Entrevistas
O
Governo Lula e a
liberdade de expressão
Depoimentos de Eustáquio
Gomes, Clayton Levy
e Álvaro Kassab ao Jornal da Unicamp
Nas
últimas semanas o governo Lula foi colocado sob a suspeição
de que estaria tentando se apropriar da informação
pública. Para debater o tema, o JU ouviu os professores
Reginaldo Moraes, Roberto Romano (Unicamp), Francisco de Oliveira
(USP) e Fábio Wanderley Reis (UFMG).
Ao
longo das últimas duas semanas o governo Lula, eleito
dentro de um contexto democrático, foi colocado sob uma
suspeição inusitada: o de que estaria se deixando
levar pela "tentação autoritária".
A pedra de toque foi o anteprojeto para a criação
de um Conselho Federal de Jornalismo, nos moldes dos conselhos
já existentes para as categorias de profissionais liberais
como médicos e advogados.
A
grita foi geral: interpretou-se a medida como uma tentativa
de controle da mídia e da liberdade de informação,
com o risco adicional de que a tarefa possa vir a ser confiada
a um braço sindical do governo. O governo se defende
com o argumento de que "a sociedade tem o direito à
informação prestada com qualidade, correção
e precisão, baseada em apuração ética
dos fatos", conforme exposição do ministro
do Trabalho, Ricardo Berzoini.
Outros
sintomas de "dirigismo" governamental foram evocados,
como a tentativa de expulsão do jornalista do The
New York Times em maio passado, o anteprojeto de lei que
cria a Agência Nacional de Cinema e do Audiovisual (Ancinav),
o decreto que pretende proibir funcionários públicos
de dar informações à imprensa, a tentativa
de limitar o alcance da ação do Ministério
Público e, por último, o decreto que permitiria
ao governo, sem autorização adicional da Justiça,
disseminar em suas instâncias executivas informações
sobre pessoas físicas e jurídicas cujo sigilo
fiscal, bancário e telefônico for quebrado.
Nesta
página, os professores Francisco de Oliveira (USP), Fábio
Wanderley Reis (UFMG), Roberto Romano e Reginaldo Moraes, ambos
do IFCH/Unicamp, na esteira dos desdobramentos da polêmica,
avaliam as intenções do governo.
Jornal
da Unicamp - Segundo os críticos dessas medidas,
o que está por trás do "pacote regulador"
do governo é um esforço de apropriação
da informação pública. Ou seja, o governo
gostaria de controlar qualidade da informação
que chega à sociedade e, ao mesmo tempo, ter acesso livre
e privilegiado a informações sigilosas sobre os
cidadãos. Como o senhor analisa essa postura? O senhor
vê nisso algum risco ou os críticos estão
vendo fantasmas?
Fábio
Wanderley Reis - Creio que "algum risco" certamente
existe. Acho negativo sobretudo o fato de termos simultaneamente
várias iniciativas, o que lhes dá o caráter
de "pacote" de que fala a pergunta, e as origens do
PT (e mesmo algumas experiências de governo, como eventos
ocorridos, por exemplo, na seleção de professores
durante o governo de Olívio Dutra no Rio Grande do Sul)
permitem supor que setores do partido se apeguem a uma perspectiva
ideológica sectária e de fraco compromisso com
os princípios da democracia liberal e das liberdades
civis.
Francisco
de Oliveira - Não acho que os críticos estejam
vendo fantasmas. Acho que os críticos estão apenas
incidindo que isso é uma característica do governo
Lula. Na verdade, a coisa é mais grave. Os Estados da
periferia do capitalismo estão condenados a ser Estados
de exceção.
São
Estados pré-totalitários. Para agüentar o
rojão da globalização desenfreada, eles
tentam conter e controlar todos os limites da sociedade e da
economia. Isso leva à banalização do instituto
da Medida Provisória. Qualquer crise na periferia torna-se
urgente e o Estado, então, utiliza esses mecanismos de
exceção. No caso da informação,
é o que está se apresentando.
Reginaldo
Moraes - As palavras não são inocentes. Apropriação
da informação pública? Quem se apropria?
E quem é expropriado? De quem é, hoje, essa informação
que se diz "pública"? Nesse campo, como diz
o ditado, manda quem pode, obedece quem tem juízo. Qualquer
jornalista que se aventurou a ter alguma idéia na cabeça
- e que não correspondesse àquela de seu patrão
- sabe do que estamos falando.
Será
que temos mesmo dirigismo governamental, com a criação
desse conselho? Engraçado é ver um detalhe desse
projeto de lei enviado ao Congresso - e que não foi iniciativa
do governo, mas da Federação dos Jornalistas,
há vários anos. Ele disciplina a composição
do Conselho. E ele... não tem representantes do governo.
Detalhe singelo.
A liberdade de imprensa atualmente em uso permite, por exemplo,
que centenas de páginas e horas de transmissão
de rádio e tevê tenham sido produzidas por esse
assunto sem que certas pequenas coisas tenham sequer sido mencionadas.
Por exemplo, essa, que os conselheiros serão eleitos
entre todos os jornalistas profissionais.
Não
serão nomeados pelo governo. Curiosamente, também,
sequer notícia breve se registrou sobre o fato de que
o Congresso Nacional de Jornalistas, recém-realizado
na Paraíba, apoiou unanimemente o envio do projeto de
lei. TVs, jornalões e rádios não deram
essa notícia, nem para dizer que esses jornalistas são
doidos: melhor não dizer, não é mesmo?
Os críticos não estão vendo fantasmas,
não. Eles estão muito lúcidos. Estão
atirando naquilo que vêem. Mas querem que pensemos que
atiram em outra coisa.
A
"informação que chega à sociedade"
não "chega" - é levada por alguém.
Alguém que quer permanecer na sombra.
Roberto
Romano -
Tenho uma posição antiga sobre o tema. Em dois
livros (O Caldeirão de Medéia e O Desafio do Islã)
trato da situação contraditória seguinte:
quanto mais os governos tornam-se opacos para os cidadãos,
mais a cidadania é submetida às lentes dos administradores
e perde condições de se defender da espionagem
(CIA ou Abin, pouco importa o nome), da Receita Federal, etc.
Esse problema é antigo e tem a idade do próprio
Estado moderno.
Todos
os debates internacionais de hoje, no mundo acadêmico
e político, sobre a razão de Estado, o encaram.
Assim, o nosso governo de hoje nem é original. Ele retoma
a prática de controlar os cidadãos para obter
o monopólio das informações, com o uso
de seus "quadros" em organismos para-estatais, como
a Federação de Jornalistas, etc.
Quando
governos querem o monopólio das notícias e das
análises, eles deixam o terreno do jornalismo e penetram
o campo da propaganda. Para os teóricos nazistas e todos
os demais doutrinadores autoritários de "esquerda"
ou "direita", a liberdade, a democracia, os direitos
são apenas relativos, jamais absolutos. É um modo
de afirmar que a liberdade de imprensa, os direitos dos indivíduos,
e tudo o que é mais sagrado na vida ética e moral,
são relativos aos direitos do governo.
Os
atuais dirigentes brasileiros herdaram uma visão instrumental
das instituições e das prerrogativas jurídicas.
Devem ser preservadas, no seu entender, apenas as formas que
permitem aos partidos políticos a permanência nos
palácios. Sua idéia sobre o mundo estatal enquadra-se
perfeitamente nas figurações coletivistas do século
19 e 20. Elas estão longe de serem adequadas ao Estado
democrático de direito.
As
investidas do atual chefe da Casa Civil, do ministro do Trabalho,
do ministro encarregado pela Comunicação e, o
mais espantoso, do próprio ministro da Justiça
contra a imprensa ecoam perfeitamente as palavras emitidas em
1985 pelo então candidato à presidência
da República, Luiz Inácio Lula da Silva, sobre
as liberdades: "Acho que a liberdade individual está
subordinada à liberdade coletiva.
Na
medida em que você cria parâmetros aceitos pela
coletividade, o individualismo desaparece. Ou seja, não
há razão para a defesa da liberdade individual.
O que você precisa é criar mecanismos para que
a grande maioria da comunidade possa participar das decisões"
(Folha de S.Paulo, 29/12/1985).
As
últimas medidas anunciadas pelo governo são "mecanismos"
supostamente para garantir a palavra à sociedade, mas
de fato dirigidas para impor teses favoráveis aos ocupantes
ocasionais do governo. Todo um programa é agora implantado
sine ira et studio, numa ideologia que se corporifica em atos
normativos e reguladores. Fantasmas? Gostaria de lembrar que
o escrito mais lúcido e alerta sobre os golpes de Estado,
na literatura mundial, começa com as advertências
de um fantasma. Refiro-me ao Hamlet de Shakespeare.
O
desenrolar da peça evidencia que mais fantasmagórica
era a "realidade" do golpe de Estado. Este último
não precisa ser cruento ou militar. Ele pode surgir como
eficaz veneno, imperceptível para a opinião pública.
Recordo também as análises de pesquisadores ligados
à "Escola de Frankfurt" sobre a maneira pela
qual os nazistas se apoderaram da imprensa alemã: compravam
um jornal, mantinham a diagramação e introduziam
paulatina e cautelosamente novos conteúdos, os almejados
pelo partido.
E
grande parte dos leitores não percebeu a mudança.
É
o mesmo que se passa com as medidas "disciplinares"
do governo brasileiro em relação à imprensa.
As doses são homeopáticas mas o alvo é
ampliar o monopólio do governo no mundo cultural. Quando
ocorrem processos dessa natureza, o despertar é amargo.
É preciso notar a técnica usada pelos partidários
do governo (incluindo a Federação dos Jornalistas):
repetir sempre a mesma tecla e atacar as pessoas que se recusam
submissão aos ditames da hora. Tais métodos são
fascistas e devem ser rechaçados enquanto é tempo.
JU
- O fato de essas medidas estarem ocorrendo em bloco caracteriza
um programa político com viés de dirigismo cultural
e estatal?
Fábio
Wanderley - Como dito na resposta anterior, é sem
dúvida um aspecto negativo e talvez o que mais justifica
preocupação. Creio que há matizes muito
importantes a serem observados.
Quanto
à questão da imprensa, por exemplo, embora a liberdade
de imprensa e de expressão seja sem dúvida um
valor crucial, é preciso reconhecer que a imprensa tende
também a atuar, com alguma freqüência, de
maneira que compromete dramaticamente os direitos dos cidadãos
(a Escola de Base, Alceni Guerra e a movimentação
financeira de Ibsen Pinheiro são clamorosas ilustrações
disso que agora estão em foco), e não há
nenhum sacrilégio em se colocar o problema de como regulá-la
mais efetivamente.
Naturalmente,
dada a delicadeza do assunto, o trabalho de construção
institucional requerido é inevitavelmente complexo (não
creio que o Conselho tal como sugerido seja a resposta adequada).
Mas
a reação da imprensa a respeito me parece exagerada
e bem indicativa, na arrogância profissional que revela,
dos perigos que uma imprensa irresponsável pode representar:
note-se que a revista "Veja", cuja leviandade em questões
que envolvem a honra alheia ficou patente no caso Luiz Costa
Pinto/Ibsen Pinheiro, não faz mais que "laentar"
em duas ou três linhas o erro cometido - muitos anos depois
-, e não há nos outros órgãos muitas
manifestações negativas sobre o assunto.
E
casos como os três citados deixam claro que a possibilidade
de recorrer à Justiça (como reconheceu pelos jornais,
aliás, o próprio presidente do STF) é insuficiente
como forma de obter reparação apropriada: afinal,
a Justiça é lenta, além de ser de difícil
acesso para o cidadão comum. Acho que argumentos do mesmo
tipo recomendariam também que haja algum tipo de limitação
à presteza do Ministério Público na divulgação
de informações surgidas de suas investigações.
Mas,
em contraste com esses casos, acho muito mais problemática,
por exemplo, a proibição de que funcionários
públicos falem à imprensa. E a Ancinav me parece
envolver uma tentativa inaceitável de impor certo tipo
de conteúdo (nacionalista, social) à produção
artística ou cultural.
Francisco
de Oliveira - Sem dúvida. Há uma velha síndrome
de dirigismo dos partidos de esquerda, isso não é
exclusivo do PT. O PT, entretanto, ao chegar ao governo, constata
que é impotente para dirigir o movimento da globalização.
Volta-se então para atividades e setores que possam ser
dirigíveis. É um sintoma grave, que ocorre no
mundo todo; na periferia, porém, tem efeitos devastadores.
Reginaldo
Moraes - Ocorrem em bloco? Não creio que se possa
dizer isso. Quanto a dirigismo, o fato é que uma parte
grande, mas muito grande, da mídia impressa, radiofônica
e televisada está hoje bastante dirigida... por um punhadinho
de empresas, que, em princípio, fazem o que querem, do
jeito que querem.
Alguém
alguma vez chamou isso de dirigismo e manipulação?
Sim, mas não aqueles que agora usam o termo. Especialistas
no assunto - coisa que não sou - já mostraram
o poder da grande mídia no sentido de "fazer a agenda".
O que a mídia faz não é, necessariamente,
convencer você a respeito da pena de morte, da prisão
para menores de 18 anos, da relevância da revelação
do pai da filha da Xuxa para os destinos da infância brasileira.
Não,
o que a mídia faz é marcar esses assuntos como
aqueles que devem polarizar a atenção das pessoas,
os temas sobre os quais as pessoas devem opinar e segundo os
quais elas devem ser classificadas e julgadas. Isto canaliza
o debate e as decisões.
Não
se vai exigir de um candidato a deputado suas opiniões
sobre a política de ensino superior, de ciência,
de iniciativa cultural, de saúde pública, mas
vamos ver se ele é favor da pena de morte ou contra...
Se ele tentar dizer que não é essa a pauta importante,
é bem possível que o desqualifiquem. Ele "está
fugindo da questão".
JU
- É possível implantar-se um projeto dessa
natureza nesta altura do processo democrático brasileiro,
sobretudo levando-se em conta que tal projeto advém de
forças políticas que construíram sua reputação
na luta contra a repressão da ditadura militar?
Fábio
Wanderley - Na verdade, não acredito que seja possível,
mas justamente porque suscita resistências muito grandes
(quer se trate propriamente de um "projeto" ou simplesmente
de manifestação de um cacoete autoritário
de certos setores do governo ou do PT). De toda maneira, não
me parece que seja o caso de ficarmos todos muito tranqüilos
simplesmente porque houve a luta contra a ditadura.
Francisco
de Oliveira - Os partidos, ao chegarem ao governo, se estatizam.
Na verdade, acabam virando órgãos do Estado, ao
invés de partidos, de modo que a história pregressa
não vale muito. Essa memória rapidamente se perde.
Além do que, no PT, há transformações
internas de monta, que já tenho analisado em alguns trabalhos.
O PT vem sendo controlado por uma nova classe social que emergiu
dentro do partido, particularmente porque é um núcleo
forte de sindicalistas.
Eles
viraram administradores de fundo de pensão e, mais recentemente,
altos executivos. Isso não só influenciou como
mudou a natureza do partido. Ele não pode mais ser visto
como partido dos trabalhadores. Ele inclui ainda trabalhadores,
mas houve uma transformação importante em suas
estruturas internas. O que houve foi uma união definitiva
entre esses sindicalistas e a parte propriamente política
do PT, que veio de outras experiências de esquerda.
Hoje,
todas as correntes foram marginalizadas, tanto aquela mais à
esquerda como a católica. Portanto, o PT não tem
nenhum escrúpulo e está se comportando como qualquer
partido estatizado. Nesse contexto, vejo pouco risco na viabilidade
de implantação de um projeto dessa natureza. Já
do ponto de vista da opinião pública, isso é
uma agressão flagrante.
Mas,
se há possibilidade de aprovação pelo Congresso,
acho que existe risco. Exatamente porque todos os partidos viraram
organismos estatais.
Reginaldo
Moraes - De fato, o projeto advém de quem lutou contra
a ditadura. E a reação negativa ao projeto, em
grande medida, de quem dela se beneficiou. Ou não? Mas
a dificuldade para fazer andar alguma democratização
da mídia, no Brasil, vai muito além disso.
Coincide
com o fato de que, nas empresas de comunicação,
como nas demais, reina o despotismo do capital, porque o trabalho
não pode se organizar, opinar, etc. No Brasil não
temos a garantia da liberdade de organização sindical
nos locais de trabalho, nunca tivemos - não assombra
que os donos dos meios de comunicação esperneiem.
Roberto
Romano - É bom que se tenha a exata dimensão
das coisas no mundo do pensamento político e ideológico.
Boa parte dos que hoje tentam controlar o Judiciário,
o Ministério Público, a imprensa, a mídia
e os audiovisuais, lutaram contra a ditadura.
Mas
não em nome de uma democracia que, para eles, é
apenas sinônimo de "liberalismo burguês".
Eles lutaram para implantar um projeto cujo paradigma estava
diante de seus olhos, na figura da URSS, "da pequenina
e brava Albânia", da Coréia, etc. Sua consciência
foi produzida, desde a juventude, em moldes antidemocráticos.
Eles aprenderam que o centralismo partidário, com o evidente
dirigismo (a famosa "linha política" e a "palavra
de ordem") é o único meio de se transformar
a sociedade e o Estado. Por motivos eleitorais, boa parte dos
que hoje se encontram no governo assumiram de boca para fora
os valores democráticos.
Ninguém, no entanto, deixa hábitos antigos - sobretudo
os do pensamento - de modo súbito. Um stalinista não
se torna democrata repentinamente. Esta verdade está
sendo vivenciada entre nós.
JU
- Há a hipótese de que, ao propor medidas
que julgava boas, o governo cometeu um erro de conceito e de
forma, sendo surpreendido pela reação da sociedade.
Nesse caso, o ônus a ser pago pelo governo será
alto, o lucro nenhum e o recuo inevitável. Este cenário
é possível?
Fábio
Wanderley -
Acho que sim, e na minha opinião é o que provavelmente
acontecerá, ainda que o recuo possa ocorrer num aspecto
e não em outro, ou ser maior num aspecto do que em outro.
Francisco
de Oliveira - Em
primeiro lugar, não se trata de erro de concepção
do governo. Esta é a concepção do governo,
de modo que não se tratou de equívoco ou de cochilo
durante o qual passaram essas proposições. Agora,
de fato ele está surpreendido com a reação
da sociedade e de uma mídia que é bastante poderosa.
Desse
ponto vista, por causa dessa reação, provavelmente
ele vai recuar. Não sei em que sentido nem em que novas
proposições, mas provavelmente vai recuar. Até
mesmo o Congresso será capaz de, quem sabe, jogar na
gaveta esse tipo de projeto, mas não se tratou de equívoco
de concepção. Essa é a concepção
que está presidindo as estruturas dirigentes do PT hoje
em dia.
Reginaldo
Moraes - Reação da sociedade? De que "sociedade"?
Quem, hoje, detém poder nesse campo? Seria necessário
fazer um balanço de quem controla a mídia brasileira,
de seu grau de endividamento e dependência frente a bancos
credores e frente ao próprio governo federal. Consta
que o maior grupo do país está enforcado e retido
na coleira.
Que
um dos maiores jornais do país - famoso pelas suas posições
liberais - está nas mãos de um grande banco, porque
destruído financeiramente pelos seus antigos proprietários.
Há, além disso, uma enorme e pouco clara rede
de comunicações nas mãos de pastores eletrônicos
de todo tipo. É essa a "sociedade" que reage
ao Conselho?
Roberto
Romano - Que existam prejuízos, isso é evidente.
Já não é tão evidente que eles sejam
para o governo. O Brasil é o país onde a oposição
é proibida. Essa verdade não se deve apenas aos
que estão no poder, mas liga-se à subserviência
generalizada.
Assim,
o governo pode sair-se muito bem dessa enrascada, como tem conseguido
escapar de situações desesperadas, como por exemplo
o caso Waldomiro Diniz, do assassinato dos prefeitos de Campinas
e de Santo André. O Brasil, com o atual governo, amplia
seu destino de ter como lema e prático o famoso "é
dando que se recebe".
JU
- Mas há também a hipótese de que o
governo, sentindo-se forte com os primeiros sucessos na economia,
esteja disposto a pagar o preço moral e lançar
"redes de segurança" (sobretudo no plano da
informação) que lhe garantam sua continuidade
no poder. Teríamos assim uma espécie de chavismo
à brasileira. O senhor acredita nisso?
Fábio
Wanderley - Não
acredito, pois creio que a aposta aí contida envolveria
um grande erro de avaliação: o governo estaria
abrindo uma caixa de Pandora que com certeza se voltaria contra
ele.
Francisco
de Oliveira - O problema do chavismo é muito mais
complexo. O chavismo é uma espécie de recurso
do culto a Bolívar numa sociedade em que há uma
forte decomposição de classes. A Venezuela não
tem operariado. E o pouco operariado que tem é um aliado
do grande capital ligado aos negócios do petróleo.
A
grande massa do povo venezuelano só pode ser atingida
através de medidas, que são a característica
do chavismo. São aquelas que a literatura clássica
apontava como típicas do populismo. A tentativa desse
populismo é a de incluir essas classes, que na verdade
não são mais classes, na política. As que
estão incluídas na política pendem todas
para a direita.
Algo
semelhante está se passando no Brasil devido também
à decomposição da classe trabalhadora.
Ela foi varrida pela globalização e pela reestruturação
produtiva; é uma classe que está com 20% de desemprego
e com uma alta informalização. Há uma devastação
de classes no Brasil à qual o governo federal tenta resolver
com esse processo de permanente aparição do presidente
na mídia.
Esse
é um recurso midiático para socorrer na verdade
o que é fraqueza do governo. É uma ilusão
pensar que o governo é forte. Ele, ao contrário
do que arrota, é fraquíssimo e está completamente
prisioneiro do capital financeiro.
Veja-se
agora o foro privilegiado do senhor Henrique Meirelles. Isso
mostra que o governo capitulou, transformando-se em prisioneiro
desses interesses. Esses recursos são típicos
de uma situação em que você não tem
realmente a hegemonia.
Reginaldo
Moraes - Chavismo à brasileira? Chavez é Chavez,
Venezuela é Venezuela. Outra coisa é outra coisa.
Mas, se quisermos falar em chavismo seria bom dizer também
o que são os donos de meios de comunicação
daquele país e quais são suas democráticas
iniciativas. Por que não se fala então de "bushismo
à brasileira"?
Quando
se iniciou a criminosa invasão do Iraque, houve um massacre
de mídia "patriótica" para conseguir
apoio popular àquela aventura. Hoje, é claro,
não convém mencionar o tema. Temos, de novo, essa
idéia de segurar informação e manipular.
Volto a perguntar: quem é o conselho? Quem o compõe?
Quem
tem medo de jornalistas intervindo no modo de operar das empresas
de comunicação, tendo atrás de si a autoridade
de um conselho profissional eleito, como têm os médicos,
os dentistas, os advogados, os contabilistas...? A quem interessa?
Roberto
Romano - Sim, acredito. E sinto muita tristeza. Heine, o
grande poeta romântico, dizia que ao pensar na Alemanha,
à noite, chorava. Eu tenho pesadelos com o Brasil. Duas
ditaduras no século 20, e ainda possuímos consciências
formadas na pedagogia da servidão.
Enquanto
isso, pesquisas dizem que a massa, na sua maior parte, está
disposta a aceitar qualquer governo, mesmo ditatorial, que "resolva
os problemas econômicos". Como dizia outro poeta:
"o ventre da besta é fértil..."
Fonte:
Jornal da Unicamp, 23.08.2004.
Voltar
|