Entrevistas
"Vanguardas
desconfiam
do sistema midiático"
Depoimento
de José
Marques de Melo a
Victor Gentilli
A
esfinge midiática, de José Marques de Melo,
335 pp., Editora Paulus (www.paulus.com.br),
SP, 2004; R$ 30,00
Em
entrevista por e-mail, o professor José Marques de Melo
apresenta algumas idéias de seu novo livro, A esfinge
midiática.
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Victor
Gentilli -
Este livro procura fazer um panorama do pensamento brasileiro
sobre o sistema midiático no último decênio.
A opção pelo termo "esfinge midiática"
refere-se a algo a ser decifrado no decorrer de sua história
ou a algo que desafia os pesquisadores de forma mais intensa
nestes tempos contemporâneos?
José
Marques de Melo A "esfinge midiática"
vem desafiando a sociedade desde o final do século 19,
quando a imprensa se industrializou. Na tentativa de decifrar
os enigmas decorrentes do seu impacto na sociedade, vários
intelectuais construíram paradigmas cognitivos. Talvez
o mais radical de todos eles tenha sido o espanhol Ortega y
Gasset, que sugeriu o seu papel subversivo, endossando a "rebelião
das massas". A atitude dos intelectuais europeus situou-se,
contudo, no plano especulativo, confluindo na primeira metade
do século para engrossar o caldo do pensamento apocalíptico,
capitaneado pelos filósofos frankfurtianos.
Em
contrapartida, os intelectuais norte-americanos trataram de
"decifrar" a nova "esfinge" através
de estudos empíricos, estocando evidências para
embasar as políticas públicas. Tanto assim que
as vanguardas ianques mantiveram sempre uma relação
não preconceituosa em relação à
mídia, convertendo-a em alavanca do desenvolvimento nacional.
No caso brasileiro, presenciamos um cenário que reproduz
em certo sentido a tradição temerosa dos europeus,
o que tem propiciado a expansão dos sistemas midiáticos
sem que a sociedade civil tenha contribuído para avaliar
os efeitos da mídia e conseqüentemente engendrar
ações coletivas para seu controle, estímulo
e gestão sócio-cultural.
A
responsabilidade que compete à universidade tem sido
negligenciada, minimizada, adiada. O que temos são investigações
casuísticas, sem as indispensáveis correlações
no tempo e no espaço.
VG
- O livro faz crer uma evolução inquestionável
da importância econômica e da dependência
do público na mídia brasileira no decorrer do
seu desenvolvimento. Nesta perspectiva o senhor identificaria
fatores históricos mais fundos na atual crise que a imprensa
vive neste início de século?
JMM
Os fatores históricos que moldaram o desenvolvimento
da indústria midiática brasileira estão
claramente enunciados na tese de doutorado que defendi na Universidade
de São Paulo, em 1973, cujos argumentos estão
disponíveis no meu recente livro História Social
da Imprensa" (Editora da PUC-RS, 2003). Tratei ali de explicar
que o desenvolvimento tardio da nossa imprensa decorreu não
apenas da vontade política dos nossos colonizadores lusitanos,
mas da conjugação de uma série de obstáculos
(analfabetismo, ruralismo, obscurantismo, empreendorismo raquítico,
gerência pública retrógrada etc.) que permaneceram
imutáveis até recentemente.
O
nosso desenvolvimento econômico tem sido desnivelado no
espaço nacional, condicionando o desenvolvimento das
empresas midiáticas que nem sempre operam em situações
típicas da sociedade capitalista. Por outro lado, o perfil
cultural da nossa sociedade tem sido marcado pela exclusão
cognitiva, transformando os meios de comunicação
em agências de socialização intensiva, cujos
usuários não foram nutridos pela rede escolar.
Para completar o quadro, nossa democracia é ainda muito
débil, sem que exista no interior do sistema midiático
uma nítida consciência do seu papel como "quarto
poder" e em alguns casos enviesada, na medida em que os
seus proprietários e os seus profissionais postulam o
status de "suprapoder".
VG
- O senhor identifica o que chama de "perplexidade e desconfiança
em relação ao sistema midiático" originária
do que chama de "vanguardas intelectuais", mas aponta
uma evolução que considera positiva, no pensamento
do professor Fernando Henrique Cardoso. O senhor cita uma fala
do professor antes de assumir a presidência da República,
exatamente numa reunião internacional de pesquisadores
de comunicação.
JMM
As nossas vanguardas intelectuais se comportam como se
os usuários dos meios de comunicação de
massa tivessem sido forjados culturalmente à sua imagem
e semelhança. Por isso demandam das indústrias
culturais conteúdos mais elevados, sem ter em conta que
os padrões estéticos das grandes massas estão
situados em patamares rasteiros. Poucos têm sido os intelectuais
capazes de discernir com argúcia e competência
o impacto da mídia na sociedade brasileira. Fernando
Henrique Cardoso constitui uma exceção, justamente
pela experiência adquirida na sua trajetória política,
tendo acesso a dados riquíssimos para a tomada de decisões
no terreno partidário.
Quando
ele fez sua paradigmática conferência no Congresso
Mundial de Ciências da Comunicação (Guarujá,
1992), impressionando vivamente todos os seus participantes,
denotava conhecimento não apenas sociológico,
mas discernimento político adquirido durante sua caminhada
como político oposicionista. Essa postura traduzia o
enfrentamento da truculência dos governos militares em
plano nacional e ao mesmo tempo a análise das mudanças
substanciais que estavam sendo processadas no cenário
avassalador da globalização.
VG
- O senhor veria, na comunidade de pesquisadores de comunicação,
uma sensibilidade maior para perceber as mudanças, o
novo, os novos paradigmas?
JMM
A comunidade nacional dos cientistas da comunicação
ainda está em processo de consolidação.
Ele se compõe de dois segmentos. O mais influente é
constituído por pesquisadores oriundos das ciências
sociais e que não demonstram empatia suficiente com a
mídia, adotando uma postura anticientífica porque
retrataria à acumulação de conhecimento
empírico. Por isso mesmo incute nas novas gerações
que forma nas universidades um comportamento negativo, cultivando
um sentimento de impotência diante dos desvios eventualmente
existentes.
O
outro segmento vem se organizando a partir de jovens doutores
que tiveram formação básica no próprio
campo da comunicação, mas ainda não acumulou
experiência suficiente, nem poder político, capaz
de mudar os paradigmas dominantes. Seus integrantes tem consciência
de que devem produzir conhecimento empírico, começam
a faze-lo, mas ainda não acumularam evidências
suficientes para se confrontar com os donos atuais do poder
acadêmico. Descrevi este conflito latente em meu livro
História do Pensamento Comunicacional (Paulus, 2003)
e volto a resgatá-lo, sob a forma de desafio intelectual,
nos primeiros capítulos de A esfinge midiática.
VG
- Ou a dificuldade estaria nos pensadores de outros campos,
com maiores dificuldades para compreender a dimensão
da importância que os fenômenos midiáticos
apresentam agora?
JMM
Os pensadores de outros campos do conhecimento que refletem
sobre os fenômenos comunicacionais o fazem a partir de
pressupostos externos aos sistemas midiáticos. Eles tratam
de compreender a mídia como variável dependente
dos sistemas econômicos, políticos ou sociais.
A expectativa que temos em relação aos pensadores
comunicacionais, em seus núcleos segmentados estudos
jornalísticos, estudos publicitários, estudos
audiovisuais , orienta-se no sentido de contemplar a mídia
como fenômeno que tem múltiplas dimensões,
mas que opera segundo lógicas específicas, buscando
equilíbrio entre a oferta e a demanda.
Conseqüentemente
a contribuição a ser dada pelos jovens pesquisadores
midiáticos situa-se na esfera da produção
de estudos empíricos, comparáveis no tempo e no
espaço, ensejando um arsenal cognitivo destinado a melhor
os conteúdos midiáticos e seu desempenho sócio-cultural,
em sintonia com as aspirações grupais e coletivas.
Para "decifrar" a "esfinge" midiática,
evitando vir a ser por ela "devorada" significa acumular
conhecimentos e formular políticas governamentais e empresariais
de comunicação estribadas em mudanças de
formatos, apropriações tecnológicas, eficácia
gerencial etc.
Prefácio
A
esfinge midiática, de José Marques de Melo, 335
pp., Editora Paulus (www.paulus.com.br),
SP, 2004; R$ 30,00
Quando
a força da imprensa desponta nas sociedades democráticas,
instaurando-se a mediação de jornais e jornalistas
em relação ao exercício dos poderes constituídos,
cria-se a metáfora do quarto poder, legitimador da vigilância
civil diante do aparato governamental.
"A
imprensa é a vista da nação", dizia
Rui Barbosa,de forma bastante eloqüente, no início
do século XX.
"Por
ela é que a Nação acompanha o que lhe passa
ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que
lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam, percebe
onde lhe alvejam, ou nodoam, mede o que lhe cerceiam ou distorcem,
vela pelo que lhe interessa, e se acautela do que a ameaça."
[ BARBOSA, Rui A imprensa e o dever da verdade, Salvador,
1920 (3a. edição Editora da USP, Clássicos
do Jornalismo Brasileiro, 1990, p. 37)]
Mas,
já naquela conjuntura, era possível vislumbrar
o potencial desse moderno artefato simbólico, sobretudo
quando ele necessita nutrir-se economicamente, e, para tanto,
subordina-se às demandas coletivas. O dever de guiar
a opinião pública é suplantado pelo desafio
de preservar a própria saúde financeira.
Quem
faz o diagnóstico preciso dessa mutação
é o jovem Barbosa Lima Sobrinho. "Tantos progressos
tornaram necessários orçamentos vultosos. Converteu-se
o jornal muito mais num problema de dinheiro do que de credo
político, literário. (...) Viu-se a imprensa obrigada
a (...) servir as tendências populares, em vez de as orientar...
(...) A imprensa torna-se simplesmente indústria."
[BARBOSA LIMA SOBRINHO, A J O problema da imprensa, Rio,
José Álvaro Editor, 1923 (2a. edição
Editora da USP, Clássicos do Jornalismo Brasileiro,
1988, p. 31)]
O
panorama adquire maior complexidade com o advento da mídia
eletrônica cinema, disco, rádio e televisão
-, configurando uma espécie de determinismo cultural.
O cidadão comum vê suas expectativas refletidas
na agenda midiática, mas ao mesmo tempo se defronta com
o mutismo gerado pela abundância de signos e conteúdos,
inibindo o diálogo peculiar às comunidades pré-industriais.
Luiz
Beltrão, com muita argúcia e sensível angústia,
descreve essa situação-limite. "Na sociedade
de massa, o comportamento da audiência está condicionado
de modo crescente às novas técnicas e recursos
que são utilizados pelos meios de comunicação
massivos, transformados em indústria e, em grande medida
monopolizados. É através deles que o indivíduo
recebe informações, idéias e orientação,
em mensagens uniformes, padronizadas. Assim, embora o direito
de réplica se mantenha, não acontece o mesmo com
os meios para torná-lo eficaz. Poucos são os particulares
que podem ou estão capacitados a recorrer a outras fontes
de informação e a sociedade é tão
complexa que se torna impossível para cada um obter dela
uma visão homogênea e coerente, apenas mediante
os raros, rotineiros e específicos contatos interpessoais.
Essa imagem viva e mais ou menos complexa se obtém através
dos meios de comunicação, a que todos estamos
expostos em muito maior parcela de tempo do que há um
século." [BELTRÃO, Luiz Sociedade
massa: comunicação & literatura, Petrópolis,
Vozes, 1972, p. 43-44]
Diante
disso, é compreensível a cristalização
de um sentimento de perplexidade e desconfiança em relação
ao sistema midiático, manifestado sobretudo pelas vanguardas
intelectuais. Em parte, elas reagiram ao estreitamento das possibilidades
de criação estética, sentindo-se sufocadas
pelas regras de formatação dos bens simbólicos
instituídas pelas indústrias culturais. Racionando
de modo egoísta, suas lideranças nem sempre foram
capazes de perceber as contradições inerentes
a essa engrenagem polimorfa. Daí a emergência de
uma corrente de pensamento negativo, que se irradiou na academia
qual rastilho de pólvora, durante a segunda metade do
século XX, criando a sensação de um beco
sem saída. Nela se embutia a tese falaciosa da mídia
como superpoder, incontrolável pela sociedade.
Felizmente
começam a brotar, nesta conjuntura de transição
histórica, vozes estribadas na sensatez cognitiva, pautando-se
menos pelos temores especulativos do que pelas evidências
coligidas através da pesquisa empírica. Essa antevisão
da luz no fim do túnel pode ser ilustrada através
do convite à racionalidade crítica, bradado pelo
cientista social Fernando Henrique Cardoso, no momento em que
a comunidade mundial das ciências da comunicação
se reuniu, pela primeira vez, em território brasileiro.
"A
comunicação continua sendo mais complexa do que
se pensa (...). Ela passa por um outro fluxo de comunicação
direta e vice-versa. O vice-versa tem a ver com o fato de que
os próprios produtores da mídia, inclusive da
mídia eletrônica, estão em conflito. Não
sei se é de classe. Mas um conflito forte, que levam
mesmo as mais poderosas redes que querem sustentar o poder a,
num dado momento, se quebrarem e não conseguirem sustentar
o poder. E então, também aí, é preciso
que haja um novo pensamento sobre qual é o papel dos
meios de comunicação nesse tipo de sociedade.
Pois não é só o papel da passivização,
não é só o de servir à voz do dono,
é muito mais complexo do que isso. (...) Então
eu não penso que na nova sociedade, os meios de comunicação
sejam apenas o reforço da alienação. Uma
parte o é, mas eu penso também que eles são
o contrário. E que nesse ser o contrário, eles
são partes essenciais do movimento da dialética
entre os poderosos e os oprimidos, entre, às vezes, o
estado e a sociedade civil."
Esse
chamamento ao exercício reflexivo, pautado pela lucidez
investigativa e não pelo dogmatismo epistêmico,
continha uma pungente e saudável autocrítica,
robustecida pela autoridade do seu autor. Antes de se tornar
político militante no Brasil, ele havia se legitimado
internacional como expoente da Sociologia. "A grande questão
que se coloca para pensar como a sociedade muda, é: qual
é a verdadeira essência das forças presentes
nessa sociedade. (...) Não dispomos, até hoje,
nas Ciências Sociais, de teorias mais completas a respeito
da mudança, porque elas, quase todas, não contemplam
a questão da comunicação." [CARDOSO,
Fernando Henrique Communication for a new world?, In:
MARQUES DE MELO, José, org. Communication for
a new world: Brazilian perspectives, São Paulo, ECA-USP,
1993, p.11-12]
Ficava
evidente que a tarefa de pensar a comunicação
na sociedade informacional, constituía um desafio a ser
encarado, no seu conjunto, pelos estudiosos das humanidades,
particularmente por aqueles situados no âmago da problemática
contemporânea. Cabia, portanto, aos acadêmicos que
privilegiam os fenômenos peculiares às indústrias
culturais desvendar a "esfinge midiática",
sob o risco de serem devorados pela sua cupidez atávica.
Os
textos reunidos neste livro traduzem um esforço desenvolvido,
dentro e fora da academia, no último decênio, com
a finalidade de corresponder a tal empreitada. O primeiro conjunto
é formado por ensaios destinados a ordenar o campo midiático,
no conjunto do universo comunicacional, adotando uma perspectiva
histórica. O segundo bloco é constituído
por incursões de natureza empírica, observando
o comportamento de fenômenos emblemáticos da sociedade
brasileira. O terceiro segmento foi agrupado em estilo mosaico,
encaixando peças da minha intervenção no
debate público das questões que, na atualidade,
fisgam corações e mentes, aqui e alhures.
Sua
publicação ocorre num momento apropriado, quando
a comunidade internacional da nossa área de conhecimento
volta a se reunir no Brasil. Depois do diálogo promovido
na cidade paulista de Guarujá, em 1992, os integrantes
da IAMCR International Association for Media and Communication
Research aceitaram o convite do segmento gaúcho dos pesquisadores
midiológicos para agendar em Porto Alegre, em 2004, a
sua conferência bienal.
Minha
expectativa é a de que os fatos, idéias, hipóteses
ou interpretações, constantes desta obra, possam
estimular o pensamento midiático brasileiro a superar
criticamente a inércia e a hesitação com
que se vem debatendo na passagem do século, acossado
em parte pela velocidade das mutações tecnológicas
que nos atarantam, mas fustigado também pela sensação
de orfandade intelectual decorrente da crise das ideologias.
Fonte:
Observatório da Imprensa, 06.04.2004
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