Ensaios
Raízes
forâneas do Pensamento Jornalístico Brasileiro
Por
Martin
Jayo
Ao
estudarmos o desenvolvimento do pensamento jornalístico
brasileiro, torna-se impossível dissociá-lo da
própria história da imprensa e do jornalismo no
País. Parece óbvio que o pensamento teórico-acadêmico
sobre a área tenha recebido influências e condicionamentos
vindos da prática do setor jornalístico, e não
seria razoável supor que a produção de
conhecimento teria sido a mesma, com dinâmica e desenvolvimento
idênticos aos que teve, caso a história da mídia
tivesse sido outra.
No
entanto, por mais que as influências sejam evidentes,
estamos falando de fenômenos históricos separados,
que precisam ser situados e tratados individualmente. Essa distinção
se torna particularmente clara do ponto de vista cronológico,
uma vez que há uma distância muito grande, de mais
de século e meio, entre o surgimento da imprensa e a
configuração de um pensamento jornalístico
no Brasil.
Este
texto procura caracterizar o modelo pelo qual se deu a formação
do pensamento jornalístico brasileiro. Na seção
1, fazemos uma distinção entre os condicionantes
locais, ligados à história da nossa imprensa e
do nosso jornalismo, e as raízes forâneas do nosso
pensamento jornalístico, associadas à importação
e assimilação de um conjunto de matrizes teóricas
estrangeiras. Na seção 2, sugerimos para futuros
estudos um exercício metodológico, voltado à
identificação dos traços de pensamento
forâneo presentes nas idéias paradigmáticas
do nosso pensamento jornalístico atual.
1.
Da imprensa ao pensamento jornalístico: dinâmica
e cronologia
A
imprensa no Brasil está prestes a completar 200 anos,
tendo surgido em 1808. A data exata é objeto de controvérsia,
conforme se considere como marco inicial a publicação
do primeiro número do Correio Braziliense ou da Gazeta
do Rio de Janeiro.
A
Gazeta do Rio de Janeiro foi o primeiro jornal a ser de fato
impresso no Brasil. Dirigido por Frei Tibúrcio José
da Rocha, começou a circular em 10 de setembro de 1808.
Tratava-se de um veículo de divulgação
oficial, instituído pela Corte portuguesa recém-chegada.
Por sua vez, o Correio Braziliense foi lançado em 1o
de junho do mesmo ano, precedendo, portanto, em cerca de três
meses ao primeiro número da Gazeta. Dirigido por Hipólito
José da Costa, era produzido e impresso na Inglaterra
e enviado ao Brasil, onde circulava clandestinamente. É
essa particularidade que torna controversa entre os historiadores
a sua inserção na imprensa brasileira, mesmo levando-se
em conta o fato atenuante de que editar no exterior era o único
artifício viável para produzir um jornal crítico
voltado a assuntos internos, numa época em que no Brasil
nada se imprimia sem o aval de censura prévia.
Essa
controvérsia continua acesa, e recentemente resultou
até mesmo na mudança da data comemorativa do "Dia
da Imprensa", que até 1999 era celebrada em 10 de
setembro, lembrando a aparição da Gazeta do Rio
de Janeiro. A partir de 2000, por obra de lei tramitada no Congresso
Nacional, a comemoração foi transferida para 1o
de junho, homenageando o aparecimento do Correio Braziliense.
Se
a data para o surgimento da imprensa no Brasil é controversa,
o problema é maior no que diz respeito ao início
da prática jornalística. Em primeiro lugar, existe
uma tradicional polarização entre historiadores
da imprensa: alguns atribuem a Frei Tibúrcio a condição
de primeiro jornalista, outros a Hipólito da Costa. A
opinião dos primeiros é fortemente contestada
pelo segundo grupo, dado tratar-se a Gazeta de um periódico
oficial, a serviço da coroa. "Jornal oficial, feito
na imprensa oficial, nada nele constituía atrativo para
o público, nem essa era a preocupação dos
que o faziam, como a dos que o haviam criado" (WERNECK
SODRÉ, 1966: 23). Acresce que a Gazeta, como aliás
tudo que fosse impresso no Brasil do período joanino,
estava sujeito ao controle prévio dos censores reais,
restrição da qual Hipólito da Costa e seu
Correio Braziliense se viam livres em Londres. "Para a
existência de jornalismo não basta dispor da imprensa,
sendo imprescindível que haja liberdade de imprensa."
(MARQUES DE MELO, 2000: 4)
Em
segundo lugar existem teses que questionam ambos os lados dessa
polêmica. O exemplo mais característico é
a posição defendida, a partir da década
de 1930, por Pedro da Costa Rego, primeiro catedrático
brasileiro de jornalismo. Este autor nega o título de
primeiro jornalista tanto a Frei Tibúrcio, pelas mesmas
razões expostas acima, como também a Hipólito
da Costa, a quem teriam faltado os requisitos de neutralidade
e apartidarismo. Para Costa Rego, a verdadeira atividade jornalística
somente viria a ser exercida no Brasil décadas mais tarde,
inaugurada por Tavares Bastos (1839-1875), sendo os homens de
imprensa que o antecederam "todos, antes, homens políticos
manejando o Jornalismo - manejando sem dúvida com arte,
profundeza e técnica, mas sempre, em última análise,
a serviço de um partido ou de uma determinada causa".
(Cosa Rego, 1952, citado por MARQUES DE MELO, 2000: 5)
Aceitando
a tese de Costa Rego, teríamos um lapso de algumas décadas,
desde inauguração da imprensa brasileira, em 1808,
até o surgimento da atividade jornalística, já
durante o segundo império. O que dizer, no entanto, quanto
ao surgimento de um pensamento jornalístico no cenário
acadêmico local?
Todo
campo do conhecimento humano, conforme argumenta MARQUES DE
MELO (2003), se desenvolve em resposta a demandas sociais: "Começa
na base da sociedade, robustecido pelo senso comum. Amplia-se
e desenvolve-se no interior das organizações profissionais,
culminando com sua legitimação cognitiva por parte
da academia" (MARQUES DE MELO, 2003: 33). No caso do pensamento
jornalístico brasileiro, esse processo se inicia com
o surgimento da imprensa em 1808, estendendo-se por cerca de
160 anos até a formação de uma escola de
pensamento com matizes locais, no início da década
de 1970.
É
certo que no decorrer do processo, e bem antes desta data, já
se registram contribuições intelectuais embrionárias,
como as de Carlos Rizzini e Luiz Beltrão, entre outros.
É somente por volta de 1970, entretanto, que toma corpo
uma produção mais sistematizada e orgânica
de elaborações teóricas com matizes locais.
Em outros termos, é nessa época que se torna possível
falar em uma "escola de pensamento" local. Conforme
conceitua DIAS (2001: 134), "uma escola de pensamento se
forma por influências recíprocas, um clima cultural
comum e pesquisas formais analogamente comparadas".
Para
que essas condições se reunissem, foi decisiva
a criação dos cursos de pós-graduação
(mestrado e doutorado em ciências da comunicação).
O Brasil já contava desde a década de 40 com instituições
de ensino universitário do Jornalismo, em particular
a Fundação Cásper Líbero e a Escola
de Jornalismo da Universidade do Brasil (hoje UFRJ), isto sem
mencionar a Universidade do Distrito Federal, instituída
nos anos 30 e com vida curta. Os cursos existentes voltavam-se
fundamentalmente ao ensino da praxis jornalística, visando
à formação de recursos humanos para uma
indústria jornalística crescente.
A
criação dos cursos de mestrado e doutorado não
apenas representou uma ampliação de escopo em
relação a esses cursos profissionais - do mero
ensino da praxis para a investigação conceitual
e teórica - mas também forneceu os elementos para
a formação de uma comunidade científica
(data desta época a criação de entidades
associativas tais como a extinta ABEPEC, em 1972, e a INTERCOM
em 1977), e facilitou a circulação de referenciais
teóricos e metodológicos estrangeiros. Do confronto
dos diversos referenciais forâneos com a tradição
herdada dos precursores locais, acabaram engendrando-se construções
teóricas autóctones, caracterizadas pelo "hibridismo
teórico e superposição metodológica"
(MARQUES DE MELO, 2003: 40).
Situação
semelhante se produz mais ou menos simultaneamente em outros
países da América Latina, permitindo que se fale
também na formação de uma escola de pensamento
latino-americana, da qual a escola brasileira pode ser vista
como subconjunto ou ramificação. Tanto no caso
latino-americano como no brasileiro, a característica
mais marcante do pensamento jornalístico local é
a mestiçagem, mediante adaptação e aclimatação
de matrizes teóricas estrangeiras. A seguir, fazemos
uma breve reflexão a respeito dessas matrizes, procurando
entender suas contribuições para a formação
de um pensamento local.
2. Idéias paradigmáticas e suas raízes
forâneas
Numa
visão de conjunto, resulta difícil identificar
uma matriz estrangeira dominante, entre as diversas que participaram
da formação do pensamento jornalístico
brasileiro. Não há uma tradição
que tenha nos influenciado mais do que as outras. Por outro
lado, o exame de tópicos específicos do debate
acadêmico - idéias paradigmáticas, autores,
teorias - permite, sim, inferir influências pontuais:
ora identificamos numa idéia um reflexo do pensamento
comunicacional europeu, ora uma influência da escola norte-americana,
e assim por diante.
O
que pode ser proposto, nessas condições, é
um exercício metodológico voltado à identificação
de influências pontuais. Tomando por base as idéias
e construções teóricas do nosso pensamento
jornalístico, tratar-se-ia de pesquisar os traços
precursores presentes em cada uma delas, individualmente. Com
isto, seria possível construir um mapeamento das nossas
raízes forâneas, que será mais completo
e abrangente quanto mais representativo do pensamento jornalístico
nacional for o conjunto de idéias e tópicos analisados.
O
primeiro passo desse exercício seria uma seleção
de idéias paradigmáticas do pensamento jornalístico
brasileiro a serem estudados. Feito isso, a análise passaria
a esmiuçar cada uma delas, identificando traços
identificáveis como sendo de referenciais teórico-metodológicos
forâneos. A análise bibliométrica do material
estudado pode ser uma importante ferramenta auxiliar, a exemplo
do que ocorre na pesquisa realizada por DIAS (2001).
Claro
que, pela vastidão da bibliografia envolvida e pela complexidade
metodológica, um exercício dessa natureza jamais
caberia no presente trabalho. Nosso objetivo aqui é simplesmente
sugeri-lo como possibilidade de investigação e
propor seu desenvolvimento futuro.
É
possível, contudo, apenas a título de ilustração,
relacionar algumas concepções paradigmáticas
do pensamento brasileiro que, ao menos à primeira vista,
parecem ter raízes forâneas não muito difíceis
de identificar. Seguem dois exemplos.
2.1
Reivindicação de autonomia disciplinar
De
pronto, a própria reivindicação de autonomia
disciplinar pode ser vista como um campo de cristalização
de influências forâneas. A busca de uma identidade
do Jornalismo como disciplina autônoma é uma constante
na comunidade acadêmica brasileira, preocupada em delimitar
a abrangência e o escopo do jornalismo como ciência,
diferenciando-o de outras ciências aplicadas ao estudo
de fenômenos comunicacionais. Muitas vezes, as dificuldades
disso são explicadas pelo fato de ser a ciência
do Jornalismo vista como uma disciplina em crise no sentido
kuhniano, isto é, que não conta com um paradigma
científico dominante e universalmente aceito para resolver
os problemas que se colocam (KUHN, 1975).
Resulta difícil, ao observar essa busca de auto-afirmação
no pensamento brasileiro, deixar de fazer associações
a pelo menos uma matriz analítica estrangeira: a discussão
do jornalismo como disciplina independente segundo Otto Groth,
autor inserido no pensamento europeu.
Pesquisador
alemão, catedrático de "ciência do
jornalismo" no início do século XX, Groth
"dirigiu praticamente toda a sua obra ao reconhecimento
da ciência do jornalismo como ciência independente"
(BUENO, 1972: 3). O objeto da "ciência do jornalismo"
é próprio na medida em que "não foi
estudado, em sua totalidade, por nenhuma outra ciência,
a não ser como documento auxiliar. " (op.cit.: 8)
Já quanto ao método, Groth "acredita que,
determinado o objeto, estabelecida a área de estudo,
o método surja espontaneamente como um imperativo e uma
necessidade do próprio processo de investigação
(op.cit.: 9).
2.2
Concepções do jornalismo de massa
Em
sua maioria, os programas de pesquisa em jornalismo e comunicação
que se estruturaram no Brasil têm suas linhas de trabalho
orientadas para a grande mídia. O foco de análise
dominante sempre foi a comunicação de massa, em
seus diversos meios (impresso, televisivo, radiofônico,
etc). São muito raros os programas que optaram por linhas
de trabalho orientadas à comunicação não
hegemônica. MARQUES DE MELO (2003: 273) cita como único
caso o chamado Grupo de São Bernardo (PósCom-UMESP),
e ainda assim somente em seus dez primeiros anos de existência.
Este fato pode ser revelador de influência da tradição
norte-americana sobre as nossas instituições acadêmicas.
Em particular, talvez valha a pena estabelecer um paralelo com
o modo como a notícia e o jornalismo são vistos
por PARK (1940), um dos autores pioneiros do pensamento comunicacional
da escola de Chicago.
Este
autor parte da distinção entre duas formas fundamentais
de conhecimento, a saber, o "conhecimento de", incorporado
pela percepção dos sentidos, e o "conhecimento
acerca de", que é o conhecimento formal, sistemático
e científico. Entre essas duas formas extremas, existiria
um contínuo, "dentro do qual encontram lugar todas
as espécies e todas as partes do conhecimento" (PARK,
1940: 173-4), e dentro do qual a notícia tem seu lugar
como forma do conhecimento: ela desempenha para o público
as mesmas funções que a percepção
imediata dos sentidos desempenha para o indivíduo. Por
essa razão - isto é, por corporificar o "conhecimento
de" transposto da dimensão individual para o plano
coletivo, é que a notícia, para ser efetiva, deve
conservar ao máximo a principal propriedade desse tipo
de conhecimento, que é a sua capacidade de ser instantaneamente
assimilado e comunicado. Precisa chegar "em forma de breves
comunicações independentes, que podem ser fácil
e rapidamente compreendidas" (op.cit.:175-6). Temos aí
um ponto de partida possível para nossas visões
centradas prioritariamente no jornalismo de grande público.
3.
Considerações finais
Expusemos
acima algumas reflexões sobre o processo de fundação
do pensamento jornalístico brasileiro, caracterizando-o
como um pensamento "mestiço", que se constituiu
a partir do início da década de 1970, pelo amálgama
de três elementos: (a) um estoque de conhecimentos prévios,
produzidos por pensadores pioneiros, entre os quais se destacam
Rizzini, Luiz Beltrão, entre outros; (b) uma tradição
de ensino universitário da praxis jornalística,
que vinha desde a década de 1930; e (c) a incorporação
de um conjunto de teorias forâneas, que tiveram sua circulação
agilizada entre nossos pesquisadores com o início dos
cursos de mestrado e doutorado em comunicação.
Dessa mescla, surgiu um pensamento "mestiço",
caracterizado pelo hibridismo de origens e diversidade de influências.
Embora
não haja como identificar uma matriz de pensamento estrangeiro
(européia, norte-americana, latino-americana, ibérica,
etc.) que tenha nos influenciado com mais força, talvez
seja possível, sim, fazer um tratamento individualizado,
partindo de uma seleção das construções
teóricas e idéias paradigmáticas do pensamento
jornalístico brasileiro e buscando nelas, caso a caso,
os traços de pensamento forâneo nelas cristalizados.
Embora esse exercício não caiba aqui por sua dimensão
e complexidade, deixamos a sugestão para estudos futuros.
Referências
bibliográficas
BUENO,
Wilson da Costa (1972). "O jornalismo como disciplina científica:
a contribuição de Otto Groth". São
Paulo: Editora Comunicações e Artes.
DIAS,
Paulo da Rocha (2001). "Três precursores dos estudos
latino-americanos: Rizzini, Otero e De la Suarée. Trabalho
apresentado no VI Encuentro de Enseñanza e Investigación
en los Países del Mercosur. Montevidéu-Uruguai,
maio.
KUHN,
Thomas (1975). "A estrutura das revoluções
científicas". São Paulo: Perspectiva.
MARQUES
DE MELO, José (2000). "A Natureza do jornalismo
e a missão do jornalista segundo Costa Rego". Anais
do XXIII Congresso brasileiro de Ciências da Comunicação,
Manaus-AM.
MARQUES
DE MELO, José (2003). "História do pensamento
comunicacional - cenários e personagens". São
Paulo: Paulus.
PARK,
Robert E. (1940). 'A notícia como forma de conhecimento',
reproduzido em: Steinberg (org.), "Meios de comunicação
de massa". São Paulo: Cultrix, 1976, p.168-185.
WERNECK
SODRÉ, Nelson. "História da Imprensa no Brasil".
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
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