição. Tem um correspondente todos os dias trabalhando, olhando, encontrando-se nas pautas dos jornalistas brasileiros e incorporado na vida democrática do país.

Ruth Vianna - E o estereotipo de que o jornalista é um bom vivam e ganha muito dinheiro... isso não existe? Seria um profissional a mais que tem de ser tratado com cuidado, tem problemas e uma série de coisas...

"...um aluno que queira ser correspondente não seja motivado por isso. Se pudesse ter a possibilidade de escolher o país para onde vai, estudar bastante sobre esse país, conhecer a realidade cultural e a história porque isso faz uma diferença muito grande. O jornalista está formado justamente para reportar o que vê. Contar o que acontece".

Turdera - Tem correspondentes que ganham muito dinheiro. Mas tem muitos correspondentes que não ganham muito dinheiro e que, em alguns casos, ganham menos do que os brasileiros. Então, é uma atividade bastante diversa.

Ruth Vianna - Assim mesmo, esse correspondente está olhando o país e está contando o país... Está mostrando como é aquele país que está cobrindo...

Turdera - Sim, sim.

Ruth Vianna - O que você diria com relação à sua atividade aos futuros jornalistas e aos futuros correspondentes? O que tem de ser mudado e o que tem de ser trabalhado nesse sentido?

Turdera - Vou responder pensando no que gostaria que tivessem me dito antes de ser correspondente. Para um aluno que tem a idéia de que o correspondente é um bom vivam e que ganha muito dinheiro, que tem emoções fortes principalmente porque você está em um país com uma cultura diferente da sua e que você vai cobrir fatos que têm transcendência nacional, que possam ter uma repercussão no seu país de origem. Então, necessariamente estarão em fatos importantes.

Dificilmente estarão em uma greve de um sindicato menor, que atinge só a cidade. Tudo isso tem o atrativo de levar o correspondente a uma vida agitada. Fora isso, um aluno que queira ser correspondente não seja motivado por isso. Se pudesse ter a possibilidade de escolher o país para onde vai, estudar bastante sobre esse país, conhecer a realidade cultural e a história porque isso faz uma diferença muito grande. O jornalista está formado justamente para reportar o que vê. Contar o que acontece.

Se você tem um conhecimento prévio da cultura e da história desse país, é muito maior a riqueza que você poderá passar para seus leitores e vai realizar a matéria. Há muitos casos de correspondentes que vão a lugares dos quais não sabem nada. Então, a visão também é parcial e chega a ser um jornalismo tão ruim como qualquer outro industrializado só para entretenimento ou superficial.

São Paulo, Brasil, maio de 2004.


*Carlos Turdera é Correspondente Internacional no Brasil do jornal "Jornada", colaborador free-lance da Agência Télam e Diretor da Associação dos Correspondentes Estrangeiros de São Paulo - ACE - São Paulo. Ruth Vianna é professora Adjunta do Departamento de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

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