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Entrevistas


Thomaz Farkas, civilizador
Depoimento a Marcelo Januário*

Thomaz Jorge Farkas nasceu em Budapeste, capital da Hungria, em 1924. Com 5 anos chegou ao Brasil, onde mais tarde introduziria a fotografia modernista e constituiria-se em um marco na produção artística nacional. Seu trabalho em fotografia entre as décadas de 40 e 60, ao lado de nomes como José Oiticica Filho, Eduardo Salvatore, José Yalenti e Geraldo de Barros, ficou marcado pela renovação da linguagem, com acentuada preocupação com pesquisas formais, pelo distanciamento da pintura, pela exploração de planos e texturas, além da escolha de ângulos inusitados.

Sua primeira individual de 1948, no Museu de Arte de São Paulo, é também a primeira exposição de fotografia realizada num museu de arte no Brasil. Contemporâneo e amigo de figuras como Glauber Rocha, Gregori Warchavchik, Ciccillo Matarazzo e Mário Pedrosa, no fotojornalismo Farkas registrou eventos como as comemorações em São Paulo do final da II Grande Guerra em 1945, a Bienal de 1954 e a construção e inauguração de Brasília em 1960. Atualmente seus trabalhos integram a Coleção Pirelli e o acervo permanente do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA).

Também foi o primeiro produtor de filme cultural no Brasil. A partir de 1965, a hoje lendária Caravana Farkas promoveu a valorização do povo, a mestiçagem e a brasilidade com uma série de 33 filmes de curta e média-metragem e 8 longas, vistos como modelo de cinema documentário, que dirigiu, fotografou e/ou produziu até 1981.

A proposta deste grande painel documental (sem precedentes ou sucessores) foi abordar todas as regiões do país e realizar um panorama didático completo das atividades do brasileiro, de sua visão de mundo, de seu modo de ser e de sobreviver. Os filmes, como Viramundo e Memória do Cangaço, ambos de 1965, não obtiveram êxito comercial, mas revelaram uma geração de cineastas e foram premiados em todo o mundo, sendo considerados marcos definitivos do Cinema Novo.

Membro fundador do Museu de Arte Moderna de São Paulo, ex-diretor da Fundação Bienal, da qual atualmente é conselheiro, e presidente do Conselho da Cinemateca Brasileira desde 1996, Thomaz Farkas, o grande artista brasileiro, resume toda uma época da cultura nacional em depoimento inédito e exclusivo no ano de seu 80o aniversário.


Fotos: Marcus Vinicius Costa

Docência
"Meu lema para os alunos, não sei se você falou com algum aluno meu, hoje são gente mais crescida, mais importante, e eu sempre falei para eles: 'tudo que eu falar, tudo que eu disser pra vocês, o contrário também vale'. Então nada de você achar que eu sou uma pessoa entendida."

"Quer dizer, eu sou um curioso, um cara interessado, mas eu sou muito marginal nessas coisas de fotografia, de cinema, não sou profissional nem amador, é uma coisa assim meio complicada".

"Daí, tudo o que eu falava o contrário também vale. Se eu estou dizendo pra vocês que o corte da fotografia tem de ser assim, pode ser assado, pode ser redondo, poder ser, no cinema, se a montagem..., se eu disser pra você que tem de ser assim, também o contrário vale; então essas coisas são muito importantes porque nada daquilo que a gente fala é uma verdade, porque a verdade é tudo o que aparece com o tempo, não é aquilo que você diz, nem aquilo que você pensa, mas é aquilo que aparece, a verdade é uma mistura das coisas que você pensa e fala e faz e enfim".

ECA
"A melhor parte da ECA [Escola de Comunicações e Artes da USP] pra mim foram os alunos, não os professores colegas. Professores colegas houve um ou outro muito bom, que eu não quero citar porque teve gente muito humana, muito boa, mas a melhor parte eram os alunos, porque eram muito interessados, ou muito bem interessados, quer dizer, ou a favor ou contra, entende?"

"De modo que eu tive uma recepção muito difícil porque eu não consegui, eu não sou professor, nem fui, então eu falo as minhas idéias, mas não quero ensinar nada, eu não sou um professor, até hoje me pedem, mas eu não sou nada disso".

"Daí eu apresentava os meus filmes e minhas fotografias, projetava fotografia, projetava filmes, e comentava aquilo que eu projetava. Então era essa a minha função, e respondia a todas as perguntas, e era muito mais interessante do que você falar sobre uma certa coisa que não tem nada do que falar. A ECA neste tempo era uma ECA interessante, porque nós tivemos um diretor que era do contra, e o reitor da universidade... Eu não consegui fazer doutorado".

"A minha banca era constituída de pessoas muito [destacadas], o Paulo Emílio Salles Gomes era uma, Maria Isaura Pereira era outra, e foram eliminados da banca por serem doutores novos, que não poderiam [avaliar]. Mas isso era uma coisa política, isso é uma coisa política da época e todo mundo passou por isso. Levei um tempão [para defender a tese]. No fim deu certo e pronto".

"Eu saí da ECA por uma única razão: eu trabalhava muito, eu trabalhava na loja do meu pai, a loja do meu pai era a Fotoptica, e eu trabalhava de dia, não podia dar aula à noite; eles queriam que eu desse aula à noite, eu disse não posso dar aula à noite, então veio uma aposentadoria milionária, são 400 milhões de tostões, tá bom!... [irônico]"

"Então aí acabou a ECA, mas eu sigo a ECA de longe e tem 2 ou 3 professores, Cremilda Medina [a professora e jornalista nascida em Portugal Cremilda Celeste de Araújo Medina] é uma pessoa maravilhosa, José Marques [o professor, jornalista e consultor alagoano José Marques de Melo], que até hoje me prestigia, um pessoal muito bom. Então é isso aí, é a minha ECA, a ECA é isso aí".

Acusações
"Binóculo militar é um binóculo especial que tem uma retícula na imagem e você calcula a distância em que a pessoa está através desta retícula; porém esses binóculos só são vendidos pra militares, como nós tínhamos uma loja de ótica me perguntaram se eu podia fornecer. Eu disse 'não, isso não existe, não existe à venda', então isso não pode ser, mas saiu no jornal, não deu nada. Sabe como são essas coisas, o sujeito acusa de tudo, no fim não é nada".

"Eu não fui cassado. A banca da minha tese foi anulada e tive de fazer outra banca, então tive de conseguir outra banca e eu defendi minha tese".

Ditadura
"Eu sei que todos nós fomos detidos. Eu fiquei uma semana, dez dias; o meu filho, que era menor de idade, ficou um mês ou dois, detido. Ele sofreu mais."

Reprodução

"E a minha filha também ficou presa, acho que um dia ou dois. Mas nada... No fim, é como essas coisas, não tem prova, então nada acontece."

"E eu também saí, graças a Deus; eu vi!, vi muitas coisas, mas não houve mais, conseqüência para a escola [ECA] não houve nada."

Farkas (esq.) na ECA. Anos 80

Herzog
"O Vlado [jornalista Vladimir Herzog, morto sob tortura aos 38 anos no dia 25 de outubro de 1975] era um amigo e trabalhou com a gente quase todos os dias e conversava muito sobre cinema e política. A mulher dele [Clarice Herzog, que colaborou com a Caravana Farkas em diversas produções] é uma pessoa maravilhosa; ainda hoje tenho contato com ela, mas ele era um cara muito legal, entende, era um cara normal, como você ou como eu, nada de... - não sei das atividades dele, eu não tenho a menor idéia, agora aconteceram coisas horrendas nessa época que todo mundo está sabendo - então isso é um choque que fica até hoje, quer dizer, se você lembra dele sentado ao meu lado no boteco comendo... Sabe, é muito chato, mas..."

"Enfim, fazer o quê? Então é uma coisa odiosa, odienta, foi um cara sacrificado. Eu não acredito que ele seja culpado de coisíssima nenhuma, porque nunca me falou nada de atividade. Também não perguntava muito porque não queria entrar nas coisas que não me competiam. Eu era favorável ao movimento bom, e era contra qualquer arbitrariedade como até hoje eu sou".

Despolitização da juventude
"Eu só posso dizer o seguinte: a mocidade, os moços, eu já era mais velho, mas a mocidade da época [décadas de 60 e 70] era muito mais interessada em política do que hoje. Hoje a mocidade está interessada em ganhar a sua vida, em ter o seu futuro garantido e a mocidade hoje, ao meu ver, não é politizada, me parece que não é".

"E naquele tempo todo mundo andava com máquina fotográfica, filmadora Super 8, seja o que for o 8, fazendo reportagens, todo mundo se interessava pelas coisas, todo mundo era participante, politicamente participante. Hoje, a mocidade vai em boates, vai nos shows, vai nas coisas, mas não tem uma participação política como tinha naquele tempo. Essa é a grande diferença".

"Não é só dinheiro: e carreira, é futuro, é muito material, porque as dificuldades talvez sejam maiores do que naquele tempo. Mas é que a participação política do jovem é muito menor. Acho eu, mas é uma opinião minha."

"Do ponto de vista artístico, os artistas tinham várias tendências, tinha gente de esquerda, gente de direita, tinha gente de tudo quanto era lado, mas a gente respeitava todo mundo, inclusive o pessoal de direita, a gente ficava um pouco do lado mas... tinha gente muito boa".

"Não sei [se isso é uma tendência mundial]. Eu não vivo nos Estados Unidos. Os Estados Unidos tiveram até o... eles não mataram gente, eles não vão fazer demonstrações políticas, de raça, de política, o tempo inteiro. Aqui não há, acho que houve aqui, mas não está havendo mais... Eu tenho impressão que no resto do mundo há, pode ser na Itália, pode ser na França, existe, no mundo inteiro você vê demonstrações políticas, a favor ou contra. Aqui eu não vejo isso".

Ainda o cordial
"[O país] Não é paciente. Vê o negócio da Zélia, a Zélia pegou dinheiro de todo mundo. Se fosse na Espanha teriam quebrado os bancos. Nós aqui somos muito mais tolerantes, a gente é muito mais tolerante. Eu li uma coisa dele [historiador Sérgio Buarque de Holanda] ontem no jornal: [brasileiro] não é cordial - era um cara, alguém queria dizer que ele não era só cordial - era mais simpático do que cordial".

Brasilidade
"Esse é o melhor país do mundo, não têm país igual. Não tem um país de tanta mistura, de tanta convivência, de tanta liberdade como aqui, não existe. Quer dizer, se você perguntar para um cara como eu: 'Você quer viver aonde?', [respondo] eu quero viver aqui! Eu não nasci aqui, mas eu não quero viver na Suíça, não quero viver nos Estados Unidos, nem na Itália, quero viver aqui, aqui estão meus amigos, é a minha vivência, então eu acho que esse é o melhor país do mundo, mas não espalha."

Gerações
"Eu vou fazer 80 anos. Eu perdi o contato. Naquele tempo eu era moço e fazia muitas coisas, e agora, como a época é outra, eu estou já convivendo em um outro mundo, estou com outra idade, estou com outro senso da cultura. Eu não sou da patota, eu não sou da patota cultural, porque as pessoas são muito mais jovens e trabalham talvez muito mais do que eu trabalhava. Cinema documentário, eu mal conheço os filmes que estão passando aí, mal conheço as pessoas, eu sinto muito, mas não dá para ver tudo".

"Eu fiz meus filmes, estou fazendo fotografia, enfim, são coisas que a gente está fazendo, mas não dá para você acompanhar tudo, porque infelizmente não... Eu tenho tanta coisa para pensar, estou na Cinemateca, tenho fotografia, quero divulgar, estou fazendo um livro novo".

"Então são coisas que me ocupam muito e não dá para... não estou em todas as exposições, não estou em todas as projeções, eu sinto muito, mas não dá!"

Eterno aprendiz
"Eu leio, eu leio revistas, eu leio livros, eu fui a um congresso literário agora em Parati (refere-se à 2a Flip, "Festa Literária Internacional de Parati", realizada entre 7 e 11 de julho de 2004) - eu quando era moço eu lia livros sobre fotografia e cinema, eu não lia material sobre romance, não tinha literatura que me interessasse, a não ser aquilo que eu estava querendo fazer, cinema e fotografia; eu perdi esse tempo e estou repensando agora - então eu fui neste festival onde assisti duas conferências que me deixaram com os olhos molhados".

"Uma do Arrigucci [o professor, crítico e escritor Davi Arrigucci Jr., nascido em São João da Boa Vista em 1943], sobre o Guimarães Rosa, e outra do Wisnik [o músico, compositor e professor José Miguel Wisnik, nascido em São Vicente em 1948], também um espetáculo sobre Guimarães Rosa, interpretando um conto. São coisas que a gente não acompanha mais agora... Mas agora vou repegar algumas coisas enquanto tiver tempo, eu vou voltar a ler Guimarães Rosa, vou voltar a ler romance, vou voltar a ler literatura, são coisas que eu perdi, mas eu quero repensar, repescar, se puder, porque também não dá muito tempo".

Arte e jornalismo engajados
"Não. Cada um faz o que pensa. O Glauber é que dizia "Câmera na mão, idéia na cabeça". Houve uma época em que realmente... o Cacá [o cineasta Carlos Diegues, nascido em Maceió em 1940] se revelou contra, em um artigo maravilhoso, contra a... como é que chamava... a interferência na criação artística".

"A criação artística é uma, agora você orientar uma criação artística através de decretos, leis, idéias ou repressões, eu acho que não está certo, não está com nada. Não está com nada dizer que tem de fazer leis que controlem o cinema, que controlem o jornalismo, eu acho que tem de haver uma liberdade porque cada um é responsável por aquilo que faz."

Conselho Federal de Jornalismo
"Eu não sei o que eles querem fazer, não sei se é possível controlar alguma coisa desse tipo. Porque tem muita idiotice, muita besteira e muita coisa horrenda, mas se você fechar isso, piora. Porque aí só vai ser uma coisa estacanovista, uma coisa eslanovista, um negócio soviético, e não precisa mais, aquilo teve sua época. Você é regulado pela sua consciência e pela sua palavra. Você faz uma coisa e o pessoal mete o pau em você, você tem de responder, mas não é que você tenha de incorrer numa lei que te restringe; eu acho muito complicado isso. É complicado! Como é que você vai fazer isso?".

A patrulha
"O Nelson Leirner [o artista plástico Nelson Leirner, nascido em São Paulo em 1932] botou um porco dentro de um quadrado, num caixote. Bom, foi um horror, fizeram um horror com isso, sendo que não tem nada; ele quer fazer, se alguém achar ruim que ache ruim, que escreva contra, que fale mal... mas não pode proibir. Quase que eu vou dizendo que é proibido proibir, mas já passou, é 68! Então, não é mais... A liberdade é a responsabilidade de cada um".

Impunidade
"Eu acho que não tem país mais promissor do que o nosso. Não tem um país mais livre do que o nosso, não tem! O que tem é que tem muito malandro, tem muita ladroeira, mas isso é muito da impunidade, porque se rouba no mundo inteiro, mas o cara, quando pegam, ele sofre as conseqüências e vai preso. Agora, aqui não! Você vê as besteiras que aparecem, de dinheiro pra cá, dinheiro pra lá, então é muita impunidade".

"Talvez seja uma herança portuguesa, eu não sei de onde vem, mas é uma coisa que está aí. Mas não é por isso que devemos desconsiderar este país, que é um país maravilhoso. Já te falei: o melhor país do mundo é esse. Agora, não espalha, senão todo mundo cai pra cá!"

Crítica e Jornalismo
"O jornalismo [no Brasil] é bom. Talvez a crítica - a crítica musical, a crítica fotográfica, a crítica cinematográfica - ela evoluiu agora, ela está evoluindo agora revelando bons críticos, mas isso está vindo agora, nós estamos tendo críticas boas, tem jornalismo bom; agora você tem de escolher: você tem de escolher o jornal que lê, os artigos que você vai ler, mas é a sua escolha. Acho que tem um jornalismo bom, um jornalismo multipartidário - tem jornal de tudo quanto é canto - não tem proibição, não tem censura e não pode ter."

Arte no Brasil
"Arte, aqui no nosso país, até agora tem sido coisa de elite. E a coisa de elite, é como diz o Hermeto [o músico alagoano Hermeto Pascoal, nascido em 1936] no meu filme [Hermeto, Campeão, média-metragem de 1981 criado, produzido e dirigido por Farkas]: coisa de elite é uma coisa que é melhor que a Coca-Cola, é melhor do que... sabe... então uma coisa de elite é uma coisa, [risos] é uma coisa que sei lá..."

Cena de "Hermeto, Campeão!" (1981). [Reprodução]

"E agora esta elite está se confundindo, quer dizer, está havendo uma emergência de um público novo, interessante, interessado, de gente jovem, tem muita juventude ativa nesse negócio, fazendo, procurando e vendo as coisas e vamos ter então um futuro bom. Eu acho que é bom".

Joris Ivens
"Ele [o documentarista holandês Joris Ivens 1898-1989] ensinou muita coisa. Quando eu me separei da minha primeira família e fui morar, fiz a segunda família, isso faz 20, 30 anos, sei lá quanto, ele falou: 'Mas vocês vão viver na mesma cidade?', 'Sim!', 'Ah, isso não vai dar certo...'. Quer dizer, ele era muito, ele era uma pessoa muito verdadeira. Ele brigava com todo mundo, todo lugar que ele foi ele brigou".

"Brigou na China, brigou em Cuba, brigou na Espanha, mas ele fez os filmes dele, os filmes dele são maravilhosos, não tem essa não, ele brigou mas ele fez as coisas; então é um ídolo meu porque ele sobreviveu às brigas e lutou por uma honestidade dele, era ele, 'eu acho isso, eu acho aquilo, briguei com Cuba, briguei na China, briguei na Espanha', por vários motivos, ele tinha a opinião dele. Ele era um sujeito maravilhoso".

"Você precisa falar com o Sérgio Muniz [diretor de Rastejador, s. m. e outros], que é um rapaz que trabalhou comigo pra ver a idéia dele do Ivens, qual é a idéia - ele foi muito amigo também do Ivens nessa época - e o Joris era uma pessoa fantástica, muito, muito legal, ele é meu ídolo porque ele sempre trabalhou na verdade dele, não na verdade que existia mas na verdade dele, quer dizer, 'eu acho isso, eu acho aquilo' e pronto".

"Tem um episódio muito interessante, depois de 68 tudo era coletivo. Então, ele disse: 'Eu tenho esse filme de 68, dos estudantes, vamos montar o filme juntos, vamos sentar juntos na moviola' (moviola é um aparelho pra montar o filme); Então sentaram 10, o pessoal pra montar o filme. Depois de duas ou três sessões ele disse: 'Acabou a democracia! Quem manda aqui sou eu, eu é que vou montar, porque não dá certo'. Não dá pra fazer. Certas coisas coletivas não dá, a democracia é um negócio complicado".

O documentário
"O documentário é uma ala, é uma tendência de manifestação. É uma manifestação sobre as coisas que as pessoas sabem e vivem. Eu não vou dizer que o documentário é a realidade, mas o documentário procura uma verdade que sempre é a verdade do autor, nunca é uma verdade absoluta, não há uma verdade absoluta no documentário, é sempre um filme de autor. O documentário é sempre a visão que o documentarista faz. E essa visão é muito variada!"

"Subterrâneos do Futebol" (1970). [Reprodução]

"Tem coisas fantásticas, tem coisas muito boas e tem bobagens, mas faz parte da vida. A vida não tem só coisas excelentes, na realidade tem de tudo. Então tem documentários ótimos, tem documentários péssimos, tem documentários indiferentes".

"Sempre fui partidário de contar tudo em 15, 20 minutos, 'se for mais do que isso aqui, não presta!'. Mas é bobagem, porque têm coisas que necessitam de uma hora. Então nada disso funciona. Tem que dar uma liberdade para fazer, o público é que vai dizer, se interessou, não interessou, sei lá... Acho que não [há regras]".

"É a mais fácil. Porque você faz com mais facilidade e você tem uma enxurrada muito grande; agora você tem de ver o seguinte: você tem de escolher o interessante, dessa enxurrada que você faz tem de cortar tudo aquilo que não interessa. E é muito difícil cortar um braço da gente. Por isso é que tem muita coisa a mais do que deveria ter. É assim."

"Acho a coisa muito interessante porque tem muita variedade, e o longa-metragem nem sempre pode fazer tudo, porque é muito caro! O documentário é um pouco mais econômico e dá para fazer coisas interessantes. Agora, nem tudo é interessante, nem tudo é maravilhoso, tem muita besteira, muita bobagem".

Cinema atual
"Tudo é válido. Agora, por exemplo, depois de assistir meia dúzia de filmes desses, eu não quero mais, porque eu acho que já vi tudo, já vi todas as misérias, todas as matanças, todas as injustiças, depois de você assistir uma série deles... não dá pra fazer muito mais do que isso. Quer dizer, continuam fazendo, devem fazer, sempre aparece coisa mais interessante, mais nova, mas não dá pra ver, pra mim não dá pra ver tudo. Porque eu vou ver de vez em quando. Tem de fazer, tem de mostrar, enquanto tiver público, muito bem".

"Até o Hector. Por mais que possam acusar, ele também trabalhou isso [o aspecto social do cinema]. Trabalhou isso naquele outro filme, o primeiro... ai meu Deus... o menino... do Pixote! [Pixote: A Lei do Mais Fraco, 1981, longa-metragem de Hector Babenco]. O Coutinho [o cinesta paulistano Eduardo Coutinho, nascido em 1933], o Coutinho é um cara maravilhoso; o Wladimir Carvalho [diretor de Companheiros Velhos de Guerra e Barra 68], tem dez nomes aí que são absolutamente fantásticos. O Geraldo Sarno [diretor de Viramundo e outros], que pouca gente conhece, que trabalhou comigo, é uma pessoa absolutamente maravilhosa. Ele foi influenciado muito pela Lina Bardi [Achillina Bo, a Lina Bo Bardi (1914-1992), arquiteta italiana radicada no Brasil], que levou ele a ver as coisas que ele viu, que está fazendo".

Cena de "Viramundo" (1965). [Reprodução]

"Essas coisas influenciaram o Geraldo, o Geraldo me levou para lá - foi ele que me abriu a cabeça pra essas coisas. Fomos nós, o Geraldo, foi o Paulo Rufino, depois com a turma toda, que nós fomos e repetimos. E aí mais uma vez aquela coisa comercial. Não deu certo comercialmente. Nunca consegui vender, nem para televisão".

"Eu pretendia fazer para escola que nem livro, mas o professor achava que 'o filme vai me desempregar', 'não vai precisar mais de professor'; eu disse 'não, é que nem um livro, o filme é um livro, que tem de ser debatido, projetado, discutido'. Também a televisão naquela época era muito fechada, não queria saber... Era muita miséria... mas, isso já passou!"

Novas tecnologias
"A linguagem vai ser a mesma, o que vai ter é um material muito grande para ser editado, para ser montado. Não quer dizer que seja melhor, pior, maior ou menor, é que é mais fácil você fazer hoje, mais barato você fazer, do que fazer antigamente, que era muito caro e muito difícil."

"Isso não quer dizer que o material seja muito melhor, a qualidade não depende da quantidade. Nem a fotografia, nem o cinema, nem o digital, [tudo apenas] é um meio de chegar lá, não é um fim, é um meio de chegar lá; então tudo bem, que seja, eu ainda não peguei porque não tenho mais cabeça."

A língua húngara
"A língua húngara é totalmente inútil [jocoso]. Mas ela é inútil porque funciona para os fotógrafos e para os músicos. Também funciona para a cozinha húngara - eu adoro cozinha húngara -, mas é uma falação minha meio besta, mas é uma língua que ninguém entende, só nós, nós húngaros, mas eu vou fazer o quê?!"

Fotografia brasileira
"O Brasil foi minha escola. O cerne do meu trabalho é o Brasil, é a pessoa brasileira". Existe fotografia brasileira? Eu acho que sim. Tem um certo olhar que é brasileiro. É muito boa, subindo. Tem gente muito boa trabalhando, tem gente se especializando, se depurando, a linguagem é uma linguagem muito interessante. Eu acho que tem fotografia brasileira! Não [é top mundial] porque não tem divulgação mundial".

"Tem qualidade para ser e ela não é porque nós não somos americanos nem europeus. Um brasileiro que vai para fora e consegue se projetar, Sebastião Salgado [o fotógrafo mineiro nascido em 1944], ele se projeta! Porque está lá fora. Ele, só aqui dentro, é limitado, qualquer fotógrafo bom aqui dentro é muito limitado, porque nós não temos divulgação internacional, não temos".

"Não temos revista que publica Pedro Martinelli [1950], Cristiano Mascaro [1944], lá fora, entende, é por isso que nós não temos top mundial, porque não temos divulgação mundial, se tivesse, aí a gente poderia competir em igualdade de condições. Não tendo, nós ficamos na nossa e seja o que Deus quiser".

O olhar nativo
"Eu adorava o Weston [o fotógrafo norte-americano Edward Weston (1886-1958)]. O Weston é um cara muito interessante que fotografava tudo, a Califórnia, o México - tem certas pessoas que se prendem a países, a locais, eu me prendo ao Brasil - e ele se prendeu muito no México, o Álvares Bravo [o fotógrafo mexicano Manuel Álvarez Bravo (1902-2002)] se prendeu no México, o Weston se prendeu na Califórnia, enfim, cada um se prende a um local. Eu acho que o meu olhar é daqui. É o olhar brasileiro".

Realismo
"Eu não retrato os despossuídos, os sem-teto. Eu retrato a vida como ele é. Eu não tenho nenhuma afinidade com a miséria; o que a gente retrata não é a miséria, é a realidade. Se alguém olha como miserável, é porque está em outra classe, mas a grande maioria nossa não é rica, não é isso. Existe uma incompreensão. Por exemplo, os meus primeiros filmes a televisão, a TV Cultura disse que não passava porque era miserável. Paciência, eu não vou... O Brasil é um país complicado".

Televisão
"A televisão faz conhecer [o país]. Embora a televisão tente impressionar e ficar por cima de tudo. Mas tem coisas que ela mostra, quer dizer, desde o Globo Repórter, por mais diversificado que seja... A televisão é importante,, porque mostra as coisas que tem de ser mostradas e mostra as outras que são fantasias".

Para os iniciantes
"Tem de começar trinta anos, quarenta anos atrás. Ver os artistas de 40 anos atrás, pegar livros, anuários, de 40 anos atrás e ver como é que aquilo vem se desenvolvendo, até chegar os dias de hoje. Quem é que o Kertész [o fotógrafo húngaro André Kertész (1894-1985)] influiu, quem é que o Salgado [o fotógrafo Sebastião Salgado] vai influir".

"Essas pessoas existem, tem a história da fotografia que a pessoa tem de estudar um pouco, pegar uns livros mais antigos, uns livros de 30, 40 anos atrás, para ver de onde veio isso que nós chegamos hoje. Quer dizer, de onde é que a gente veio? A gente tem de conhecer um pouco da história da fotografia. No SENAC tem várias pessoas que ensinam isso. O SENAC é um negócio importante do ponto de vista fotográfico, provavelmente cinematográfico, mas eu não conheço tanto".

Escolas de cinema
"Lá [em Cuba] o governo deu um puta dinheiro. Cuba foi feito com o dinheiro do García Márquez e junto com o governo. O governador ia lá, o presidente ia lá encher o saco de todo mundo, pra ganhar dinheiro, pra dar prestígio à escola. Na Argentina, naquela época também, agora eu não sei como é que está, mas eles estão lá. As escolas são muito boas. Agora, a escola não forma artistas, a escola forma a base. Quem é artista é o cara que é o que tem na cabeça".

Cena de "Nossa Escola de Samba" (1970). [Reprodução]

Projetos
"Eu sou um cara que tira fotografias, eu tenho umas 40, 50 fotografias boas. Agora estou fazendo um livro, uma expedição que nós fizemos com o Vanzolini [o professor e compositor paulista Paulo Vanzolini, nascido em 1924] quarenta anos atrás, no Rio Negro. Ele está escrevendo um pequeno texto. São fotografias daquela época".

"Eu não sei se hoje está diferente daquela época, mas é muito interessante, são coisas muito boas. É tudo colorido, são 500 fotos coloridas que eu vou publicar. Estavam aí no depósito... Deus é que sabe [quando sai]. Estamos trabalhando".

Um otimista delirante
"Mais triste foi ver a miséria na qual o mundo [está]. O mundo tem muita miséria, miséria moral, é uma pena. O que me deixa mais alegre é que a gente consegue sair e vai conseguir sair disso. Você vai ver! Eu sou um otimista delirante, é verdade!"

Religião
"Nós somos de uma família judaica, mas a religião para mim é uma coisa tão de dentro, que não é uma coisa que chama as pessoas nem fala com as pessoas sobre isso. É uma coisa tão íntima, tão de dentro. A religião é uma coisa interior, é interior de cada um. Meu pai era religioso, acendia velas e fazia reza. Eu não sou... Eu não demonstro, mas eu sou. Mas eu sou por dentro, não faço propaganda, nem sou contra, acho que todas as religiões se unem, isso é uma coisa importante".

Viver é muito importante
"A mortalidade é uma conseqüência da vida. Quem vive, morre. Isso é uma coisa tão natural, ela pode vir hoje, pode vir amanhã, daqui a dez anos... Eu gostaria de viver mais se eu conseguisse manter a minha cabeça boa, porque depende muito da tua cabeça a sobrevivência. A vida é uma coisa muito interessante, muito positiva e muito necessária. E a morte é uma conseqüência da vida".

"São as coisas da vida da gente. A vida da gente é uma sucessão de idéias e os atos da gente. Tudo o que a gente faz é nossa vida, viver é muito importante".

São Paulo, 10.08.2004.

Acesse aqui o Especial PJ:Br de Fotojornalismo e vídeos com Thomaz Farkas.


*Marcelo Januário é mestrando em jornalismo na ECA-USP.

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