...................................................................... pjbr@eca.usp.br









...
...

 

Especial


O futuro da documentação
fotográfica na era digital

Por Douglas Amparo Mansur*

 


Ilustração: Marcelo J.
Resumo

A história precisa ser compreendida e não somente conhecida. A documentação fotográfica armazena de maneira estruturada os acontecimentos, o que permite resgatá-los, interpretá-los e alicerçar a construção da memória coletiva. Devemos ainda considerar que somente por meio das gerações é que se fixa a cultura, se comunicam os valores, as crenças e o sentido histórico dos fatos.

Diante das rápidas e profundas transformações que estão ocorrendo no universo globalizado digitalmente, a formação de profissionais que documentam os momentos por meio de imagens é muito importante, pois o profissional revela seus desejos e ideologia, daí a necessidade do aperfeiçoamento e da constante reciclagem, tanto na área técnica, social, política e cultural.

O presente artigo tem o intuito de suscitar a discussão sobre o futuro da documentação fotográfica e sua forma de armazenamento na era da câmera digital, sem a pretensão de esgotar o tema e sim contribuir na reflexão da fotografia como um instrumento pedagógico na conscientização sobre a realidade na qual vivemos.

Palavras-chaves

Fotografia / Digital / Memória / Documentação

Fotografia como instrumento de conscientização

"Imagens são documentos para a história e também para a história da fotografia. É a fotografia um intrigante documento visual cujo conteúdo é a um só tempo revelador de informações e detonador de emoções" [1]
Boris Kossoy

Fotografar é eternizar os momentos para que as próximas gerações possam sentir, olhar e aprender com eles o que hoje estamos construindo. Para Francastel [1993] a arte tem como matéria-prima o real, mas sempre lhe acrescenta algo. Mesmo quando produz imagens aparentemente fiéis, escolhe e modifica, por conseguinte relações de valor e de grandeza das coisas entre si. Assim também é o processo fotográfico. A arte registra tudo que há de irracional e de passional daqueles que a criam, dos que a desejam, e os que a usam. Manifesta o mito, mas cria a utopia.

O ato de fotografar é uma arte quando retrata o corpo, paisagens, movimentos sociais, momentos históricos, cenas do dia-a-dia, a vida religiosa, cultural, social, política e econômica. O profissional revela sua alma, desejos e ideologia através de seus olhos, dedos e pensamentos. E quando o fotógrafo revela sua alma por meio das imagens e estas se tornam fragmentos da vida; não podem simplesmente ser usadas para ilustrar ou adornar um artigo, coluna, capa de livro ou jornal. Pois, como afirma Susan Sontag [1981] em seu livro Ensaios sobre Fotografia, o resultado mais nobre da atividade fotográfica é se constituir numa antologia de imagens.

Um estudioso da fotografia no Brasil e na América Latina, Professor Boris Kossoy, [2001] comenta que "as imagens são documentos para a história e também para a história da fotografia. É um intrigante documento visual cujo conteúdo é a um só tempo revelador de informações e detonador de emoções".

O ato de fotografar é também um encontro com o mistério da eternidade. Por intermédio das imagens registramos o desaparecimento do momento, mas é este mistério que serve de instrumento para animar e fortalecer o aparecimento do novo, por isso é importante valorizá-lo. A fotografia talvez seja, dentre todos, o objeto mais misterioso que compõe o mundo que identificamos como moderno, destaca Sontag [1981].

Para Sontag [1981] a fotografia é um fragmento do mundo, miniatura de uma realidade que todos podemos construir ou adquirir. Ao brincar com a escala do mundo, a fotografia pode ser reduzida, ampliada, cortada, retocada, consertada ou distorcida. Envelhece ao ser infestada pelas doenças comuns aos objetos feitos de papel; desaparece, valoriza-se, é comprada e vendida; é reproduzida.

Abarrotando o mundo, a fotografia convida ao acúmulo. Pregam-na em álbuns, é emoldurada e colocada sobre as mesas, presas a paredes, projetada na forma de slides. Jornais e revistas a exibem; a polícia codifica; museus a expõem; editores a copilam.

A fotografia também ensina um novo código visual, ela transforma e amplia a noção sobre o que vale a pena olhar e efetivamente observar. A fotografia é uma gramática, e mais do que isso, uma ética.

Diante do significado da fotografia, é preciso fazer uma reflexão sobre o seu papel no contexto social, pois embora num certo sentido a câmera efetivamente capte a realidade e faça mais do que apenas interpretá-la, a fotografia constitui uma interpretação do mundo, da mesma forma que a pintura ou desenho, assinala Sontag [1981].

A fotografia confere ao evento uma espécie de imortalidade e de importância.

Por detrás da câmera o fotógrafo ou fotógrafa, cria um minúsculo elemento de outro mundo: o mundo das imagens que se oferecem para sobreviver a todos nós; ressalta Sontag [1981].

Embora o termo acontecimento tenha passado a significar, precisamente, aquilo que é digno de fotografar, ainda é a ideologia (no sentido lato) que determina o que constitui o acontecimento. Um acontecimento somente pode ser comprovado, fotograficamente ou de outro modo, se tiver identificado ou caracterizado, pondera Sontag [1981].

A linguagem verbal é grandemente utilizada pelas sociedades humanas, seja nas suas comunicações habituais, como e principalmente na elaboração das doutrinas políticas, religiosas, culturais, sociológicas que determinam a pressão dos grupos dirigentes sobre a sociedade. Francastel [1993] questiona se caso houvesse uma sociedade que elaborasse sistemas sem criar objetos e sem definir condutas, esta possuiria menor valor e menor crédito. Ele também faz uma distinção entre a palavra e a arte. A palavra é o testemunho das atividades abstratas do espírito, a arte é o testemunho de suas atividades informantes do real, isto é, não expressivas, mas figurativas.

De modo que vivemos num mundo onde só tem valor a escrita. Francastel [1993] diz "que nossa herança livresca predomina como meio de conhecimento científico". A fotografia é por causa dessa tradição institucionalizada, geralmente vista com desconfiança e com restrições. Do ponto de vista de Francastel [1993], deu-se uma ênfase exagerada ao texto escrito na formação geral das gerações recentes, o que nos levou a uma crise, pois o homem não só vive pelas palavras, mas também pelos olhos e ouvidos.

Segundo Francastel [1993] a obra de arte, seja ela qual for é realmente o produto de um dos sistemas pelos quais a humanidade conquista e comunica sua sabedoria ao mesmo tempo em que realiza as suas obras.

Para Francastel [1993] a arte não só abre ao homem uma pequena janela sobre não se sabe qual vago infinito: ela nos guia incessantemente sua mão e seu espírito, é um dos caminhos pelos quais orienta e particulariza a ação de suas mãos. Sem a arte, a técnica seria apenas uma atividade vã; sem técnica a arte não passaria de um inútil jogo de sombras fugidias.

Desse modo, o registro fotográfico sinaliza a existência de determinados cenários sócio-culturais, econômicos e político, podendo refletir esta ou aquela ideologia. "Fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. É envolver-se numa certa relação com o mundo que se assemelha com o conhecimento - com o poder",[2] enfatiza Sontag [1981].

A história precisa ser compreendida e não somente conhecida. A documentação fotográfica armazena de maneira estruturada os acontecimentos, o que permite resgatá-los, interpretá-los e alicerçar a construção da memória coletiva. Devemos ainda considerar que somente por meio das gerações é que se fixa a cultura, se comunicam os valores, as crenças e o sentido histórico dos fatos.

Era digital processo que desvenda uma qualidade aprimorada para melhor documentar a história

Hoje vivemos num conturbado modelo de sociedade, onde não se têm mais raízes para se segurar. Vivenciamos o processo de globalização com as suas dramáticas conseqüências econômicas e sócio-culturais, que pode significar prosperidade plena para uns e para muitos a miséria absoluta. Este modelo hegemônico e complexo invade as culturas, modifica as relações sociais e de poder. Ao utilizar as avançadas tecnologias, conecta-se o mundo de um ponto ao outro, seja via satélite ou Internet, a mídia cria dessa maneira; uma ilusão de participação social nas diretrizes globais.

As inquietações do mundo moderno nos levam a refletir sobre as profundas transformações ocorridas no processo de desenvolvimento da sociedade humana durante os últimos anos nos seus vários âmbitos, quais sejam; social, cultural, econômico, filosófico e tecnológico.

Diante das rápidas e profundas transformações que estão ocorrendo no universo globalizado digitalmente, é muito importante a formação de profissionais que documentam os momentos por meio de imagens, pois o profissional revela seus desejos e ideologia, daí a necessidade do aperfeiçoamento e da constante reciclagem, tanto na área técnica, social, política e cultural. Como diz o fotógrafo Sebastião Salgado "O fotógrafo para ser fotógrafo precisa de uma grande quantidade de humildade e a cada manhã dizer que ele não compreendeu, que ele não é nada, que ele ainda não é fotógrafo, que ele tem de compreender a sociedade, que há muita coisa para aprender, e que tem de refazer tudo que fez."

Muitas entidades e movimentos sociais criaram um setor para arquivar as imagens - o que é muito importante - mas não têm a preocupação em desenvolver uma cultura de documentação fotográfica própria. Quando fotografam e registram os eventos tais como, assembléias, seminários, congresso, enfim a vida; é somente para prestação de contas para àqueles que patrocinaram, ou levar a foto do acontecimento para aqueles que não participaram apreciar. E muitas vezes esquecem que estão fazendo história!

Com a criação e estruturação de bancos de dados é possível elaborar e desenvolver uma política de documentação da história da sociedade, a qual será de suma importância para publicações, exposições e consulta para os estudiosos sobre a trajetória dos movimentos, comunidades, sindicatos, cidades, Estados e por fim sobre a história de uma Nação. "Pois imagens que mobilizam a consciência estão sempre ligadas a determinadas situações históricas", frisa Sontag [1981].

A importância da documentação por meio da imagem e a consciência de preservar os momentos são de suma importância para a história da humanidade. Na era digital onde todos os equipamentos estão à disposição para que os momentos sejam documentados, percebemos que estes momentos são fotografados, mas na edição a maioria das imagens é deletada.

A inquietação na era digital nos leva a refletir e a questionar os modelos aplicados no armazenamento das imagens que documentam e fixam os momentos da história. Se olharmos os arquivos dos grandes jornais, das pautas realizadas no dia a dia, 20 % das imagens são armazenadas.

Nos sindicatos, associações, movimentos sociais, sindicais e religiosas a preocupação é maior, observamos que a febre de máquinas digitais recheia de ansiedade e vontade de todos em querer fotografar; aí está o nosso grande desafio na conscientização da importância da documentação fotográfica de maneira sistematizada, no preparo das pessoas ou na melhor contratação de profissionais para registro dos momentos da trajetória, tanto das entidades ou dos momentos vividos.

Torna-se primordial lapidar a consciência daqueles que estão fotografando, seja ele um profissional da imagem ou um amador, sobre da importância de sempre se reciclar sobre o tema desenvolvido, e sobre meios de se armazenar os acontecimentos da história.

Entendemos que a fotografia é também um instrumento pedagógico de conscientização sobre a realidade na qual vivemos, uma forma de perceber os erros e os avanços do passado como um importante papel na construção da memória coletiva.

Referências bibliográficas

ARCHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnográfia: um estudo de
antropologia visual sobre lixo e trabalho. Porto Alegre: Tomo Editorial, 1997.

AUMONT, Jacques. A Imagem: Campinas: Papirus, 1993.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas
Fundamentais do Método sociológico na Ciência da Linguagem. São Paulo: Hucitec; Annablume, 2002.

BARTHES, Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

BUSSELLE, Michael. Tudo sobre Fotografia. São Paulo: Pioneira, 1998.

CANCLINI, Nestor García. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp, 1997.

DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico. Campinas: Papirus, 1999.

FABRIS, Annatereza. (org.) Fotografia: usos e funções no século XIX. São
Paulo: Edusp-1991.

FLUSSER, Vilém. Filisofia da Caixa Preta: Ensaios para uma Filosofia da Fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

FRANCASTEL. Pierre. A Realidade figurativa. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993.

KOSSOY, Boris. Fotografia e história. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

_____________.; Maria Luiza Tucci Carneiro. O Olhar Europeu: O Negro na Iconografia do Século XIX. São Paulo: Edusp, 1994.

_____________. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê Editora, 1999.

_____________. Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro: fotógrafos e ofício da fotografiano Brasil (1833-1910). São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2002.

LEITE, Miriam Moreira. Retratos de Família: Leitura da Fotografia
Histórica. São Paulo: Edusp, 1993.

LIMA, Ivan. Sobre Fotografia. Rio de Janeiro: Funarte/Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro, 1983.

MACHADO, Arlindo. A ilusão espetacular: introdução a fotografia. São Paulo: Brasiliense, 1984.

_________________. Máquina e Imaginário. São Paulo: Edusp, 1996.

MANSUR, Douglas Amparo. Focus: Movimento dos Sem Terrinha. Revista Cultura Vozes, nº 91, encarte, São Paulo, Março/Abril, 1997.

______________________. Os Horizontes da Documentação Fotográfica na construção da memória na Conquista da Terra - Paraná (Região Centro-Oeste e Paraguai (Região do Alto Paraná). Dissertação de Mestrado. São Paulo - USP - 2004.

MENEZES, Paulo. A Trama das Imagens. São Paulo: Edusp, 1997.

OLIVEIRA, João Sócrates de. Manual prático de Preservação Fotográfica. São Paulo: Sicct, 1980.

PERSICHETTI, Simonetta. Imagens da fotografia Brasileira. São Paulo: Estação Liberdade, 1997.

PLEKHANOV. O papel do Indivíduo na história. São Paulo, Expressão Popular, 2000.

RIBEIRO, José Hamilton. Jornalista: 1937 a 1997: História da Imprensa de São Paulo vista pelos que batalham laudas (terminais), câmeras e microfones. São Paulo: Imprensa Oficial, 1998.

SALGADO, Sebastião. As melhores Fotos. São Paulo: Bocato, 1992.

SAMAIN, Etienne. O Fotográfico. São Paulo: Hucitec, 1998.

SANTAELLA, Lucia; NOTH, Winfried. Imagem: Cognição, Semiótica, Mídia. São Paulo: Iluminas, 1999.

SONTAG, Susan. Ensaio sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Editora Arbor, 1981.

Notas

[1] KOSSOY, Boris. Fotografia e história. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. p.16.

[2] SONTAG, Susan. Ensaio sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Editora Arbor, 1981.


*Douglas Amparo Mansur é Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Integração da América Latina (PROLAM) da Universidade de São Paulo USP, Professor da UNICSUL (Universidade Cruzeiro do Sul) e da UNISANTANA e Repórter Fotográfico (SP). E-mail: damansur@terra.com.br.

**Trabalho apresentado durante o IX Colóquio Internacional sobre a Escola Latino-Americana de Comunicação (CELACOM 2005), realizado de 9 a 11 de Maio de 2005 no Campus Rudge Ramos da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).


2 Faça aqui o download deste texto em PDF (129 Kb).

Voltar

www.eca.usp.br/pjbr