Entrevistas
Jornalismo
e servidão voluntária
Entrevista
de José Arbex Jr. a Paulo Lima*
O
jornalismo canalha, de José Arbex Jr., 193 pp., Editora
Casa Amarela, 2003.
Em
seu mais recente livro, O jornalismo canalha, o jornalista José
Arbex Jr. observa que a invasão do Iraque pelos Estados
Unidos "introduziu algumas novidades no campo do jornalismo".
O jornalista embedded foi uma delas. "O jornalista embedded
é aquele que aceitou se submeter a uma série de
50 normas estabelecidas pelo Exército dos Estados Unidos,
como condição para acompanhar as tropas",
diz Arbex. "As normas previam, entre outras coisas, que
ele não poderia reportar nada que não fosse aprovado
pelos chefes do seu regimento, o mesmo valendo para as transmissões
de imagens. Tampouco poderia se deslocar para áreas consideradas
perigosas."
Essa
relação subserviente da mídia com as autoridades
militares implica, antes de mais nada, rigorosa restrição
à liberdade de informação. A censura e
a deformação dos fatos passam a ser determinantes
na atuação das grandes corporações
de mídia na América pós-11 de setembro.
A
análise de Arbex localiza idênticos sintomas de
vassalagem na mídia brasileira: na cobertura dos atentados
ao World Trade Center e na invasão do Iraque, assim como
nos acontecimentos de conjuntura nacional, como as ações
do MST. Nas duas situações, o que se vê
é uma mídia que inocula preconceito e mistificação
no noticiário, encampando acriticamente a versão
vendida pela mídia americana vale dizer, a visão
do Pentágono, com conseqüências letais não
somente para o jornalismo, mas para a democracia.
José
Arbex Jr. é editor-especial da revista Caros Amigos e
editor-chefe do jornal Brasil de Fato. Na grande imprensa, atuou
como correspondente da Folha de S.Paulo, oportunidade em que
presenciou alguns dos acontecimentos mais marcantes do século
20, como a queda do Muro de Berlim e o desmoronamento da União
Soviética.
Entrevistou
com exclusividade intelectuais, revolucionários e estadistas
como Mikhail Gorbatchev, Yasser Arafat, Daniel Ortega, Noam
Chomsky, Edward Said, Samir Amin, Milton Santos, Celso Furtado,
entre outros. Doutor em História Social pela USP, escreveu,
entre outros livros, Showrnalismo: a notícia como espetáculo,
O século do crime (em co-autoria com Claudio Julio Tognolli)
e Terror e esperança na Palestina. Nesta entrevista via
e-mail, Arbex fala das relações perigosas do jornalismo,
para ele, canalha, com o poder e da manipulação
da informação pela grande imprensa.
P.L.
- O título do seu último livro, O jornalismo canalha,
é muito forte. Acredita que o rótulo se encaixa
ao jornalismo praticado pelas grandes corporações
jornalísticas nos Estados Unidos?
José
Arbex Jr. Sem dúvida. Basta notar, por exemplo,
que durante a cobertura da invasão do Iraque, erroneamente
qualificada como "guerra", toda a mídia corporativa
enfatizava o aspecto tecnológico e os cálculos
estratégicos, deixando em plano muito secundário
o aspecto humano. O maravilhamento tecnológico foi utilizado
como força de sedução para desviar as atenções
dos horrores da guerra. Basta isso.
P.L.
- A relação promíscua da mídia atual
com o governo Bush não é característica
somente dessa mídia. A relação sempre esteve
presente na história da imprensa americana, desde os
tempos do governo Roosevelt, nos anos 1930. De que forma o atual
jornalismo americano se diferencia do jornalismo das décadas
passadas?
J.A.J.
Boa questão. É tudo uma questão
de graus de comprometimento e de contexto. No mundo globalizado,
as corporações transnacionais passam a ter um
grau muito maior de relações íntimas com
os Estados de seus respectivos países, e isso engloba
a mídia que, por sua vez, é dirigida por executivos
que também fazem parte de outras empresas. Para não
complicar: imagine o compromisso que tem a Microsoft com os
estrategistas da Casa Branca.
É
inevitável. Bill Gates precisa das garantias militares
oferecidas pelo Pentágono para impor as suas condições
de venda dos softwares, tanto quanto o Pentágono usa
o controle da rede mundial possibilitado pelos sistemas Windows
e Internet Explorer. Esse grau de intimidade e aderência
é inédito na história. Se quiser pensar
no Brasil, é só lembrar o papel da Rede Globo
na implantação da ditadura militar.
P.L.
- Essa "vassalagem", como o senhor se refere em seu
livro, também atinge a mídia no Brasil, que acabou
encampando a versão do Pentágono para os conflitos
do Kosovo, do Afeganistão e do Iraque, reproduzindo por
tabela o ódio e o preconceito disseminados na grande
imprensa americana. Por que a nossa mídia age dessa maneira?
J.A.J.
Por muitas razões, explicadas no livro. Por usar
os serviços oferecidos pelas empresas estadunidenses
(CNN, Reuters, UPI etc.), por tradição de alinhamento
ideológico que vem de antes da Guerra Fria, por um certo
provincianismo e timidez intelectual dos chefes da mídia,
por ignorância pura e simples, por preconceitos e má
fé... Longa é a lista, curta é a vida,
diria Jobim.
P.L.
- Seu livro diz que após o 11/9 veículos como
a Veja mostraram preconceito contra a cultura islâmica,
repercutindo ideologia disseminada nos EUA. Esse preconceito
pode ser associado ao calor da hora, à velocidade dos
fatos ou sempre esteve presente na nossa imprensa?
J.A.J.
Sempre esteve presente, e não só na imprensa.
Vários professores e pesquisadores já demonstraram
o grau de subordinação intelectual dos brasileiros
aos europeus e estadunidenses. O grande e saudoso professor
Milton Santos, por exemplo, reclamava a construção
de um olhar crítico especificamente brasileiro, e não
um olhar sobre o Brasil emprestado da Europa. A velocidade,
o calor da hora, a dependência tecnológica apenas
contribuem para a vassalagem intelectual.
P.L.
- A idéia de que a imprensa reflete o conjunto de valores
da própria sociedade poderia transferir para a opinião
pública, no Brasil, a responsabilidade pela manutenção
dos preconceitos contra a cultura islâmica e exacerbados
após o 11/9?
J.A.J.
Não creio que a imprensa reflita tal conjunto.
A imprensa não é um espelho neutro do mundo. Antes
de mais nada, ela é propriedade privada, e portanto submetida
aos interesses dos donos. É claro que os donos não
são livres para publicar o que quiserem, pois dependem
da credibilidade. Por exemplo, Roberto Marinho não poderia
afirmar no Jornal Nacional que um marciano foi visto descendo
no Vaticano. Mas eles, dentro de certos limites, podem manipular
os dados, criar consensos, gerar percepções (como
no já mencionado caso da cobertura da invasão
do Iraque).
P.L.
- A existência de um jornalismo canalha pressupõe
que ao menos uma banda desse jornalismo atuaria mais corretamente,
mantendo uma visão crítica à versão
incutida pelo Pentágono e pela Casa Branca. Onde, na
imprensa americana, poderíamos localizar esse foco anti-establishment?
J.A.J.
Nas emissoras públicas, nos veículos de
media criticism (como a Fair Review), na produção
de intelectuais independentes (como o Z Magazine) etc.
P.L.
- Qual sua visão da imprensa européia na cobertura
das invasões do Afeganistão e do Iraque?
J.A.J.
Tende a ser um pouco mais crítica, por relações
históricas, pela disputa dos imperialismos europeus com
o estadunidense, pela formação crítica
de uma certa parcela da intelectualidade européia, forçosamente
mergulhada na diversidade cultural. Mas tampouco é a
quinta maravilha do mundo.
P.L.
- O senhor acredita que a atuação da rede al-Jazira
de fato funcionou como contraponto às mentiras divulgadas
pela CNN e parceiros?
J.A.J.
Sem dúvida. Até ter sido destruída
sob as bombas democráticas de Bush.
P.L.
- No livro, o senhor afirma que as elites americanas gostam
da guerra. E a guerra, como afirmava Lênin, não
passa de uma divisão sangrenta de mercados. Esse seria
unicamente o grande objetivo da política externa americana,
o fortalecimento de sua própria economia?
J.A.J.
O fortalecimento do império, que é mais
abrangente do que a economia. Pressupõe o controle político
e cultural.
P.L.
- O fundamentalismo religioso tem servido de base doutrinária
para justificar a ação americana contra o terror.
Segundo os ideólogos de Washington, trata-se da luta
do Bem contra o Mal. Como o senhor destaca em seu livro, essa
mesma orientação já havia sido utilizada
por Ronald Reagan, ao atribuir à ex-União Soviética
a imagem de "Império do Mal". O terror, neste
caso, não seria o substituto do comunismo como velho
bode expiatório da paranóia americana?
J.A.J.
Muito bem dito.
P.L.
- O senhor observa que o 11/9 foi benéfico para Bush,
de tal forma que seria possível aventar a hipótese
de que os próprios americanos estariam por trás
do atentado. Essa não é uma teoria por demais
conspiratória?
J.A.J.
Não. A menos que você prove que eu estou
errado, e que o 11/9 não ajudou baby Bush.
P.L.
- O escândalo Watergate, que levou ao impeachment de Nixon,
foi revelado no Washington Post, que hoje compra a versão
da Casa Branca. Esse fato seria emblemático da volubilidade
dos interesses que rondam a grande imprensa?
J.A.J.
Sim. Aqui você retoma o que eu dizia antes: o grau
de promiscuidade entre o capital privado e o poder de Estado
atingiu níveis sem precedentes. E isso é muito
perigoso, pois ameaça liquidar com o pouco que ainda
há, ou havia, de democracia nos Estados Unidos.
P.L.
- A mídia moldou a opinião pública americana
no caso da Guerra do Vietnã, e voltou a influenciá-la
no caso dos ataques terroristas o "consenso fabricado"
em ação, ou a visão da sociedade construída
pelos meios de comunicação. Até que ponto
podemos considerar democrática uma sociedade assim manipulável?
J.A.J.
Não diria que a mídia "moldou"
a opinião, no caso do Vietnã. Ela tentou ao máximo
ocultar os fatos, mas a pressão dos movimentos contra
a guerra e o racismo estourou o esquema. Mais ou menos como
no Brasil, em 1984, no caso da campanha pelas diretas. Isso
prova que a mídia pode muito, mas não pode tudo.
Agora, você tem razão ao colocar em questão
a natureza da democracia numa sociedade tão vulnerável
à fabricação do consenso.
P.L.
- É curioso notar que, mesmo sob a censura do Pentágono,
há um dissenso na mídia americana, como o de Michael
Moore (cineasta) e de Greg Palast (repórter investigativo),
entre outros. Como o senhor analisa o trabalho desses críticos?
J.A.J.
Fazem parte da melhor tradição da democracia
estadunidense, essa que Bush quer liquidar, com a ajuda das
corporações midiáticas.
P.L.
- Seu livro crítica Folha e Veja pela visão parcial
do MST, embora sejam veículos que tiveram papel importante
por exemplo nas Diretas-Já e no impeachment de Collor.
Como o senhor analisa essas guinadas?
J.A.J.
Não creio que sejam guinadas. Como observei antes,
a mídia depende da credibilidade junto à opinião
pública para sobreviver. Quando os veículos observam
que a opinião pública inclina-se fortemente em
determinada direção, como no caso das Diretas-Já,
os veículos tendem a acompanhar a opinião geral,
para não perder o que eles chamam de "market share".
É tudo uma questão de marketing.
P.L.
- Que balanço o senhor faz da experiência do Brasil
de Fato até agora?
J.A.J.
Boa. E dura. Dura mas boa.
P.L.
- Em seu livro Showrnalismo o senhor relata a queda do Muro
de Berlim, que cobriu pela Folha. O jornal preteriu sua primeira
matéria sobre o assunto, à época, em favor
de manchete sobre a candidatura de Sílvio Santos à
presidência. Como o senhor se sentiu?
J.A.J.
Extremamente frustrado. Já imaginou, os seus chefes
acharem que o Sílvio Santos é mais importante
do que o Muro de Berlim? Quá quá quá...
P.L.
- O senhor recebeu convite para retornar à Folha?
J.A.J.
Mantenho ótimas relações com o proprietário
da Folha, Otavio Frias Filho, por uma razão muito simples:
sempre fui e continuo sendo muito franco e leal, mesmo quando
faço as críticas que faço. Nunca ocultei
o que penso. E o Otavio tem uma boa formação intelectual,
tem os seus argumentos para defender os interesses da classe
a que pertence. Mas nunca pensei em voltar para o esquema da
grande imprensa.
P.L.
- Ao lado de alguns poucos jornalistas brasileiros, o seu nome
é rapidamente associado a uma postura crítica
e ética no nosso jornalismo. Como se sente carregando
essa bandeira?
J.A.J.
Não me sinto carregando uma bandeira. Sinto que
vale a pena ser honesto, até por uma questão de
saúde física e mental.
P.L.
- Quais são os cuidados que o repórter precisa
ter em mente ao fazer uma matéria?
J.A.J.
O mais importante: olhar as coisas sem preconceito. Para
isso, é preciso cultivar a formação intelectual
e artística. Muitas vezes, nem sabemos o quanto somos
preconceituosos. Quanto mais você estudar, conhecer, ler,
debater e discutir, mais instrumentos você terá
para questionar as próprias limitações.
É preciso aprender a olhar e a ouvir. Isso é muito
difícil, quase impossível.
P.L.
- Num estágio em que o jornalismo se confunde cada vez
mais com entretenimento, como restituir a sua responsabilidade
social? Esse é um papel que pode ser atribuído
somente aos jornalistas?
J.A.J.
De forma alguma. Jornalistas são cidadãos
que exercem o jornalismo, assim como dentistas são cidadãos
que exercem a odontologia etc. A responsabilidade é do
cidadão. No caso do jornalismo, ele só deixará
de ser entretenimento quando oferecer informação
útil para a militância social e política.
P.L.
- Como o senhor analisa o recurso do grampo, dos disfarces,
da câmera oculta etc. para atingir determinados fins no
processo de investigação jornalística?
Qual o limite do repórter?
J.A.J.
Acho que cada caso é um caso.
P.L.
- O senhor tem o privilégio de ver o jornalismo a partir
de uma perspectiva mais ampla, já que detém também
a experiência acadêmica. Até que ponto essas
duas visões se reforçam mutuamente?
J.A.J.
Todo jornalista deveria cultivar a formação
acadêmica, assim como todo acadêmico deveria sair
dos muros da academia e experimentar as lições
da sarjeta. É um processo muito rico. Doloroso, mas rico.
P.L.
- Há uma discussão infindável em torno
da revelação da identidade das fontes. Qual sua
opinião?
J.A.J.
Cada caso é um caso.
P.L.
- Se o senhor não fosse jornalista, que profissão
teria seguido?
J.A.J.
A de jornalista.
*Paulo
Lima é estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes
(SE) e editor do Balaio de Notícias
(http://www.sergipe.com/balaiodenoticias)
Fonte:
Observatório da Imprensa, 16.03.2004.
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