Nº 8 - Julho 2007 Publicação Acadêmica de Estudos sobre o Jornalismo e Comunicação ANO V
 
 

Expediente

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 

 

 


 

 

 

 

 

 


RELATOS
   

Impressões do Japão:
Relatos de dois professores-convidados

PARTE 1: Um diálogo cultural
Por Atílio Avancini


Fig. 1: Portal do restaurante Nagai Hama (Praia Longa). Foto: A. Avancini.

"Qualquer que seja o processo desenvolvido e as áreas exploradas pela pedagogia e didática das línguas estrangeiras, todos os esforços tendem sempre a um só objetivo: melhor ensinar para ajudar a melhor aprender". (R. Richterich)

Em Kyoto, durante um ano (2006-2007), desenvolvi um trabalho pedagógico baseado na "Cultura Brasileira e Comunicação" no Departamento de Estudos Luso-Brasileiros da Kyoto University of Foreign Studies, Kyoto, Japão. Como professor-convidado, estabelecido no Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, promovi o ensino da Língua Portuguesa em seis disciplinas de Graduação e uma de Pós-Graduação, contando com o suporte metodológico da Arte-Educação. Esta área do pensar objetivou promover interações relacionadas com a cultura, visando práticas diversificadas e abertas ao pluralismo.

O ensino no Japão se integrou às múltiplas forças sócio-culturais atuantes, que não só foram influentes nas opções no que diz respeito às condições pragmáticas como também determinaram comportamentos. Assim, o ensino-aprendizagem se processou num contexto educacional determinado por condições específicas do lugar, refletindo aspectos emocionais e intelectuais dessa comunidade, parte formadora de sua identidade.

Neste relato, faço breves considerações sobre o ensino em sala de aula e o contato fora da Universidade com a cultura japonesa. Compartilhei um duplo deleite. O primeiro foi dos estudantes japoneses em conhecer o modo de vida ocidental, sobretudo o brasileiro, visto como um povo descontraído, alegre, criativo e original. O interesse dos estudantes pelo Brasil veio dividido pela insegurança da perda da identidade japonesa: o contato da ilha-Japão com estrangeiros sempre foi feito com muito cuidado e receio. O segundo deleite foi unicamente pessoal, diante do desafio de residir na antiga capital Kyoto, envolta pela atmosfera cultural e tradicional do Japão.

De certo modo, meu desejo de vivenciar o estilo de vida nipônico veio acompanhado pela busca de semelhanças e antagonismos entre as identidades japonesa e brasileira.

Assim, para enfrentar os desafios em sala de aula e na vida cotidiana de Kyoto, lancei-me aos princípios da Arte-Educação, nas áreas da arte literária, arte visual e arte musical. O caminho da Socialização da Arte - ligado às Ciências Humanas - foi decisivo para que os alunos tomassem conhecimento da Cultura Brasileira e da Língua Portuguesa com criatividade e, simultaneamente, suavizar sua própria identidade cultural. Percebi também que para trabalhar com os estudantes era necessário conhecer o ambiente histórico de Kyoto - capital do Japão, da Era Heian (794) à Era Meiji (1868).

De início, constatei algumas dificuldades por parte dos estudantes como, por exemplo: realizar análises de conteúdo, fazer abstrações, perceber metáforas, se expressarem espontaneamente. Mas, uma vez no Oriente, aproveitei o estado natural de concentração, ordem, exatidão, resguardo e silêncio. Assim, procurei lidar com alguns aspectos da "educação mental" propostos pela educadora francesa Mira Alfassa (La Mère): "desenvolvimento do poder de atenção; desenvolvimento da capacidade de expansão; organização das idéias em torno de uma idéia central".

Para encorajá-los a deixarem a passividade, fazerem perguntas e se lançarem mais abertamente, propus experimentos com três autores da Arte Moderna Brasileira: a poesia de Cecília Meireles, a pintura de Tarsila do Amaral e a música de Tom Jobim. Com ese "tesouro" pude avançar cuidadosamente, evitando a acomodação.

O enfoque com a escritora Cecília Meireles (1901-1964) foi baseado no livro "Ou Isto ou Aquilo", escrito para o público infantil e adulto. Assim, cada fragmento poético - possuindo narrativa própria, rima interna e traço cultural - foram discutidos criativamente com os alunos. Nesse âmbito, procurei ser conduzido pela simplicidade e profundidade das ondas poéticas de Meireles, convidando os alunos a compartilhar tal vivência.

O foco na pintora Tarsila do Amaral (1886-1973) foi a partir de algumas de suas mais importantes obras, que foram significativas na ruptura estilística das Artes Plásticas Brasileira. Imagens como "A Japonesa" (1920), "A Negra" (1923), "São Paulo" (1924), "A Família" (1925), "Abaporu" (1928), "Antropofagia" (1929), "Operários" (1933), foram reproduzidas pelos alunos na busca da similaridade - e não da cópia - na tentativa de facilitar análises estéticas e simbólicas das obras. Foi também proposto um trabalho escrito de pesquisa, tendo como ponto de partida a vida e a obra de Tarsila do Amaral.

Chega a ser natural a atração do Japão pelo gênero musical Bossa Nova.

Desse modo, tomei a iniciativa de levar um violão em sala de aula para tocar e cantar algumas canções do músico Tom Jobim (1927-1993), compostas nos anos sessenta: "Garota de Ipanema", "Este seu olhar", "Eu sei que vou te amar", "Corcovado", "Desafinado", "Samba de uma nota só", "A Felicidade". Tom Jobim pode ser considerado a expressão da alma musical brasileira. E a aceitação da Bossa Nova favoreceu um trabalho de compreensão das letras, de discussão sobre os "anos de ouro" da cidade do Rio de Janeiro, de experimentos rítmicos e de experiências bem sucedidas com o coral formado por alunos em sala de aula. Tive ainda o privilégio de fazer a letra de duas canções de Bossa Nova do músico e professor Shiro Iyanaga: "Sonho primaveril" e "Só em Kyoto".

Fora dos domínios universitários, minha troca com a gente de Kyoto processou-se dentro do mesmo eixo: a possibilidade de acesso ao conhecimento via arte. Pensando num futuro livro de fotografias sobre o Centenário da Imigração Japonesa no Brasil, em 2008, aproveitei os finais de semana e as férias escolares para produzir Retratos e Fotografia de Rua - flagrantes espontâneos de pessoas no espaço público. Nesse sentido, foi importante minha participação no Laboratório de Fotografia em Preto e Branco - Clube de Fotografia da Universidade (Shashin-Bu) - para revelar e ampliar fotos e expor trabalhos coletivos em galerias: "Winter 2006" na University Gallery e "Photogenic" na Gallery Petitor 884.

Meu desejo de tirar boas fotos, deu energia para ir adiante e chegar mais perto do homem de Kyoto. Mais tarde, quando reflito calmamente sobre algumas imagens, sinto que fui além dos limites de minha experiência. Eu sempre amei as cidades e seus cidadãos. E fotografar foi deixar a teoria de lado e partir em direção à prática. Como refere-se Henri Cartier-Bresson: "ver é um desfrute para o olho, deixando os pensamentos conceituais em repouso".

Para um fotógrafo, a homogênea paisagem natural do Japão exerceu muito fascínio e descoberta como, por exemplo, a intersecção contrastante a cada estação do ano. Em minhas saídas fotográficas individuais, busquei luzes e sombras, brancos e pretos, formas e linhas, texturas rugosas e lisas. E também aproveitei para promover duas saídas coletivas em Tokyo - "Workshop de Fotojornalismo" por mim ministrado -, contando com a presença de 20 jornalistas do jornal International Press.

Face a face com a vida de Kyoto, procurei revelar templos tombados, jardins secos, festas populares e atividades culturais. Não por acaso, senti também a necessidade de escrever uma crônica mensal de eventos ou fenômenos da natureza na ordem em que eles se sucederam: Sakura/abril (flor da cerejeira), Kodomo no Hi/5 de maio (dia da criança), Kamo Kurabe-Uma/5 de maio (corridas de cavalos em pares no templo Kamigamo), Aoi Matsuri/15 de maio (procissão com costumes aristocráticos da Era Heian), Gion Matsuri/17 de julho (festival popular com carros alegóricos), Daimonji/16 de agosto (fogo para as almas ancestrais retornarem aos seus mundos), Zuiki Matsuri/de 1 a 5 de outubro (templo portátil levado por homens e decorado com produtos agrícolas no templo Kitano Temmangu), Jidai Matsuri/22 de outubro (desfile apresentando a história do Japão desde a Era Heian à Era Meiji), Momiji/novembro (folha momiji), Shogatsu/1 de janeiro (primeiro dia do ano), Setsubun/3 de fevereiro (grande fogueira no templo Yoshida para trazer a boa sorte), Ume no Hana/fevereiro (flor de ume).

As considerações feitas neste relato, embora pessoais, podem dar uma idéia dos desafios que enfrenta um professor estrangeiro no Japão. Em um ano de prática, chego à conclusão de que para uma aproximação comunicativa, a Arte foi a chave para o exercício do diálogo entre povos de culturas tão díspares. A proposta de abrir-se para o Outro, deve ser construída a partir da conscientização das raízes culturais de cada povo.

Saio mais enriquecido dessa experiência como fotógrafo e acadêmico, além de me sentir mais realizado como ser humano. Hoje, minha trajetória pessoal possui mais amplitude. Agradeço a atenção dada pelas Universidade de São Paulo e Kyoto University of Foreign Studies, afirmando que a realização desses intercâmbios internacionais são importantes para o desenvolvimento do conhecimento científico no mundo contemporâneo.

Afinal o ser humano é um em qualquer parte do planeta, independente de sua língua, cultura, crença, raça ou classe social.

Referências bibliográficas

RICHTERICH, R. Besoins langagiers et objectifs d'apprentissage. Paris, Hachette, s/d.

LA MÈRE. Éducation. Pondichéry: Sri Aurobindo Ashram, 2005. p. 35.

CARTIER-BRESSON, H. Henri Cartier-Bresson. Kyoto: Kahitsukan/Kyoto Museum of Contemporary Art, 1997. p. 48.

*Atílio Avancini é fotógrafo e doutor em Jornalismo pela Universidade de São Paulo e professor de Fotojornalismo no Departamento de Jornalismo e Editoração (ECA/USP).


®Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]

 

Edição 8: Estudos de Jornalismo