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Especial

Fronteiras do jornalismo no espaço midiático:
A real dimensão da função ideológica da informação jornalística

Por Dennis Oliveira*

Resumo

Grande parte das obras dedicadas às teorias da comunicação trata a atividade jornalística como qualquer outra dentro do espaço midiático.

Normalmente, os estudos sociológicos da comunicação discutem as influências ideológicas, as construções de consensos, entre outros. Partem de alguns pressupostos incorretos, particularmente quando se trata do Brasil.

Reprodução

O primeiro deles é ignorar que o jornalismo, embora seja uma modalidade da comunicação de massas, tem uma singularidade dada pela sua origem histórica particular que é anterior a configuração dos meios de comunicação massivos ou mesmo da chamada indústria cultural.

O segundo é ignorar que o sistema de comunicação de massas não é somente jornalismo, aliás, o jornalismo ocupa uma parte pequena neste sistema. E, finalmente, temos a apresentação da terceira incompreensão comum nas críticas ao jornalismo.

Até que ponto o jornalismo propriamente dito é o principal construtor dos consensos ideológicos na sociedade? Assim, colocada as questões neste ponto, gostaríamos de apontar uma preocupação necessária para se discutir jornalismo na sociedade contemporânea: a definição do que é jornalismo, a demarcação de fronteiras dentro deste cipoal de mensagens massivas transmitidas pelos meios de comunicação e, a partir disto, qual é a verdadeira dimensão ideológica do jornalismo.

Palavras-chave

Jornalismo / Mídia / Esfera Oública / Cultura de Massas

1. Introdução

Grande parte das obras dedicadas às teorias da comunicação trata a atividade jornalística como qualquer outra dentro do espaço midiático.

Normalmente, os estudos sociológicos da comunicação discutem as influências ideológicas, as construções de consensos, entre outros.

Partem de alguns pressupostos incorretos, particularmente quando se trata do Brasil.

O primeiro deles é ignorar que o jornalismo, embora seja uma modalidade da comunicação de massas, tem uma singularidade dada pela sua origem histórica particular que é anterior a configuração dos meios de comunicação massivos ou mesmo da chamada indústria cultural. O jornalismo da forma como conhecemos hoje surge dentro do projeto iluminista, dentro da proposição de se constituir uma esfera pública independente do Estado. Por isto, a atividade jornalística, nos seus primórdios, teve um caráter revolucionário, de denúncia, de esclarecimento, de formação de idéias e fomentadora do debate público.

O direito à liberdade de expressão é um dos valores mais importantes na construção da sociedade democrática moderna. Ciro Marcondes Filho (2001) chama este jornalismo de jornalismo da ilustração. A atividade nada tinha de mercantil - eram iniciativas que partiam de personalidades ou agrupamentos interessados em intervir no debate público com suas idéias (transformadoras ou conservadoras) seja no aspecto da política institucional, seja no campo da estética artística.

É evidente que esta forma de jornalismo foi sendo modificada radicalmente ao longo dos tempos. O jornalismo deixou de ser uma atividade com caráter militante para se transformar em um empreendimento comercial. E tal mercantilização se acentua quando ele se articula dentro de um espaço maior, que é o sistema de comunicação de massas. E aí temos o segundo pressuposto incorreto nas críticas ao jornalismo.

O sistema de comunicação de massas não é somente jornalismo, aliás, o jornalismo ocupa uma parte pequena neste sistema. Esta é a segunda imprecisão das teorias da comunicação ao analisar o fenômeno do jornalismo, particularmente do seu papel construtor de visões ideológicas.

Ao observarmos as mídias contemporâneas - televisão, rádio, meios impressos, internet - veremos que o jornalismo é uma parte ínfima. O que predomina são produtos de entretenimento (shows, variedades, ficção, entre outros) e publicidade e propaganda. Portanto, o jornalismo ocupa uma parte minoritária neste arcabouço maior que é o sistema de comunicação massivo.

Diante disto, temos a apresentação da terceira incompreensão comum nas críticas ao jornalismo. Até que ponto o jornalismo propriamente dito é o principal construtor dos consensos ideológicos na sociedade? Se, conforme vimos no item anterior, o jornalismo ocupa uma parte ínfima do discurso midiático, é necessário relativizar este papel. Outros discursos midiáticos têm muito mais força no sentido de construir consensos ideológicos que o jornalismo, embora não descartamos o papel deste. No caso particular do Brasil, vários estudos demonstram que as telenovelas têm muito mais influência no agendamento dos debates públicos que os veículos jornalísticos. [1]

2. O que é jornalismo

Colocada as questões neste ponto, gostaríamos de apontar uma preocupação necessária para se discutir jornalismo na sociedade contemporânea: a definição do que é jornalismo, a demarcação de fronteiras dentro deste cipoal de mensagens massivas transmitidas pelos meios de comunicação.

A primeira questão que se coloca é que o jornalismo se referencia na veracidade das informações. (KUCINSKY, 2001 e 2005) Este é o seu ponto de partida o que o distingue radicalmente de outros produtos midiáticos, como as ficções, os shows, a publicidade e propaganda. A legitimidade do discurso jornalístico se centra no fato dele se referenciar na verdade. No caso de uma obra ficcional, isto não acontece: o autor da obra tem a liberdade de criar situações, personagens, tramas, assuntos, etc. Não há nenhuma exigência de fidelidade ao real.

Entretanto, o fato de se referenciar na veracidade das informações não faz do produto jornalístico uma reprodução exata da realidade. Aliás, consideramos isto impossível, pois pelo fato de ser um relato, necessariamente trata-se de uma versão, de um ponto de vista, de um olhar. O jornalismo é, então, uma reconstrução da realidade tendo como ponto de partida a veracidade das informações obtidas.

Isto dá ao jornalismo caracterizações específicas do campo ético, estético e metodológico. O jornalismo se funda por pressupostos deontológicos específicos, por uma estética discursiva particular e por métodos de construção do seu discurso também particulares. São estes fundamentos que distinguem a atividade jornalística das demais produções midiáticas e construir uma crítica teórica ao jornalismo deve partir destes fundamentos particulares. Não adianta cobrar do jornalismo algo que está fora dos seus propósitos como atividade social.

Comecemos pelo fim, pelos procedimentos metodológicos. O jornalismo tem uma forma particular de reconstrução da realidade. Por ser uma reconstrução da realidade, o jornalismo não é e nem nunca poderá ser uma atividade neutra ou imparcial. Estes valores presentes em vários manuais de redação ou códigos de ética inferem uma visão positivista de percepção da realidade. Parte do pressuposto da possibilidade de que uma reconstrução discursiva da realidade pode ser cópia fiel e exata da realidade. Por que isto é impossível?

Primeiramente, porque o jornalismo é uma atividade de constante seleção e combinação. A primeira seleção que se observa é na escolha do que merece ser noticiado ou não (a chamada "pauta"). Nem tudo o que acontece no dia será noticiado, isto seria impossível. Há uma seleção dos acontecimentos no período que serão transformados em fatos noticiosos.

É o chamado critério de noticiabilidade. Em geral, coloca-se que o critério de noticiabilidade se move pelo que se conhece como relevância pública.

Mas este é também um conceito amplo, pois parte do pressuposto que os jornais têm o poder de determinar quais são os assuntos são ou não de relevância pública. E ignora que, muitas vezes, no processo de elaboração das pautas, interesses particulares atuam. Por exemplo, jornais vinculados a grupos políticos ou econômicos tendem a agendar suas edições a partir dos interesses particulares destes grupos.
Outro problema que se coloca atualmente também são as chamadas assessorias de imprensa.

Os jornais não são mais instituições que vão à busca das notícias, mas atratores de informações. A sociedade se mediatizou e os vários grupos de interesse se articulam para atuar no ágora jornalístico, através, principalmente, a ação das assessorias de imprensa. É evidente que nesta disputa, o jogo é desigual. Os grupos mais poderosos exercem mais influência nos órgãos jornalísticos que outros e acabam vendo refletir esta hegemonia nas escolhas das pautas.

A pauta é então o recorte do contexto mais amplo feito pelo órgão de comunicação.

Na continuidade da produção da notícia, as escolhas continuam. A captação, feita pelo repórter, também é um processo de escolha: escolha das fontes, escolha das perguntas a serem feitas, escolha das fotos, escolha das informações que serão articuladas na matéria, entre outros.

Se partirmos do pressuposto que todo fato está inserido em uma teia de relações complexas, a retirada do mesmo do contexto mais amplo para se transformar em uma notícia particular dependerá de recortes que serão feitos pelo jornalista. É ele que tem o poder de definir os contornos deste recorte. Tais contornos definem o olhar que o jornalista deitou sobre o assunto.

Este poder que o jornalista tem na captação muitas vezes é ignorado por muitos dos críticos do jornalismo. A idéia de que o jornalismo reflete ipsis literis os interesses do dono da empresa jornalística ou dos grupos que a controlam ignora que o repórter tem também um poder - é ele que vai entrar em contato com a realidade, que vai captar as informações, que vai fazer o recorte do acontecimento para enquadrá-lo no esquema do discurso jornalístico. É evidente que este repórter já sai com uma série de condicionantes dada pelos seus superiores hierárquicos, mas é ilusão achar que ele é uma mera máquina de reprodução literal dos interesses do dono do jornal.

Na seqüência, o processo de seleção acontece também na redação.

Escrever uma notícia significa escolher as informações que serão priorizadas ou destacadas em detrimento de outras e até mesmo as que serão descartadas. Ao relatar o fato, o jornalista vai enfatizar aqueles elementos que considera os mais importantes e isto define o olhar ou angulação que ele está dando à informação. Se levarmos em conta ainda que o texto jornalístico tem uma estrutura que coloca as informações mais importantes no topo de matéria e as secundárias no final, esta hierarquização fica muito mais evidente.

E, finalmente, no processo de produção da informação jornalística, a edição é totalmente um momento de escolhas. Notícias são cortadas, pautas caem, algumas vão para a capa ou para páginas nobres, outras ganham um espaço secundário. Os títulos e chamadas de capa direcionam a leitura das matérias. Normalmente, esta fase é produzida sob controle das chefias (por esta razão, é comum observar uma discrepância na angulação dada pelos títulos e chamadas de capa e o corpo da matéria - são pessoas diferentes que fazem estas duas tarefas).

Percebemos que todo o processo de produção jornalística é uma reconstrução da realidade. Portanto, não é possível nenhuma neutralidade. O jornalismo é uma atividade de manipulação da realidade. O conceito de manipulação aqui não está colocado no sentido pejorativo, mas como uma atribuição intrínseca ao jornalismo. Manipular está, aqui, no sentido de reconstruir. Todo estes processos de seleção, escolhas, combinações, descartes, hierarquizações, adequação a uma estrutura discursiva, entre outros, compõe este processo de manipulação que, por conta da carga negativa que este termo recebeu em diversas obras de análise do jornalismo, chamaremos de reconstrução da realidade.

Considerar este processo de reconstrução da realidade no jornalismo como algo naturalmente negativo ou pernicioso implica em duas questões problemáticas:

a) primeiro, de que é possível constituir um relato sobre um acontecimento que não seja uma reconstrução da realidade - isto é, uma reprodução exata do real, o que implica em uma concepção positivista;

b) segundo, de que o jornalismo é, por si só, algo negativo porque falseia a realidade como se outras atividades que também se referenciam no real (como a ciência e a arte) também não fossem reconstruções da realidade - neste caso, todas as atividades discursivas humanas seriam negativas, em outras palavras, a condição humana seria algo negativo em si.

Acrescentamos a esta questão da reconstrução da realidade como atributo inerente à atividade jornalística a questão da objetividade. Como já afirmamos, o jornalismo se referencia na veracidade das informações, portanto, a objetividade é um dos atributos centrais do jornalismo.

Objetividade aqui é considerada como uma categoria relacionada a forma de relação entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido. A objetividade é uma característica da forma de observação. Ter a realidade concreta como ponto de referência é o que define a objetividade jornalística. É esta objetividade que distingue o jornalismo das outras narrativas midiáticas.

3. Objetividade e reconstrução: elementos contraditórios?

Entramos em uma aparente contradição: o jornalismo é, ao mesmo tempo, uma atividade centrada na objetividade e na reconstrução. Esta aparente contradição acontece porque acostumou-se associar objetividade a neutralidade, imparcialidade ou isenção. São conceitos distintos. Perseu Abramo mostra que enquanto a categoria objetividade está ligada a relação sujeito/objeto, portanto é um critério metodológico e epistemológico, as demais são categorias comportamentais, no sentido adjetivo.

"Há diferenças fundamentais entre a objetividade e os demais conceitos. Neutralidade, imparcialidade, isenção, honestidade, etc. são palavras que se situam no campo de ação. Dizem respeito aos critérios do fazer, do agir, do ser. Referem-se mais adequadamente a categorias de comportamento moral. Os próprios conceitos têm caráter moralista e moralizante e, quando conjugados aos seus antônimos, formam pares que tendem a um ajuizamento do tipo bom/mau, certo/errado, etc." (ABRAMO, 2003: p. 37/38)

Entendemos aqui objetividade na sua dimensão substantiva e que, necessariamente, não se define por uma possibilidade absoluta, de negação do seu contrário (a subjetividade).

Por ser uma categoria relacional - relação sujeito/objeto - a objetividade não nega a dimensão da subjetividade (sujeito). Esta discussão é fundamental porque tiramos a categoria objetividade do seu aspecto moral. Ao associar diretamente objetividade com neutralidade ou imparcialidade, ou concluímos que a objetividade é impossível, conforme afirma Clóvis Rossi (O que é jornalismo?) ou mesmo o Manual de Redação e Estilo da Folha de S. Paulo ou ainda que é possível retratar fielmente a realidade.

O próprio Rossi, de forma ingênua, diz que o jornalista só pode ser objetivo caso ele participe do acidente de trânsito que vai motivar a notícia. Como ele vivenciou aquele evento, ele teria condições de ser objetivo. Em outras palavras, para Rossi, a intermediação pela linguagem impede a objetividade. Porém, na sua perspectiva, esquece que mesmo o que participa do evento, tem um olhar sobre aquele evento que pode ser distinto de outros.

Novamente, recorremos a Abramo (2003) que afirma que:

"...o conceito de objetividade (...) situa-se em outro campo (...): o campo do conhecimento. A objetividade é uma categoria gnosiológica, epistemológica, mais que deontológica ou ontológica. A objetividade tem a ver com a relação que se estabelece entre o sujeito observador e o objeto observável (...) no momento do conhecimento. A objetividade não é um apanágio nem do sujeito nem do objeto, mas da relação entre um e outro, do diálogo entre sujeito e objeto; é uma característica, portanto, da observação, do conhecimento, do pensamento" (p. 39)

Abramo ainda afirma que o primeiro passo para se propor a um jornalismo centrado na objetividade metodológica consiste em assumir a possibilidade concreta de se buscar esta objetividade e se aproximar ao máximo dela. Segundo ele, os requisitos para tal são: conhecimento dos limites e das condições da capacidade humana de apreender e capturar o real, disposição de se alcançar esta objetividade e, por último, não se prender às aparências e procurar envolver totalmente o objeto da observação (o que não significa prender-se aos aspectos meramente quantificáveis do objeto mas o máximo possível das suas inter-relações).

No jornalismo esportivo, particularmente o futebol, por exemplo, esta questão é freqüentemente observada. Por tratar de um fenômeno que move paixões e, no caso particular do jogo de futebol, por ser este um tipo de jogo em que a imprevisibilidade está muito mais presente (ao contrário de outros esportes, onde os fatores técnicos são quase que determinantes para a definição da equipe vitoriosa), o jornalismo se prende a uma ação pendular entre um opinionismo subjetivista e uma tentativa de "objetivar" o jogo por meio de cifras, dados estatísticos e outras quantificações (a maioria delas copiada das transmissões esportivas dos jogos de basquete da liga estadunidense NBA) que pouco dizem sobre o fenômeno.

A objetividade e a manipulação como categorias inerentes ao jornalismo definem sua singularidade a partir de uma visão metodológica. Estas são as fronteiras metodológicas e epistêmicas do jornalismo. A partir delas, podemos discutir os seus pressupostos éticos.

A discussão da ética no jornalismo, muitas vezes - e de forma incorreta - se centra também na negação ou absolutização das categorias epistêmicas. Em outras palavras, a ética jornalística teria de ser totalmente objetivo e não reconstrutor. Mais uma vez o viés positivista vem a tona. E isto significa negar a própria natureza do jornalismo. A objetividade e a reconstrução como categorias típicas do jornalismo não podem ser o centro da discussão da ética. Elas são o ponto de partida.

Se partimos do pressuposto que o jornalismo é um processo de seleção ou de escolhas, desde a pauta até a edição, a ética no jornalismo deve se centrar nos critérios que norteiam estas seleções. Quais são os critérios que selecionam os assuntos que merecem ser noticiados, os que norteiam a seleção das fontes, a angulação e a hierarquização das matérias. Em outras palavras, a reconstrução da realidade feita no jornalismo é movida por valores - e é aí que entra a ética jornalística.

Uma outra dimensão da ética jornalística está na relação do jornalista com o fato -os procedimentos metodológicos instituídos na relação com o real também são movidos por critérios éticos. Assim, a ética jornalística perpassa todo o processo de sua produção.

Conforme afirma Eugênio Bucci, a ética no jornalismo está no próprio exercício da atividade, pouco se distinguindo da técnica.

"Dar voz aos dois lados de uma mesma história quando há dois lados que nela se enfrentam, é uma exigência ao mesmo tempo ética e técnica do jornalismo. Procurar a verdade dos fatos é um imperativo ético - e também o objetivo de toda a técnica jornalística." (BUCCI, 2000: p. 50)

O professor Salvador Alsius, da Universidade Pompeo Fabri, de Barcelona, também vai nesta direção. No seu texto "Ética no jornalismo? Invoque-se a qualidade", ele propõe um "thesauro" deontológico do jornalismo baseado em quatro princípios: princípio da veracidade, princípio da justiça, princípio da liberdade e o princípio da responsabilidade.

"Em primeiro lugar, o princípio da veracidade, que se subdivide em rigor informativo (precisão e exatidão, escolha, citação e confiabilidade das fontes, contextualização e aprofundamento da informação, difamação); neutralidade valorativa (separação entre informação e opinião, seleção de notícias, critérios de inclusão e formas de apresentação); procedimentos discursivos (obtenção de material como imagens e gravações, titulação e estruturas textuais, seleção e ordenação de imagem e som, gêneros informativos, elementos espúrios, gráficos e música); recreações e enredos (elementos de ficção e encenação, realimentação com a presença de fontes); procedimentos equivocados para a obtenção da informação (anonimato e disfarces, câmaras ocultas e gravações clandestinas); plágio. Em segundo lugar, trataria do princípio de justiça, que se subdivide em imparcialidade (inclusão de diferentes pontos de vista, direito de resposta, quotas políticas), tratamento de grupos sociais desfavorecidos, presunção de inocência. O princípio de liberdade seria o terceiro ponto, subdividido em: condicionamentos externos (controle do poder político, controles comerciais e outras formas de controle); relações com as fontes (coleta de informações, condições impostas, direito das fontes, segredo profissional) e conflito de interesses (interesse empresarial e interesses particulares dos jornalistas). Finalmente, o quarto item do Thesaurus deontológico abordaria o princípio de responsabilidade, que se ramifica em: primazia da vida e da segurança das pessoas (prioridade à ajuda humanitária, segurança nacional, cobertura do terrorismo); privacidade (invasão da intimidade, proteção aos menores, direito à própria imagem) e matérias de sensibilidade social especial (contrárias ao incentivo à violência e outras condutas anti-sociais)." (ALSIUS, 2003)

As definições de Alsius sintetizam esta inter-relação entre aspectos éticos e técnicos do jornalismo. Os cuidados éticos sinalizam para um rigor nos procedimentos éticos no jornalismo, o que aponta para a idéia de que um jornalismo de qualidade necessariamente é ético e um jornalismo anti-ético é, necessariamente, um mau jornalismo.

Para exemplificar isto, citamos o episódio do correspondente do jornal "New York Times", Larry Rother, a respeito da matéria publicada em 9 de maio de 2004 em que denuncia que o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva bebe muito e tal fato se transformou em uma preocupação nacional. O caso gerou uma grande celeuma, principalmente após a medida tomada pelo governo brasileiro - depois revogada - de cancelar o visto de trabalho do correspondente, o que equivaleria a sua expulsão do país.

Mas vamos analisar o caso do ponto de vista da ética e da técnica jornalísticas.

Como ele chegou a conclusão que Lula bebe além a conta? Por meio de informações de um político de oposição (o falecido ex-governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola) que é conhecido por declarações bombásticas; do colunista Diogo Mainardi, colunista da revista Veja, um dos periódicos que mais fazem campanha sistemática contra o governo Lula, e também conhecido pelo seu destempero (em certa ocasião, em um debate na televisão, chamou o ex-lutador de boxe Maguila de "macaco", uma das caracterizações mais racistas utilizadas contra os afro-descendentes); e de um outro "colunista" Cláudio Humberto que foi, nada mais, nada menos, que secretário do ex-presidente conservador Fernando Collor, cassado por corrupção.

Enfim, todas as fontes citadas estão não só colocadas em um espectro políticoideológico de oposição ao governo, como também são conhecidas pelo seu caráter histriônico e, portanto, não mediriam palavras para difamar a imagem do presidente. São pessoas, cujo histórico demonstra, não tem limites para criticar os seus oponentes, indo para o campo pessoal. O próprio Cláudio Humberto, quando da separação conjugal da prefeita de São Paulo Marta Suplicy do senador Eduardo Suplicy, publicou matérias pagas em vários jornais brasileiros recheadas de conteúdo machista e ofensivas aos dois políticos do Partido dos Trabalhadores.

Um outro aspecto importante: as declarações destas fontes foram retiradas de outros artigos e não obtidas por meio de alguma entrevista concedida ao jornalista. É a prática condenável que chamamos no jornalismo de "cozido". Declarações retiradas do contexto em que foram produzidas constroem outros sentidos que não são, necessariamente, aqueles que o declarante queria expor quando deu a declaração.

E o "outro lado" foi ouvido? Segundo Rohter, os porta-vozes do governo(não diz quais) se negam a comentar o assunto e, segundo ele, "um breve e-mail" mandado para os mesmos pedindo que comentassem isto, foi respondido que a acusação era de má-fé.

Agora, quanto a segunda tese de que a suposta "bebedeira" de Lula é um problema nacional. Para defender esta idéia, o jornalista faz referência ao ex-presidente Jânio Quadros. Segundo Rohter, o alcoolismo do ex-presidente o fez renunciar intempestivamente e isto levou o país a sofrer uma ditadura militar durante mais de 20 anos. Nenhum historiador sério relaciona o golpe militar de 1964 com a renúncia de Jânio Quadros ou mesmo o seu suposto alcoolismo. Esta é uma das mais originais teses de que se conhece sobre as causas do golpe de 1964.

O exemplo dado mostra que o jornalista do New York Times cometeu erros técnicos (ouviu apenas um lado, descontextualizou declarações e apontou para conclusões do ponto de vista histórico incorretas) e éticos (critérios parciais na escolha das fontes, relevância questionável quanto a própria pauta e não concessão de espaço para a pessoa atingida pela reportagem). O resultado disto é uma matéria jornalística de péssima qualidade, posição, aliás, unânime entre a maioria dos jornalistas brasileiros quando da sua publicação (a unanimidade só não aconteceu quando da decisão intempestiva do governo de cancelar o visto do correspondente que de mau jornalista virou uma vítima).

Aplicando os conceitos de Alsius, Rother feriu os princípios da veracidade (na escolha parcial das fontes) e de justiça (não colocação de pontos de vista distintos na mesma matéria). Não há ética e qualidade na matéria de Rother.

4. Considerações finais: jornalismo como atividade liberal

Os conceitos de veracidade, justiça, liberdade e responsabilidade se articulam dentro de uma perspectiva de uma sociedade democrática-liberal. O jornalismo nasceu junto com o liberalismo clássico e incorpora os seus valores éticos. Neste sentido, a discussão de qualidade e ética jornalísticas tangenciam a recuperação de valores próprios da sociedade democrática-liberal clássica entrando, muitas vezes, em confrontação com a dinâmica atual de incorporação à esfera econômica dos valores próprios da esfera política. Por isto, o jornalismo - e todo o seu arcabouço ético e técnico - está intimamente vinculado à própria sobrevivência e as formas que se estruturam os princípios da sociedade liberal-democrática.

O que fica como desafio para discutir neste momento é quais são as perspectivas e possibilidades de se retomar tais valores éticos e qualitativos do jornalismo dentro da conjuntura neoliberal em que há esta incorporação da esfera política pela esfera econômica.

Em outras palavras, quando a esfera pública se transforma meramente em mercado, a ética jornalística tem a possibilidade de ser um espaço de crítica a atual configuração societária ou é uma discussão totalmente vazia de conteúdo.

Bibliografia

ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. S. Paulo: Perseu
Abramo, 2003.

ALSIUS, Salvador. "Ética no jornalismo: invoque-se a qualidade" (conferência proferida
no Congresso da Intercom de 2003 - Belo Horizonte) mimeo.

BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. São Paulo: Cia das Letras, 2001.

KUCINSKY, Bernardo. A síndrome da antena parabólica. S. Paulo: Perseu Abramo,
2001.

___________________. Jornalismo na era virtual: a crise da razão ética. S. Paulo:
Perseu Abramo/Unesp, 2005.

LIMA, Venício. Mídia: teoria e política. S. Paulo: Perseu Abramo, 2000.

MARCONDES FILHO, Ciro. A saga dos cães perdidos. S. Paulo: Hacker, 2000.

OLIVEIRA, Dennis; MAIA, Marta Regina. Revista Veja: o temor como mecanismo
controlador da esfera pública. (trabalho apresentado ao Colóquio de Teoria Crítica de
2004 - Piracicaba).

Notas

[1] A este respeito, ver os estudos do grupo de Mídia e Política da UnB, na qual os pesquisadores concluem que a telenovela é o principal elemento fomentador do debate político no Brasil. Estes pesquisadores criaram a interessante hipótese do CR-P (Cenário de Representação Política), onde a ficção televisiva seriada constrói.

[2] Ver LIMA, Venício. Mídia: teoria e política. S. Paulo: Perseu Abramo, 2000.


*Dennis Oliveira é Doutor em Ciências da Comunicação, Professor da Escola de Comunicações e Artes da USP (SP) e Coordenador do curso de Jornalismo da Universidade Metodista de Piracicaba - SP. E-mail: dennisoliveira@uol.com.br.

**Trabalho apresentado durante o IX Colóquio Internacional sobre a Escola Latino-Americana de Comunicação (CELACOM 2005), realizado de 9 a 11 de Maio de 2005 no Campus Rudge Ramos da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).


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