Nº 8 - Julho 2007 Publicação Acadêmica de Estudos sobre o Jornalismo e Comunicação ANO V
 
 

Expediente

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 

 

 


 

 

 

 

 

 


RELATOS
   

Impressões do Japão:
Relatos de dois professores-convidados

PARTE 2: Irashaimassê!
Por Fernanda Torres Magalhães


Fig. 1: Jovem universitaria em Gion. Foto: A. Avancini.

Irashaimassê! Irashaimassê!

Essa é uma das primeiras palavras que se ouve assim que se chega ao Japão. Num alto-falante, numa gravação com uma aguda voz feminina.

Bem-vindo.

Cheguei ao Japão, mais especificamente na província de Osaka, no final de março de 2003. Depois de cruzar o mapa mundi e acompanhar pela telinha da aeronave o nosso deslocamento interminável, aterrissamos quase 26 horas depois de deixar o aeroporto internacional de Guarulhos. Confusão geral, confusão mental. Num primeiro momento, o Japão agride. Muitos sons, cores, uma língua indecifrável que se funde em letreiros e imagens coloridas. Pessoas vestidas de maneira uniforme e que estão sempre apressadas. Acredito que os japoneses sejam os mais rápidos ao fazer um desembarque, pois mal o avião toca o solo, e lá estão eles retirando suas maletas do compartimento de bagagem. Sim, o Japão tem pressa.

Fui convidada pela Universidade de Estudos Estrangeiros de Osaka para ocupar a cadeira de "foreign teacher", onde seria responsável em ministrar cursos sobre "História e Cultura Brasileira". Detalhe importante: em Língua Portuguesa. Em princípio, parecia uma tarefa fácil, visto que tinha formação acadêmica em História, com um Mestrado recém concluído - ambos na Universidade de São Paulo - e alguma experiência em sala de aula. Aceitei o desafio, que se apresentaria em várias vertentes, entre elas, ensinar para estrangeiros e viver em um país com diferenças significantes.

Até então meu contato com a cultura japonesa se limitava ao que a maioria das pessoas tem acesso, seja no Brasil ou em qualquer outro lugar. Filmes de Akira Kurosawa e muitas imagens-símbolos - tais como o país afetado por uma bomba atômica, dos grandes guerreiros, da culinária sofisticada, do zen-budismo, entre outros - que são largamente divulgadas pelos diversos meios de comunicação.

Acreditava que o contato, mesmo que mínimo, com a cultura e comunidade japonesa da cidade de São Paulo, serviria como uma espécie de "estágio" para quando aqui chegasse. Mas o traço cultural que presenciamos no Brasil é uma herança dos imigrantes, uma cultura que para os próprios japoneses soa "estranha", parada no tempo. A cultura japonesa no Brasil passou por um processo de transformação necessária para sua própria sobrevivência. Ela se fundiu com a nossa cultura local, apesar da força da tradição japonesa.

Os primeiros momentos no Japão são árduos. Física e psicologicamente. O seu corpo sente a diferença de fuso horário, deixando-o atordoado por uns bons dias. Noites e dias trocados, e ainda tem que se acostumar com o fato de ter seu calendário adiantado. No começo essa é a palavra mágica para seu estágio aqui: acostumar-se. E nesse processo de adaptação, muitas gafes são cometidas e perdoadas pelo olhar benevolente japonês, que te encara com aquela expressão de compreensão. Sim, um gaijin pode errar, dentro claro, dos limites sutilmente impostos.

Era chegado o momento de conhecer meu local de trabalho. Diante de cerca de 30 alunos do 3o ano do Departamento de Língua Portuguesa, dei minha primeira aula. Eram jovens curiosos em conhecer a nova professora brasileira. Discurso por cerca de uma hora, explicando detalhadamente a ementa do curso. Fixei meu programa em História do Brasil Contemporâneo, desde a ditadura do Estado Novo à ditadura militar, enfatizando os aspectos políticos e sociais.

Os olhares impassíveis dos alunos não me diziam nada. Havia ali uma barreira que precisava descobrir qual era. Na semana seguinte, no mesmo horário, voltei à sala de aula. Dessa vez o público havia se reduzido a apenas dez participantes. Fui tomada por uma espécie de frustração, afinal, acreditamos na importância da primeira impressão, e tive a sensação de que a minha proposta não tinha despertado interesse nos alunos. Sensação nada agradável para um recém-chegado.

Conversando com uma colega de Departamento, descobri que a razão do ocorrido foi que os alunos acharam a disciplina complicada. Havia uma lacuna na formação desses estudantes, afinal não era um curso de graduação em História e ainda com um outro agravante que acredito ter sido mais relevante na desistência dos alunos: o vocabulário acadêmico, misturado com a velocidade de falante nativa, assustaram muitos que não conseguiram sequer ter um entendimento efetivo da ementa. E assim tive que me adaptar.

O primeiro ano, obviamente, foi o mais difícil. Passei por um processo de reaprendizado da minha própria língua, buscando sinônimos todo o tempo.

Falar com estrangeiros faz com que você se comunique numa linguagem mais amena. E tive que mudar meu prisma de como seria ensinar algo sobre o Brasil que fosse ao mesmo tempo interessante e que não soasse tão hermético para os jovens japoneses.

Ser professor em terras estrangeiras não seria tão fácil como imaginava. A questão crucial que se colocava era como abordar aspectos da nossa cultura e história que não soassem tão distantes para eles, e ao mesmo tempo, queria evitar os lugares-comuns. Foi um aprendizado crucial para mim, como educadora, criar um programa de ensino que fosse acessível, interessante e diversificado.

Um desafio e tanto: abordar e discutir a sua própria cultura com estrangeiros, especialmente uma tão diversa como a brasileira. Acredito que seja por causa da força da cultura que o nativo carrega que as universidades invistam na contratação dos estrangeiros. O fato de não ser japonesa já é uma aula para eles. O estrangeiro é a diferença, em carne e osso. A postura, o modo de se vestir, a maneira de falar, até o fato de você olhar nos olhos do seu interlocutor é um aspecto cultural, que pode ser entendida de outra forma em outros lugares.

No segundo ano de Japão, e com três cursos para alunos de 3o e 4o anos, descobri uma oportunidade única de apresentar aspectos da cultura brasileira, muito além dos clichês por aqui largamente divulgados. Carnaval, futebol, samba e Amazônia eram temas por demais explorados. E nem é preciso lembrar que o Brasil é muito mais do que isso.

Elaborei três disciplinas: História de São Paulo, História da Fotografia Brasileira e História da Música Brasileira. Tive bons resultados e graças à tecnologia do mundo virtual, pude utilizar de recursos audiovisuais tão importantes para suprimir a distância entre os dois países. Falar sobre a música do Nordeste e dissipar algumas idéias pré-estabelecidas, [1] fez valer o esforço de abordar um assunto que sempre me interessou mas que não era especialista. As leituras de José RamosTinhorão [2] foram primordiais. Aspectos da cultura popular estão vivos em nossa música, um dos nossos bens mais preciosos. Choro, festivais da música brasileira, geração roqueira dos anos 90, e hip hop foram também abordados.

São Paulo como tema de um curso também foi de uma riqueza imensa. Graças ao aniversário de 450 anos da cidade, muita coisa se produziu e material didático para as aulas foram abundantes. Mostrar aspectos de uma metrópole como São Paulo, cidade dos "mil povos", foi interessante e intenso. São Paulo pulsa, vibra, tem problemas - como qualquer outra megalópole -, com o adendo dos seus aspectos particulares: cidade de imigrantes, trabalho, cultura, indústria e produção intelectual.

Mas, dentre esses três cursos, o que particularmente apresentou resultados mais diversos e estimulantes foi o que versava sobre a fotografia brasileira. Acreditava que a paixão pela fotografia era uma espécie de lugar comum entre os japoneses. Ledo engano. A fotografia no Japão parece exercer uma única função social: registrar o "isto foi", ou o "estive aqui". As máquinas modernas, sofisticadas, a ampla tecnologia digital parece que são apenas para exportação. Muitos alunos nem possuem uma simples câmera fotográfica. As imagens que fazem são feitas pelas minúsculas lentes dos telefones celulares, esses sim de extrema popularidade entre os jovens.

A singularidade do curso foi um duplo desafio. Para mim, entender o significado da fotografia para os jovens alunos. Para eles, aprenderem de alguma forma a "lerem" as imagens que nos bombardeiam a todo instante. E claro, quando abordamos qualquer arte não temos como deixar de falar do que está intrínseco a ela: a emoção. Toda fotografia é feita por alguma motivação. O fotógrafo é movido por uma emoção, um ímpeto de "materializar" aquilo que acha digno de registro. Muitas vezes, falar de emoção para os japoneses é um risco.

A aparente frieza e inexistência de sentimento fazem parte da sua cultura, estão acostumados a não demonstrarem o que carregam na sua "anima". Mas, isso é apenas questão de trabalhar, de adquirir a confiança e lá estão eles, devagarinho, se abrindo, se mostrando emotivamente.

A aula se dividia em duas partes. A primeira sobre a história em si da fotografia, onde lemos trechos de textos de Roland Barthes e Susan Sontag. [3]. Também apresentava fotografias de periódicos brasileiros, [4] que serviram de instrumental para as aulas. A segunda parte, era destinada à criação. A cada semana era sugerido um tema, onde eles próprios tinham que produzir imagens [5] que tivessem alguma relação com o assunto a ser abordado. E assim, a cada sessão os alunos eram responsáveis em apresentar suas fotografias - exibidas em "powerpoint" previamente por mim preparadas - e falar sobre a emoção, a motivação por ter registrado o que ali se apresentava.

No final, o curso assumiu um papel imprevisível. Aproximou os alunos entre si, além de ter sido um espaço onde possibilitou a eles exporem muito mais do que suas imagens. O jovem é como qualquer outro, independente do país ou cultura. Com medos, expectativas e acima de tudo, com emoções. Mesmo que não estejam tão à flor da pele.

Notas

[1] De um modo geral, quando se fala em samba, a imagem que se tem é o do Samba Enredo Carnavalesco, com seu ritmo rápido e contagiante. Outra idéia estabelecida é a da Bossa Nova como rainha soberana no cenário musical brasileiro. No Japão, a Bossa Nova é bastante difundida, podendo-se ouvi-la com freqüência em restaurantes e cafés. A música brasileira então se resume a: Samba de Carnaval e Bossa Nova.

[2] TINHORÃO, J. R. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998.

[3] BARTHES, R. A Câmara Clara. Lisboa: Edições 70, 1989.

[4] SONTAG, S. Ensaios sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Arbor, 1981.

[5] Foram utilizadas imagens extraídas da revista Veja, que a biblioteca da Universidade adquire, e do jornal Folha de S.Paulo, na versão online.

*Fernanda Torres Magalhães é mestre em História Social pela Universidade de São Paulo.


®Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]

 

Edição 8: Estudos de Jornalismo