Ensaios
O
conceito de notícia como norte
na teorização do jornalismo
Por
Suzi Garcia Hantke
O
que é notícia: a tentativa de conceituação
O
estudo teórico do jornalismo foi se estruturando à
medida da expansão da atividade. Não por acaso,
o pensamento jornalístico ganhou contornos mais precisos
a partir do século XX, com o surgimento dos primeiros
cursos universitários - reflexo da rápida transformação
dos jornais em empresas que exigiam mão-de-obra cada
vez mais especializada.
O
grande desafio do pensamento jornalístico tem sido estabelecer-se
como um campo de estudo sistematizado. Ao contrário de
outras áreas, o jornalismo ainda não conta com
uma linha única de orientação de estudos,
o que implica imprecisão conceitual e dificulta a acumulação
de conhecimentos.
Em
sua tese de livre-docência defendida na Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo, José Marques
de Melo aponta a provável justificativa para o pensamento
jornalístico não ter consolidado um terreno mais
preciso:
"A
justificativa não está apenas na circunstância
de que são fenômenos sociais, e portanto dinâmicos,
mas na essência mesma do jornalismo que se nutre do efêmero,
do provisório, do circunstancial, e por isso exige do
cientista maior argúcia na observação e
melhor instrumentação metodológica para
que não caia nas malhas do transitório."
(1)
Entre
as mais incipientes tentativas de sistematização
de uma teoria sobre o jornalismo é possível identificar
um traço comum. O pensamento sobre a atividade jornalística
parece utilizar como norte a conceituação sobre
o produto dessa atividade, ou seja, sobre a notícia.
O
trabalho pioneiro no campo da comunicação, escrito
em 1690 pelo alemão Tobias Peucer como tese de doutoramento
na Universidade de Leipzig, já trazia como um dos motes
a tentativa de conceituação da notícia.
Seu texto De relationibus novellis (Os relatos jornalísticos),
apesar de construído no século XVII e, portanto,
a partir de um jornalismo ainda distante da atividade empresarial
em que se transformaria, carrega questionamentos que se tornaram
perenes, entre eles, a questão da natureza da notícia.
Peucer
conceitua como a matéria dos periódicos "as
coisas singulares, fatos realizados ou por Deus através
da natureza, ou pelos anjos, ou pelos homens na sociedade civil
ou na Igreja". (2) Partindo dessa definição
ampla, Peucer passa a delimitar o que se encaixaria na condição
de fato noticiável dos periódicos da época,
elencando, por exemplo, os "feitos maravilhosos ou insólitos
da natureza", como inundações, terremotos
ou tempestades; as batalhas, derrotas e vitórias de uma
guerra; os nascimentos e mortes de príncipes; e, finalmente,
os temas eclesiásticos e literários.
Quanto
à forma de relatar o noticiável, Peucer estabelece
que o estilo dos periódicos deveria evitar o oratório
e o poético, indicando o estilo que se tornaria o mais
aceito à narrativa jornalística: a linguagem clara
e concisa.
Atento
à característica efêmera das notícias,
o autor diferencia a atividade jornalística da história,
colocando que, ao jornalismo, não cabe a pretensão
à posteridade. O que é informado, segundo Peucer,
tem em vista à satisfação da curiosidade
humana.
"Com
efeito, o afã de saber coisas novas é tão
grande que cada vez que os cidadãos se encontram em encruzilhadas
e nas vias públicas, perguntam: 'o que há de novo?'.
A fim de satisfazer essa curiosidade humana tem se imprimido
de todo modo novos relatos jornalísticos em diversos
idiomas." (OP. CIT.)
Mais
de dois séculos depois, as questões que Tobias
Peucer levanta em seu texto de 1690 estão no cerne da
teorização sobre a atividade jornalística
desenvolvida pelo sociólogo Robert Park no texto A notícia
como forma de conhecimento, publicado em 1940 no The American
Journal of Sociology. Está lá, novamente, a tentativa
de conceituar a notícia e de estabelecer a diferença
entre história e jornalismo.
Robert
Park foi um eminente sociólogo da Universidade de Chicago,
cujo Departamento de Sociologia se consolidou como um importante
reduto de pesquisas. Sua localização, em uma cidade
que recebia um mosaico de grupos imigrantes, dava aos pesquisadores
um perfeito laboratório social para suas pesquisas. Park
ingressou na Universidade de Chicago em 1914 e ali ficou até
sua aposentadoria, em 1933.
Formado
em Filosofia por Harvard e pela Universidade de Heidelberg,
Robert Park, antes de se tornar sociólogo, exerceu o
jornalismo por dez anos em jornais de diferentes cidades. Sua
vocação para a pesquisa empírica era preenchida
pela investigação dos cenários urbanos,
em especial dos guetos dos imigrantes e das relações
raciais.
Em
1914, aos 50 anos, Park ingressa na carreira acadêmica,
sendo aceito no Departamento de Sociologia da Universidade de
Chicago. Sua bagagem de jornalista é herdada por sua
nova atividade, que acaba por incorporar o modo de obtenção
das informações típicas do jornalismo.
Por isso, é considerado o pai da Sociologia empírica.
No
texto A notícia como forma de conhecimento, Park parte
de uma análise sociológica da atividade jornalística
para estabelecer suas conceituações. Depois de
retomar a distinção entre conhecimento de (conhecimento
pela acumulação de experiências) e conhecimento
acerca de (conhecimento formal, científico), Robert Park
localiza o jornalismo como uma forma especial de transmissão
de conhecimento. Apesar de utilizar como matéria-prima
de sua produção os acontecimentos de uma época,
não pode, segundo o autor, ser confundido com História.
Assim
como Tobias Peucer, Park faz a distinção baseada
na natureza do que se torna notícia: fatos isolados que,
ao contrário do que a História faz, não
são disciplinados sob um ponto de vista histórico,
nem relacionados como seqüências causais. "Essa
qualidade transitória e efêmera é da própria
essência da notícia e está intimamente ligada
a todos os outros caracteres que ela exibe." (3)
E
o que, para Park, é noticiável? Como Tobias Peucer,
que elencava, entre os fatos noticiáveis, os acontecimentos
inesperados, Park também reserva espaço ao insólito,
o inesperado ou algo que represente, em qualquer grau, um afastamento
da vida cotidiana. O noticiável teria como limite o impacto
que provocaria no público. É sempre em busca de
fornecer comoção, emoção ou surpresa
que o jornal está e, por isso mesmo, ao delimitar a notícia,
Park passa a considerar também como variável de
sua construção o público.
Ao
ter contato com uma notícia, o leitor a utiliza como
um elemento para formar sua opinião sobre os fatos de
uma época. É a partir da multiplicação
de opiniões, nutridas pelas informações
divulgadas em um jornal, que a opinião pública
se forma.
Quando
se fala em "jornal", é importante lembrar que
a base dos estudos teóricos do jornalismo utiliza-o quase
como sinônimo de imprensa escrita, o que é natural,
já que, até o século XIX, o jornalismo
foi exclusivamente expresso pela imprensa escrita.
Ainda
em relação à conceituação
da notícia, o americano Walter Lippmann tem entre seus
textos A natureza da notícia, escrito em 1922 e que compõe
as raízes do pensamento jornalístico norte-americano.
Lippmann estabelece que à notícia caberia dar
o "aval" a um acontecimento. A notícia, de
certa maneira, é que dá a dimensão de real
a um fato. É como se ele só pudesse ser considerado
consumado ao virar informação divulgada em um
jornal.
Uma
questão de destaque colocada no texto de Lippmann é
a atuação do assessor de imprensa como semeador
de notícias - uma observação feita já
no início do século XX.
"A
expansão do assessor de imprensa é um claro sinal
de que os fatos da vida moderna não assumem espontaneamente
uma forma, em que possam ser conhecidos. Urge que alguém
lhes dê essa forma e como, na vida cotidiana, os repórteres
não podem dar forma aos fatos e existem poucas organizações
informativas desapaixonadas, as partes interessadas estão
provendo à necessidade de certa formulação."
(4)
Lippmann
antecipa, de certa maneira, a participação que
o assessor de imprensa assumiria no estabelecimento do que vira
ou não notícia, em especial a partir dos anos
1950. Além de incluir o papel desse profissional na construção
da notícia, o autor destaca que uma das intenções
do jornal tem de ser satisfazer o interesse do leitor - o que
é reflexo da necessidade econômica do jornal. Entra
em cena, aí, a variável econômica, com o
estabelecimento crescente dos jornais americanos em empresas
que, como tal, precisavam visar ao lucro financeiro
A
natureza da notícia reflete a atenção do
autor a temas que, embora incipientes no início do século
XX, já indicavam que se tornariam determinantes na atividade
jornalística, como a questão financeira do jornal
e a escolha cada vez mais "profissionalizada" do que
é noticiável.
O
pensamento jornalístico como ciência
Entre
os pioneiros no pensamento jornalístico mundial dois
autores merecem destaque por sua tentativa de transformar o
campo de estudos do jornalismo em uma ciência: o alemão
Otto Groth e o cubano Octavio De la Suarrée. Cada um
desenvolveu uma teorização sobre jornalismo calcada
em uma normatização científica, com a intenção
de conferir autonomia metodológica à ciência
do jornalismo.
Otto
Groth desenvolveu toda sua obra para ajudar na consolidação
da ciência do jornalismo como ciência independente,
mas a mais completa nesse sentido é Die unerkannte Kulturmacht.
Grundlegung der Zeitungwissenschaft (Periodik), publicada entre
1961 e 1965. Para sistematizar a ciência do jornalismo,
Groth definiu seu objeto de estudo e método.
"Quanto
ao objeto, Groth não tem dúvidas: o objeto da
'ciência do jornalismo' é um objeto próprio,
constituído pelos jornais, revistas e as 'blatter' -
isto é, folhas. A esse conjunto denominou 'Periodik',
'Periodika', 'Periodikum'. É próprio na medida
em que não foi estudado, em sua totalidade, por nenhuma
outra ciência, a não ser como documento auxiliar,
ainda que, em muitos casos, essencial." (5)
Quanto
ao método, Groth não chega a enunciá-lo
explicitamente. Segundo Wilson Bueno da Costa, que estudou a
contribuição de Otto Groth como tese de xxxx,
o método surgiria a partir da determinação
do objeto de estudo, como conseqüência natural do
processo de investigação.
A
tentativa de normatização do estudo do jornalismo
como ciência pode ser notada na sistematização
que Groth estabelece, partindo das características dessa
nova ciência, a Periodika: periodicidade, universalidade,
atualidade e difusão. Para analisar o quanto essas características
estão relacionadas entre si, Otto Groth desenvolveu cinco
leis, expressas numa lógica matemática. Por exemplo,
na Primeira Lei, Groth equaciona a universalidade e difusão,
indicando que "quanto mais ampla se escolha a universalidade
da matéria de um periódico, tanto mais extensa
será a sua difusão". (OP CIT.) Com isso,
Groth conclui que difusão é uma função
da universalidade e pode ser indicada por D = f (u). As outras
características são equacionadas em Leis seguindo
a mesma lógica.
Groth
é um dos pilares do pensamento jornalístico germânico
e contribuiu para que a Alemanha ocupe lugar de destaque na
pesquisa sobre jornalismo, iniciada por Tobias Peucer no século
XVII. No século XX, além de Otto Groth, o sociólogo
Max Weber também foi um expoente da pesquisa sobre jornalismo.
No texto A política como vocação, resultado
de sua conferência proferida em 1919 na Universidade de
Munique, Weber faz um paralelo entre a atividade política
e o jornalista, enquadrando-o como um político profissional
pago e discorrendo sobre as tentações da profissão,
como a proximidade com os poderosos.
Além
de Otto Groth, outro pensador que desenvolveu uma linha científica
de estudo do jornalismo foi o cubano Octavio de la Suarrée,
um dos pioneiros da pesquisa jornalística latino-americana.
Sua obra Socioperiodismo, publicada em 1948, é toda calcada
na análise de fontes primárias, reproduzidas no
livro. De la Suarrée deu o nome de Socioperiodismo à
ciência do jornalismo estabelecida em suas pesquisas.
Para
o autor, a nova ciência se valeria da Psicologia e da
Ética como ciências auxiliares. À primeira
caberia explicar como é a imprensa e à Ética,
como deveria ser. Já o Socioperiodismo desvendaria como
a imprensa se manifesta na sociedade. "As três, juntas,
formam uma trilogia de ciências aplicadas à imprensa."
(6)
Sua
base empírica demonstra a influência da tradição
norte-americana, e seus métodos seriam a descrição,
comparação e explicação do objeto
de estudo, no caso o real, presente e passado expressos na imprensa,
segundo a concepção do cubano.
De
la Suarrée se encontra na origem da pesquisa sobre jornalismo
na América Latina, ao lado do brasileiro Carlos Rizzini
e do boliviano Gustavo Adolfo Otero. Apesar de ter uma posição
singular, ao desenvolver uma ciência do jornalismo, De
la Suarrée mantém como pontos comuns com Rizzini
e Otero a grande erudição, herança da cultura
européia que receberam, e o emprego de metodologias típicas
do jornalismo.
Os
três autores concentram a produção de suas
obras entre os anos 1930 e 1950, confirmando a existência
de uma pesquisa latino-americana em comunicação
já na primeira metade do século XX.
Pilares
das raízes forâneas da investigação
jornalística
Os
autores citados neste ensaio compõem as raízes
forâneas do pensamento jornalístico. A Alemanha
está na base da pesquisa jornalística, com o trabalho
de Tobias Peucer de 1690. Em 1907, Karl D'Esther apresentou
a primeira tese sobre jornalismo na Universidade de Münster.
Na década de 1960, outro alemão, Otto Groth, desenvolveu
extensa pesquisa sobre jornalismo, a partir de uma linha científica
de investigação, na intenção de
sistematizar uma nova ciência.
Nos
Estados Unidos, os trabalhos de Robert Park e Walter Lippmann
estão entre as pioneiras pesquisas norte-americanas sobre
jornalismo, carregando forte herança da Sociologia.
Na
América Latina, somente a partir de 1950 consolida-se
uma unidade na pesquisa científica desenvolvida na região,
mas desde a primeira metade do século XX é possível
identificar traços comuns entre os pensadores pioneiros:
o boliviano Gustavo Adolfo Otero, o brasileiro Carlos Rizzini
e o cubano Octavio De la Suarée. Os três refletem
a identidade mestiça que viria a caracterizar a escola
de pensamento latino-americana, exibindo a influência
das escolas européia e norte-americana.
NOTAS
1
- MARQUES DE MELO, José. Gêneros opinativos no
jornalismo brasileiro. São Paulo, ECA-USP, 1983.
2
- PEUCER, Tobias. De relationibus novellis.
3
- PARK, Robert. A notícia como forma de conhecimento.
4
- LIPPMANN, Walter. A natureza da notícia.
5
- BUENO, Wilson Casta da. O jornalismo como disciplina científica:
a contribuição de Otto Groth.
6
- DIAS, Paulo da Rocha. Três precursores dos estudos latino-americanos:
Rizzini, Otero e De la Suarée.
BIBLIOGRAFIA
BOTTOMORE,
T. B. e NISBET, Robert (orgs.). História da análise
sociológica. Rio de Janeiro, Zahar Editora, 1980.
BUENO,
Wilson da Costa. Jornalismo como disciplina científica:
a contribuição de Otto Groth. São Paulo,
Editora Comunicações e Artes, 1972.
DIAS,
Paulo da Rocha. Três precursores dos estudos latino-americanos:
Rizzini, Otero e De la Suarée. In: Revista Brasileira
de Ciências da Comunicação, vol. XXIV, São
Paulo, INTERCOM, 2001.
LIPPMANN,
Walter. A natureza da notícia. In: Steinberg - Meios
de comunicação de massa, São Paulo, Cultrix,
1976.
MARQUES
DE MELO, José. Gêneros opinativos no jornalismo
brasileiro. São Paulo, ECA-USP, 1983.
PARK,
Robert. A notícia como forma de conhecimento. In: Steinberg
- Meios de comunicação de massa, São Paulo,
Cultrix, 1976.
PEUCER,
Tobias. Os relatos jornalísticos. In: Revista Comunicação
& Sociedade n. 33, São Bernardo do Campo, UMESP,
2000.
WEBER,
Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro, Zahar Editores,
1963.
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