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RELATO

"Kane"
Um relato de viagem por
Atílio Avancini*

No relato a seguir, o professor Atílio Avancini, do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), descreve as cerimômias do 61º aniversário da bomba de Hiroshima, evento que acompanhou em sua recente viagem ao Japão onde, entre outras atividades, ministrou o 1º Workshop de Fotojornalismo para profissionais da International Press Japan Co.

Kyoto, verão 2006

Dom, dom, dom, dom, dom. O sino de bronze (kane em japonês) reverbera em solene explosão sonora. Cinco pancadas na superfície externa do cone invertido precisamente às 8h15 da manhã. Realiza-se o Cerimonial da Paz. Durante a silenciosa oração, as cigarras se permitem vaiar ruidosamente em forma de si, si, si.

É dia de domingo em Hiroshima, 6 de agosto, céu azul e um calor de escalpelar. O Parque Memorial da Paz é o local onde, há exatos 61 anos, a primeira bomba atômica do mundo explodiu e aniquilou toda a cidade. E sinalizou a entrada da raça humana à era nuclear.

Assisto, inicialmente, às decla-rações cronometradas do Primeiro Ministro, do Secretário das Nações Unidas, do Prefeito e do Governador de Hiroshima.

Depois veio a Dedicação das Flores: uma multidão paciente deposita ramalhetes diante da Chama da Paz às almas dos desaparecidos.

Fotos: Atílio Avancini

Fig. 1 O Primeiro Ministro Koizumi e o Cenotáfio.

Olho os familiares das vítimas inocentes se curvarem com a cabeça e unirem suas mãos em forma de prece: trabalhadores, idosos, crianças.

Assim, semeiam o "Espírito de Hiroshima" - cidade-símbolo da paz mundial. Não por acaso, o Código de Ética do Japão antigo floresceu nos Estudos Clássicos de Hiroshima (século XVII).

A cidade, ainda hoje, continua exercendo uma tradição edu-cacional. É elegante, moderna, repleta de prédios altos e árvores frondosas, rodeada por mar e montanha.


Fig. 2
A Dedicação das Flores.

O delta sinuoso e limpo realça a sua beleza geográfica.

O Museu Memorial da Paz possui um grande vão livre e a área expositiva se instala em dois blocos, no primeiro andar e no térreo. O arquiteto K.

Tange, vencedor de concurso público em 1949, projetou em linha o Museu, o Cenotáfio (monumento à memória das vítimas e a Chama da Paz) e o Domo (edifício com cobertura hemisférica em ruína, projetado pelo arquiteto checo J. Letzel em 1915). Por engano, entro no Museu pela porta da saída.

Passo a tarde ocupado com maquetes, infográficos, fotografias, vídeos, desenhos, instalações, artefatos, objetos pessoais, manuscritos. Muita gente se debruça atônita diante do visível tal qual espelho de memórias.

Os passos são curtos, o silêncio é incômodo, os corpos se contorcem no espaço contemplativo e terapêutico - as obras transcendem objetivos e forjam novas significações.

Desde já, presencio dois paradoxos: os textos estão escritos na língua dos frios e calculistas bombardeadores e o local confortável, como sala de visitas, distoa das imagens de atrocidades humanas.

Assisto em vídeo as declarações do único fotógrafo a produzir cinco cliques do cenário da cidade após a explosão da bomba. Ele se preparava para ir ao jornal onde trabalhava. De repente, o mundo ao seu redor ficou branco e brilhante, como se tivessem disparado um flash no seu rosto.

Mas como reage um fotojornalista local, diante de algo tão desolador e repulsivo, presenciando a morte de irmãos? M. Yoshito afirma: "Eu tinha sofrido apenas ferimentos leves causados por estilhaços de vidro. Após 40 minutos peguei minha câmera fotográfica, vesti uma roupa que achei no meio de escombros e saí para a rua. Foi como uma visão do inferno. Vi um bonde queimando.

Dentro estavam 15 ou 16 passageiros, mortos uns sobre os outros, com as roupas arrancadas. Meus cabelos arrepiaram e as pernas tremeram. Caminhei para tirar uma foto. Não consegui, meu coração estava partido, não pude tirar fotos de corpos mortos. Havia outros fotógrafos, mas nenhum deles conseguiu fotografar."

No centro da sala, repousa uma chaminé fissurada de concreto e ferro - um dos poucos objetos que sobrou no raio de dois quilômetros do hipocentro da bomba.

O texto de parede informa: depois de meia hora da detonação, a cidade inteira numa gigante conflagração consumiu tudo o que era combustível.


Fig. 3
Imagem da destruição.

A bomba explodiu numa altitude aproximada de 580 metros. Emitiu três formas de energia: raios quentes, ventos fortes e radiação. No raio de cinco quilômetros do hipocentro, o calor atingiu temperaturas de 3 mil a 4 mil graus Celsius; a rajada de vento soprou a 440 metros por segundo, criando uma energia física agente de 19 toneladas por metro quadrado; a radiação residual promovida pela fissão de 50 quilos de urânio penetrou nas células humanas.

A gigante nuvem cinza em forma de cogumelo - imagem culturalmente estabelecida - carregou muita poeira e com o vapor d'água do ar gerou uma chuva negra intensa.

O exato número de baixas ainda permanece desconhecido e muitas das vítimas nunca foram identificadas. Todavia, em 1976, a cidade de Hiroshima enviou às Nações Unidas um documento - A Eliminação de Armas Nucleares e a Redução de todas as Forças Armadas e todos os Armamentos -, que estimava em cerca de 140 mil pessoas mortas até o final de 1945.

Há milhares de ítens na coleção do Museu, que incluem pertences das vítimas e objetos materiais. Tais peças falam sem palavras: parece não haver distância entre o espectador e o referente. Impressiona os relógios de A. Kawagoe e de K. Nikawa: seus ponteiros estão encravados nas marcas do VIII e do III. Assusta o triciclo desfigurado e contorcido do menino S. Tetsutani; a marmita transformada em bronze, com alimentos petrificados, do estudante S. Orimen.

Tudo desliza e ainda derrete nas duas garrafas esverdeadas de vidro, nas estátuas religiosas de metal, nas tigelas de cerâmicas azuladas ou nos aglomerados de moedas. Os retratos fotográficos de algumas vítimas, sem qualquer talento artístico, são testemunhos impactantes dos efeitos causados pela radiação: rostos, dentes, costas, cabelos, dedos, unhas, pés, peles. Acredito numa realidade que posso conhecer a partir das fotos, mas apenas processada subjetivamente.

O Museu promove perguntas com respostas. Por que os Estados Unidos desenvolveram a bomba? Por que decidiram lançar a bomba no Japão? Por que a bomba foi lançada em Hiroshima? Mas emerge nas entrelinhas uma pergunta sem resposta. Por que conquistar a paz mundial é tão difícil e complexo?

Talvez, por isso, haja pouca discussão sobre as ocupações japonesas (parte da Ásia, início do século XX); o ataque a Pearl Harbour (Havaí, 1941); a rendição do Imperador Hiroito ouvida no rádio (Tokyo, 14 de agosto de 1945); a ocupação americana no pós-guerra; a Constituição do Japão de 1946 (o direito de voto, o Imperador como símbolo do Estado). A monarquia japonesa é a mais antiga do mundo. E com a democracia, o Imperador perdeu os poderes relacionados ao governo e deixou de ser um líder celestial.

Saio árido. Tomo um banho japonês no Ryokan (pousada típica).

Bebo ligeiramente um café com gelo picado.

Em direção à Hiroshima-Eki (Estação Ferroviária), ascendo do chão e remonto ao bonde com ar refrigerado - é como uma brisa refrescante da Mãe Natureza. Com o balancim, muitos passageiros sentados sobre o veludo verde se entregam ao sono.


Fig. 4
Pedestres em Hiroshima.

Aproximando-se do fim-de-linha, o condutor se serve do pequeno sino dourado a bimbalhar: tin, tin, tin.

O pequeno marcador de tempo - como "bomba-relógio" - inunda tudo ao redor. Interruptor de sonhos, o agudo orientador sonoro agride as profundezas desses seres de cultura milenar. Atordoados, já estão prontos para a próxima.

O grande foco contemporâneo parece ser a busca material - não por acaso, o som kane, além de sino, também significa metal ou dinheiro. O tempo cronometrado pouco relaxa, pouco folga, pouco afrouxa: o olho, como máquina, está quase sempre desperto.

Mas e os anjos dos tempos de paz, onde estariam?


*Atílio Avancini é professor da ECA/USP.

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