Entrevistas
Nelson
Traquina: o cidadão
antes do consumidor
Entrevista
concedida por Nelson
Traquina a Antonio Queiroga
Avenida
de Berna, 26, quinto andar do edifício B, mais conhecido
como torre. É esse o endereço do Departamento
de Comunicação Social da Universidade Nova de
Lisboa. Vizinha da Praça dEspanha e do Centro de
Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian,
um dos mais importantes espaços culturais da capital
portuguesa, a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
<http://www.fcsh.unl.pt>
tem um campus normalmente agitado, com seus milhares de alunos
de graduação e pós-graduação,
portugueses e estrangeiros.
No mesmo andar do departamento está localizado o gabinete
de Nelson Traquina. Professor catedrático de Jornalismo
da Universidade Nova, ele é autor de bibliografia histórica
e crítica sobre o jornalismo que, embora em português,
infelizmente ainda não é muito conhecida no Brasil.
Entre
os livros de sua autoria podemos destacar O que é
jornalismo, Big Show Media: viagem pelo mundo audiovisual
português e O estudo do Jornalismo no Século
XX, este publicado no Brasil pela Editora Unisinos.
Foi no seu gabinete, depois de uma aula de Produção
Jornalística para alunos da graduação,
que o professor Nelson Traquina falou sobre o jornalismo e seus
desdobramentos hoje em dia. Sua entrevista:
Antonio
Queiroga - Numa sociedade global, num mundo em que a informação
alcançou, seja para o bem ou para o mal, o "status"
e a importância que tem hoje, qual é o papel social
que o jornalista pode e/ou deve desempenhar?
Nelson
Traquina Penso que se o jornalista conseguisse preencher
o papel que lhe é referido pela própria teoria
democrática, acho que já isso seria uma grande
conquista. Portanto, a teoria democrática define certos
papéis para o jornalista, para o jornalismo; se conseguirmos
preencher esses papéis estaremos no bom caminho.
O jornalismo deve dar aos cidadãos as informações
que são úteis, que são necessárias
para que eles possam cumprir os seus papéis de pessoas
interessadas na vida social, na governação do
país etc. Um papel que é dado ao jornalismo é
o de fornecer às pessoas as informações
necessárias para que elas possam cumprir seus papéis
como cidadãos.
Também
a teoria democrática apresenta como outro papel do jornalismo
ser watchdog (cão de guarda) da sociedade, proteger os
cidadãos contra os abusos do poder. Penso que esse seja
um papel importante também para os meios de comunicação
social em geral, não especificamente o jornalismo; eles
devem ser um espaço, segundo a teoria democrática,
para a exposição de diferentes posições
sobre diferentes matérias. Ser um mercado de idéias.
Por
exemplo, os jornais poderão ter páginas de opinião
onde diversos membros da sociedade possam expor seus pontos
de vista, mesmo que esses pontos de vista sejam minoritários.
Enfim, o jornalismo tem um papel fundamental na manutenção
das democracias.
AQ
- Quais são os desafios para o jornalismo neste início
de século?
NT
Primeiro, acho que os desafios não mudaram com a simples
mudança de século. Penso que os desafios permanecem
os mesmos de sempre. O jornalismo é uma profissão
muito difícil; é um desafio ser jornalista, tentar
corresponder às expectativas que o jornalismo deve preencher.
Isso não mudou só porque em termos técnicos
estamos num novo século.
Agora,
evidentemente, o fato é que o jornalismo é cada
vez mais difícil. Até porque a tirania do fator
tempo está a se sentir de uma maneira ainda mais atuante,
digamos assim, hoje em dia do que no passado, precisamente devido
aos avanços tecnológicos. Portanto, é cada
vez mais um desafio ser jornalista.
AQ
- Em alguns dos seus livros, principalmente no Estudo do jornalismo
no século XX, o professor chama a atenção
para o jornalismo cívico americano. Qual é a importância
dessa forma de se fazer jornalismo?
NT
O jornalismo cívico pretende que o jornalismo siga os
ideais do jornalismo cívico. Ou seja, ele não
é um outro tipo de jornalismo. O jornalismo cívico
é, se quiser, uma chamada aos jornalistas para o fato
de que os seus leitores, ou telespectadores, são em primeiro
lugar cidadãos, e só em segundo lugar consumidores.
Portanto,
não é um outro tipo de jornalismo, mas sim criticar
o tipo de jornalismo que se está a fazer hoje em dia
pelo qual, devido a diversas razões e fenômenos,
cada vez mais o importante passa a ser ter vendas e audiência.
Ou
seja, encarar o leitor/telespectador como um consumidor, esquecendo
que ele é cidadão. Portanto e voltando
à outra pergunta , cidadão que deve receber
informações sobre as questões importantes
de forma a ser um cidadão por completo. Se o jornalismo
dá importância sobretudo ao fait divers, ignorando
o papel do leitor como cidadão... essa é a crítica
fundamental do jornalismo cívico.
É
uma chamada de atenção a todos os jornalistas,
e talvez possamos incluir os empresários do jornalismo
também, os donos de empresas jornalísticas, para
o fato de o jornalismo não ser igual a um sapato à
venda, por exemplo; que existem responsabilidades sociais.
Nesse
sentido, o jornalismo cívico é o movimento que
condena, critica, um certo caminho; não que seja novo,
o jornalismo sempre foi um negócio, mas que devido a
certos fatores sentimos que estava a ser esquecido que o leitor
deve ser em primeiro lugar um cidadão. Depois, a segunda
chamada de atenção do jornalismo cívico
é que os jornalistas devem se ocupar com as preocupações
dos cidadãos.
Não
esquecer as questões dos cidadãos, dos públicos,
e não dar atenção quase obsessiva às
posições das fontes habituais de notícias.
É neste sentido que o jornalismo cívico nasce
de uma profunda insatisfação, digamos assim, com
a cobertura eleitoral de uma campanha presidencial americana.
O
jornalismo cívico está a dizer que é importante
ouvir os líderes políticos, com certeza, mas não
é possível esquecer as preocupações
dos leitores, dos cidadãos. Parece que os jornalistas
só dão importância ao que o presidente diz,
ao que um líder político diz, e esquecem por completo
que há cidadãos, leitores, e que esses leitores
têm uma agenda. Qual é a agenda desses cidadãos?
E não só qual é a agenda do líder
político.
O
movimento quer que os jornalistas fiquem ligados aos leitores,
não apenas às fontes oficiais de informação.
O jornalismo é uma rotina, é normal haver fontes
com mais acesso ao campo jornalístico do que outras;
o jornalismo cívico é então uma crítica
a certas práticas que fazem com que os jornalistas apenas
se preocupem com o que as fontes habituais dizem e esqueçam
das questões do público, dos leitores.
Assim,
as empresas jornalísticas devem conhecer esses problemas
e depois colocar na agenda informações sobre essas
mesmas preocupações do cidadão.
AQ
- Qual o papel que a tecnologia, cada vez mais presente nas
redações e no cotidiano do jornalista, exerce
no jornalismo atual?
NT Penso eu que, primeiro, ainda é cedo para tirarmos
conclusões. Mas também diria que há outras
pessoas melhor habilitadas para responder a esta pergunta. Como
é que as novas tecnologias estão a alterar a rotina
dos jornalistas é uma questão que precisa ser
estudada, precisa ser analisada.
Só
a partir dessas investigações podemos responder
precisamente à pergunta, com base em dados concretos,
e não apenas em especulações. Penso que
essas tecnologias certamente tornam o jornalismo ainda mais
sujeito às pressões do fator tempo; também
certamente torna possível aos jornalistas o acesso a
imensas capacidades que antes não tinham. Hoje está
ao alcance das suas mãos uma quantidade de documentos,
informações etc. que há dez anos não
era possível imaginar.
Assim,
há de fato enormes benefícios mas, como disse,
é preciso investigar a questão mais a fundo. Provavelmente
já há essas pesquisas, mas eu não tenho
tido tempo para lê-las e assim perceber melhor os efeitos
das novas tecnologias na profissão. Precisaria de mais
elementos para chegar à conclusão de que algo
de fundamental mudou.
Tenho
minhas dúvidas se algo de básico mudou. Por exemplo,
em termos da discursividade, penso que as novas tecnologias
reforçaram ainda mais o peso da pirâmide invertida,
do lead, da importância da concisão.
De
algumas coisas que tenho lido, por exemplo, o tempo que o utilizador
habitual das novas tecnologias dedica a elas é muito
pequeno. Houve também, nos primeiros anos, todo um elogio
do espaço ilimitado. Mas até que ponto esse espaço
ilimitado é utilizado por parte do leitor? Parece que
o que conta sobretudo é a rapidez. É ter informações
novas. E não tanto a profundidade da questão.
Mas,
de fato, poderão existir outras pessoas que utilizem
a tecnologia de forma diferente. Certamente é algo impressionante,
estas novas tecnologias.
AQ
- Como seria a formação ideal que as escolas de
Jornalismo deveriam dar de modo a que os futuros profissionais
possam enfrentar com sucesso os desafios de um jornalismo cada
vez mais tecnológico, universal e complexo?
NT
É uma questão que está sendo colocada
nos dias de hoje em vários lugares em Colúmbia
[Columbia University, em Nova York], por exemplo. Não
sei se já há uma resposta, mas eu acho que a melhor
formação é a que prepara o futuro jornalista
com sólidos conhecimentos nas ciências sociais
e humanas.
Complementando
essa formação com o ensino mais técnico.
Esse ensino técnico deve ter o apoio das tecnologias
necessárias. De tal maneira que o aluno não imagine
um computador na sua frente, mas sim esteja com um computador
na sua frente.
Assim,
é importante termos as cadeiras específico sobre
questões práticas, mas penso que a preparação
mais importante é esta, teórica, em diferentes
áreas das ciências sociais e humanas; porque, afinal
de contas, o jornalismo é vida e tudo pode ser notícia.
Neste sentido, provavelmente seria possível preparar
seja quem for para todos os aspectos do jornalismo.
O
jornalismo é muito abrangente. Então acho importante
sólidos conhecimentos da sociologia, da antropologia,
da economia, da política etc. Depois, devemos complementar
isso com uma formação mais prática
o futuro jornalista poderá ter cadeiras do domínio
das técnicas.
De
tal maneira que a pessoa que termine o curso já saiba
se orientar, embora evidentemente vá aprender mais depois
da universidade. É evidente que as pessoas quando acabam
o curso ainda têm muito o que aprender! Enfim, eu duvido
muito do ensino universitário que privilegia apenas a
questão técnica. Pois, no final das contas, o
que é mais importante é a definição
do que é notícia.
E
isso exige conhecimentos mais gerais do que o ensino que só
privilegia a técnica, mesmo porque, depois, na vida profissional,
o que o jornalista menos tem é tempo. Então, se
não tem a formação sólida nas ciências
sociais e humanas não é, por exemplo, na véspera
de uma conferência de imprensa que ele vai ler um livro
sobre economia ou outro assunto.
Portanto,
eu também aguardo com expectativa as conclusões
da Universidade de Colúmbia.
Antônio
Queiroga - Observatório da Imprensa
Fonte: Clipping da Frente Nacional pela Democratização
das Comunicações, 22/5/2003
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